O documento apresenta o início de uma história sobre Luis Miguel, um menino pobre que ajuda os moradores de uma vila em troca de dinheiro. Ele é maltratado pelo padrasto e encontra apoio em Dona Alzira. No dia, ele ajuda a pintar uma cerca e recebe tarefas da amiga Maliena.
2. AGRADECIMENTOS
Agradeço acima de tudo ao Deus Pai todo Poderoso pelo dom da escrita e da leitura, pois
sem ele, este trabalho não seria possível.
A todos aqueles que fizeram parte desta obra, mesmo que indiretamente, pois, ao
contrário do que alguns dizem: sim, de certo modo precisaremos de alguém, algum dia.
A você leitor, que, contribuiu no reconhecimento do meu trabalho na compra deste
exemplar: MUITO OBRIGADO.
OFERECIMENTOS
Ofereço este trabalho a Marineide, minha esposa, pela confiança depositada em mim, e o
apoio moral durante todos esses anos de convivência.
A Jaqueline, primeira pessoa a ler meus manuscritos, sempre me incentivando para que
eu seguisse adiante.
Aos meus filhos Victor Hugo, Stéfanie Hellen e Laísa Kasliey.
A minha amada netinha Yasmim Thyellen.
3. A professora Marlene e a Dra. Valéria, que me ajudaram no estímulo criativo e no
refinamento da criação dos textos.
A todos aqueles que de certa forma, foram responsáveis pela elaboração e publicação
desta obra.
INDÍCE
Agradecimentos
Oferecimentos
Prefácio
1- História de fantasmas
2 - Um sonho, uma escolha.
3 - O portal
4 - Os primeiros vestígios das terras Brasileiras
5 - O fim de um começo
Posfácio
4. PREFÁCIO
E assim, a questão que eu me coloco enquanto redijo este texto é: como iniciar uma
história dessas? Talvez eu possa fazer isso falando um pouco do que eu aprendi ao
escrevê-la. Como pode uma história sobre a morte revelar uma vida? O enredo que se
segue não é sobre religião, nem tão pouco com o objetivo de catequizar o leitor, mas
despertá-lo a pesquisar a verdade sobre suas origens. Talvez alguma parte não seja
verdadeira, mais ainda assim é verdade. Você sabe o que quero dizer: esperar para que
algo de bom nos aconteça é estar um passo atrás de quem toma a iniciativa certa.
Nunca estamos sós. O mundo se transforma, e nós somos parte desta transformação.
Nascemos com todos os dons e toda inteligência necessária para recomeçarmos sempre.
Injustiça pode nos acontecer no decorrer de nossa vida, contudo, não devemos nos deixar
ser atropelados pela locomotiva do fracasso. È necessário sabermos que existe algo muito
mais forte do que tudo; o amor. O amor único e verdadeiro rompe qualquer barreira, e nos
deixa mais capaz de entender o mistério da vida, e o que de fato nos é reservado.
Jorge Barrús
História de fantasmas
Luis Miguel era um menino de aparência desnutrida e pequeno para sua idade. O corpo
muito magro destacava a cabeça grande, e por causa disso, alguns dos meninos do
povoado o apelidaram insinuosamente de “cabeção”, mas outros, o chamavam
simplesmente de Luisinho. Apesar da sua decadência corporal, ele era um garoto ágil,
prestativo, e disposto a ajudar qualquer pessoa em troca de alguns trocados, sempre
andando de um lado para outro, sem se deter por qualquer distração. Em suas andanças,
tinha extrema facilidade em fazer amizades, e a maioria dos habitantes do pequeno
vilarejo à beira-mar, com pouco mais de dois mil moradores, o conheciam muito bem.
O menino magricela perdera a mãe aos oito anos de idade e ficara sob o jugo repressor
5. do padrasto, que usava todo o seu tempo para dedicar-se a bebedeiras e carteado.
Apesar de estar sempre à disposição de quem o procurasse para exercer algum tipo de
trabalho, e já ter 12 anos de idade, Luisinho não tinha muita queda pelos estudos, pois,
eram com os favores prestados que ele conseguia dinheiro para comprar algum alimento,
principalmente pães para alimentar-se pela manhã, antes de ir pra escola. Porém, apesar
de ocupar boa parte do seu tempo fazendo pequenos favores para os pescadores, dona
Alzira, uma marisqueira de aproximadamente 70 anos de idade, avó de um de seus
amigos, e que gostava muito dele, sempre exigia que ele freqüentasse á escola. Mas, o
que ele realmente gostava, era ouvir as histórias que, praticamente todas às sextas-feiras à
noite, a velha senhora contava pra ele e um grupo de crianças.
No vilarejo de Canto da Sereia, a maior parte das famílias ainda vivia suas crenças e
mantinham as tradições dos seus antepassados. A maioria dos habitantes era parentes,
antigos amigos ou alguém muito próximo. Exceto Luis Miguel, que viera morar ali há
apenas oito anos atrás. Sua mãe era lavadeira de roupas nas casas de fazendeiros longe do
povoado e sempre levava consigo o menino. O padrasto dele nunca fora de trabalhar e,
além de explorar a pobre esposa, ele sempre a espancava quando estava embriagado – um
fato corriqueiro.
- Esse menino não merece o traste do pai que tem! – diziam sempre.
A avó de Miltinho, dona Alzira, como era cozinheira na casa de uma advogada, pediu
que a mulher tirasse a custódia de dele do seu padrasto, e a nomeasse sua tutora. Mas,
apesar de não conhecer tão bem o brutamonte do padrasto do menino, como os
moradores do povoado, e saber que o elemento era desprezível, um conselheiro tutelar
que acabara de mudar-se para o vilarejo, optou pela guarda paternal, dizendo que seria
errado tirar o garoto do homem sem deixar o sujeito provar que seria capaz de criar o
adolescente como exigia a lei. E assim, a velha senhora teve de desistir de ter a custódia
do rapazola.
Naquela manhã de sexta-feira, o céu estava firme e o tempo quente. Foi aí que o velho
português Manoel pediu para que Daniel o ajudasse a pintar a cerca de sua casa. Então,
Sem se importar com o quanto ganharia, ele apareceu logo cedo defronte à residência do
homem, correu os olhos pela cerca e franziu a testa, como que imaginando o tempo que
demoraria em efetuar àquele serviço – quinze metros ou mais de tábuas a pique com
quase um metro de altura. “Ainda bem que não tinha aulas naquele dia!” – pensou ele.
Suspirando profundamente, molhou o pincel de cerdas largas na tinta a base de óleo, e
prontificou-se a pintar a cerca.
Certo tempo depois, Luisinho passou a mão sobre a testa e franziu-a, evitando que a
gota de suor insistente lhe caísse sobre os expressivos olhos amendoados. Suspirando
fundo, molhou o pincel de cerdas macias na tinta preta novamente e correu-o ao longo
das tábuas; repetiu a operação outra e outras vezes, e finalmente acabou a pintura.
Satisfeito, ele sentou-se num tronco de mangueira, recuperando-se do trabalho. Nesse
momento, Maliena, neta do português, apareceu à porta com um balaio em mãos. A
garota estava sempre acompanhada com meninos, porém, não existia malícia, ou sem-
vergonhice entre eles. Também, ninguém era besta o suficiente para se meter com ela.
Vários garotos já haviam apanhado feio dela. Alguns até diziam que ela era “menina-
homem”, mas ele nunca se atreveu a certificar-se desse boato. Ter a amizade da menina já
era o suficiente.
- Luisinho, que bom você já ter terminado de pintar a cerca... – disse ela, risonha.
6. Todavia, ele sabia que toda aquela cordialidade só significava uma coisa: ela queria
algum favor dele. E estava certo.
- Escute Lu (umas três ou quatro amigas dele o chamavam assim), que tal você ir
buscar os mariscos lá no mangue pra mim, enquanto eu lavo o pincel que você sujou?
- Não posso Mali – ele a tratava com o mesmo carinho que as amigas dela -, seu avô
vai ralhar comigo se eu fizer isso.
- Vai nada bobo! Acho até que ele vai lhe dar uma graninha extra.
- Naquela vez você disse a mesma coisa e ele me disse, bravo: “quando eu lhe mandar
fazer algo, faça-o exatamente como pedi, os compromissos da minha neta são
exclusivamente dela, não a deixe fazê-lo de bobo”.
- Ih menino, isso já faz taaaaaaanto tempo! – ela estalou os dedos. – Olhe, se você for
rapidinho, não vai dar nem tempo de ele perceber.
- Não vou não! – ele retrucou, retraindo-se.
- Eu pago.
Luis Miguel começou a titubear.
- Paga?... Quanto?
- Cinco reais.
- E você tem esse dinheiro?
- Vai querer ou não?
Como o garoto mantinha-se quieto, indeciso, ela contrapropôs:
- Te dou os cinco reais e as minhas bolinhas de gude carambolas.
- Todas elas?! – ele abruptou-se, vendo ali um bom negócio. – Mas, se você me
engabelar de novo, conto tudo pro seu avô.
- Juro que não vou lhe enganar! – e ela beijou os indicadores em cruz.
Realmente aquela última proposta era tentadora demais, só Dina possuía bolinhas de
gude tão especiais. Sendo assim, ele entregou-lhe o pincel, pegou o balaio e saiu voando
para o mangue.
Porém, exatamente no momento exato em que Luisinho se aproximava do local aonde
as mulheres faziam o catado dos mariscos, Fumacinha apontou no caminho – justamente
o amigo de língua mais ferina... Ele vinha com uma bóia enorme entrelaçado à cintura.
Ao chegar mais próximo dele, o garoto negro disse, num tom zombeteiro:
- Babando os outros em pleno dia em que não temos aulas, cabeção?... Você não
cansa?
- Ah, é você Fumacinha?!... Nem tinha lhe visto – ele fingiu surpreender-se.
- To indo atravessar a enseada de bóia, quer ir comigo?
O outro garoto encarou-o por um instante, sentindo de repente uma pontinha de
inveja. Mas, rapidamente declarou espontâneo:
- Tem hora pra tudo Zé Mané!
- Principalmente pra babar os outros em troca de um prato de feijão, né?
- Oh, isso?... – ele murmurou, com displicência. – É de Mali... Ela me pediu ajuda...
Mas irá me pagar! – completou, notando a cara de repúdio do outro menino.
- E desde quando ela paga pra alguém fazer alguma coisa? – como Luis Miguel ficou
calado, ele continuou soltando o veneno: - Porque não manda ela às favas?
- Você mandaria?
Fumacinha olhou-o demoradamente, receoso. Pouco depois respondeu prévio:
- Deus me livre!
7. - Ta vendo?!... Falar é fácil, quero ver é fazer!
Inesperadamente Fumacinha mudou de assunto, querendo saber:
- Sabe dizer se dona Alzira vai contar história de alma penada hoje?
- Acho que vai!... Apareça por lá mais tarde.
Despediram-se um do outro e Luisinho se dirigiu ao mangue. Tinha se atrasado por
causa do amigo e, temia encontrar o português quando retornasse à casa do homem.
Por fim, retornara a tempo de não defrontar-se com o homem, e naquele resto de dia,
tudo ocorrera tranquilamente. Daniel recebera pela pintura da cerca e, desta vez, a menina
cumpriu com o prometido. Ao todo, sua soma acumulara trinta reais. Porém, quando
naquele fim de tarde, ele entrou em sua casa e ascendeu à luz deparando-se com o
padrasto na pequena sala, em carne e osso - mas barriga do que carne -, temeu pelo pior.
Então, sem demonstrar temor, ele fechou a porta atrás de si bem devagar. Habitualmente
tinha medo do padrasto, pois o espancava sempre, sem maiores motivos. No entanto,
ficou ali, encarando-o; ele de pé, o homem sentado em sua velha e habitual cadeira de
balanço, fumando aquele cigarro fedorento de fumo de corda.
- Onde esteve o dia todo? – o traste ronronou, entre dentes.
- Por ai!
- Por ai, aonde? Por que não foi pra escola? – o sujeito já estava bradando.
- Tava ajudando o português a pintar a cerca.
- Ah, então deve ter ganhado um dinheiro bom, né?
- Ele ainda não me pagou.
- Está mentindo! – o asqueroso homem gritou brusco. – Sei muito bem que aquele
muquirana não gosta de pedir favor a ninguém... Cadê o dinheiro?
- Já disse que ele ainda não me pagou!
Truculentamente o velho beberrão agarrou o enteado pela orelha, e após tomar-lhe o
dinheiro que ganhara, deu-lhe umas bofetadas no rosto e rugiu, como uma fera feroz
prestes a devorar sua presa:
- Isso é pra você aprender a não se meter a besta comigo!... Não é porque a enxerida
da Alzira vive enchendo sua cabeça de ilusões e exagerando nas bajulações, que pode
falar comigo da forma que quiser, seu moleque safado! – deu-lhe outra tapa na cabeça e
acrescentou: - Essa sua metidez vai acabar!... Se estiver pensando que ela vale mais do
que eu, arrancarei isso da sua cabeça nem que seja a pancadas!... Sei que foi aquela velha
mexiriqueira que o ensinou a me desobedecer, e por isso, ela vai ver-se comigo.
O infame blasfemou e ameaçou até quanto quis o pobre menino. A seguir, fuzilando-o
com o olhar, exclamou:
- Vou sair pra tomar umas pingas por ai... Ai de você se não estiver em casa quando
eu voltar... E vê se lava a loca, a bacia ta cheia.
Sabendo que o padrasto não voltaria pra casa enquanto ainda tivesse algum tostão no
bolso, Luis Miguel, lavou o amontoado de loca às pressas, pulou a janela, já que o sujeito
trancara as portas a chaves, e correu em direção à casa de dona Alzira.
Assim que chegou à residência de sua protetora, a mulher foi logo perguntando, ao
notar-lhe as faces avermelhadas:
- O que foi filho, o preguiçoso do seu padrasto bateu em você novamente?
Escondendo as bochechas com as pequenas mãos, o garoto disse arquejante e tremulo:
- Não, não foi isso vovó, é que vim numa carreira danada e meu coração ta quase
saindo pela boca... – deu um sorriso sem vida tentando convencer a velha senhora, mas
8. não obteve o resultado esperado.
- Sei... – fez ela, fingindo acreditar nele. – Sinceramente, não sabia que correr deixava
o rosto tão vermelho e inchado!
- Sabe como é...
- Eu não sei de nada, mocinho! – a marisqueira replicou, séria o suficiente para deixá-
lo cabisbaixo. – Vi você pintando a cerca do velho português, já recebeu pelo trabalho?
- É... bom... sabe vó Zira, achei melhor deixar o dinheiro em casa, vai que eu poderia
perdê-lo.
Percebendo pelo desequilíbrio do menino, que o indivíduo que o criava de má
vontade, já que o sítio onde moravam estava no nome do adolescente, realmente poderia
ter tomado o dinheiro dele, dona Alzira, mulher de fibra, descendente de escravos, de
estatura mediana, falou acolhedora:
- Venha meu filho, venha jantar, a canja ainda está quentinha.
Feliz por não ser obrigado a continuar dando explicações a respeito do dinheiro, o
menino correu para a cozinha e acomodou-se à mesa. Após o jantar, dona Alzira avisou
que não iria contar-lhes nenhuma história naquela noite, pois, fora convidada para uma
novena. Com a notícia inesperada, Luisinho, Miltinho e Fumacinha que acabara de
chegar, entraram em total desolação. Porém, com a chegada de Lina e Marluce, decidiram
eles mesmos contarem cada um; uma história de terror. Todos estando de acordo se
dirigiram para o celeiro, tendo Miltinho sempre à frente, guiando-os dentre os pés de
cacau. Ambos morriam de rir. Ou melhor; viviam de rir, por que quanto mais riam, mais
vivos estavam. Que idades tinham? Pois a verdade é que era difícil prever com exatidão a
idade deles num simples olhar. As crianças de agora crescem como trepadeiras – exceto o
atarracado Luis Miguel, claro. - Com certeza ninguém era mais velho do que o outro
além de um ano. Fumacinha parecia pouco mais velho. Isso por que era mais truculento.
Maliena, por outro lado, era menor que o menino; loira, de olhos medianos e
esverdeados, a mesma cor dos olhos do avô, português. Marluce era morena de cabelos
caídos à cintura e mais robusta do que a outra adolescente. Luisinho era o mais baixo de
todos e raquiquito devido sua estrutura corporal, mas tinha um rosto de uma beleza única,
com seus olhos grandes, amendoados e seus lábios finos, que apesar da amarelidão do
garoto, viviam rosados.
Por fim, quando a meninada se alojara sobre uma velha canoa, Miltinho anunciou
ainda sorridente:
- Só deve ficar com a vela quem for contar a história.
- Eu começo!... – Fumacinha determinou. E assim que pegou a vela e colocou-a diante
do rosto, começou: - Quem aqui tem medo de alma penada?
Lina e os outros ergueram a mão. Como Luis Miguel ficou calado, Fumacinha quis
saber:
- Você não tem medo de assombração, cabeção?
- Não!... De vez em quando eu vejo minha mãe...
- Credo! – fez Marluce. – E você não tem medo?
- Ficou doida Luce?! Por que eu teria medo da minha mãe?
- Por que ela... Ela morreu!
- É verdade, ela morreu... Mas não pode largar esse mundo e ir para o céu...
A voz de Fumacinha interrompeu-o.
- Olhe só quem fala!... O que você sabe sobre isso?
9. Luis Miguel virou-se mais para ele e explicou, de sua maneira:
- Mainha me disse pra eu não ter medo dos mortos... Às vezes, quem morre não deixa
essa vida por que não completou sua missão na terra, seu destino foi interrompido por
alguma desgraça e a tristeza de algum parente impede que a pessoa se vá pra sempre.
- Deus é mais! - fez Lina benzendo-se. – Mesmo que um parente meu me aparecesse
morto, eu o discumunava e saia correndo.
Besteira! – o menino retrucou. – Morto não pode fazer nada com ninguém... Eles não
podem tocar em nada!... A verdade é que, quando um deles aparece é por que precisa de
ajuda...
- Está bem! Está bem! – Fumacinha voltou a falar. – Vamos deixar sua mãe pra lá e
voltar às historias de alma penada, ta bem?
- É bom mesmo! – revidou Luisinho, de cenho fechado.
- Minha dinda me contou – começou o garoto negro -, que há muitos anos, muitos
mesmos, lá aonde o avô dela viveu e morreu, na fazenda cruz das almas, havia um
engenho de açúcar mal-assombrado... Daí, numa noite chuvosa, cheia de relâmpagos e
trovões, um homem apareceu por lá pedindo abrigo pra pernoitar... O coronel Sebastião
Lázaro, dono da fazenda, disse que dentro da casa dele o camarada não podia ficar, mas,
se ele não ligasse pra boatos, poderia passar a noite no engenho abandonado...
- Meu pai eterno – Marluce exclamou -, ele foi dormir lá?
- Dizem que o viajante sequer quis saber do tal boato... Pegou a trouxa de roupas dele
e dirigiu-se à tapera, e assim que adentrou pelo local, fez um fogo com gravetos achados
ali perto, espetou um pedaço de charque num espeto de pau, e quando pretendia assá-lo,
um vulto passou sobre ele, atravessando-lhe o corpo, e mudou a rede dele de lugar... A
história conta que o sujeito não ficou com nenhum tiquinho de medo, apenas
acompanhava o que a alma penada fazia, apesar dos muitos gemidos que acompanhava
ela...
- E o que aconteceu depois? – Miltinho antecipou-se, louco pra que aquele conto de
suspense chegasse logo ao fim.
- Bem – Fumacinha retomou seu relato -, segundo o que minha madrinha ficou
sabendo; o peregrino não se importou com a aparição, e continuou preparando sua
refeição... Porém – ele frisou bem a palavra, projetando-se pra frente, atemorizando os
amigos. – Porém, o fantasma, que era uma mulher muitíssima bonita, aproximou-se do
homem e perguntou: “quer ficar muito rico?” Ele virou-se mais pra ela, completamente
encantado com sua beleza, e procurou saber o porquê dela ter decidido falar com ele. Aí,
a assombração respondeu: “você foi o único que não saiu correndo quando me viu”.
Ainda desconfiado, o sujeito indagou: “desde quando fantasmas saem por aí oferecendo
riquezas?” A alucinação voou pelos quatro cantos do galpão soltando uma risada
escandalosa e malévola, acompanhada por alaridos demoníacos. Quando voltou ao
homem, explicou: “esse tesouro que lhe ofereci é a minha maldição”... “Enquanto não o
acharem, viverei perambulando por estas terras em companhia de outras almas
condenadas, atormentando àqueles que nos temem”. Ele largou o espeto e passou a falar:
“quer dizer, que se eu encontrar esse tesouro; vou ficar muito rico e libertarei você e os
outros amaldiçoados?” “Isso mesmo!” Confirmou a fantasma, sorrindo. Ficando de pé,
após limpar os fundos das calças, o peregrino declarou: “é só me dizer o que devo fazer e
se considere liberta de sua maldição”. A alma penada soltou outra risada ainda mais
tenebrosa, fazendo a tapera tremer. Aí, quando tudo se acalmou, ela explicou, com os
10. olhos parecendo duas bolas de fogo: “nos fundos deste engenho há uma caldeira... Pegue
uma pá que está atrás da porta e cave lá dentro”... “Mas, encontre o que encontrar, jamais
cite palavras vãs, pois, do contrário, você perderá a vida e seu espírito passará a viver
amaldiçoado aqui para sempre” – Fumacinha fez uma pausa para retomar o fôlego, e
percebendo que seus amigos pareciam paralisados, estáticos, sequer seus cílios piscavam,
retomou: - Aquele homem era de uma coragem sem igual. Então, apoderando-se da pá
indicada pela assombração, que de repente apareceu mais claramente pra ele, vestida com
roupas provavelmente do século XVIII deixando-o ainda mais impressionado com o
corpo dela, o bravo peregrino dirigiu-se aos fundos do engenho desativado. Mas, apesar
de sua desconhecida coragem, ele achou muito estranho o fato de a aparição não ter se
aproximado da caldeira, nem saído do interior dos escombros onde estava.
Provavelmente, o motivo de ela não ter saído do lugar aonde o abordou, tinha haver com
o seu castigo, pensou ele. E sem temer perigo algum, se prontificou a cavar, de vez em
quando conferindo se a fantasma ainda se encontrava no mesmo lugar de antes – o garoto
mudou a vela de mão, tendo os outros á perscrutar-lhe o semblante, sem nada dizerem. –
Não demorou muito – voltou a falar -, uma visão inesperada deixou o homem atordoado.
Dentro da caldeira, no buraco cavado por ele, encontrava-se uma grande quantidade de
dobrões e pequenas barras de ouro. Deslumbrado com aquele achado, o aventureiro
murmurou, com as mãos na boca: “Santo Deus!” Aí, num súbito, várias gargalhadas
escabrosas surgiram por trás dele, e um clarão de chamas ardentes arrebatou-o para a
fenda ao chão, transformando-o em cinzas. Logo depois disso, o buraco fechou-se
automaticamente...
Soltando um profundo suspiro e impressionada com a estória, Lina exclamou, com
voz trêmula:
- Será que isso realmente aconteceu?
- Bom, existe várias histórias sobre aquela fazenda – colocou Luisinho. Virando-se
para Miltinho, indagou: - Sua avó é neta de escravos, né? – o outro menino fez que sim
com a cabeça, e ele voltou a inquirir: - Será que ela sabe alguma coisa sobre essa
história?
- Sobre essa história, não sei, mas ela já também me contou outra que aconteceu
naquela fazenda.
- Você consegue se lembrar como ela é? – Marluce quis saber.
O garoto permaneceu calado por alguns instantes, depois declarou catedrático:
- Sim! – Fumacinha passou-lhe a vela, que já estava ao meio, e ele passou a narrar,
com voz rouca e baixa: - Ela me contou que na época em que os Portugueses e Espanhóis
residiam em nossa Bahia, àquelas terras pertenciam a um Barão conhecido pelo nome de
Paolo Cruz de Del Almas...
- Ah, então é por isso que chamam aquela fazenda de Cruz das Almas! – Maliena
intrometeu-se toda metida à sabida.
- Deve ser! – Miltinho confirmou. – Pois bem, conta à história que esse tal barão
muito, muito rico, era pior que carne de pescoço. Tratava todos os seus escravos a pão e
água e mão de ferro. Seu sonho era ter um filho homem pra tomar conta de suas terras, da
produção de cana e algodão, mas, sua esposa morreu antes de ele realizar esse desejo.
Dizem que outros sinhôs de terras, que também tinham engenhos de açúcar e pinga, não
entendiam, por, mais que tentassem esclarecer, o porquê que a produção de açúcar do
Barão era sempre farta, e quando pensava que ele ia ter um ano ruim, sua colheita
11. dobrava... Sem esquecer-se do fato de que um cheiro insuportável de enxofre queimado
sempre surgia das labaredas da caldeira daquele engenho, e ela vivia aceso dia e noite – o
menino suspirou e prosseguiu: - O homem enfim, casou-se novamente com uma mulher
que fazia de tudo, às escondidas pelos pobres e miseráveis escravos coitados daquela
fazenda... A história conta que naquela época, escravo bom eram como cavalos de raça,
porcos de qualidade, boi escolhido a dedo... Que esses escravos só serviam pra fazer
filhos e nunca dormiam juntos com os outros na senzala... Minha vó contou também que
quando as escravas tinham uma menina, a criança sumia misteriosamente e o escravo que
foi o responsável pelo nascimento da criança também tomava um chá de sumiço.
- Minha Nossa Senhora da Glorificação negra! – exclamou Fumacinha passando as
mãos pelos braços, ao sentir-se arrepiado.
- Enfim – Miltinho voltou a contar a história -, a mulher do Barão Paolo ficou grávida
e deu a luz a uma linda menininha. Desesperada, ela pagou para que um escravo de sua
confiança levasse a criança para que alguém pudesse criá-la, já que seu marido era capaz
de matá-la quando descobrisse que não parira um menino, e trouxesse pra ela um feto de
uma criança qualquer, mas que fosse branco e macho... O barão ficou muito triste ao
saber que seu futuro herdeiro nasceu morto, mas acreditou nela...
- Meu Pai Misericordioso! – Marluce espantou-se, colocando as mãos no rosto.
- Os dias se passaram - o menino continuou -, e a esposa dele evitava ficar grávida...
Aí, num certo dia, quando ela , com a desculpa de passear pela fazenda, pretendia ir visita
sua filhinha, que já devia ter uns dois meses, ao passar pelo engenho ouviu gritos
agonizantes pedindo ajuda... Então, estranhando aquilo, a mulher se dirigiu até o local,
indo à caldeira e foi testemunha da pior coisa que ela já havia visto em toda sua vida...
- O que foi? O que foi? – fez Luisinho, eufórico.
Trocando a vela de mão, o garoto prosseguiu:
- Labaredas gigantes saiam de dentro da caldeira e estavam engolindo dois escravos
ainda vivos, que dias atrás, haviam sido pais de duas meninas...
- Que isso, Miltinho?! – Marluce adiantou-se. – Pelo Amor de Deus, eu duvido que
sua dinda tenha lhe contado um negócio tão apavorante como esse!
- Ela me contou sim! – ele revidou, chateado. – Por que eu estaria mentindo.
- Ele ta certo, Marli! – disse Fumacinha. – Nessas épocas passadas muita coisa
estranha acontecia... Não se lembra do que agente leu semana passada no livro de
História da escola, daqueles índios que comiam gente?
A adolescente só teve de concordar, e Miltinho retomou seu relato:
- Bem, aí, a mulher entendeu por que aquela caldeira estava sempre acesa, de dia à
noite, era os corpos dos escravos que à mantinha sempre em vapor intenso...
- Oh Tinho – fez Lina -, acaba logo isso vai, to que não me agüento de medo!
Com um sorriso tenebroso diante da fraca luz da vela, o rapazote deu prosseguimento:
- A esposa do Barão Paolo, mesmo que temerosa pelo que descobriu, enfrentou-o
exigindo que lhe desse uma explicação sobre o que viu, e que se não o fizesse, iria até o
Imperador e o denunciaria... Sabe o que o miserável fez? – ninguém respondeu então ele
colocou: - De certo modo, ele já havia descoberto que ela o havia traído quando trocou a
filha pelo feto. Sem temor, o sujeito ruim mandou jogar sua própria filha, o escravo e a
escrava que ajudara sua esposa a esconder a menina, na caldeira...
- Meu Pai Eterno, Tinho! – reclamou Lina, benzendo-se. – Você hoje ta que ta, hem?!
- Eu já vou terminar, já vou terminar! – fez ele, gostando das expressões de pavor nos
12. rostos de seus amigos. – Pois bem, em resposta àquela atitude da esposa, o barão também
a jogou na caldeira... Aí, foi quando todos os escravos, principalmente aqueles que faziam
os trabalhos sujos pra ele, o pegaram e o prenderam vivo dentro de uma parede de pedra
bem larga, construída pra ser a cova dele dentro do casarão.
- Parede de pedra? – retorquiu Dani. – Quer dizer que ele foi enterrado vivo, em pé?
- Isso mesmo!... Minha vó contou que jogar ele na caldeira não o faria pagar por suas
maldades... Dizem que até hoje ele assombra aquelas terras.
Miltinho suspirou profundamente ao finalizar a história. Quanto às outras crianças;
esses parecia estarem em estado de choque. Foi aí, que Marluce quebrou o impasse:
Nossa Senhora, hoje as história foram demais!... To até com medo de ir pra casa.
- Eu também! – confessou Luis Miguel.
- O que lhe dar mais medo; essas histórias ou seu padrasto? – Marluce quis saber.
- Infelizmente; meu padrasto! – ele murmurou cabisbaixo. – Ele sim, é bem real e
assustador! – havia um tom melancólico naquelas palavras. – Agora, voltando às
histórias; elas tem detalhes semelhantes e parecem bem reais, né?
- Podem até parecerem uma com a outra – fez Lina -, mas, ninguém morre queimado
ou enterrado numa parede de pedra e fica assombrando os outros, né bobalhão!
- Hoje em dia talvez não, mas naquela época tudo era possível!... Esqueceu-se das
vezes que a vó Zira contou histórias sobre os fogos voadores, que são compadres que se
casaram com suas comadres? – Miltinho colocou.
- Exatamente! – fez Luisinho, eufórico. – Como era o nome do barão?
- Paolo Cruz de Del Almas – Maliena respondeu, achando-se a maioral.
- E o nome da fazenda da primeira história?
- Fazenda Cruz das Almas.
Vitorioso, Luis Miguel explicou firme nas palavras:
- Na história que Fumacinha contou, a assombração atraía os homens para a caldeira
nos fundos do engenho, dizendo que ela e outras almas precisavam ser salvas, pois
viviam perambulando por ali... Na história do barão também havia um engenho e uma
caldeira aonde os escravos eram atirados lá dentro e a própria esposa dele fora jogado lá...
Parece ou não parece que tudo possa ter acontecido na mesma fazenda?
- Nossa mãe, cabeção, é isso mesmo! – Fumacinha manifestou-se.
Silencio absoluto.
- E se a gente procurasse saber se essa história é verdadeira, ou não? – Marluce
sugeriu.
- Bem – murmurou Lina -, a gente podia perguntar para a madrinha de Fumacinha e a
avó de Miltinho sobre como era a vida daquela gente na fazenda Cruz das Almas...
- Pode até ser – fez Luisinho, -, mas, nesse momento o que eu mais quero é ir pra casa
antes que meu padrasto apareça por aqui e me arrebente todo.
A meninada sorrira ao mesmo tempo, embora sentissem a mesma coisa em relação
àquelas histórias, e saíram em debandada para a casa de dona Alzira.