B.I. Maria Natália Figueiredo Queirós nasceu em 1940 em Lisboa em condições difíceis, tendo perdido os pais e irmãos desde cedo. Apesar disso, desenvolveu uma imaginação fértil e uma forte determinação que a ajudaram a ultrapassar os obstáculos da vida. Formou-se em Direito e tornou-se juíza, além de fundar um grupo de teatro infantil em Cantanhede, onde continua a promover a cultura. A sua paixão pela vida e pelo serviço público
Fúria de viver: a história de superação de Natália Queirós
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Desde que veio ao mundo
que Natália Queirós teve que
se agarrar à vida: nasceu
prematura num tempo em
que a incubadora ainda
estava para ser inventada.A
tuberculose que grassava em
Portugal roubou-lhe a mãe,
o pai e uma irmã,mas nem
todas as adversidades do
mundo conseguiam roubar
o sorriso à pequena Natália.
De sonho em sonho,a sua
prodigiosa imaginação e férrea
determinação fizeram-na
ultrapassar todos os obstáculos
que a vida lhe foi deitando ao
caminho.
“Falar da nossa vida, do nos-
so percurso pessoal, é um pouco
umaarmadedoisgumes.Nunca
fui pessoa de medos nem tenho
nada a esconder, e também não
vou dizer que é incómodo, pois
de alguma maneira até é gratifi-
cante, mas não tanto que se pos-
sa fazer disso um arraial. Às ve-
zes não é tão confortável quanto
parece, falar de nós...”, confessa
Natália Queirós, deixando, des-
de logo, perceber alguns traços
da sua personalidade e do seu
modo de estar na vida. Estava
dado o mote para uma conversa
que se viria a revelar interessan-
te, muito, e emotiva, a espaços.
De memória em memória, os
minutos vão passando. E, atrás
deles, as horas.
Começámos pelo princípio:
“A minha mãe não sabia que
estava grávida, e estava já tuber-
culosa. Um dia teve uma crise
e pensou que fosse o apêndice,
não suspeitou que estivesse para
abortar.Poracasoacaboulevada
para a Maternidade, e não para
um hospital comum, o que terá
sido a minha sorte.Nasci eu,pre-
matura,commenosdesetemeses
de gestação”. Começou, desde
logo, a lutar pela própria vida.
Perdeu irmãos, um à nascença,
outra levada pela tuberculose, e
nem a mãe e o pai seriam pou-
pados: “Só me sobrou uma irmã
12 anos mais velha que eu, que
foi quem acabou por me servir
de figura maternal. É o que me
sobra das minhas raízes”.
Natália ainda não tinha três
anos quando a sua mãe perdeu
a luta contra a “peste cinzenta”.
O pai, também doente, acabou
por ser aconselhado a ir para o
campo, para onde rumou com
as duas filhas que lhe resta-
vam. “Fomos para Vila Nova de
Poiares, para a terra dos meus
avós, que por lá tinham alguns
terrenos e uma casa. O ar do
campo acabou por não lhe valer
de muito, já que faleceu alguns
anos mais tarde”. Órfã de pais
comapenasnoveanos,confessa
serem muito vagas as memórias
que guarda de sua mãe: “As que
tenho não sei se são realmente
minhas, se têm algo que ver com
fotografiasqueeuviouatécoma
descrição que a minha irmã,que
adorava a minha mãe, me foi
fazendo. Do meu pai sim, tenho
memória. Adorava o meu pai. A
minha mãe acabou por ser sem-
pre a minha irmã, ainda hoje a
minha referência materna”.
O DOM DA IMAGINAÇÃO
Pensamos no que terá sofri-
do uma menina tão nova, tão
pequena, que desde tão cedo foi
vendo serem-lhe roubados os
seus afectos. Comove-nos a sua
história e surpreende-nos a sua
força, o sorriso, ainda que triste,
que não abandona o seu rosto:
“Somos uns bichos esquisitos
[a família Queirós], passámos
muito.Não somos pessoas de de-
por as armas facilmente.Sempre
amei a vida apaixonadamente,
de uma maneira completamen-
te louca. Só morro sossegada
porque sei que volto cá”, grace-
ja. “Flor, erva ou animal, sei que
volto cá”.
A paixão abnegada que as-
sume sentir pela vida, o fervor
que é quase palpável nas suas
palavras, nos seus gestos, não
nos deixam duvidar por um
minuto. Foram estes traços que
a fizeram perseverar, que a fi-
zeram lutar e vencer todos os
obstáculos que lhe dificultaram
o percurso. “Acho que sou uma
pessoa beneficiada quando, a
despeito de tudo o que fui per-
dendo, consigo ter esta paixão
pela vida. As coisas, na minha
vida, nunca foram fáceis. Se ca-
lhar porque eu própria não as sei
fazer fáceis,nunca me acomodei.
Mas é tão bom ter sonhos, e for-
ça, e querer ir em frente, e passar
por cima, e voltar outra vez. Isso
é estar vivo”.
A infância, repleta de priva-
ções e de dificuldades, foi solo
fértil para que se desenvolvesse
a imaginação prodigiosa que
ainda hoje caracteriza Natália
Queirós. A dureza do dia-a-dia,
de uma mesa pobre e uma casa
sem Natal, não chegava para
ensombrar os mundos de “faz-
-de-conta” que criava, para
onde fugia e onde era a mais fe-
liz das crianças. “Não me lembro
de me sentir triste, eu tinha sem-
pre muita beleza dentro de mim.
Lembro-me que às vezes não ha-
via comida e eu ficava preocu-
pada porque via o sofrimento da
minhairmã,quenãosabiaoque
haviademedarparacomer.Não
me consigo sentir revoltada com
a minha infância, talvez porque
quando havia broa, o primeiro
bocado era sempre para mim.
Infelizmente acho que o meu fi-
lho, a juventude de hoje, vai so-
frer muito mais se a situação que
vivemos piorar”.
SONHO DE ESTUDAR
Aos nove anos, após a mor-
te do pai, Natália é forçada a
regressar para Lisboa, onde é
institucionalizada num asilo:
“A minha irmã não tinha como
me criar, ela própria era pou-
co mais que uma criança. Fui
para o asilo, onde fiquei até aos
17 anos”. No colégio tornou-se
querida por todos: era a menina
exemplar, muito educada e res-
peitadora, que acompanhava os
gente de ouro
B.I. Maria Natália Figueiredo Queirós nasceu em 1940 em Lisboa, na Maternidade Alfredo da Costa, “com menos de sete meses de gestação”.
A uma infância difícil, sem o brilho do Natal e marcada por sucessivas perdas, sucede uma adolescência passada numa instituição. Aí germina a semente do teatro,
que hoje dá frutos no Grupo de Teatro Infantil de Cantanhede. À paixão pela escrita e pela representação juntou-se, por largos anos, a devoção à Lei e à judicatura.
Fúria
deviver
FILIPA DO CARMO
filipadocarmo@aurinegra.com
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directores quando iam ao teatro
ou a outros eventos sociais e que
tinha sempre papel de destaque
nas festas e saraus. “A minha
veia teatral vem desse tempo.
Desde cedo fui posta a declamar
e a fazer teatro nas festas de Na-
tal, sendo que mais tarde acabei
porserresponsávelporensaiaras
outras meninas”.
Não era infeliz nem drama-
tiza a passagem pela instituição,
mas, naturalmente, queria mais:
“Não me deixavam fazer mais
do que a quarta classe. Aprendi a
costurar, a bordar, tive uma edu-
cação impecável e tenho muito
orgulho nisso. Não tenho mágoa
desse tempo, embora tenha sofri-
do bastante. Por solidão, muita,
por falta de carinho e por sauda-
des da minha irmã”. Apesar de
só ter a quarta classe, era uma
jovem inteligente e interessada,
que procurava avidamente enri-
quecer os seus conhecimentos e
a sua cultura: “Recolhiaedevora-
vatodasasrevistasquenosdeixa-
vam no colégio. Tinha limitações
nas disciplinas específicas, não
sabia falar francês nem domina-
vaamatemática,mastinhauma
cultura geral significativa para a
idade e as circunstâncias”.
Deixou o colégio e Lisboa e
juntou-se à irmã, em Coimbra:
“Saí do colégio feita uma prin-
cesinha autêntica. Tinha uma
postura e um saber estar assi-
naláveis”. Conseguiu trabalho
num balcão de atendimento
ao público na área de higiene
infantil, meio que lhe permitiu
privar com pessoas com um ní-
vel de vida elevado, sobretudo
da classe médica. Tinha o sonho
de voltar a pegar nos livros mas
faltavaodinheiroparaprosseguir
os estudos. “O que ganhava mal
chegava para pagar o que comia
em casa da minha irmã. Por isso
comecei a estudar sozinha, já que
nãotinhacomofinanciarasaulas
nocolégioànoite.FizoLiceusozi-
nha,socorrendo-me dos cadernos
deexercíciosdoPalmaFernandes.
Dos 26 aos 30 anos de idade, em
quatro anos, fiz o equivalente ao
sétimo ano, sempre a trabalhar e
com muito boas médias”.
PAIXÃO PELA JUSTIÇA...
Com 30 anos ingressa na
Universidade de Coimbra, em
Direito, perseguindo o desejo de
continuaraestudar.Praticamen-
te ao mesmo tempo, começa a
trabalhar na Previdência Social:
“A Faculdade de Direito foi muito
mais fácil de fazer que os quatro
anos em que fiz o Liceu.Em 12 de
Julho de 1975 tinha o curso con-
cluído, sem uma cadeira para
trás, e com média de 14 valores”.
Conquista a conquista, Natália
foi percorrendo o seu caminho.
A pulso passou da menina órfã à
jovemprendada,damulhercom
a quarta classe à responsável
pelo contencioso da Segurança
Social de Coimbra.
Mas não quis ficar por aí. Es-
perou alguns anos até conseguir
concretizar um outro sonho, o
da magistratura: “Quando me
licenciei em Direito uma mulher
não podia ir para a judicatura.
Depois fui mãe e o meu filho teve
alguns problemas de saúde na
infância,de modo que só quando
ele tinha 12 anos é que me aven-
turei.Na verdade,a magistratura
era aquilo de que eu realmente
gostava. Sempre amei a Justiça
profundamente e, quer queira-
mos quer não, onde ainda se faz
alguma justiça, ou pelo menos se
tenta, é na magistratura. Ingres-
sei no CEJ [Centro de Estudos
Judiciários] 20 anos depois de ter
acabado o curso”. Natália Quei-
rós torna-se juíza, escrevendo,
assim, mais algumas páginas
na peculiar história da sua vida.
“Tive capacidade para transfor-
mar cada dificuldade num mo-
tor de arranque”,sintetiza.
...E PELO TEATRO
“Apesar da vida atribulada
ainda tive tempo para o amor.
Para casar, ser mãe, fazer versos”.
Tudoaquiloaquesefoidedican-
do ao longo da vida, mereceu de
Natália o mesmo empenho, a
mesmadevoçãoeentrega:“Mãe,
dona de casa, advogada, magis-
trada, o importante é cada um
respeitar-se a si próprio e à fun-
ção que exerce na vida, e exercê-
-la bem.Não posso ser respeitada
apenas porque sou magistrada,
mas sim porque desempenho es-
sasfunçõescomtodaadignidade
e com toda a responsabilidade.
Por isso eu sou um ser humano
de primeira qualidade, não por-
que tenho um título”.
Durante quatro anos esteve
no 2.º Juízo do Tribunal da Co-
marca de Cantanhede, terra que
lhe deixa gratas recordações, e a
que continua ligada através do
projecto teatral que dinamiza, o
Grupo deTeatro Infantil de Can-
tanhede: “Tenho de Cantanhede
uma noção muito positiva. Acho
que as pessoas são autênticas, foi
o que mais me agradou naque-
la gente. Tenho um certo apego
pela terra, pelo campo, não sou
uma pessoa essencialmente cita-
dina,por isso vivi muito bem em
Cantanhede. Foi-me muito fácil
lidar com as pessoas. Agradou-
me particularmente a apetência
das pessoas, e do próprio execu-
tivo camarário liderado pelo Dr.
Jorge Catarino, para crescer no
sentido intelectual e cultural.
Aliás, não é por acaso que saio
do Tribunal e me vou oferecer
para trabalhar em Cantanhede,
na área da cultura”.
Em 2001 jubilou-se e deixou
a vida de magistrada. Manteve-
-se ocupada, primeiro enquanto
voluntária no Colégio dos Ór-
fãos de Coimbra, onde fundou
um jornal, trabalho de que mui-
to se orgulha; depois fundando
o Grupo de Teatro Infantil de
Cantanhede, há sete anos [Ju-
lho de 2004], a que ainda hoje se
dedica. “A minha cabeça precisa
sempre de um plafond afecto à
parte espiritual,criativa e artísti-
ca. Esse é o meu pulmão, é a mi-
nha respiração. Para além disso,
o teatro é uma forma altamente
eficaz de passar cultura às crian-
ças, que as aproxima da leitura,
do bem falar e da partilha”. Os
textos levados a cena têm sido, a
maioria, fruto da imaginação de
Natália Queirós, sendo que nove
foram compilados em livro, na
obra “Brincando ao Faz-de-
Conta”, editada pelo Município
de Cantanhede.
“Frequentemente as peças
são escritas em verso. Não é por
acaso, é porque facilita a memo-
rização por parte das crianças. A
cadência do verso entra no ouvi-
do. Por outro lado, abordo temas
sérios que assim podem ser apre-
sentados de uma forma mais li-
geira. Em prosa rude e simples as
coisas resultam um pouco mais
cruas”, explica. Os mundos de
fantasia que lhe serviam de refú-
gio e escape enquanto criança e
jovem, onde tudo era belo e pos-
sível, têm sido fonte inesgotável
de cenários, mundos e persona-
gens, dando um rico colorido às
peças que leva ao palco. No ou-
tro palco, o da vida, podem bem
ter sido esses mundos a permiti-
rem que Natália ultrapassasse as
(muitas) adversidades, sempre
com um sorriso no rosto e de-
terminação redobrada. Para o
futuro, lança já novos desafios:
“Gostava de fazer aquilo que
toda a vida quis fazer,que é escre-
ver.Vamos ver se sim, se não”. Por
aquilo que nos deu a conhecer,
apostamos que sim.
gente de ouro
“Mãe, dona de
casa, advogada,
magistrada, o
importante é
cada um
respeitar-se a si
próprio e
à função que
exerce na vida, e
exercê-la bem”
“Sempre amei a vida apaixonadamente, de uma maneira
completamente louca. Só morro sossegada porque sei que volto cá”
Lurdes Silva: 25 anos
ligada à Columbófila
A actual presidente da Direcção-Geral da Associação de Solida-
riedade Social Sociedade Columbófila Cantanhedense assinalou
25 anos de ligação ininterrupta a esta colectividade. Esta longa
caminhada teve início em 1986, quando Lurdes Silva participou
no programa OTJ – Ocupação Temporária de Jovens, passando
desde então a colaborar num conjunto de actividades de carác-
ter juvenil. Em 1991 integra os órgãos sociais da Associação,
na qualidade de vogal, tendo estado na origem do Departamento
de Apoio às Actividades Juvenis, do Núcleo de Solidariedade e
Ocupação Juvenil e do Columjovem. Ainda na década de 90,
foi responsável pela implementação dos Campos de Trabalho
e de Férias realizados no concelho de Cantanhede, nas áreas
de preservação ambiental e de apoio a crianças e jovens com
necessidades educativas especiais.
Com um longo e meritório percurso na área de acção social e
vasta experiência associativa, Lurdes Silva tem, enquanto pre-
sidente da Columbófila, “privilegiado o estabelecimento de
parcerias e protocolos com entidades públicas e privadas, que
permitam dotar a Associação das ferramentas e dos meios ne-
cessários para poder corresponder às verdadeiras necessidades
dos jovens”.
“Rádios Antigos”
em exposição
João Colaço foi manchete do AuriNegra n.º 200, em Novembro
de 2010, por ter uma das maiores colecções de rádios antigos
do País, mas também porque, aos 80 anos, era um exemplo de
vivacidade e juventude de espírito. Um ilustre desconhecido até
então, passava os dias na sua oficina, em Portomar, consertando
equipamentos e alimentando outras paixões, como a da foto-
grafia antiga. Volvidos alguns meses, viu ser inaugurada a sua
primeira exposição, patente até ao dia 31 de Julho no Museu Et-
nográfico e Posto de Turismo da Praia de Mira. “Tenho recebido
muitos rádios, e de todo o País”, confessou-nos entusiasmado.
Esteve na televisão, no programa vespertino da TVI, e teve tem-
po de antena na RDP, mas é ao AuriNegra que agradece: “Fo-
ram os impulsionadores de tudo isto, deram o primeiro passo”.
Apenas fizemos aquilo que nos propomos fazer todos os dias:
contar histórias, sempre com gente dentro. A exposição “Rádios
Antigos”, de João Colaço, reúne algumas peças da sua colecção
e pode ser visitada todos os dias, das 9h00 às 18h00.