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1
CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE
FRANCISCANA
32
Editorial Franciscana
BRAGA - 2008
2
Ficha Técnica
Coordenador:
Fr. José António Correia Pereira, ofm
Editorial Franciscana
Apt. 1217
4711-856 BRAGA
Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735
E-mail: edfranciscana@editorialfranciscana.org
Edição on-line no site:
www.editorialfranciscana.org
Capa:
Desenho de Fr. José Morais, ofm
Edição:
Editorial Franciscana
Propriedade:
Província Portuguesa da Ordem Franciscana
Depósito Legal: 14549/94
I. S. B. N.: 972-9190-46-1
Caderno 32 - 2008
Cada número dos Cadernos é vendido avulso
3
Índice
I — Estudos
1. Fr. Bernardo de Besse
— Louvores de S. Francisco – Crónica Franciscana
2. Fr. Thaddée Matura
— Reflexão sobre as referências da identidade franciscana
ao longo de oito séculos
3. Fr. Gonçalo Figueiredo
— Cristo e Francisco – Grande Rei e poeta cantador
da natureza e da fraternidade
5
I — Estudos
Crónica de Fr. Bernardo de Besse
LOUVORES DE S. FRANCISCO
7
LOUVORES DE S. FRANCISCO
Introdução
Pouco se sabe sobre a vida de Fr. Bernardo Besse. As Crónicas da
Província da Aquitânia apresentam-no como sendo membro daquela
Província, companheiro de viagem e secretário de S. Boaventura1
. Outra
fonte de informações sobre Bernardo de Besse é a Crónica dos Ministros
Gerais da Ordem dos Frades Menores também conhecida como Crónica
dos XXIV Gerais da Ordem dos Menores2
. Aí encontramos mais alguns
dados sobre a sua vida e sobre os seus Escritos.
É considerado o autor da obra Chronicon XIV vel XV Generalium
Ministrorum Ordinis fratrum Minorum seu Catalogus ‘Gonsalvinus’
dictus Generalium Ministrorum Ordinis fratrum Minorum3
. O estudo que
Ehrl publicou sobre o Catalogus, em 1883, sustenta que, uma vez que fala
da canonização de S. Luís, que foi em 1297, Bernardo Besse teria
trabalhado nesta obra pelo menos até essa data, possivelmente até 13054
.
Embora isso não seja aceite por todos os comentadores, dá uma ideia
—————
1
Cf. Fontes Franciscani, Edizioni Porziuncola, 1995, p.1245.
2
A Imprensa da Universidade de Coimbra publicou, em 1918, o texto de um códice
medieval, um manuscrito do século XV, até então desconhecido do público, guardado na
altura na Biblioteca Pública de Lisboa sob o nº 94. José Joaquim Mendes, Sócio
correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, interessou-se pelo texto, publicando-
-o então pela primeira vez. Deu-lhe o título de Crónica da Ordem dos Frades Menores,
mas o título original é Crónicas dos Ministros Gerais da Ordem dos Frades Menores, e
corresponde na sua totalidade com a Crónica dos XXIV Gerais ou Crónica dos Ministros
Gerais da Ordem dos Frades Menores. O texto em português, uma tradução do século XV
da respectiva obra, vai só até ao décimo Geral. Citamos este texto.
3
Cf. Analecta Franciscana, III, pp. 693-707;
4
F. EHRLE, Zur Quellenkunde der älteren Franziskanergeschichte. Der Catalogus
Ministrorum generalium des Bernhard von Besse, em Zeitschrift für katholische Theologie,
7(1883), pp. 323-52:Cf. Fontes Franciscani, pp. 1245-46.
8
sobre a época em que viveu Bernardo de Besse. Outra obra que lhe é
atribuída é o Espelho de Disciplina5
.
A obra mais conhecida é o Liber de Laudibus Beati Francisci6
,
publicado muitas vezes com o título Crónica de Bernardo de Besse. Na
Crónica da Ordem dos Frades Menores, quando relata os factos e feitos
do sexto Geral, Fr. Crescêncio, é dito que “… foi eleito no capítulo geral
que foi celebrado no ano do Senhor de mil e duzentos e quarenta e cinco,
no qual capítulo o dito Geral mandou a todos os frades que possuíssem
em espírito qualquer coisa que se pudesse saber verdadeiramente da vida
e milagres e sinais maravilhosos de S. Francisco… E depois frei Tomás
de Celano… compilou… aquele tratado da Legenda Antiga (2C) … a
qual Legenda depois frei Bernardo de Bessa da Província de Aquitânia
reduziu a forma mais breve e que começa Plenam virtutibus”7
. Na mesma
Crónica se faz alusão a um livro que frei Bernardo de Besse escreveu “…
das três religiões de São Francisco…” que na realidade corresponde ao
sétimo capítulo do Liber de Laudibus beati Francisci8
. Estanislau de
Campagnola sustenta que Frei Bernardo de Besse terminou a sua obra
depois de 1279. Segundo alguns comentadores, foi no Liber de Laudibus
que Dante se inspirou para tratar da maior parte dos temas da vida de
Francisco e seus frades na Divina Comédia9
.
No âmbito das comemorações dos 800 anos da fundação da Ordem
dos Frades Menores, é intenção dos Cadernos de Espiritualidade Francis-
cana dar a conhecer ao público português algumas das Crónicas Francis-
canas mais representativas do século XIII e que até agora não estavam
acessíveis aos interessados dos temas franciscanos.
—————
5
Cf. Fontes Franciscani, p. 2514.
6
A edição crítica foi publicada na Analecta Franciscana, III, pp. 666-92; É de con-
siderar também a edição inglesa: D. AMICO, Bernard of Besse: Praises of Blessed Francis
(Liber de laudibus Beati Francisci), em Franciscan Studies, 48, (1988), pp. 213-288.
7
Crónica da Ordem dos Frades Menores, op. cit. II. Vol. p. 73-74
8
Ut supra p. 45
9
Fontes Franciscani, op. cit. p. 1250-1251.
9
LIVRO DOS LOUVORES DE S. FRANCISCO
1
Por ordem do senhor Papa Gregório IX, o irmão Fr. Tomás, dotado
de notáveis qualidades literárias, escreveu em Itália uma biografia de S.
Francisco recheada de virtudes; e consta que um respeitável notário da Sé
Apostólica, D. João, 2
redigiu também uma outra intitulada Quasi stella
matutina (“Como estrela da manhã”)1
. 3
Em França, por sua vez, escreveu
sobre ele o erudito e santo Fr. Julião, que compôs a letra e a música dum
Ofício Nocturno em louvor de S. Francisco, além de vários hinos, antífo-
nas e responsórios que o próprio sumo Pontífice e alguns Cardeais publi-
caram em louvor do Santo. 4
E por fim surgiu o Ministro Geral Fr.
Boaventura, autêntico depósito de ciência e de virtude, que depois de ter
sido um excelente professor catedrático de teologia em Paris, foi nomeado
Cardeal da Igreja Romana e bispo de Albânia. 5
Sendo assim uma pessoa
de tanto prestígio, e ao mesmo tempo de tal discrição e carácter, a ponto
de toda a gente o considerar digno dos mais altos cargos, também ele,
pelos méritos celestes do Santo, retratou providencialmente em
terminologia simples e credível o digno arauto [do Grande Rei].
6
Aqui, no entanto, poucas referências se farão a outros novos episó-
dios – ou a episódios já mencionados nessas biografias, quando vier a
propósito. Por motivo de brevidade, que todos agradecerão, omitem-se
muitas peripécias da vida do Santo e dos seus seguidores, e sobretudo os
milagres ocorridos depois da sua morte, já avalizados pela autoridade
apostólica para seu louvor e prestígio.
7
O essencial é imitarmos o seu exemplo; e se não conseguirmos
imitá-lo perfeitamente, devemos ao menos respeitá-lo. 8
Quem é que seria
capaz de seguir rigorosamente os passos de S. Francisco e dos
companheiros que com ele conviveram? 9
Por isso é que a ninguém
pretendeu impor o rigor de pobreza e de perfeição que ele mesmo
observava; mas guiado por inspiração divina, limitou-se a redigir uma
perfeitíssima regra de vida, que por todos pode ser observada em qualquer
tempo. 10
Quem observar essa regra nunca trairá o espírito do santo Pai,
por mais que nas diversas épocas variem os costumes. 11
A perfeição que
podemos ver nos santos é útil para nos incitar à virtude e serve como de
lanterna para orientar o nosso modo de proceder.
—————
1
Cfr. Sir 50,6
10
Capítulo I
Teor de vida de S. Francisco e seus primeiros discípulos
1
Tanto pela vida como pela doutrina e pelos milagres, Francisco res-
plandeceu no mundo como o sol nascente. 2
Enquanto seu pai cuidava dos
negócios terrenos, sua piedosa mãe, como outra Isabel, deu-lhe o nome na
pia baptismal e prognosticou que pela graça divina seria um filho de Deus
cheio de méritos. 3
No período do crescimento, quase até aos vinte e cinco
anos, levou uma vida exteriormente bastante mundana. 4
Mas por fim des-
fez-se de tudo para seguir devotamente as pisadas de Cristo, restaurou na
própria vida a antiga forma de viver dos Apóstolos, e edificou a casa da
sua Ordem em alicerces sólidos de pobreza evangélica – não sobre a areia
de bens temporais, mas sobre a pedra que é Cristo.
5
A seguir a ele, a primeira pedra do edifício da nova Ordem foi Fr.
Bernardo de Quintavale2
, um irmão inflamado de amor de Deus, que se
desfez do seu valioso património não em favor dos parentes, mas dos
pobres, e se distinguiu por uma vida santa, finalizada com uma morte
cheia de milagres. 6
A segunda pedra da nova casa foi Fr. Pedro3
; também
ele renunciou em absoluto ao mundo e da mesma forma distribuiu pelos
pobres os seus bens. 7
A terceira pedra foi Fr. Gil4
, dotado de tão notável
santidade, que, segundo consta, Deus lhe teria concedido a graça de
socorrer a todos aqueles que o invocassem pedindo qualquer bem para a
própria alma: 8
isto nos conta o já referido piedoso Geral e Cardeal (Fr.
Boaventura), cuidadoso pesquisador de tais revelações.
9
A três outros que se seguiram ajuntou-se Fr. Filipe, a quem o
Senhor purificou os lábios com uma brasa viva (como ao profeta Isaías),
de sorte que, sendo embora leigo, entendia e interpretava as Escrituras e
dizia coisas maravilhosas acerca de Jesus5
. 10
Enfim, segundo nos
contaram, os doze primeiros discípulos de Francisco, para os quais ele
—————
2
Cf. 1C 24, 2-8; TC 27, 2-3. Fr. Bernardo inspirou um terceto de Dante: “… foi o
venerável Bernardo o primeiro a descalçar-se, dirigindo paz tamanha, e, correndo, ainda
se julgou mui tardo” (Par. XI, 5). Cf. FF 1, 3ª ed. P.250, nt. 50. As abreviaturas dos
Escritos de S. Francisco usadas nas citações são tiradas de Fontes Franciscanas I – S.
Francisco, Editorial Franciscana, 3ª edição, Braga, 2005.
3
Cf. 1C 25; TC 28, 6. Trata-se de Fr. Pedro Catânio. Acompanhou Francisco ao Oriente,
foi Vigário Geral, ainda em vida de S. Francisco e morreu na Porciúncula em Março de
1221.
4
Cf. 1C 25; TC 32, 2-3.
5
Cf. 1C 25,4.
11
escreveu uma regra6
e a quem deu orientações como Cristo aos
Apóstolos, todos foram santos, 11
excepto um, que abandonou a Ordem e
se enforcou como Judas – de modo que até a respeito dos discípulos
Francisco foi parecido com Cristo.
12
Ainda ele não contava senão com seis irmãos, quando lhe foi con-
cedida a graça extraordinária de ter tanta certeza de a Ordem se vir a
estender por todo o mundo, a ponto de lhes poder desvendar o futuro
como se fosse presente: 13
«Já tive uma visão de caminhos cheios duma
multidão de gente a vir ao nosso encontro; nessas multidões vinham Fran-
ceses, Espanhóis, Alemães e Ingleses – uma turba enorme das mais diver-
sas línguas a correr a toda a pressa»7
. 14
Também costumava distinguir os
irmãos da primeira e da última hora comparando-os com frutos mais ou
menos saborosos.
15
Entre os primeiros, brilharam por suas virtudes alguns ilustres
irmãos e padres, como Fr. Soldanério, Fr. Rogério, Fr. Rufino e Fr. João
das Loas8
, que teve o privilégio de tocar nas chagas dos estigmas de
Francisco ainda em sua vida. 16
Outro irmão também íntimo do Santo foi
Fr. Ângelo, bem como Fr. Leão, seu confessor, e um outro Fr. Leão, que
mais tarde governou a Igreja de Milão como arcebispo, 17
e ainda Fr.
Tiago, que teve a dita de ver subir ao Céu a alma do santo Pai em forma
de estrela tão brilhante como o Sol9
. 18
Padres santos foram também Fr.
António, Fr. Nicolau, Fr. Simão, Fr. Ambrósio, Fr. João, e muitos outros,
dos quais seria longo falar individualmente, e que iluminaram esses
tempos antigos com o esplendor das suas virtudes. 19
Os seus corpos foram
sepultados em paz e estão expostos à veneração em locais sagrados. 20
Os
restos mortais de Fr. Bernardo10
, de Fr. Rufino, de Fr. Leão e de Fr.
Ângelo11
, encontram-se na igreja de S. Francisco em Assis; os de Fr.
Egídio em Perúsia; os de Fr. Soldanério na igreja dos irmãos menores de
—————
6
Cf. 1C 32,1; EP 21, 2; TC 51, 7
7
Cf. 1C 27, 5-6.
8
Fr. João das Loas (ou dos Louvores, cf. EP 85, 10) é, segundo alguns comentadores, o
mesmo que Fr. João de Florença, ou de Lodi. Segundo EP 85,10 que desenha o
verdadeiro frade menor, este devia ter entre outras qualidades, “o vigor corporal e
espiritual do irmão João de Loas, que, no seu tempo, ultrapassava todos os homens em
força corporal”. Cf. 1C 110, 5.
9
Cf. 2C 110,5 confirma o facto, anotando que não menciona o nome porque o irmão
ainda vive. Cf. 2C 217a, 1 TC 68,2.
10
Cf. 1C 24,2; 2C 48,1.
11
Cf. TC 1,1.
12
Viterbo; os de Fr. Junípero na igreja de santa Maria do Capitólio em
Roma.
21
O irmão Soldanério, qual sol resplandecente, brilhou no mundo
tanto pelo exemplo como pela doutrina; 22
o irmão Junípero12
sobressaiu
por uma tão inabalável paciência, que ninguém jamais o viu perturbado
apesar dos apuros em que esteve envolvido; 23
o irmão Rogério13
salientou-
-se por uma vida de indiscutível virtude, a ponto de o senhor Papa
Gregório IX o ter declarado e confirmado como autêntico santo e ter
autorizado que a sua memória se celebrasse em Tódi14
, onde repousam as
suas sagradas relíquias – se bem que não tenha permitido celebração de
festa solene como era costume em tais circunstâncias, razão pela qual,
segundo nos foi dito, foi posto de parte o processo da sua canonização.
24
Quanto ao irmão António de Pádua, continua a ser um sem-fim de
novos prodígios. 25
O santo irmão Nicolau, de quem se diz que entre outros
prodígios ressuscitou um defunto que ia ser retirado do leito da morte e
deu olhos novos a alguém a quem os naturais tinham sido vazados, jaz em
Bolonha, na igreja franciscana. 26
Ao irmão Ambrósio, com fama de nume-
rosos milagres, venera-o a vetusta cidade de Roma, onde ele tem a eterna
mansão. 27
O irmão Simão, favorecido pela graça de realizar maravilhas,
engrandece com a realização de numerosas curas a cidade de Espoleto
onde descansa. Com efeito, eu mesmo tive a oportunidade de ver no vale
de Espoleto um defunto ressuscitado por sua invocação. 28
A veracidade
desse milagre, bem como de muitos outros, foi reconhecida e solenemente
aprovada pela autoridade apostólica do bispo de Espoleto, após cuidadosa
e diligente investigação. 29
Foram também de eminente santidade o irmão
João e o irmão Nicolau; o primeiro dos dois, Fr. João, que foi ao encontro
do Senhor enquanto desempenhava o múnus de Guardião, já tornara ilus-
tres várias regiões da Alemanha por suas obras maravilhosas.
30
Também da mesma forma nos mostraram caminhos de perfeição,
com exemplos duma vida santa que pudemos admirar, o irmão
Agostinho15
e o irmão Guilherme: de ambos se recorda que ainda em vida
a sua virtuosa santidade resplandeceu em sinais do céu. 31
O venerável
—————
12
Cf. EP 85,9.
13
Cf. EP 85,11; 1C 216,12.
14
Cf. FF1, 3C1,16, nota 18 onde se diz que o Beato Rogério de Todi foi um dos
primeiros frades a ser beatificado.
15
Cf. 2C 218. Trata-se de Fr. Agostinho, ministro na Terra de Labor, falecido no mesmo
dia de S. Francisco.
13
irmão Hugo, que, cheio de espírito de sabedoria e de inteligência, foi
admirável pela santidade de vida e pela eficácia da doutrina, repousando
em Marselha, confirmou a sua santidade com prodígios miraculosos. 32
Fr.
Cristóvão, irmão duma simplicidade de pomba, condignamente sepultado
na igreja dos irmãos de Catúrcio, é conhecido pelo esplendor de
numerosos milagres. 33
O irmão Estêvão, a quem o Senhor concedeu a
graça de extraordinária virtude, que antes fora monge e Abade na Ordem
Beneditina, quando por amor de Cristo se quis fazer frade menor, foi
nomeado Inquisidor contra os hereges e teve o privilégio de ser honrado
com a glória do martírio e de taumaturgo, e jaz na igreja dos irmãos de
Tolosa. 34
Também aí foi veneradamente sepultado o irmão Raimundo,
glorificado com idêntico martírio. 35
Brilham ainda com notáveis milagres
o irmão Benvindo e o irmão Pedro, outrora Ministro da Calábria, como
por graça divina se comprova.
36
Seria fastidioso continuar com a enumeração de cada um dos
Confessores e dos gloriosos Mártires, que sofreram o martírio em defesa
de Cristo e da Igreja tanto por parte de Sarracenos como de defensores de
hereges, quando por mandato da Sé apostólica faziam investigações
acerca de erros heréticos.
14
Capítulo II
A formação dos primeiros discípulos
1
Depois de regressar do encontro com o sumo Pontífice, de quem
recebera autorização para pregar, o bem-aventurado Francisco recolhia-se
com os irmãos nos subúrbios da cidade de Assis em qualquer casebre
abandonado16
, por vezes tão acanhado que nele mal podiam sentar-se ou
deitar-se esses homens que decididamente tinham rejeitado habitar em
casas espaçosas e aprazíveis. 2
Além disso viviam em tal penúria, que com
bastante frequência nem sequer podiam matar a fome com um pedaço de
pão, tendo de se contentar com uns nabos mendigados pelas hortas ao
redor de Assis17
. 3
Por parte de familiares eram perseguidos, e por outros
eram escarnecidos, pois nessa época era inconcebível que pelo Senhor um
jovem se desfizesse dos seus bens e fosse pedir esmola de porta em porta.
4
No entanto, da parte deles não se ouvia por causa disso nenhuma lamen-
tação nem queixume, antes pelo contrário, cheios de alegria espiritual e
serenidade de coração, tudo aguentavam com paciência.
5
Posteriormente, sob o impulso do santo Pai, os irmãos foram cres-
cendo em número e em perfeição. 6
Eram efectivamente irmãos menores,
tanto de nome como pela humildade de espírito: considerando-se súbditos
de quem quer que fosse, procuravam sempre habitar nos lugares mais
pobres e exercer as ocupações mais humildes18
. 7
Mesmo no caso de surgir
qualquer atitude aparentemente injuriosa, inflamados pelo espírito de
caridade, era admirável como se amavam uns aos outros. E quando uma
vez por outra surgia a oportunidade de se reunirem, então é que se fazia
sentir o dardo do seu amor espiritual. 8
Com que expressões? Com
afectuosos abraços, com delicadas trocas de palavras, com ósculos santos,
com amigáveis conversas, com sorridente e modesta fisionomia, com
rostos irradiando alegria, com mãos incansáveis em prestar obséquios.
9
Como efectivamente desprezavam todas as coisas terrenas, nunca
fomentavam amizades particulares, mas repartiam todo o afecto do seu
amor pela comunidade dos irmãos, tratando de se dedicar aos demais no
sentido de lhes remediarem as necessidades, procurando não o seu
próprio proveito, mas o de Cristo e o do próximo. 10
Chegou por exemplo a
acontecer que quando um indivíduo tresloucado se pôs a arremessar
—————
16
Talvez em Rivotorto como recorda 1C 42, 1-2; Cf. LM 4.3,1.
17
Cf. TC 55,3.
18
Cf. 1C 38,4; T19
15
pedras contra alguns irmãos, um outro irmão se meteu de permeio,
preferindo ser ele atingido do que ser ferido o seu irmão19
.
11
Alicerçados em tão sólidos fundamentos de caridade e humildade,
cada um tratava o seu irmão com tal deferência como se ele fosse o seu
senhor. 12
Quem entre eles sobressaísse pelo cargo que desempenhava ou
por qualidades com que a graça divina o enriquecera, apresentava-se
como o mais humilde e o menos importante de todos20
. 13
Se algum
inadvertidamente deixasse escapar qualquer expressão que desagradasse a
outro, não descansava enquanto lhe não pedisse humildemente desculpa21
.
14
Estavam sempre mortos por se reunirem, e sentiam-se radiantes quando
se encontravam juntos; por isso se lhes tornava difícil e dolorosa a
separação22
. 15
No entanto, jamais se atreviam a opor qualquer objecção à
santa obediência, como soldados disciplinados que nada querem saber dos
motivos das ordens recebidas, mas se apressam a executar sem
contestação o que lhes é mandado. 16
Fosse o que fosse o que lhes
mandassem, consideravam-no como um mandato procedente da vontade
do Senhor, e isso lhes tornava fácil e suave cumpri-lo. 17
Um favor que
solicitavam com empenho era que não os mandassem para as regiões
donde eram oriundos, de modo a que neles se cumprisse a expressão
profética: Tornei-me um estranho para os meus irmãos, um desconhecido
para os filhos de minha mãe23
.
18
Viviam sempre em alegria espiritual, uma vez que não tinham
qualquer motivo de perturbação. 19
Em situações complicadas,
regozijavam-se como se lhes tivesse saído a sorte grande, e
encomendavam a Deus os seus perseguidores, e não eram poucos os que,
vendo isso, se decidiam a imitá-los24
.
20
Quando eram procurados pelos ricos do mundo, recebiam-nos com
delicadeza e alegria, de modo a induzirem-nos a evitarem o mal e a modi-
ficarem o comportamento25
. 21
Às pessoas que encontrassem em qualquer
sítio, pelos caminhos ou nas praças, dirigiam palavras de conforto e de
estímulo a amarem e reverenciarem o Criador. 22
Preferiam hospedar-se
—————
19
Cf. AP 26, 1-2.
20
Cf. AP 26, 4-5.
21
Cf. TC 43, 1; AP 27, 1.
22
F. 1C 29, 1-4.
23
Sl 69,9.
24
Cf. AP 23, 11; TC 40, 8.
25
Cf. TC 45, 1; AP 29, 1; 1R 2, 1-3; 2R 10, 6.
16
nas residências paroquiais de sacerdotes do que nem casas de seculares26
.
23
Mas se isso não era possível, informavam-se sobre alguma família mais
piedosa do lugar, a quem pudessem honestamente pedir hospedagem. 24
E
embora fossem pobres a mais não poder, estavam sempre dispostos a
repartir com quem lhes pedisse as esmolas recebidas.
25
Desprezavam tão profundamente todos os bens materiais, que só
com muita relutância aceitavam as coisas absolutamente necessárias à
vida. Como indumentária contentavam-se com uma simples túnica, às
vezes remendada por dentro e por fora, umas reles bragas e um cordão
grosseiro como cinto27
. 26
Quanto à vestimenta, nada de cuidados, apenas
se notava desprezo e indigência. 27
Se não conseguiam outro lugar mais
conveniente para descansarem de noite, acomodavam-se em grutas ou em
fornos comunais. Durante o dia, ajudando em trabalhos manuais da sua
especialidade, a todos aqueles com quem conviviam davam exemplo de
humildade e paciência28
. 28
Tão imbuídos estavam da virtude da paciência,
que sendo muitas vezes vítimas de vexames e injúrias, chegando mesmo a
ser espancados e desnudados, e vendo-se desprovidos de qualquer auxílio,
ainda assim aguentavam tudo isso com humildade, chegando ao ponto de
na sua boca ressoar um cântico de louvor e de acção de graças29
.
29
Nunca ou quase nunca interrompiam o louvor a Deus, mas recor-
dando no exame de consciência a vida quotidiana davam graças a Deus
pelo que de bom tinham feito, e deploravam e choravam negligências em
que tivessem incorrido e faltas que por descuido tivessem cometido. 30
Se
notavam que lhes ia faltando o espírito de devoção lhes ou diminuía a
habitual piedade, imaginavam que Deus os tinha abandonado. 31
No intuito
de se aplicarem à oração, usavam diversos estratagemas com o fim de a
oração não ser perturbada por uma sonolência traiçoeira30
.
32
Se alguém, como é costume, ou para as contingências duma via-
gem ou por outro qualquer motivo, os deixava desfalcados de provisões
de alimento ou de bebida, mortificavam-se com muitos dias de
abstinência. 33
Com tais mortificações procuravam reprimir os incentivos
carnais, a ponto de por vezes exporem ao gelo o corpo nu ou de o fazerem
sangrar com afiados espinhos. 34
Era tal a aspereza com que cada um se
—————
26
Cf. TC 59, 11.
27
Cf. 1C 39, 6.
28
Cf. 1C 9, 11.
29
Cf. 1C 40, 1-2
30
Cf. 1C 40, 3-5; 2R 5, 3
17
tratava, que dava a impressão de se odiar a si mesmo. 35
Vivendo em paz e
harmonia com todos, evitavam com extremo cuidado qualquer
escândalo31
.
36
Todos nutriam sentimentos de humildade acerca de si mesmos, e
de respeito para com os outros, sobretudo para com os sacerdotes. 37
Uma
vez um sacerdote avisou certo irmão: «Vê lá, não sejas hipócrita!» Esse
irmão tomou tanto a peito o aviso, que se considerou mesmo hipócrita,
comentando: «Foi um sacerdote que o disse! Ora um sacerdote não pode
mentir!» 38
E daí em diante passou a andar triste e aflito, até que o Santo
lhe explicou com perspicácia o verdadeiro sentido da recomendação do
sacerdote32
.
39
Refreavam a língua guardando silêncio com o máximo cuidado.
Em conversas só gastavam o tempo necessário, sem nunca lhes sair da
boca qualquer dito chocarreiro ou frívolo. 40
Tinham todos os sentidos tão
disciplinados, que não gostavam de ver nem de ouvir nada que não fosse
condizente com a religião33
. 41
Era simples a maneira de se apresentarem e
modesto o modo de andarem, com os olhos baixados para a terra e o espí-
rito erguido para o céu.
42
O Santo, com efeito, ensinava-lhes que não se deviam limitar a
dominar os vícios carnais, mas deviam também a mortificar os sentidos
exteriores, pelos quais entra a morte para a alma.
43
Acontecendo que o imperador Otão passasse com grande pompa
por aquelas bandas para receber a coroa imperial, o santo Pai, que estava
com os irmãos no já referido casebre junto ao caminho de passagem da
comitiva, nem se dignou sair fora para ver, nem permitiu que saísse nin-
guém a não ser um, para observar e recordar constantemente ao candidato
à coroa que a sua glória pouco duraria34
. 44
Sentindo-se avalizado pela
autoridade Apostólica, recusava-se a adular reis e príncipes35
.
45
Também fazia diligências para investigar diariamente a vida dos
irmãos, não deixando impune nenhum procedimento que lhe parecesse
menos razoável, e chamava-lhes a atenção para a mais leve negligência.
—————
31
TC 58, 5; AP 38, 7.
32
Cf. 1C 46, 3-9; 1R 2, 15.
33
Cf. 1C 41, 3-4.
34
Cf. 1C 43, 2-3. O caso aqui referido deve ter ocorrido em 1210. Otão IV (1198-1218)
foi coroado em Roma no dia 4 de Outubro de 1209. Em 18 de Novembro foi destituído
por Inocêncio III. Cf. FF1 p. 267, notas 93 e 94.
35
Cf. 1C 43, 6.
18
46
E os irmãos correspondiam, não só procurando cumprir escrupulosa-
mente os conselhos que ele lhes dava como irmão ou os preceitos que lhes
impunha como Pai, mas iam ainda mais longe, procurando por vezes
adivinhar o que ele quereria que se fizesse. 47
De facto, para os estimular à
perfeição, dizia-lhes ele que a verdadeira obediência não se devia limitar
a cumprir a ordem verbal do superior, mas devia estender-se à vontade do
mesmo, desde que fosse conhecida, e que o súbdito devia fazer aquilo que
por qualquer indício lhe parecesse que o superior quereria36
. 48
A tal ponto
uma santa simplicidade resplandecia nos irmãos e era tal a sua pureza de
coração, que não havia entre eles sombra de fingimento: assim como
entre eles havia uma só fé e um só espírito, também havia uma só
vontade, conformidade de procedimentos, concórdia de critérios e
delicadeza de atitudes.
49
São assim os testemunhos do venerável Pai, com que ele formava
os seus novos filhos, não apenas por palavras, mas com verdadeiros
exemplos, e pelos quais renovava o propósito e o empenho duma vida
apostólica. 50
Que o teor de vida aprovado [pelo Papa] era aprovado no
céu, isso logo no começo dessa iniciativa foi revelado a um piedoso
indivíduo por meio duma visão dos santos Apóstolos Pedro e Paulo, a
agradecerem ao Senhor pela renovação na terra da sua forma de vida e a
intercederem pela conservação dessa Ordem religiosa. 51
Quando o bem-
-aventurado Francisco teve conhecimento disso, comentou: «Se S. Pedro
e S. Paulo intercedem por nós todos os dias, também é justo que nós os
veneremos com uma oração quotidiana». 52
Daí adveio o costume de se
referirem nominalmente os dois Apóstolos em cada uma das horas do
Ofício da Santíssima Virgem, quando anteriormente nessas orações
apenas se fazia uma referência genérica aos Apóstolos, segundo a praxe
da Igreja de Roma37
.
53
A essas fórmulas de oração acrescentaram-se então expressões
como estas: Protegei, Senhor, e Atendei-nos, ó Deus, e ainda dos vossos
Apóstolos Pedro e Paulo – quando antes se dizia de todos os vossos
Apóstolos, etc.
—————
36
Cf. 1C 45, 5.
37
Sobre a fidelidade á Igreja romana, cf. Ex 26, 1; 2R 1, 3; 1C 62, 8; 2C 24, 7; TC 46, 2;
AP 31, 2.
19
Capítulo III
A tolerância de S. Francisco
1
Muito se regozijava o Santo com o progresso dos irmãos, sem
contudo deixar de cuidar dos mais fracos e dos atormentados por tenta-
ções. 2
Quando certo irmão, assediado por uma tentação, lhe pediu que
rezasse por ele, respondeu-lhe: «Meu filho, o facto de seres tentado mais
me convence de seres um verdadeiro servo de Deus. Ninguém se deve
considerar servo de Deus se não passar por tentações e tribulações. 3
Uma
tentação vencida é dalguma forma como a aliança com que o Senhor des-
posa a alma do seu servo. 4
Não são raros os que se gabam dos méritos de
muitos anos e se dão por felizes por nunca terem sucumbido a tentações;
mas como era o simples medo que os vencia antes do combate, conven-
çam-se de que Deus terá em conta essa sua debilidade espiritual. 5
Lutas
renhidas só ocorrem quando há grande valentia»38
.
6
Outro irmão, continuamente angustiado por uma tentação de ordem
espiritual, que é bem mais esquiva e mais grave do que o instinto carnal,
veio ter com o bem-aventurado Francisco, prostrou-se a seus pés, 7
sem no
entanto nada conseguir dizer, com a voz embargada por lágrimas amargas
e soluços. Percebendo o Santo que ele estava atormentado por espíritos
malignos, exorcizou: «Ordeno-vos, demónios, que deixeis de atacar este
meu irmão». 8
E imediatamente o irmão se viu livre de toda a tentação.
9
Nisto se patenteou o poder do Santo sobre os demónios e a sua condes-
cendência para com o filho39
.
10
Por ele mesmo outrora ter sido vítima de tentações, aprendeu a ter
compaixão dos que eram tentados. 11
Com efeito, em tempos passados
tinha experimentado a mais violenta tentação carnal, e depois de se
flagelar com aspereza para a debelar, para não perder a coragem após essa
lição, atirou-se nu para uma camada de neve, expulsando do coração pelo
sofrimento corporal uma infecção espiritual40
.
12
Noutra ocasião foi acometido por uma gravíssima tentação espiri-
tual, que aliás redundou em seu maior benefício. 13
Durante muitos dias
andou aflito, orando e chorando copiosamente. 14
Certo dia, no meio da
oração imaginou ouvir uma voz: «Francisco, se tiveres fé, mesmo como
um grão de mostarda, dirás a um monte que mude de sítio, e ele mudará».
—————
38
Cf. 2C 118, 1-7.
39
Cf. 2C 110
40
Cf. 2C 117
20
Replicou o Santo: «Que monte, Senhor, teria eu a pretensão de deslocar?»
15
E pela segunda vez ouviu: «O monte é a tua tentação.» Então, banhado
em lágrimas, suplicou: «Senhor, faça-se como dizeis.» 16
E de imediato se
acabou a tentação e se sentiu livre dela41
.
17
O seu feitio levava-o a condescender com humildade, a encorajar
toda a gente e abrir-se com todos. Prestava reverência aos sacerdotes da
Igreja, respeito aos idosos, honra aos nobres e aos ricos, mas consagrava
um amor ainda mais profundo aos pobres. Procurava viver em paz com
todas as categorias de gente, e com insistência aconselhava os irmãos a
procederem da mesma forma, dizendo-lhes: 18
«Se dirigis às pessoas uma
saudação de paz, deveis ter cheio de paz o vosso coração, de modo que
jamais alguém fique zangado ou escandalizado por vossa causa, mas antes
pelo contrário, se sinta mais inclinado a ser manso e benigno. 19
A nossa
vocação é tratar dos feridos, fortalecer os alquebrados e trazer ao bom
caminho os extraviados. 20
Muitos que porventura nos parecem membros
do diabo ainda virão a ser discípulos de Cristo42
.»
21
No trato com os irmãos falava bondosamente não como juiz, mas
como o pai a um filho ou o médico a um doente, de sorte que nele se con-
cretizava a expressão do Apóstolo: Quem é que se sente fraco sem que eu
também me sinta fraco43
? 22
Para com os doentes corporais tinha também
profunda compaixão, muita solicitude a respeito das suas necessidades;
numa palavra, comportava-se com todos conforme convinha a cada um.
23
Não deixava de tratar com a devida honra pessoas importantes que
vinham para a Ordem, e ponderando com piedade o que a cada um era
devido, em todas as circunstâncias considerava prudentemente os
diversos graus de dignidade44
. 24
Era efectivamente dotado de notável
discrição e do dom da simplicidade, associando na perfeição a prudência
da serpente com a simplicidade da pomba45
.
—————
41
Cf. 2C 115; LP 99;
42
Cf. TC 58, 5-6;
43
2 Cor 11,29; Cf. TC 59, 6; AP 39, 8-9.
44
Cf. 2C 57, 1-3.
45
LM 11. 1, 6
21
Capítulo IV
A pobreza
1
Um empenho muito especial de Francisco foi o de observar a
pobreza e a humildade e de estar sempre ocupado em actividades conve-
nientes. 2
Sentia-se feliz em habitações pobrezinhas, em pequenas cabanas
de madeira mais do que em construções de pedra. 3
Com frequência
passava temporadas com alguns irmãos em eremitérios, onde o espaço de
clausura era delimitado por um simples amontoado de silvas e umas
choupanas lhes serviam de casas46
. 4
Mas viver assim em cidades, não lho
permitia nem a maldade humana nem o grande número dos irmãos.
5
Detestava que qualquer irmão tivesse várias peças de roupa, bem como
tecidos elegantes e finos47
. 6
Não se compreende num pobre uma nova
peça de roupa, sendo muito menores as despesas de remendar a roupa
velha. 7
Um tecido grosseiro é de facto mais áspero e mais pesado e
agasalha menos, mas é isso que exige o piedoso projecto da Ordem, e pela
graça de Deus o desconforto facilmente é superado com o uso.
8
Se a necessidade obrigasse alguém a usar por dentro uma túnica
menos austera, ele não se opunha; queria no entanto que o hábito exterior
conservasse as características de ser pobre e grosseiro, pois Deus nos pôs
como exemplo de pobreza e penitência perante o mundo. 9
Mas observava
ele que quando a necessidade resulta não dum motivo razoável mas da
mera comodidade, isso é sinal de falta de espírito48
.
10
Costumava ele dizer que «não suportar com paciência as adversi-
dades, não era senão voltar para o Egipto»49
.
11
Quanto a livros, queria que houvesse poucos, esses poucos não
fossem luxuosos nem caros, mas apenas aptos para a necessária cultura de
irmãos indigentes50
. 12
Acerca de dinheiro, também por fervor religioso não
permitia aos irmãos possuí-lo nem sequer lidar com ele. Por isso é que
uma vez castigou severamente certo irmão por ele ter tocado numas moe-
—————
46
Cf. 2C 56, 1; EP 5, 3.
47
Cf. 2C 69, 2.
48
Cf. 2C69, 12.
49
Alusão ao episódio descrito no livro bíblico dos Números (Nm 14,1-4), em que se refere
que o povo israelita, liberto dos trabalhos forçados a que estivera submetido no Egipto, mas
em dificuldades no deserto por falta de alimento (cf. Nm 11,4-4), se amotinou contra
Moisés e em comício propôs o regresso ao Egipto (Nota do tradutor). Cf. 2C 69, 9; EP 15,
4
50
Cf. 2C 62, 1-2; EP 5, 1-2
22
das que encontrou no caminho. 13
Um outro irmão também recolheu uma
moeda perdida no caminho, 14
com a intenção de a dar a leprosos, apesar
de o companheiro o desaconselhar de fazer isso e lhe recordar a recomen-
dação do Santo, de não fazer caso de dinheiro achado na rua – o resultado
foi começar logo a ranger os dentes e perder a fala. 15
Perante isso, atirou
fora a moeda, e logo se soltaram os lábios do irmão arrependido, e deu
graças a Deus51
.
16
A fim de se precaver contra coisas supérfluas, nem sequer um sim-
ples copo o Santo permitia que houvesse em casa, porque considerava
possível mesmo sem copos remediar de qualquer outra forma os apuros
duma necessidade extrema. 17
Confiava absolutamente na providência
divina, como bem mostra a resposta que deu ao senhor Papa, quando este
lhe objectou ser difícil viver sem nada possuir: 18
«Meu Senhor, eu tenho
confiança que o Senhor Jesus Cristo, que prometeu dar-nos no Céu a vida
gloriosa, não deixará de nos conceder na terra o necessário sustento do
corpo no devido tempo»52
. 19
E ainda lhe propôs a seguinte parábola:
«Certo rei, tendo casado com uma mulher, que era muito pobre, mas
duma beleza extraordinária, teve dela filhos igualmente belos. 20
Quando
os filhos cresceram, a mãe mandou-os ir ter com o rei para tratar deles.
Ao reconhecê-los como seus filhos, por se parecerem com ele, abraçou-os
e disse: “Vós sois meus filhos e herdeiros; não vos preocupeis! Se até a
estranhos eu dou sustento à minha mesa, é mais que justo que o dê aos
que por direito são meus herdeiros”53
. 21
Os irmãos pobres são filhos de
Cristo pobre e duma Ordem pobre».
22
Já tinha a experiência de que o Senhor trata das coisas mais insig-
nificantes. 23
Ao regressar da Espanha, debilitado por uma doença muito
grave54
, disse no caminho ao irmão Bernardo que até seria capaz de tentar
ressarcir as forças com a carne duma avezinha se a tivesse à mão… 24
E o
curioso é que um desconhecido qualquer, atravessando um campo, lhe
veio oferecer uma ave, tal como ele desejava, declarando: «Servo de
Deus, aqui tens o que te oferece a clemência divina». 25
S. Francisco
aceitou a oferta e por tudo agradeceu a Cristo, que assim tratara dele.
26
O que não queria era ser conivente com o mundo por causa de
bens materiais. Quando o bispo de Assis lhe disse que lhe parecia
—————
51
Cf. 2C 65- 66.
52
Cf. AP 34, 4
53
Cf. 2C 16, 4-8; AP 35, 3-4; TC 50, 1-5; LM 3. 10, 2.
54
Cf. 1C 56, 7.
23
rigorosa demais a vida que ele escolhera de não possuir nada neste
mundo, respondeu-lhe: 27
«Se tivéssemos propriedades, precisaríamos de
armas para as proteger, pois dessa posse nascem muitas vezes desavenças
e litígios, e com isso lá se ia o amor de Deus e do próximo»55
.
28
Repetia com frequência: «À medida que os irmãos vão fazendo
pouco caso da pobreza, vai o mundo fazendo pouco caso deles56
. 29
Eles
devem dar ao mundo bom exemplo; e o mundo deve dar-lhes a eles o sus-
tento necessário. 30
Se deixarem de dar bom exemplo, também o mundo
deixará de os ajudar: procurarão, mas nada encontrarão…
31
Como precaução para salvaguardar a pobreza, o Santo tinha receio
de que aumentasse muito o número dos irmãos, e explicava-se: «Oxalá o
mundo, vendo raramente irmãos Menores, se admire de serem poucos!57
»
32
Em tudo ele queria que os irmãos se contentassem com poucas
coisas, e mesmo essas, fossem bens móveis ou imóveis, que não as consi-
derassem como propriedade sua. Não queria ter nada como seu, a fim de
mais plenamente possuir tudo no Senhor58
.
Capítulo V
A humildade
1
Francisco também praticou com esmero a humildade, virtude asso-
ciada à pobreza. 2
Por isso queria que os irmãos usassem um hábito des-
pretensioso, se cingissem com uma simples corda, se chamassem Menores,
e nunca recebessem honrarias mundanas. 3
Quando o senhor bispo de Óstia
lhe falou em conferir a irmãos cargos eclesiásticos honoríficos, recusou
terminantemente a proposta, e respondeu que deviam continuar na mesma
humilde situação. 4
Estava presente na altura S. Domingos, opondo-se
também ele a que os seus irmãos ascendessem a tais cargos59
. 5
E a concor-
dância com S. Francisco chegou ao ponto de lhe pedir um cordão para com
ele cingir devotamente a túnica interior e de lhe sugerir que as suas duas
Ordens Religiosas formassem uma só, e de afirmar que era a Francisco que
todos os Religiosos deviam seguir. 6
Oh, como deveria ser imitada pelos
respectivos filhos esta humildade e mútua caridade dos seus dois Pais
—————
55
Cf. AP 17, 7-8; TC 35, 6.
56
Cf. 2C 70, 1.
57
Cf. 2C 70, 5-6.
58
Cf. 1C 44, 6.
59
Cf. 2C 148.
24
fundadores! 7
Seria extremamente útil tanto para eles mesmos como para a
Igreja.
8
Para com superiores e sacerdotes queria que os irmãos fossem tão
respeitosos que os considerassem dignos de que lhes beijassem não apenas
as mãos, mas até os próprios pés, pela reverência devida à sua dignidade e
ao seu poder espiritual. 9
Afirmava com efeito: «Fomos constituídos auxilia-
res dos clérigos em ordem à salvação das almas, competindo-nos a nós
suprir aquilo que no seu ofício é de menos importância. 10
Cada um receberá
o estipêndio condizente não com a sua categoria, mas com o seu trabalho.
11
Capacitai-vos, irmãos, de que o bem das almas é o fruto que mais agrada a
Deus, e que ele se alcança melhor pela paz que pelo desentendimento». 12
E
dizia também: «Submetei-vos aos superiores, a fim de que, quanto de nós
dependa, não surja qualquer mal-entendido». 13
E que é que tem de mais
sujeitarmo-nos aos superiores, se por amor de Deus devemos submeter-nos
a toda a instituição humana60
?
14
O sentimento de humildade para consigo mesmo levava-o a ter-se
na conta de grande pecador, apesar de na realidade ser um espelho da mais
completa santidade e sem qualquer contaminação carnal, como foi revelado
ao santo irmão Leão, seu confessor, e foi informado ao Ministro Geral61
.
15
De facto, o confessor admirava-se de que S. Francisco, que em público se
declarava como o maior dos pecadores – sendo que o justo é o primeiro a
acusar-se a si mesmo – em privado nunca se acusava de nenhuma falta
contra a castidade, e com muita discrição quis certificar-se se ele
efectivamente nunca teria tido qualquer relacionamento sexual – declaração
que nunca teria colhido do Santo, por mais que lhe perguntasse,
precisamente por ele ser pessoa simples e duma pureza ilibada – foi-lhe isso
mesmo revelado e demonstrado com um milagre todo especial. 16
Enquanto
orava, esse irmão viu S. Francisco colocado num lugar tão elevado que
ninguém podia chegar junto dele nem tocar-lhe, e ficou convencido de que
essa visão significava o eminente grau da pureza do Santo. 17
Sem uma
castidade imaculada não se explicava que o seu corpo fosse enriquecido
com os sagrados estigmas. 18
Se há pessoas vulgares que por acção da graça
divina e do seu esforço natural chegam à velhice de corpo impoluto,
ninguém se admiraria que o corpo de Francisco, 19
a quem o Senhor
dispensara tantas graças, se conservasse também imaculado.
—————
60
Cf. 1 Pe 2,13; 2C 146, 6; 1R 16, 6.
61
Cf. 2C 123, 8; LM 6. 6,7.
25
Capítulo VI
A vida activa
1
Não se cansava o Santo de progredir na perfeição, recordando aos
irmãos que o Senhor não tardaria a vomitar os frouxos e aqueles que não se
dedicassem com entusiasmo a qualquer actividade. 2
Não aparecia diante
dele qualquer irmão ocioso sem que ele o repreendesse com veemência.
3
Queria que os irmãos estivessem sempre ocupados ou na oração ou em
qualquer actividade conveniente62
. 4
Muito se alegrou ao ouvir contar que
em determinado eremitério da Espanha os irmãos tinham com esse intuito
organizado o horário de modo a dedicarem parte da semana às ocupações
domésticas, e outra parte à contemplação63
. 5
Foi aí que aconteceu este caso
estranho. Certo dia, como um dos irmãos do grupo dos contemplativos não
compareceu para a refeição, foi encontrado na cela estendido no chão com
os braços abertos em forma de cruz, e embora não desse indícios de
respiração nem de qualquer movimento, parecia estar vivo; além disso,
acima da cabeça e abaixo dos pés ardiam candelabros irradiando um fulgor
admirável. 6
Deixaram-no em paz, e logo o resplendor desapareceu; o
homem veio a si, e avançando para a mesa da refeição, confessou a sua
culpa, como era costume.
7
Contra o defeito da tristeza recomendava: «Se um servo de Deus por
qualquer motivo se sentir angustiado, deve quanto antes recorrer à oração, e
não se arredar da presença do Pai supremo enquanto ele lhe não conceder a
alegria da sua salvação64
.
8
Consoante as oportunidades, as suas ocupações eram a pregação e a
salvação do próximo. 9
Quantos progressos ele fez na doutrinação e na
conversão das almas, só o sabe Deus, que lhe abriu o entendimento para
compreender as Escrituras65
. 10
Certo Cardeal fez-lhe umas perguntas acerca
de alguns assuntos abstrusos, esclarecendo: «Interrogo-te não por te
considerar um erudito, mas por acreditar que estás possuído do espírito de
Deus, e não terei dificuldade em aceitar o teor da tua resposta, pois estou
convencido que provém de Deus»66
. 11
Sobre aquela passagem do profeta
Ezequiel “se não exortares o pecador para o afastar do mau caminho, ele
—————
62
Cf. 2C 161; 1R 7, 2.
63
Cf. 2C 178, 2-4.
64
Sl 51,14. Cf. 2C 125, 9.
65
Lc 24,45.
66
Cf. 2C 104.
26
perecerá por causa do seu pecado, mas é a ti que eu pedirei contas do seu
sangue”67
, alguém o interrogou uma vez se somos obrigados a admoestar
todos aqueles que sabemos que vivem em pecado mortal, respondeu: 12
«Se
a palavra do profeta se deve entender em sentido universal, como eu julgo,
aceito perfeitamente que um servo de Deus deve ser tão brilhante pela
santidade de vida, que com o esplendor do seu bom exemplo e com bons
conselhos que dê, repreenda todos os ímpios. 13
Assim, será o resplendor da
sua vida e o perfume da sua aura a denunciar a cada um a própria
iniquidade.»
14
Ele mesmo não se limitava a dar lições com o seu exemplo, mas
também por palavras, confirmadas por vezes com sinais prodigiosos, como
se narra em suas biografias. 15
Vou referir um caso muito divulgado ocorrido
na povoação lombarda de Alexandria. 16
Foi o Santo convidado por certo
indivíduo temente a Deus, o qual lhe pediu para cumprir a norma do santo
Evangelho que diz: “Comei do que vos for servido”68
. No momento em que
acabavam de lhe servir à mesa uma boa peça de capão, alguém,
fingidamente, apareceu à porta a pedir uma esmolinha por amor de Deus.
Ao ouvir a súplica em nome de Deus, Francisco acondicionou a peça de
carne num pedaço de pão e foi dar ao pedinte esse belo petisco, que ele não
comeu, mas maliciosamente guardou. 17
E quando no dia seguinte o Santo
pregava ao povo, o falso mendigo ergueu a voz para dizer: «Quereis saber
quem é esse Francisco a quem honrais como Santo? 18
Vede esta carne que
ele ontem me deu, quando estava a refastelar-se!». 19
Toda a gente o
descompôs, ao ver que o que ele mostrava não era uma peça de capão, mas
um peixe! O desfecho do episódio foi até o próprio culpado se espantar com
o milagre e se ver obrigado a reconhecer o que toda a gente via [que se
tratava de peixe, e não de carne], e diante de todos pediu perdão ao Santo e
contou a tramóia diabólica que inventara. 20
Depois de o prevaricador ter
reconhecido o seu erro, a prova material da falsa acusação voltou a ter o
aspecto de carne…
21
Foi também notável o Santo no condão de expulsar demónios e na
extraordinária graça de curas, que realizava sobretudo pelo poder da cruz69
.
22
Pelo sinal da cruz deu vista a cegos, repelia demónios e curava as mais
variadas doenças. 23
Em Orte, um indivíduo afectado por uma úlcera enorme
—————
67
Ez 4,18; Cf. 2C 103.
68
Lc 10,8; 2C 78-79.
69
Cf. 1C 67.
27
entre os ombros, abençoado por ele com o sinal da cruz, ficou de repente e
por completo liberto dessa chaga, sem dela restar o menor vestígio70
.
24
Na fervorosa devoção para com ele, muita gente com frequência lhe
levava pães e outros géneros alimentícios para ele abençoar, acontecendo
que eles se conservavam em bom estado durante muito tempo, e serviam
para curar mazelas a quem deles se alimentasse71
. 25
Também se provou que
pelo efeito das mesmas vitualhas se dissiparam fortes tempestades de
trovoadas e granizo. 26
Da mesma forma, o simples facto de lhe tocar no
hábito ou no cordão fazia com que desaparecessem doenças e febres e se
recuperasse a desejada saúde.
27
Aconteceu-lhe uma ocasião ir ao tecto hospitaleiro dum militar cujo
filho único se tinha afogado e desaparecera, e por mais buscas que se
fizessem, o cadáver do jovem nunca mais foi encontrado. Levado pela sua
própria compaixão e compadecido dos gemidos dos que choravam a morte
do rapaz, parecendo-lhe ser ocasião propícia para Cristo confirmar as suas
maravilhas em favor da firmeza da fé católica que o santo varão pregava,
28
suplicou a Cristo em orações como sempre devotas e piedosas, e conse-
guiu indicar o lugar exacto onde o afogado tinha ficado no rio, preso pela
roupa, e ressuscitando-o milagrosamente, libertou a família da dupla
angústia da perda do jovem e da sua morte. 29
Eis o servo fiel e imitador do
Senhor misericordioso, que, ao ver que levavam a sepultar o filho único
duma mão viúva, se compadeceu dela72
e o ressuscitou. Eis um novo pro-
feta como Elias e Eliseu, dos quais se refere que ressuscitaram os filhos dos
seus hospedeiros!
30
Até seres irracionais lhe obedeciam. Entre outros episódios, uma
ocasião em que o coaxar de rãs num lago próximo da igreja onde ele pre-
gava dificultavam a pregação, mandou-as calar, a fim de também ele poder
louvar a Deus. Elas não fizeram mais barulho, mesmo depois da pregação.
31
Até que mais tarde, voltando ele à mesma igreja e verificando que elas
depois de ele falar continuavam sempre silenciosas, convidou-as a louva-
rem o seu Criador como habitualmente faziam, compungido por durante
tanto tempo as ter inibido. 32
Destes dois prodígios, o das rãs e o do jovem
ressuscitado, anciãos dessa época passada convidados a depor, garantiram
terem sido deles testemunhas – um deles chamava-se mesmo irmão Ver-
dade, e diz-se que a sua sepultura se tornou notável em milagres.
—————
70
LM 12. 9; 3C 179.
71
Cf. 1C 63.
72
Lc 7,12-14.
28
33
Obedeciam-lhe ainda os próprios seres inanimados. Uma ocasião,
depois de celebrado em Assis o capítulo geral, continuaram lá o irmão
Monaldo e outros cerca de trinta irmãos, a fim de se esclarecerem com o
irmão Francisco sobre assuntos espirituais73
. 34
Uma vez que precisavam de
ficar para o dia seguinte, o Santo quis que lhes fosse servida uma refeição.
35
Mas o despenseiro não dispunha senão dum pequeno pão, e por isso o
pobre Francisco mandou pedir a Clara que lhe enviasse alguns pães, se os
tivesse, para a dita refeição. 36
Nessa altura ela só dispunha de três pães, e
enviou-lhe dois. Ele então recorreu ao seguinte expediente: cortou-os todos
aos bocadinhos, e pôs esses pedaços na mesa, explicando: «É este o pão da
caridade». 37
Será preciso acrescentar alguma coisa? Com esses três pães
ficaram plenamente satisfeitos os cerca de trinta irmãos, e dos restos ainda
se recolheu um cesto cheio.
38
Nem a memória do povo nem os testemunhos escritos conservam os
inúmeros prodígios com que Cristo quis distinguir o seu porta-bandeira e
pregoeiro Francisco, e confirmou sem qualquer margem para dúvida a sua
doutrina. 39
Mas ponhamos de parte a ociosidade, autêntica morte da alma, e
quando nos metermos ao trabalho, não passemos por cima das dificuldades
a respeito da doutrina e doutras coisas; deixemo-nos instruir pelo exemplo
do santo Pai, e sobretudo do próprio Jesus Cristo, que viveu pobre e em
dificuldades desde a sua juventude. 40
Li algures a respeito de certo irmão
que num só dia rezou 50 Salmos, que o Senhor o livrou das penas do
Purgatório. 41
Passando ele noites inteiras em oração, certa noite apareceu-
-lhe o Salvador com a Virgem Santíssima, e à direita de Cristo uma cruz
gigantesca que chegava até ao céu. 42
Disse então o Senhor ao fiel tão
persistente na oração: «Trabalha com confiança e faz penitência, porque
também eu quando estive no mundo vivi sempre em trabalhos». 43
Sigamos
nós também o exemplo de Cristo e de S. Francisco no trabalho, para nos
unirmos a eles no descanso. 44
Um patrão trabalhador não aprecia um
empregado calaceiro.
—————
73
Cf. 1C 48, 7.
29
Capítulo VII
As três Ordens
1
O resultado da ideologia de Francisco está bem patente nas três
Ordens por ele fundadas.
2
A primeira Ordem é a dos irmãos Menores, cuja finalidade é servir o
Senhor em pobreza e humildade segundo o Evangelho e pregar a con-
versão. 3
Nos que ingressam nessa Ordem Religiosa são inúmeros os sinais
de ela ser abençoada por Deus. 4
Seria quase impossível a quem quer que
fosse descrever os prodígios com que Deus enriqueceu essa Ordem nos
irmãos e pelos irmãos com que a dotou. 5
Vou no entanto referir-me a visões
e a vocações mais notáveis, a revelações, embora poucas, que já se vão
fazendo por parte de pessoas de confiança, de acontecimentos que lhes
foram contados, pelos quais o Senhor se dignou comprovar manifestamente
e sem sombra de dúvida a perfeição deste instituto religioso.
6
Contava o outrora Ministro Geral de santa memória padre frei
Haymon que havia na Inglaterra um certo Prelado que em espírito foi arre-
batado ao céu, onde, entre muitos Religiosos de vários institutos, com
grande estranheza sua não viu nenhum irmão menor. Aparecendo-lhe tam-
bém a mais bela das mulheres, a santíssima Mãe de Deus, correu para ela e
interrogou-a sobre o mistério que o intrigava. 7
Disse-lhe o Bispo que estava
surpreendido por não ver nem sequer um irmão menor a gozar daquela
felicidade… Respondeu-lhe ela: «Anda comigo, que eu vou indicar-te onde
é que eles estão». 8
E mostrando-lhe os irmãos em convívio íntimo e familiar
com Cristo Senhor, acrescentou: «Vê como eles estão seguros e felizes sob
as asas protectoras do Juiz; como eles, salva a tua alma». 9
O Bispo,
considerando a graça da visão e o conselho salutar da Mãe de Deus, e
obtido o consentimento do senhor Papa Gregório IX, ingressou na Ordem
dos Frades Menores.
10
De alguns Religiosos também se conta que foram vistos abrigados
sob o manto da santíssima Virgem; é assim que os irmãos são protegidos
pela própria Mãe de Deus e pela sombra protectora das asas do Filho de
Deus, ambos os dois desempenhando o papel de Querubins74
a protegerem
os irmãos.
—————
74
Querubins são figuras míticas representando touros e/ou leões com asas, bem
conhecidas nas antigas culturas religiosas da Mesopotâmia e do Egipto, e importadas por
alguns redactores bíblicos do Antigo Testamento, sobretudo pelo profeta Ezequiel, onde
aparecem nada menos de 17 vezes. No Novo Testamento não se fala em Querubins senão
30
11
É de crer que o referido Prelado tenha sido D. Radulfo, Mestre de
Teologia e Bispo de Erfurt, que de facto ingressou na Ordem Franciscana.
12
Mas além desse houve ainda dois outros Radulfos, ambos doutores em
Teologia, um dos quais de Paris, que também entrou na Ordem em
circunstâncias deveras curiosas. 13
Enquanto certo dia se dedicava aos seus
estudos, deu-lhe o sono e adormeceu com a cabeça sobre o livro. Sonhou
então com o diabo a ameaçá-lo de o privar da visão, intimidando-o: «Ainda
te hei-de cegar com esterco!» 14
Entretanto, o mestre acordou, mas mais
tarde tornou a dormitar e a sonhar de novo com o diabo a repetir-lhe a
mesma ameaça. Desta vez, porém, reagiu contra ele, apontando-lhe os
dedos contra os olhos e ameaçando-o: «Não serás tu a cegar-me a mim; eu
é que ainda te hei-de cegar a ti!». 15
Ora aconteceu que no dia seguinte,
quando se assentava na sua cátedra doutoral, recebeu da Inglaterra uma
carta de certo Bispo com a oferta de chorudo estipêndio [se para lá fosse
leccionar]. 16
Interpretando a riqueza proposta como o “esterco” com que o
diabo o queria cegar, desfez-se de todos os seus bens e ingressou na Ordem
dos Frades Menores.
17
Há já muito tempo, acompanhei o então célebre Ministro Geral por
terras da Alemanha e da Flandres. Passados muitos anos, em diversos
encontros com irmãos, soube que houve de facto um cónego muito vene-
rável que se resolveu a entrar na Ordem por ter sido miraculosamente
curado de cegueira. 18
Devido ao muito tempo desde então decorrido, não
posso garantir todas as circunstâncias, mas não duvido da cura dessa pessoa
e da sua entrada na Ordem. Passo a descrever o facto provável como me foi
contado.
19
Tratava-se de um cónego, de linhagem nobre, pessoa respeitável,
muito piedoso e especialmente devoto da virgem Santa Eufémia. 20
Embora
já de avançada idade e habituado a uma vida desafogada, não descurava a
salvação da alma – perigo que costuma acontecer aos ricos –, no ardente
desejo de empreender algo mais valioso, não deixava de pedir ao Senhor
—————
numa única e breve referência ao A.T.: «Sobre a arca estavam os querubins da glória, a
cobrirem o propiciatório com a sua sombra» (Heb 9,5). Na Bíblia representam e
simbolizam a majestade, a presença e proximidade de Deus. Por serem alados, com muita
frequência os textos sagrados, sobretudo os salmos, falam também em segurança e
aconchego “à sombra ou debaixo das asas de Deus” (Cf. Sl 17,8; 36,8; 57,2; 61,5; 63,8).
A teologia mística da Idade Média, criando a angelologia, elevou os querubins à classe
angélica suprema. É nessa base que o Autor aqui apresenta ousadamente o Filho de Deus e
sua Mãe como dois Querubins a abrigarem à sombra das suas asas os irmãos menores.
(Nota do tradutor).
31
que lhe indicasse o caminho da salvação, 21
repetindo as palavras do profeta:
Mostra-me, Senhor, os teus caminhos, e ensina-me as tuas veredas75
.
22
Mostra-me o caminho a seguir, porque para ti elevo a minha alma76
.
23
Também por intercessão da referida Virgem que tinha por advogada
suplicava incessantemente que o Senhor lhe indicasse o estado mais con-
veniente para a sua salvação. 24
E o Senhor inflamou-lhe o coração no sen-
tido de renunciar resolutamente ao mundo na Ordem de S. Francisco. 25
Mas
havia o óbice de ser doente e de na garganta padecer de um tumor que o
deformava. 26
Por essa razão, o Ministro dos irmãos Menores ia adiando o
seu ingresso, e com a devida prudência conforme podia o ia tentando
dissuadir do propósito, asseverando-lhe que a sua vida espiritual nada tinha
de reprovável nem impeditivo da salvação, e até seria frutuosa pelas muitas
boas obras que poderia realizar. 27
Percebendo ele que lhe escapava a
oportunidade de realizar o seu sonho e muito entristecido por isso, sucedeu
que uma ocasião em que estava a rezar o acometeu uma leve sonolência. 28
E
eis que lhe apareceu Santa Eufémia, de quem era devoto, acompanhada de
grande séquito de outras Virgens, e o encorajou a ingressar na Ordem dos
Frades Menores, curando-o do obstáculo que disso o impedia, e como prova
irrefutável de que poderia aguentar os rigores da Ordem, curou-o do tumor,
dizendo-lhe: 29
«Sirva-te isto de sinal de que ficas curado de todos os teus
achaques». 30
Imediatamente lhe abriu e espremeu o inchaço do tumor da
garganta para extrair todo o pus, e passando-lhe depois a mão pelo orifício
aberto, completou a operação e restituiu ao homem a saúde perfeita. 31
Ao
despertar, o piedoso senhor viu que estava de facto completamente curado.
32
Recebido na Ordem conforme desejava, nela passou a viver como um
santo. 33
Consta que atingiu tal grau de virtude diante do Senhor, que nunca
mais se sentindo embaraçado pela idade nem pelas delícias da vida a que
estava acostumado, aguentou sem dificuldade os trabalhos da Ordem, e
conseguia percorrer a pé distâncias maiores do que antes fazia a cavalo.
34
Também o célebre João, imperador de Constantinopla, avisado por
divina revelação, envergou o hábito de S. Francisco. 35
Conta-se a respeito
dele que enquanto os seus irmãos eram acompanhados cada um por sua
comitiva, só ele foi privado de herança, sendo-lhe atribuída apenas a filia-
ção na Ordem militar dos Templários ou dos Hospitalários. 36
Mas como era
ainda jovem, de nobre linhagem e de notável valentia, quis a Providência
—————
75
Sl 25,4.
76
Sl 143,8.
32
divina que ele viesse a ser primeiramente o soberano do reino de Jerusalém,
e depois, guindado à dignidade imperial, foi enaltecido a ponto de vir a ter
por genro o próprio imperador Romano. 37
Foi além disso um acérrimo
defensor da ortodoxia e lutador contra os infiéis. 38
Quando ele, ao pensar a
sério sobre o termo da sua vida, ponderou quantos bens Deus lhe
concedera, sentiu um desejo enorme, e acredita-se que divinamente
inspirado, de saber como seria o fim da sua vida terrena. 39
Durante algum
tempo alimentou esse desejo e insistiu em suplicar a Deus essa graça, até
que uma noite, enquanto dormia, lhe apareceu um indivíduo vestido de
branco e trazendo nas mãos um hábito, um cordão e umas sandálias como
os que usavam os irmãos Menores. Chamando o imperador pelo nome,
disse-lhe: 40
«João, uma vez que estás tão interessado em saber como será o
teu fim, fica sabendo que morrerás amortalhado neste hábito; é essa a
vontade divina». 41
Ao acordar, o imperador, horrorizado, segundo o seu
instinto humano, com tal humilhação a que se imaginava sujeito, soltando
clamorosos gemidos, acordou os que perto dele descansavam, segundo os
costumes do reino. Porém, quando eles acorreram para saber o que se pas-
sava, não lhes quis indicar a causa dos seus gritos.
42
Na noite seguinte apareceram-lhe em sonho dois cavalheiros
igualmente vestidos de branco, trazendo cada um o equipamento fradesco,
hábito, cordão e sandálias, e repetindo que ele morreria com aquela indu-
mentária. 43
Ficou horrorizado como da primeira vez, e ao acordar repetiu a
cena dos gemidos, mas recusou-se a revelar aos criados de quarto a causa
da gritaria.
44
Numa terceira noite apareceram-lhe três personagens, vestidos de
branco como os anteriores, com a indumentária a ele destinada – o hábito, o
cordão e as sandálias – e, tal como nas aparições anteriores, afirmando uma
vez mais que na morte iria vestido com aquelas roupas, acrescentando:
45
«Não penses que se trata duma ilusão ou dum sonho falacioso: tudo
acontecerá conforme te dizemos».
46
Sobressaltado, o imperador mandou chamar imediatamente o irmão
Ângelo, seu confessor. Ele veio logo, e deparando com o imperador a
chorar na cama, disse-lhe: «Já sei o motivo porque me chamastes; também
eu tive a vosso respeito uma revelação semelhante à vossa». 47
Poucos dias
depois, o imperador foi acometido por uma febre terçã, e decidindo
resolutamente entrar na Ordem, em conformidade com as visões havidas,
nela terminou feliz os seus dias. 48
Mas como em vida, por causa da gravi-
dade da doença e da debilidade de forças, não pôde desempenhar na Ordem
33
ofícios humildes, consta que exprimiu o seu santo desejo nestes termos:
49
«Ó dulcíssimo Senhor Jesus Cristo! Eu passei neste mundo uma vida
regalada e pomposa, envergando vestes luxuosas. Oxalá que agora, pobre e
humilde, a pedir esmola com um saco aos ombros, eu possa segui-te a ti,
que foste verdadeiramente pobre e humilde!». 50
Neste gesto, uma
personalidade tão importante deixou-nos um extraordinário exemplo, de
sorte que não se envergonhem da pobreza e da humildade nem os grandes,
nem os medianos, e menos ainda os menores. 51
Com esse seu voto cumpriu
o desejo que os nobres costumam exprimir ao abraçarem esta Ordem, de
serem os mais humildes, os mais mansos e os mais simples. 52
A caracte-
rística mais notável dos fidalgos é precisamente a sobriedade na mansidão e
na humildade. 53
Mas não é raro a graça de Deus tornar nobre a quem o não
era, e o pecado da soberba e da preguiça fazer perder a nobreza a quem a
tinha. E que mudança mais vergonhosa do que a de um nobre se tornar
grosseiro? 54
Tão-pouco são de desprezar os mais pequeninos, a quem foi
concedido combater contra o mal pelo Senhor; não há maior glória que a de
ser soldado de Cristo.
55
Mas vou continuar com o assunto que abordei. O irmão Guilherme
de feliz memória, outrora Ministro da Aquitânia, região a SW da França,
contava que vivera na cidade de Carnot um doutor que por votos emitidos
estava adstrito à Ordem dos Frades Menores. 56
No entanto, tendo terminado
o prazo previsto para os irmãos entrarem na Ordem, estava uma ocasião a
jogar xadrez junto à porta da igreja da Santíssima Virgem Maria, quando
instantaneamente ficou cego. 57
Ao sentir-se privado de visão, sem que os
circunstantes disso se apercebessem, derrubou com a mão as peças do jogo,
chamou um rapaz que estava ali perto, pousou-lhe a mão sobre o ombro e
cochichou-lhe que o guiasse para dentro da igreja. 58
Aí, prostrado com
devoção e de lágrimas nos olhos diante do altar da Virgem, fez a promessa
de não retardar mais a entrada na Ordem. 59
Sendo-lhe logo restituída a
capacidade de ver, foi ter com os irmãos a combinar o dia em que faria a
sua entrada efectiva. 60
Novamente, porém, faltou à palavra, e em vez de se
dirigir para o convento voltou para o local do seu jogo favorito, e repetiu-se
a cena da primeira vez: ficou invisual, entrou na igreja, e depois de muito
choramingar, renovou a promessa de não diferir por mais tempo o ingresso
na Ordem, se lhe fosse concedida a graça de recuperar o sentido da vista.
Veio, de facto a recuperá-la, mas só bastante mais tarde do que da primeira
vez. 61
Apesar destes avisos sobrenaturais, ainda por uma terceira vez a sua
cobardia o impediu de cumprir a promessa de se encerrar no convento, e
34
tornou a adiar o ingresso definitivo. 62
Tal como nas conjunturas anteriores,
deixou de ver, entrou na igreja, prostrou-se diante do altar da Mãe de Deus,
chorou amargamente, reiterou a costumada promessa do efectivo ingresso
na Ordem – e voltou a poder ver, se bem que só muito mais tarde que das
outras vezes. 63
Mas às três foi de vez: convencido de que tinha de se
mostrar agradecido a Deus e à Santíssima Virgem pelas três advertências
prévias, que tão dolorosas experiências lhe mostravam, cumprindo o
prometido, contou aos irmãos todas as peripécias ocorridas com ele, e
cumpriu a promessa de entrar definitivamente na Ordem.
64
Mesmo assim, após o ingresso não depôs por completo o homem
velho nem se adaptou à vida comunitária da Ordem. 65
A pretexto de
necessidade, andava sempre calçado, comia com os doentes na enfermaria,
queria dormir sempre em colchões, e no Inverno depois da Missa corria
logo para a cozinha a aquecer-se. 66
Durante cerca de dois anos os irmãos
toleraram, não sem grande desagrado, este seu procedimento tão pouco
exemplar, sobretudo pelo facto de ele no mundo ter sido um cavalheiro
muito honrado. Eis senão quando, uma bela noite sonhou que S. Francisco
lhe apareceu e lhe fez um estranho pedido: 67
«Rogo-te, meu filho, que me
transportes um bocadinho para outro sítio». Ele recusou-se, alegando como
desculpa: «Não eu não tenho forças para pegar em ti, por ser fraco e doente,
e tu seres grande e pesado». Contudo, perante a insistência do Santo em que
o levasse, o nosso protagonista recorreu ao expediente de o fazer deitar, e
puxando-lhe pelas pernas, assim o levar de rastos com a cabeça a roçar
pelo chão. 68
S. Francisco bem gritava: «Assim não! Estás-me a magoar!
Isso não é maneira de me transportares!» Mas enquanto o Santo assim
arrastado não deixava de se queixar, o outro replicava: «Doutra forma não
consigo deslocar-te». 69
Na manhã seguinte, depois da missa entrou na
cozinha como de costume, e começou a contar o sonho que tivera. 70
Depois
de o ouvir, um discreto irmão comentou em resposta: «É tal qual como
sonhaste. Estás a fazer sofrer e a levar mal S. Francisco, ou seja a sua
Ordem, pondo-a de rastos com a tua vida terrena e mesquinha, essa tua vida
carnal e desordenada. 71
Ao ouvir a interpretação que o irmão dera do seu
sonho, reconheceu que ele tinha razão, meteu a mão na consciência, pôs de
parte agasalhos de peliça e calçado, deixou de frequentar a enfermaria e de
usar almofadas de penas, assumiu a vida comunitária da Ordem, de que até
ali não fizera caso, converteu-se, enfim, noutra pessoa, num religioso
exemplar e num óptimo pregador. 72
Muito embora por negligência tivesse
35
adiado a conversão, não pôs de parte em absoluto o seu propósito de se
fazer frade.
73
Mas a narrativa dum terrível exemplo para os recalcitrantes contra a
vocação à Ordem que se obstinam e olham para trás, deve-se, ao que
consta, ao irmão padre João de Inglaterra, que depois de ter leccionado
teologia em Paris foi nomeado arcebispo de Cantuária. 74
A pessoa a quem
ele se referia era um clérigo de Paris que prometera ingressar na Ordem dos
Frades Menores, mas pouco antes da tomada de hábito recebeu da sua terra
uma carta, com a notícia de ter sido nomeado cónego de certa igreja
catedral. 75
Desistiu imediatamente de entrar na Ordem, e depois de ter
exercido o canonicato durante pouco mais de meio ano na sua igreja, foi
acometido de grave enfermidade. 76
Aconselhado pelos cónegos seus colegas
a confessar-se, sempre se recusava a fazê-lo, como um desesperado.
77
Resolveram então os cónegos pedir aos irmãos Menores para irem visitar
o doente, a ver se o convenciam a confessar-se. Quando eles chegaram,
como já o encontraram muito debilitado, recomendaram-lhe com todo o
empenho que fizesse uma confissão geral dos seus pecados, segundo o
costume de qualquer bom cristão e verdadeiro católico. 78
Mas ele ripostou-
-lhes: «Não percais tempo, irmãos, a tentar convencer-me disso. Eu já estou
condenado. 79
Antes de vós virdes ter comigo, fui levado à presença de
Deus, que me mostrou um rosto terrivelmente ameaçador e me disse:
Chamei por ti, e não me respondeste77
, por isso vai para as penas eternas».
80
Ao pronunciar estas palavras, diante de todos exalou o último suspiro.
81
Na verdade, os juízos de Deus são como o abismo profundo78
e ninguém
consegue saber porque é que Deus a uns salva com misericórdia e a outros
condena com justiça. 82
Mas como é o Senhor quem pesa os corações79
, as
suas sentenças não se baseiam em coisas exteriores, como as dos juízes
humanos: ele vê, sem se enganar, o mais recôndito dos corações.
83
Tanto para enaltecer o estado religioso como para incitar à perse-
verança, não quero deixar de referir um episódio de que tive conhecimento
em Paris. 84
Abraçou aí a Ordem dos Frades Menores um doutor, cuja mãe o
tinha criado à custa de esmolas e sustentado com muita solicitude apesar da
sua pobreza. 85
Muito penalizada com a separação do filho, que considerava
perdido para sua desafogada subsistência material, a mãe foi ter com ele, a
ver se o convencia a desistir e voltar à situação anterior. 86
Mostrou-lhe o
—————
77
Cfr. Pr 1,24.
78
Cfr. Sl 36,7.
79
Cfr. Pr 16,2.
36
peito e os seios com que o amamentara, lembrando-lhe os enormes
sacrifícios feitos e privações sofridas para o criar, e apresentando-lhe ainda
outros argumentos no sentido de ele deixar a Ordem. 87
O filho teve pena da
mãe, ficou abalado e resolvido a abandonar a Ordem no dia seguinte. 88
O
plano de tal procedimento não provinha de malícia da sua parte: era uma
cilada traiçoeiramente urdida pelo demónio sob a aparência de piedade. 89
E
assim, como era seu costume, foi rezar diante da imagem dum crucifixo,
dizendo a Deus: «Não quero deixar-vos, Senhor, só pretendo prestar ajuda à
minha mãe, que cuidou de mim no meio de tanta penúria». Enquanto assim
orava, olhou para a imagem do crucifixo e viu sangue a escorrer da chaga
do peito de Cristo, e ouviu a voz do Senhor a dizer: «Eu tratei de ti com
mais carinho do que a tua mãe e com o meu sangue te redimi; não deverias
deixar-me por amor da tua mãe». 89
Abalado e estupefacto com o sangue que
vira a escorrer e com a voz que ouvira, venceu a tentação e permaneceu na
Ordem, pois não é sem razão que Cristo diz no Evangelho a respeito da
mãe: Quem ama o pai ou a mãe mais que a mim, não é digno de mim80
.
91
Giratero de Barama, monge da Ordem beneditina, não podendo
viver no seu mosteiro, como desejava, foi por isso transferido para outro
mosteiro, onde no entanto também não conseguiu a tranquilidade espiritual
por que suspirava. Dedicou-se então totalmente à oração, recitando todos os
dias o saltério completo, associando à oração o jejum, para que o Senhor se
dignasse mostrar-lhe o caminho da salvação, pelo qual melhor o pudesse
servir. 92
Depois de muitos dias passados nesse regime de oração e jejum,
viu em sonhos S. Francisco, e diante dele o texto do Evangelho, e ao pé do
Evangelho a Regra. Admirado o monge de a Regra estar tão colada ao
Evangelho, 93
perguntou o que significava aquilo, e o Santo explicou-lhe: «A
Regra está tão perto do Evangelho, por ser fundada sobre o Evangelho».
94
Continuando o monge durante muitos dias a orar e a jejuar, ansioso por
saber, se fosse da vontade de Deus, a que estado religioso é que a visão se
referia, suplicava ao Senhor que se fosse como ele julgava, a visão se
repetisse. 95
E enquanto assim orava, apareceu-lhe de novo S. Francisco com
o Evangelho e a Regra, como da primeira vez. 96
Não obstante estes
esclarecimentos, o piedoso monge reiterando a prática costumada de orar e
jejuar, cada vez se sentia mais ansioso por ter a certeza de que o estado
religioso apresentado nessas visões seria o mais agradável a Deus. 97
E
tornou-lhe a aparecer mais uma vez S. Francisco, tal qual como nas
—————
80
Mt 10,37.
37
aparições anteriores, como que a dar-lhe a entender que queria recebê-lo na
Ordem. 98
Mas o monge padecia duma grave doença na tíbia, e por isso disse
a S. Francisco: «Os irmãos não iriam acreditar em mim nem me
receberiam». Replicou o Santo: «Da tíbia estás desde agora curado, e isso te
servirá de testemunho». 99
Tal como sonhara, ao acordar verificou que estava
curado. 100
Procurou então entrar na Ordem, mas como o Ministro, pouco
impressionável, adiasse a recepção, contou-lhe as visões que tivera e
mostrou-lhe o resultado da cura obtida. 101
Recebido desta forma na Ordem,
foi um irmão duma vida religiosa exemplar, morando santamente na
Província de Colónia. 102
Foram irmãos dessas terras que deram estas
informações.
103
Soube também dum caso contado por certo irmão, que se sabe ter
sido muito considerado na Ordem, e me foi transmitido por outros irmãos.
Um religioso da Ordem de Cister, dum mosteiro da diocese de Tolosa, veio
ter com o irmão acima referido, a pedir-lhe para ser aceite na Ordem de S.
Francisco. 104
Disse-lhe ele que um irmão falecido do seu mosteiro, que em
vida fora seu companheiro predilecto, tal como na última doença antes da
morte lhe tinha prometido invocando a Deus como testemunha, veio uma
ocasião de noite chamá-lo para o capítulo dos irmãos leigos. 105
Pela afeição
que lhe tinha, quis abraçá-lo, mas o defunto objectou: «Não me podes tocar
nem sequer ver». 106
Perguntando-lhe o irmão se tinha algo a contar e como
passava, respondeu: «É perigoso viver; quanto a mim, serei feliz». 107
«Então
ainda não és feliz?» – perguntou o outro. «Ainda não!» – foi a resposta,
dando-lhe assim a entender que ainda precisava de sufrágios para se
purificar. 108
Insistiu o irmão em interrogá-lo sobre o estado tanto da sua
Ordem Religiosa como de outras Ordens, e mais em concreto sobre
algumas pessoas suas conhecidas, tanto consagradas como seculares. A
resposta foi que de algumas Ordens Regulares eram muitos os condenados,
e das pessoas referidas em particular, todas, com raras excepções, eram
também condenadas. 109
E acerca de alguns disse muitas coisas íntimas a
explicar a causa das respectivas condenações. 110
Mas eu é que não vou
propalar as circunstâncias que ele referiu como causa da condenação de
muitos, porque tudo aquilo que desacredita os outros é melhor silenciá-lo, a
não ser que haja necessidade de o dizer. Todas as Ordens Religiosas são
boas, desde que se cumpram as respectivas Regras. 111
Interrogado o defunto
acerca dos irmãos Menores, declarou que ainda não tinha visto nenhum
condenado, e os que tinham descido ao purgatório não tardariam a voar
38
para o céu, purificados. 112
Por fim, exortou o companheiro à perseverança e
aconselhou-o a precaver-se de certos defeitos que ele tivera.
113
Assim, com respeito ao nosso assunto, em poucas palavras enalte-
ceu consideravelmente a Ordem Franciscana. 114
Se é legítimo avaliar a sin-
ceridade duma vida consagrada pela excelência do fim atingido, esse fim é
prova evidente do mérito prévio. 115
E não é de admirar que seja fácil e
rápida a passagem pelo purgatório para aqueles que neste mundo levaram
uma vida de pureza, e suportando pelo Senhor frio e desnudez e sofri-
mentos sem conta, fazem na terra o seu purgatório.
116
Aqui fica também um testemunho insuspeito de ódio ou fingida
simpatia para com a Ordem, testemunho aliás vindo do inferno, mas con-
dizente com visões vindas do céu. 117
Conta-se que na região dos Bascos
havia um irmão muito virtuoso, espanhol de origem, que fora baptizado
com o nome de Gonsalvo e professara na Ordem de Cister com o nome de
António. Estava ele em devota oração quando lhe apareceu uma rapariga,
dotada de feições encantadoras e embelezada com maravilhosos adornos,
que o convidou a casar com ela. 118
Ele ripostou com aspereza: era um
monge que fizera voto de castidade, por isso não podia contrair matrimónio.
119
«Por isso mesmo – replicou ela – deves tomar-me por esposa. Tenho
contigo esta conversa em representação da Ordem Religiosa dos irmãos
Menores, e a beleza e os adereços que vês em mim exprimem os dessa
Ordem. Quanto a votos, entrando nela, com ela te desposarás e nela te
salvarás». 120
Dito isto, desapareceu.
121
Noutra ocasião esse mesmo religioso viu S. Francisco e com ele
outro santo irmão de nome Guilherme, cujos restos mortais, viveiro de
milagres, jazem na igreja de S. Francisco. 122
Despertou-lhe também a
curiosidade um leito maravilhoso, que o santo irmão Guilherme, por ele
interrogado, disse que era exactamente o leito de S. Francisco. 123
«Então –
disse o António – também eu quero deitar-me nele, para poder dizer que
estive deitado numa cama tão encantadora». 124
Depois desta visão preten-
diam os monges elegê-lo para Abade, mas a sua decisão foi entrar na
Ordem dos Frades Menores, que ele interpretou como sendo o tal leito de S.
Francisco. 125
Continuando os monges a reclamá-lo por meio da Cúria
Romana, alegando entre outras razões que na Ordem de Cister ainda havia
mais austeridade que na de S. Francisco, consta que este terá dito: «Mas
eles não foram suplicantes e a pé à Cúria romana como eu fui». 126
Os
monges foram despachados pelo Sumo Pontífice de mãos a abanar, e o
irmão continuou na Ordem que escolhera. E foi um irmão de tão intensa
39
piedade, que, segundo se diz – o que é deveras admirável! – Tinha o condão
de derramar lágrimas a seu bel-prazer, mesmo entre a barafunda de pessoas
que estivessem ao pé dele. 127
Nunca lhe saía da boca nenhuma palavra
inútil; mas de Deus falava tão amiúde e com tal entusiasmo que por vezes
parecia estar ébrio, apesar de nunca beber nada que pudesse embebedar, e
vinho só bebia o do sacrifício do Senhor. 128
Era zeloso em extremo pelo
bem das almas, e por isso não se dedicava incansavelmente à pregação e a
ouvir confissões. 129
Ensinava os irmãos a confessarem-se bem, a rezarem
com fervor, a evitarem palavras ociosas, porque se assim procedessem,
progrediriam na virtude mais do que seria de esperar. 130
Os seus feitos e as
graças miraculosas por ele obtidas exigiriam muito tempo para se
descreverem.
131
Agora vamos tratar da vocação [à Ordem]. Com certeza que é
benquista de Deus uma Ordem Religiosa à qual ele mesmo chama com
algum atractivo especial, Ordem que ele começou por fundar em persona-
lidades perfeitas como Sião sobre o monte santo81
e depois ornamentou com
pessoas ilustres como pedras polidas. 132
Entraram nela bispos, abades,
arquidiáconos e famosos mestres de teologia; bem como príncipes, nobres e
um sem-número de personagens notáveis pela fidalguia ou pela ciência –
dir-se-ia mesmo a flor da fidalguia e da ciência. 133
Só para dar um ou outro
exemplo, pondo de parte muitos mais, menciona-se o irmão Alexandre,
clérigo e teólogo, que passa por ser o mais famoso mestre do seu tempo; e o
já mencionado rei e imperador D. João, guerreiro valoroso, que de impe-
rador passou a ser irmão Menor. Foi assim que o Senhor concretizou em
Francisco aquele dito profético: Eu irei diante de ti para te aplanar os
caminhos82
.
134
Seria quase impossível contar o sem-número de célebres e emi-
nentes doutores de teologia da Ordem. 135
Mas por outro lado não se pode
deixar de louvar a Cristo, que exalta os humildes, pelo facto de pertencer à
Ordem dos Menores o lidador mais brioso e leal, bem como o mais famoso
mestre de teologia e filosofia, 136
e ainda o mais conceituado pregador que é
o irmão chamado João de Rupela, notável pela religiosidade, pela discrição
e pela ciência, um homem de tão extraordinárias qualidades que ultrapassou
a sagacidade dos seus próprios mestres criando na Faculdade de teologia as
cadeiras de eloquência e de declamação, e ensaiou requintados ritmos de
—————
81
Cfr. Sl 87,1.
82
Cfr. Is 45,2.
40
elocução. 137
Tanto ele como o referido Alexandre deixaram escritos
magistrais e muito úteis.
138
Depois dele veio o irmão Odo Rigaldo, um padre respeitável,
ilustre por nascimento e mais ilustre ainda pela conduta, que foi pregador
famoso, mestre de teologia, e depois arcebispo da diocese de Ratisbona.
139
Contrariado e quase constrangido a aceitar o bispado, brilhou no governo
da diocese com o mesmo resplendor com que anteriormente brilhara na
Ordem, a ponto de ser apresentado como um modelo de Prelados.
140
A segunda Ordem fundada por S. Francisco é a das virgens e
senhoras com voto de castidade, e a sua característica fundamental é a de
em clausura servirem a Deus em perpétuo silêncio e mortificação da carne.
141
A primeira flor desse jardim foi Santa Clara, devota discípula de S.
Francisco. 142
Desde que o Santo viu que elas seguiam fielmente as suas
orientações vivendo em extrema pobreza, prometeu-lhes o seu auxílio e o
dos irmãos, enquanto no seu regime continuassem a professar a pobreza.
143
E sempre, até ao dia de hoje, Santa Clara e o seu mosteiro perseveraram
no seu projecto de pobreza.
144
A terceira Ordem é a dos irmãos e irmãs de penitência, aberta tanto
a clérigos como a leigos, tanto a virgens como a pessoas viúvas ou casadas,
sendo o seu objectivo viverem honestamente em suas casas, dedicarem-se a
obras de beneficência e evitarem a vaidade do mundo. 145
Por isso entre eles
aparecem por vezes nobres militares e outros personagens que antes eram
ilustres aos olhos do mundo, onde usavam preciosas roupas de pele, mas
trocaram essas vestes e cavalgaduras luxuosas por outras mais humildes, a
conviverem modestamente com indigentes, de sorte que não se pode pôr em
dúvida de que são verdadeiros Religiosos. 146
A princípio era-lhes atribuído
como Ministro um irmão [Menor], mas agora são governados por Ministros
próprios, mas de modo a estarem sempre sob os cuidados, os conselhos e os
auxílios dos irmãos Menores, pois são seus coirmãos, filhos do mesmo Pai
espiritual.
147
Na redacção da regra e forma de vida desses irmãos da Ordem
Terceira interveio o senhor papa Gregório de santa memória – que na altura
ainda desempenhava um ofício de menor categoria – o qual, afeiçoado a S.
Francisco e em íntima familiaridade com ele, supria com seus
conhecimentos jurídicos aquilo que faltava ao Santo. 148
No entanto, São
Francisco não se dava por satisfeito com as suas três Ordens, e procurava
indicar um caminho de salvação e de penitência a todo o género humano.
41
149
Por isso, quando um determinado pároco lhe disse que gostaria de ser seu
irmão, mas continuando na sua actividade paroquial e no mesmo modo de
viver e de vestir, consta que o Santo lhe impôs a obrigação de dar
anualmente por amor de Deus o que dos rendimentos da igreja tinha
amealhado em anos anteriores. 150
Foi assim que o Senhor fez dele um
grande povo83
e fez repousar sobre a sua cabeça a bênção de todos os
homens84
.
Capítulo VIII
A morte e a trasladação de S. Francisco
1
Chegado ao termo da sua vida terrena, o santo Pai foi em paz ao
encontro de Cristo, no ano 1226 da Encarnação do Senhor, com a idade de
45 anos85
. Contava quase 25 anos quando se deu a sua conversão da vida
mundana, 2
e durante dois anos passou a viver uma vida eremítica86
. 3
Só no
terceiro ano após a conversão fundou a Ordem dos Frades Menores e vestiu
o hábito que por inspiração celeste escolhera. Ocorreu isso na basílica da
Mãe de Deus e sempre Virgem Maria, igreja desde há muito conhecida por
Santa Maria dos Anjos, que ele acarinhava com singular predilecção.
Transcorridos entretanto 20 anos após a sua conversão, no mesmo local
onde tivera um início auspicioso a sua vida religiosa, teve também o seu
fim glorioso87
. 4
E não só ele previu mais ou menos o tempo do seu desen-
lace, como até predisse o dia exacto em que deixaria este mundo.
5
Entre outros que no momento exacto da sua morte o viram a subir ao
céu, apareceu a um santo irmão anónimo que se encontrava em êxtase; ia
revestido de dalmática88
vermelha, incorporado como figura eminente num
imenso e belo cortejo de glória indescritível89
. 6
Ao chegar ao seu aprazível
—————
83
Cf. Gn 12, 2.
84
Sir 44, 23.
85
Cf. TC 68, 1; 1C 88, 4.
86
Cf. 1C 21, 5; TC 21, 2; 25, 1.
87
Cf. 1C 21, 1-4; 88, 1; LM 3. 8, 9.
88
Paramento próprio da ordem do diaconado, usado até meados do século XX. Como S.
Francisco era diácono – pois por humildade nunca quis ascender à ordem de presbítero –
esta visão mostra-o a encaminhar-se para a liturgia celeste devidamente paramentado.
(Nota do tradutor).
89
Cf. 2C 219,1.
42
destino, entrou no grandioso e delicioso palácio celestial, onde se viu
cercado da gloriosa comitiva de muitos irmãos.
7
Aquando do seu passamento esteve também presente uma ilustre
dama de Roma, Jacoba de Settesoli, uma senhora extremamente dedicada
ao Santo, que viera acompanhada de considerável comitiva, condizente com
a sua categoria social, e tratou do aparato conveniente para um funeral tão
importante90
. 8
Aliás, o próprio Santo, que tinha sido seu director espiritual e
que pela virilidade das suas virtudes lhe chamava “irmão Jacoba”, já tinha
pedido para a chamarem, com desejo de a ver antes de morrer. 9
Mas quando
o mensageiro estava mesmo pronto para sair, inopinadamente se ouviu à
porta dos irmãos o grande estrépito dos criados e dos cavalos da sua devota
discípula, que vinha visitar o seu ilustre mestre e pai espiritual. 10
É claro que
o Santo concluiu que fora o Senhor quem lha tinha enviado, e ficou muito
contente de a ver, e pela alegria que a visita lhe proporcionou, passou a
respirar melhor, e deu a impressão de que ainda viveria um pouco mais.
11
Por isso, ela resolveu mandar embora parte da comitiva, e ficar apenas
com poucas pessoas, na expectativa do desenlace do Santo. 12
Foi então que
ele lhe prognosticou: «Eu vou partir no sábado ao fim da tarde; tu podes
regressar a Roma no dia seguinte com a tua comitiva».
13
Exactamente no dia e na hora que predissera, foi o Santo recebido
pelo Senhor para morar com ele na mansão eterna. 14
Choraram por ele os
irmãos, sentindo-se desamparados do seu piedoso Pai, e choraram também
por ele as virgens consagradas a Cristo, que lhe tinham seguido os passos,
lamentando-se lacrimosamente: «Porque é que nos deixas inconsoláveis, ó
Pai, e a quem vais entregar as tuas desoladas filhas?»
15
O seu santo corpo foi sepultado em Assis na igreja de S. Jorge, onde
agora fica o mosteiro de Santa Clara91
. 16
Porém, passados poucos anos, foi
trasladado com grande pompa e veneração para a igreja que em sua honra
foi construída junto às muralhas da cidade num local chamado “a colina do
paraíso”, por determinação do senhor Papa Gregório IX, que para a sua
construção tinha assentado a primeira pedra. Para essa cerimónia foi tão
numerosa a multidão de gente vinda das povoações vizinhas, que não
couberam na cidade e tiveram de se acomodar como rebanhos em bandos
espalhados pelos campos92
. 17
Para essa solene trasladação esperava-se e
tinha-se como certa a presença do senhor Papa Gregório; mas tornando-se
—————
90
Cf. 3C 37; LP 101.
91
Cf. LM 15. 5,4.
92
Cf. 2C 220a, 1-3;
43
isso impossível por causa de assuntos urgentes da Igreja, mandou delegados
para o representarem, 18
com cartas credenciais em que explicava a causa da
sua inesperada ausência e consolando com afecto paternal os filhos do
Santo, deu-lhes a conhecer o milagre de um morto ressuscitado por
intercessão de S. Francisco. 19
Por meio dos mesmos delegados pontifícios
enviou para a cerimónia uma preciosa cruz de ouro, requintada obra de
joalharia, mas mais valiosa ainda do que por ser de ouro e ornada de pedras
preciosas, por conter uma relíquia da cruz do Senhor93
. 20
Além disso enviou
também por eles ornamentos e vasos sagrados destinados ao serviço
religioso, bem como ricos paramentos para circunstâncias mais solenes.
21
Além disso atribuiu outros valiosos donativos para a construção da
basílica e para as despesas da solenidade. A trasladação teve lugar no dia 25
de Maio do ano da graça 123094
.
Capítulo IX
Recensão de alguns milagres
I – Inválidos reabilitados
1
Nunca o Senhor deixou de exaltar o seu Santo com maravilhosos e
prodigiosos milagres, nem em vida nem depois da morte. Ficam aqui ape-
nas alguns exemplos.
Certa menina andou durante um ano com o pescoço torcido duma
forma tão monstruosa que a cabeça lhe ficava quase colada a um ombro, e
devido a essa posição defeituosa mal podia respirar de lado. Trazida ao
sepulcro do Santo e colocada a cabeça deformada da criança por debaixo da
urna, instantaneamente o pescoço e a cabeça tomaram a posição correcta.
Espantada com mudança repentina, a criança começou a fugir e a chorar.
No sítio do ombro onde a cabeça andara encostada ficou no entanto uma
concavidade, porque a deformidade fora bastante prolongada95
.
2
Nicolau de Folinho, devido a ter a perna esquerda tolhida, sentia
dores tão agudas que com os gritos que dava mal podia deixar dormir a
vizinhança. Como não havia medicamentos que o curassem, confiou-se a S.
Francisco e fez-se transportar ao seu túmulo. Passando aí uma noite em
—————
93
Cf. TC 72, 3.
94
Cf. LM 15.8,1.
95
Cf. 1C 127
44
oração, descontraiu-se-lhe a perna e já pôde regressar a casa sem muletas e
louco de alegria96
.
3
Um menino tinha uma perna tão deformada que o joelho estava
colado ao peito e o calcanhar à coxa. Trazido ao mausoléu de S. Francisco,
ficou subitamente curado e de perfeita saúde97
.
4
Uma menina de Gúbio, depois de ter durante um ano as mãos para-
líticas, perdeu também o exercício de todos os outros membros. Foi com
uma imagem de cera levada ao túmulo de S. Francisco, onde perseverou
durante oito dias, até que por fim todos os membros ficaram aptos a serem
devidamente utilizados98
.
5
Outro rapazinho de Montenegro, com paralisia da cintura para baixo,
e por isso impossibilitado de se sentar e de andar, passou vários dias deitado
diante da porta da igreja onde repousa o corpo do Santo, até que um belo
dia o levaram para dentro da igreja, e bastou-lhe tocar no túmulo do Santo
para ficar são e salvo. Contava ele que no momento em que estendia a mão
para receber umas peras que tinha a impressão de lhe estarem a ser
oferecidas, um rapaz vestido com o hábito franciscano, que se encontrava
em cima do sepulcro, lhe pegou na mão levantada e o ergueu, e depois de o
ter curado e trazido para fora, desapareceu99
.
6
Um outro natural de Gúbio, cujo filho era tão estropiado que tinha as
pernas completamente aderentes às nádegas, tendo-o trazido ao sarcófago
do santo Pai, pôde reavê-lo são e salvo100
.
7
Certa menina da região de Nórcia, vítima de infindáveis sofrimentos,
chegou a ser considerada como dominada pelo demónio, pois com
frequência se punha a ranger os dentes, feria-se a si própria, não evitava
obstáculos onde poderia cair nem tinha medo de graves situações de perigo.
Em tão lamentável estado, além de ter perdido a fala e ter ficado paralítica,
os pais transportaram-na a Assis montada num jumento, presa a um catre. E
aconteceu que no dia da Circuncisão101
do Senhor estava ela prostrada
diante do altar do Santo, quando sem mais nem menos vomitou qualquer
—————
96
CF. 1C 129
97
Cf. 1C 130.
98
Cf. 1C 134.
99
Cf. 1C 133.
100
Cf. 1C 134.
101
A festa da Circuncisão de Jesus, suprimida aquando da última grande reforma litúrgica,
celebrava-se dantes no dia 1 de Janeiro – oito dias depois do Natal – em conformidade com
o relato do evangelho de S. Lucas: «Quando se completaram os oito dias para a
circuncisão do Menino…» (Lc 2,21). (Nota do tradutor).
45
coisa esquisita… Levantou-se prontamente, beijou o altar, e sentindo-se
curada de todos os padecimentos, prorrompeu em louvores a Deus e ao
Santo.
8
Rigomagno, da diocese de Volterra, mal podendo sequer rastejar
devido a uma medonha elefantíase, e abandonado por isso pela própria mãe,
encomendou-se a S. Francisco e de imediato foi salvo do seu mal102
.
9
Na mesma diocese, duas mulheres consanguíneas eram tão entreva-
das que mal se podiam mexer sem serem amparadas por outras pessoas, e já
tinham as mãos esfoladas por tão esforçadamente se servirem delas para se
movimentarem. Pois com uma simples promessa recobraram a saúde103
.
10
Tiago de Poggibonsi padecia duma cifose tão acentuada e disforme
que andava com a cabeça quase colada aos joelhos. Depois de a mãe o ter
levado a uma capela de S. Francisco e rezado ao Senhor suplicando a cura
do filho, teve a felicidade de o trazer para casa são e salvo104
.
11
Na povoação de Vicalvi, pelos méritos do santo Pai a mão mirrada
duma mulher ficou tão normal como a outra105
.
12
Na cidade de Cápua uma mulherzinha que prometera ir pessoal-
mente visitar o sepulcro de S. Francisco, mas esquecida da promessa devido
a qualquer ocorrência da vida de família, ficou repentinamente hemiplégica,
completamente paralisada do lado direito. Não conseguindo virar a cabeça
nem mexer o braço para lado nenhum, com seus brados constantes devidos
às dores aflitivas, não deixava sossegar os vizinhos. Adregando de
passarem perto da porta da doente dois irmãos, a pedido dum sacerdote
entraram em casa dela. Confessando-se da promessa por cumprir e
recebendo deles a absolvição, no mesmo instante ficou sã; e escarmentada
com o castigo sofrido, deu-se pressa em cumprir o que prometera106
.
13
Enquanto dormia à sombra duma árvore, Bartolomeu de Nárni
perdeu por completo a capacidade de usar um dos membros inferiores. Mas
por ser extremamente pobre, compadeceu-se dele Francisco, que tanto tinha
amado os pobres, e aparecendo-lhe em sonhos, mandou-o ir a determinado
sítio. O desgraçado tentou arrastar-se para lá, mas ao desviar-se do caminho
correcto, ouviu uma voz a dizer-lhe: «A paz esteja contigo! Eu sou aquele a
quem te confiaste». E guiou-o para o local indicado. Aí o pobre estropiado
—————
102
Cf. 3C 168.
103
Cf. 3C 169.
104
Cf. 3C 170.
105
Cf. 3C 171.
106
Cf. 3C 172.
46
teve a impressão de que alguém lhe poisou uma mão no pé e outra na perna,
e lhe restaurou esses membros inválidos. Tratava-se dum indivíduo de
idade avançada, deficiente havia seis anos107
.
14
Havia no condado de Nárni certo rapazinho com uma perna de tal
maneira deformada, que não conseguia andar senão apoiado em duas
muletas. Atingido por essa invalidez desde a infância, e sem sequer conhe-
cer o pai nem a mãe, vivia de esmolas mendigadas. Também ele foi curado
da sua invalidez pelos méritos de S. Francisco, de modo a poder aonde lhe
apetecesse sem mais precisar de arrimo108
.
15
Na povoação de Fano havia um estropiado que não conseguia
separar das nádegas as pernas cheias de úlceras, exalando um cheiro tão
pestilencial que nem os enfermeiros o queriam receber no hospital. Quem
lhe valeu foi S. Francisco, cuja misericórdia ele invocou, e por cuja inter-
cessão teve a felicidade e a alegria de se ver liberto do seu infortúnio109
.
16
Na cidade de Nárni vivia uma mulher com uma das mãos mirradas
havia oito anos, sem poder fazer com ela absolutamente nada. Até que
numa visão lhe apareceu S. Francisco e a curou, esticando-lhe a mão e
tornando-a igual à que estava sã110
.
II – Invisuais que recuperaram a vista
17
Chamava-se Sibíla uma mulher que durante muitos anos vivera sem
ver nada, quando, triste com a sua cegueira, foi conduzida ao sepulcro do
homem de Deus, onde recuperou a visão perdida e donde pôde regressar a
casa esfuziante de alegria e júbilo111
.
18
Em Vicalvo, povoação da diocese de Sora, [cidade do Lácio], uma
menina, cega de nascença, foi levada pela mãe a um santuário de S. Fran-
cisco, e aí, por invocação do nome de Cristo e pelos méritos de S. Fran-
cisco, adquiriu a faculdade de ver, que nunca antes experimentara112
.
19
Um cego de Spelo, trazido para diante do túmulo do Santo, recu-
perou o sentido da vista que perdera havia muito tempo113
.
—————
107
Cf 1C 135.
108
Cf. 1C 128; 3C 161.
109
Cf. 1C 141; 3C 70.
110
Cf. 1C 141.
111
Cf. 1C 136.
112
Cf. 3C 171.
113
Cf. 1C 136.
47
20
Na cidade de Arezo, uma mulher que havia oito anos deixara de ver,
readquiriu a visão na igreja de S. Francisco, construída perto da cidade114
.
21
Ainda na mesma cidade S. Francisco curou da cegueira o filho duma
mulher pobrezinha que a mãe tinha encomendado ao Santo115
.
22
Em Poggibonsi, na diocese de Florença, uma mulher invisual, por
revelação tida numa visão, começou a frequentar um santuário de S. Fran-
cisco. E uma ocasião em que para lá foi conduzida e se prostrou diante do
altar a implorar misericórdia, de imediato recobrou a vista, e regressou a
casa sem precisar de ninguém a guiá-la116
.
23
Havia em Camerino uma mulher completamente cega do olho
direito. Os seus pais, fazendo uma promessa, puseram-lhe por cima da vista
afectada de cegueira um pano que tinha estado em contacto com S.
Francisco, e assim ela recuperou a visão que tinha perdido.
24
Uma outra mulher de Gúbio, fazendo uma promessa semelhante,
pôde tornar a ver a luz.
25
Também um invisual de Assis, cinco anos depois de ter perdido o
sentido da vista, voltou a ver, ao tocar no túmulo de S. Francisco.
26
A Albertino de Nárni, que perdera o sentido da vista e ficara com as
pálpebras pendentes até às maçãs do rosto, bastou-lhe encomendar-se a S.
Francisco para tornar a ver a luz e ficar curado117
.
III – Curas de surdos e mudos
27
Certa mulher da região da Apúlia há muito perdera a fala e sentia
mesmo dificuldade em respirar. Uma noite, enquanto dormia, sonhou que a
Santíssima Virgem Maria lhe apareceu e a aconselhou: «Se queres ficar sã,
vai à igreja de S. Francisco de Venúsia, e aí obterás a tão almejada cura. Lá
foi a mulher à referida igreja do Santo, e implorando do fundo do coração o
seu valimento, imediatamente vomitou, diante de todos os que a viam,
pedaços de carne, e ficou maravilhosamente curada118
.
—————
114
Cf. 3C 132.
115
Cf. 3C 133.
116
Cf. 3C 170.
117
Cf. 1C 136.
118
Cf. 3C 126.
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Caderno 32_4af82b4021178

  • 2. 2 Ficha Técnica Coordenador: Fr. José António Correia Pereira, ofm Editorial Franciscana Apt. 1217 4711-856 BRAGA Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735 E-mail: edfranciscana@editorialfranciscana.org Edição on-line no site: www.editorialfranciscana.org Capa: Desenho de Fr. José Morais, ofm Edição: Editorial Franciscana Propriedade: Província Portuguesa da Ordem Franciscana Depósito Legal: 14549/94 I. S. B. N.: 972-9190-46-1 Caderno 32 - 2008 Cada número dos Cadernos é vendido avulso
  • 3. 3 Índice I — Estudos 1. Fr. Bernardo de Besse — Louvores de S. Francisco – Crónica Franciscana 2. Fr. Thaddée Matura — Reflexão sobre as referências da identidade franciscana ao longo de oito séculos 3. Fr. Gonçalo Figueiredo — Cristo e Francisco – Grande Rei e poeta cantador da natureza e da fraternidade
  • 4.
  • 5. 5 I — Estudos Crónica de Fr. Bernardo de Besse LOUVORES DE S. FRANCISCO
  • 6.
  • 7. 7 LOUVORES DE S. FRANCISCO Introdução Pouco se sabe sobre a vida de Fr. Bernardo Besse. As Crónicas da Província da Aquitânia apresentam-no como sendo membro daquela Província, companheiro de viagem e secretário de S. Boaventura1 . Outra fonte de informações sobre Bernardo de Besse é a Crónica dos Ministros Gerais da Ordem dos Frades Menores também conhecida como Crónica dos XXIV Gerais da Ordem dos Menores2 . Aí encontramos mais alguns dados sobre a sua vida e sobre os seus Escritos. É considerado o autor da obra Chronicon XIV vel XV Generalium Ministrorum Ordinis fratrum Minorum seu Catalogus ‘Gonsalvinus’ dictus Generalium Ministrorum Ordinis fratrum Minorum3 . O estudo que Ehrl publicou sobre o Catalogus, em 1883, sustenta que, uma vez que fala da canonização de S. Luís, que foi em 1297, Bernardo Besse teria trabalhado nesta obra pelo menos até essa data, possivelmente até 13054 . Embora isso não seja aceite por todos os comentadores, dá uma ideia ————— 1 Cf. Fontes Franciscani, Edizioni Porziuncola, 1995, p.1245. 2 A Imprensa da Universidade de Coimbra publicou, em 1918, o texto de um códice medieval, um manuscrito do século XV, até então desconhecido do público, guardado na altura na Biblioteca Pública de Lisboa sob o nº 94. José Joaquim Mendes, Sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, interessou-se pelo texto, publicando- -o então pela primeira vez. Deu-lhe o título de Crónica da Ordem dos Frades Menores, mas o título original é Crónicas dos Ministros Gerais da Ordem dos Frades Menores, e corresponde na sua totalidade com a Crónica dos XXIV Gerais ou Crónica dos Ministros Gerais da Ordem dos Frades Menores. O texto em português, uma tradução do século XV da respectiva obra, vai só até ao décimo Geral. Citamos este texto. 3 Cf. Analecta Franciscana, III, pp. 693-707; 4 F. EHRLE, Zur Quellenkunde der älteren Franziskanergeschichte. Der Catalogus Ministrorum generalium des Bernhard von Besse, em Zeitschrift für katholische Theologie, 7(1883), pp. 323-52:Cf. Fontes Franciscani, pp. 1245-46.
  • 8. 8 sobre a época em que viveu Bernardo de Besse. Outra obra que lhe é atribuída é o Espelho de Disciplina5 . A obra mais conhecida é o Liber de Laudibus Beati Francisci6 , publicado muitas vezes com o título Crónica de Bernardo de Besse. Na Crónica da Ordem dos Frades Menores, quando relata os factos e feitos do sexto Geral, Fr. Crescêncio, é dito que “… foi eleito no capítulo geral que foi celebrado no ano do Senhor de mil e duzentos e quarenta e cinco, no qual capítulo o dito Geral mandou a todos os frades que possuíssem em espírito qualquer coisa que se pudesse saber verdadeiramente da vida e milagres e sinais maravilhosos de S. Francisco… E depois frei Tomás de Celano… compilou… aquele tratado da Legenda Antiga (2C) … a qual Legenda depois frei Bernardo de Bessa da Província de Aquitânia reduziu a forma mais breve e que começa Plenam virtutibus”7 . Na mesma Crónica se faz alusão a um livro que frei Bernardo de Besse escreveu “… das três religiões de São Francisco…” que na realidade corresponde ao sétimo capítulo do Liber de Laudibus beati Francisci8 . Estanislau de Campagnola sustenta que Frei Bernardo de Besse terminou a sua obra depois de 1279. Segundo alguns comentadores, foi no Liber de Laudibus que Dante se inspirou para tratar da maior parte dos temas da vida de Francisco e seus frades na Divina Comédia9 . No âmbito das comemorações dos 800 anos da fundação da Ordem dos Frades Menores, é intenção dos Cadernos de Espiritualidade Francis- cana dar a conhecer ao público português algumas das Crónicas Francis- canas mais representativas do século XIII e que até agora não estavam acessíveis aos interessados dos temas franciscanos. ————— 5 Cf. Fontes Franciscani, p. 2514. 6 A edição crítica foi publicada na Analecta Franciscana, III, pp. 666-92; É de con- siderar também a edição inglesa: D. AMICO, Bernard of Besse: Praises of Blessed Francis (Liber de laudibus Beati Francisci), em Franciscan Studies, 48, (1988), pp. 213-288. 7 Crónica da Ordem dos Frades Menores, op. cit. II. Vol. p. 73-74 8 Ut supra p. 45 9 Fontes Franciscani, op. cit. p. 1250-1251.
  • 9. 9 LIVRO DOS LOUVORES DE S. FRANCISCO 1 Por ordem do senhor Papa Gregório IX, o irmão Fr. Tomás, dotado de notáveis qualidades literárias, escreveu em Itália uma biografia de S. Francisco recheada de virtudes; e consta que um respeitável notário da Sé Apostólica, D. João, 2 redigiu também uma outra intitulada Quasi stella matutina (“Como estrela da manhã”)1 . 3 Em França, por sua vez, escreveu sobre ele o erudito e santo Fr. Julião, que compôs a letra e a música dum Ofício Nocturno em louvor de S. Francisco, além de vários hinos, antífo- nas e responsórios que o próprio sumo Pontífice e alguns Cardeais publi- caram em louvor do Santo. 4 E por fim surgiu o Ministro Geral Fr. Boaventura, autêntico depósito de ciência e de virtude, que depois de ter sido um excelente professor catedrático de teologia em Paris, foi nomeado Cardeal da Igreja Romana e bispo de Albânia. 5 Sendo assim uma pessoa de tanto prestígio, e ao mesmo tempo de tal discrição e carácter, a ponto de toda a gente o considerar digno dos mais altos cargos, também ele, pelos méritos celestes do Santo, retratou providencialmente em terminologia simples e credível o digno arauto [do Grande Rei]. 6 Aqui, no entanto, poucas referências se farão a outros novos episó- dios – ou a episódios já mencionados nessas biografias, quando vier a propósito. Por motivo de brevidade, que todos agradecerão, omitem-se muitas peripécias da vida do Santo e dos seus seguidores, e sobretudo os milagres ocorridos depois da sua morte, já avalizados pela autoridade apostólica para seu louvor e prestígio. 7 O essencial é imitarmos o seu exemplo; e se não conseguirmos imitá-lo perfeitamente, devemos ao menos respeitá-lo. 8 Quem é que seria capaz de seguir rigorosamente os passos de S. Francisco e dos companheiros que com ele conviveram? 9 Por isso é que a ninguém pretendeu impor o rigor de pobreza e de perfeição que ele mesmo observava; mas guiado por inspiração divina, limitou-se a redigir uma perfeitíssima regra de vida, que por todos pode ser observada em qualquer tempo. 10 Quem observar essa regra nunca trairá o espírito do santo Pai, por mais que nas diversas épocas variem os costumes. 11 A perfeição que podemos ver nos santos é útil para nos incitar à virtude e serve como de lanterna para orientar o nosso modo de proceder. ————— 1 Cfr. Sir 50,6
  • 10. 10 Capítulo I Teor de vida de S. Francisco e seus primeiros discípulos 1 Tanto pela vida como pela doutrina e pelos milagres, Francisco res- plandeceu no mundo como o sol nascente. 2 Enquanto seu pai cuidava dos negócios terrenos, sua piedosa mãe, como outra Isabel, deu-lhe o nome na pia baptismal e prognosticou que pela graça divina seria um filho de Deus cheio de méritos. 3 No período do crescimento, quase até aos vinte e cinco anos, levou uma vida exteriormente bastante mundana. 4 Mas por fim des- fez-se de tudo para seguir devotamente as pisadas de Cristo, restaurou na própria vida a antiga forma de viver dos Apóstolos, e edificou a casa da sua Ordem em alicerces sólidos de pobreza evangélica – não sobre a areia de bens temporais, mas sobre a pedra que é Cristo. 5 A seguir a ele, a primeira pedra do edifício da nova Ordem foi Fr. Bernardo de Quintavale2 , um irmão inflamado de amor de Deus, que se desfez do seu valioso património não em favor dos parentes, mas dos pobres, e se distinguiu por uma vida santa, finalizada com uma morte cheia de milagres. 6 A segunda pedra da nova casa foi Fr. Pedro3 ; também ele renunciou em absoluto ao mundo e da mesma forma distribuiu pelos pobres os seus bens. 7 A terceira pedra foi Fr. Gil4 , dotado de tão notável santidade, que, segundo consta, Deus lhe teria concedido a graça de socorrer a todos aqueles que o invocassem pedindo qualquer bem para a própria alma: 8 isto nos conta o já referido piedoso Geral e Cardeal (Fr. Boaventura), cuidadoso pesquisador de tais revelações. 9 A três outros que se seguiram ajuntou-se Fr. Filipe, a quem o Senhor purificou os lábios com uma brasa viva (como ao profeta Isaías), de sorte que, sendo embora leigo, entendia e interpretava as Escrituras e dizia coisas maravilhosas acerca de Jesus5 . 10 Enfim, segundo nos contaram, os doze primeiros discípulos de Francisco, para os quais ele ————— 2 Cf. 1C 24, 2-8; TC 27, 2-3. Fr. Bernardo inspirou um terceto de Dante: “… foi o venerável Bernardo o primeiro a descalçar-se, dirigindo paz tamanha, e, correndo, ainda se julgou mui tardo” (Par. XI, 5). Cf. FF 1, 3ª ed. P.250, nt. 50. As abreviaturas dos Escritos de S. Francisco usadas nas citações são tiradas de Fontes Franciscanas I – S. Francisco, Editorial Franciscana, 3ª edição, Braga, 2005. 3 Cf. 1C 25; TC 28, 6. Trata-se de Fr. Pedro Catânio. Acompanhou Francisco ao Oriente, foi Vigário Geral, ainda em vida de S. Francisco e morreu na Porciúncula em Março de 1221. 4 Cf. 1C 25; TC 32, 2-3. 5 Cf. 1C 25,4.
  • 11. 11 escreveu uma regra6 e a quem deu orientações como Cristo aos Apóstolos, todos foram santos, 11 excepto um, que abandonou a Ordem e se enforcou como Judas – de modo que até a respeito dos discípulos Francisco foi parecido com Cristo. 12 Ainda ele não contava senão com seis irmãos, quando lhe foi con- cedida a graça extraordinária de ter tanta certeza de a Ordem se vir a estender por todo o mundo, a ponto de lhes poder desvendar o futuro como se fosse presente: 13 «Já tive uma visão de caminhos cheios duma multidão de gente a vir ao nosso encontro; nessas multidões vinham Fran- ceses, Espanhóis, Alemães e Ingleses – uma turba enorme das mais diver- sas línguas a correr a toda a pressa»7 . 14 Também costumava distinguir os irmãos da primeira e da última hora comparando-os com frutos mais ou menos saborosos. 15 Entre os primeiros, brilharam por suas virtudes alguns ilustres irmãos e padres, como Fr. Soldanério, Fr. Rogério, Fr. Rufino e Fr. João das Loas8 , que teve o privilégio de tocar nas chagas dos estigmas de Francisco ainda em sua vida. 16 Outro irmão também íntimo do Santo foi Fr. Ângelo, bem como Fr. Leão, seu confessor, e um outro Fr. Leão, que mais tarde governou a Igreja de Milão como arcebispo, 17 e ainda Fr. Tiago, que teve a dita de ver subir ao Céu a alma do santo Pai em forma de estrela tão brilhante como o Sol9 . 18 Padres santos foram também Fr. António, Fr. Nicolau, Fr. Simão, Fr. Ambrósio, Fr. João, e muitos outros, dos quais seria longo falar individualmente, e que iluminaram esses tempos antigos com o esplendor das suas virtudes. 19 Os seus corpos foram sepultados em paz e estão expostos à veneração em locais sagrados. 20 Os restos mortais de Fr. Bernardo10 , de Fr. Rufino, de Fr. Leão e de Fr. Ângelo11 , encontram-se na igreja de S. Francisco em Assis; os de Fr. Egídio em Perúsia; os de Fr. Soldanério na igreja dos irmãos menores de ————— 6 Cf. 1C 32,1; EP 21, 2; TC 51, 7 7 Cf. 1C 27, 5-6. 8 Fr. João das Loas (ou dos Louvores, cf. EP 85, 10) é, segundo alguns comentadores, o mesmo que Fr. João de Florença, ou de Lodi. Segundo EP 85,10 que desenha o verdadeiro frade menor, este devia ter entre outras qualidades, “o vigor corporal e espiritual do irmão João de Loas, que, no seu tempo, ultrapassava todos os homens em força corporal”. Cf. 1C 110, 5. 9 Cf. 2C 110,5 confirma o facto, anotando que não menciona o nome porque o irmão ainda vive. Cf. 2C 217a, 1 TC 68,2. 10 Cf. 1C 24,2; 2C 48,1. 11 Cf. TC 1,1.
  • 12. 12 Viterbo; os de Fr. Junípero na igreja de santa Maria do Capitólio em Roma. 21 O irmão Soldanério, qual sol resplandecente, brilhou no mundo tanto pelo exemplo como pela doutrina; 22 o irmão Junípero12 sobressaiu por uma tão inabalável paciência, que ninguém jamais o viu perturbado apesar dos apuros em que esteve envolvido; 23 o irmão Rogério13 salientou- -se por uma vida de indiscutível virtude, a ponto de o senhor Papa Gregório IX o ter declarado e confirmado como autêntico santo e ter autorizado que a sua memória se celebrasse em Tódi14 , onde repousam as suas sagradas relíquias – se bem que não tenha permitido celebração de festa solene como era costume em tais circunstâncias, razão pela qual, segundo nos foi dito, foi posto de parte o processo da sua canonização. 24 Quanto ao irmão António de Pádua, continua a ser um sem-fim de novos prodígios. 25 O santo irmão Nicolau, de quem se diz que entre outros prodígios ressuscitou um defunto que ia ser retirado do leito da morte e deu olhos novos a alguém a quem os naturais tinham sido vazados, jaz em Bolonha, na igreja franciscana. 26 Ao irmão Ambrósio, com fama de nume- rosos milagres, venera-o a vetusta cidade de Roma, onde ele tem a eterna mansão. 27 O irmão Simão, favorecido pela graça de realizar maravilhas, engrandece com a realização de numerosas curas a cidade de Espoleto onde descansa. Com efeito, eu mesmo tive a oportunidade de ver no vale de Espoleto um defunto ressuscitado por sua invocação. 28 A veracidade desse milagre, bem como de muitos outros, foi reconhecida e solenemente aprovada pela autoridade apostólica do bispo de Espoleto, após cuidadosa e diligente investigação. 29 Foram também de eminente santidade o irmão João e o irmão Nicolau; o primeiro dos dois, Fr. João, que foi ao encontro do Senhor enquanto desempenhava o múnus de Guardião, já tornara ilus- tres várias regiões da Alemanha por suas obras maravilhosas. 30 Também da mesma forma nos mostraram caminhos de perfeição, com exemplos duma vida santa que pudemos admirar, o irmão Agostinho15 e o irmão Guilherme: de ambos se recorda que ainda em vida a sua virtuosa santidade resplandeceu em sinais do céu. 31 O venerável ————— 12 Cf. EP 85,9. 13 Cf. EP 85,11; 1C 216,12. 14 Cf. FF1, 3C1,16, nota 18 onde se diz que o Beato Rogério de Todi foi um dos primeiros frades a ser beatificado. 15 Cf. 2C 218. Trata-se de Fr. Agostinho, ministro na Terra de Labor, falecido no mesmo dia de S. Francisco.
  • 13. 13 irmão Hugo, que, cheio de espírito de sabedoria e de inteligência, foi admirável pela santidade de vida e pela eficácia da doutrina, repousando em Marselha, confirmou a sua santidade com prodígios miraculosos. 32 Fr. Cristóvão, irmão duma simplicidade de pomba, condignamente sepultado na igreja dos irmãos de Catúrcio, é conhecido pelo esplendor de numerosos milagres. 33 O irmão Estêvão, a quem o Senhor concedeu a graça de extraordinária virtude, que antes fora monge e Abade na Ordem Beneditina, quando por amor de Cristo se quis fazer frade menor, foi nomeado Inquisidor contra os hereges e teve o privilégio de ser honrado com a glória do martírio e de taumaturgo, e jaz na igreja dos irmãos de Tolosa. 34 Também aí foi veneradamente sepultado o irmão Raimundo, glorificado com idêntico martírio. 35 Brilham ainda com notáveis milagres o irmão Benvindo e o irmão Pedro, outrora Ministro da Calábria, como por graça divina se comprova. 36 Seria fastidioso continuar com a enumeração de cada um dos Confessores e dos gloriosos Mártires, que sofreram o martírio em defesa de Cristo e da Igreja tanto por parte de Sarracenos como de defensores de hereges, quando por mandato da Sé apostólica faziam investigações acerca de erros heréticos.
  • 14. 14 Capítulo II A formação dos primeiros discípulos 1 Depois de regressar do encontro com o sumo Pontífice, de quem recebera autorização para pregar, o bem-aventurado Francisco recolhia-se com os irmãos nos subúrbios da cidade de Assis em qualquer casebre abandonado16 , por vezes tão acanhado que nele mal podiam sentar-se ou deitar-se esses homens que decididamente tinham rejeitado habitar em casas espaçosas e aprazíveis. 2 Além disso viviam em tal penúria, que com bastante frequência nem sequer podiam matar a fome com um pedaço de pão, tendo de se contentar com uns nabos mendigados pelas hortas ao redor de Assis17 . 3 Por parte de familiares eram perseguidos, e por outros eram escarnecidos, pois nessa época era inconcebível que pelo Senhor um jovem se desfizesse dos seus bens e fosse pedir esmola de porta em porta. 4 No entanto, da parte deles não se ouvia por causa disso nenhuma lamen- tação nem queixume, antes pelo contrário, cheios de alegria espiritual e serenidade de coração, tudo aguentavam com paciência. 5 Posteriormente, sob o impulso do santo Pai, os irmãos foram cres- cendo em número e em perfeição. 6 Eram efectivamente irmãos menores, tanto de nome como pela humildade de espírito: considerando-se súbditos de quem quer que fosse, procuravam sempre habitar nos lugares mais pobres e exercer as ocupações mais humildes18 . 7 Mesmo no caso de surgir qualquer atitude aparentemente injuriosa, inflamados pelo espírito de caridade, era admirável como se amavam uns aos outros. E quando uma vez por outra surgia a oportunidade de se reunirem, então é que se fazia sentir o dardo do seu amor espiritual. 8 Com que expressões? Com afectuosos abraços, com delicadas trocas de palavras, com ósculos santos, com amigáveis conversas, com sorridente e modesta fisionomia, com rostos irradiando alegria, com mãos incansáveis em prestar obséquios. 9 Como efectivamente desprezavam todas as coisas terrenas, nunca fomentavam amizades particulares, mas repartiam todo o afecto do seu amor pela comunidade dos irmãos, tratando de se dedicar aos demais no sentido de lhes remediarem as necessidades, procurando não o seu próprio proveito, mas o de Cristo e o do próximo. 10 Chegou por exemplo a acontecer que quando um indivíduo tresloucado se pôs a arremessar ————— 16 Talvez em Rivotorto como recorda 1C 42, 1-2; Cf. LM 4.3,1. 17 Cf. TC 55,3. 18 Cf. 1C 38,4; T19
  • 15. 15 pedras contra alguns irmãos, um outro irmão se meteu de permeio, preferindo ser ele atingido do que ser ferido o seu irmão19 . 11 Alicerçados em tão sólidos fundamentos de caridade e humildade, cada um tratava o seu irmão com tal deferência como se ele fosse o seu senhor. 12 Quem entre eles sobressaísse pelo cargo que desempenhava ou por qualidades com que a graça divina o enriquecera, apresentava-se como o mais humilde e o menos importante de todos20 . 13 Se algum inadvertidamente deixasse escapar qualquer expressão que desagradasse a outro, não descansava enquanto lhe não pedisse humildemente desculpa21 . 14 Estavam sempre mortos por se reunirem, e sentiam-se radiantes quando se encontravam juntos; por isso se lhes tornava difícil e dolorosa a separação22 . 15 No entanto, jamais se atreviam a opor qualquer objecção à santa obediência, como soldados disciplinados que nada querem saber dos motivos das ordens recebidas, mas se apressam a executar sem contestação o que lhes é mandado. 16 Fosse o que fosse o que lhes mandassem, consideravam-no como um mandato procedente da vontade do Senhor, e isso lhes tornava fácil e suave cumpri-lo. 17 Um favor que solicitavam com empenho era que não os mandassem para as regiões donde eram oriundos, de modo a que neles se cumprisse a expressão profética: Tornei-me um estranho para os meus irmãos, um desconhecido para os filhos de minha mãe23 . 18 Viviam sempre em alegria espiritual, uma vez que não tinham qualquer motivo de perturbação. 19 Em situações complicadas, regozijavam-se como se lhes tivesse saído a sorte grande, e encomendavam a Deus os seus perseguidores, e não eram poucos os que, vendo isso, se decidiam a imitá-los24 . 20 Quando eram procurados pelos ricos do mundo, recebiam-nos com delicadeza e alegria, de modo a induzirem-nos a evitarem o mal e a modi- ficarem o comportamento25 . 21 Às pessoas que encontrassem em qualquer sítio, pelos caminhos ou nas praças, dirigiam palavras de conforto e de estímulo a amarem e reverenciarem o Criador. 22 Preferiam hospedar-se ————— 19 Cf. AP 26, 1-2. 20 Cf. AP 26, 4-5. 21 Cf. TC 43, 1; AP 27, 1. 22 F. 1C 29, 1-4. 23 Sl 69,9. 24 Cf. AP 23, 11; TC 40, 8. 25 Cf. TC 45, 1; AP 29, 1; 1R 2, 1-3; 2R 10, 6.
  • 16. 16 nas residências paroquiais de sacerdotes do que nem casas de seculares26 . 23 Mas se isso não era possível, informavam-se sobre alguma família mais piedosa do lugar, a quem pudessem honestamente pedir hospedagem. 24 E embora fossem pobres a mais não poder, estavam sempre dispostos a repartir com quem lhes pedisse as esmolas recebidas. 25 Desprezavam tão profundamente todos os bens materiais, que só com muita relutância aceitavam as coisas absolutamente necessárias à vida. Como indumentária contentavam-se com uma simples túnica, às vezes remendada por dentro e por fora, umas reles bragas e um cordão grosseiro como cinto27 . 26 Quanto à vestimenta, nada de cuidados, apenas se notava desprezo e indigência. 27 Se não conseguiam outro lugar mais conveniente para descansarem de noite, acomodavam-se em grutas ou em fornos comunais. Durante o dia, ajudando em trabalhos manuais da sua especialidade, a todos aqueles com quem conviviam davam exemplo de humildade e paciência28 . 28 Tão imbuídos estavam da virtude da paciência, que sendo muitas vezes vítimas de vexames e injúrias, chegando mesmo a ser espancados e desnudados, e vendo-se desprovidos de qualquer auxílio, ainda assim aguentavam tudo isso com humildade, chegando ao ponto de na sua boca ressoar um cântico de louvor e de acção de graças29 . 29 Nunca ou quase nunca interrompiam o louvor a Deus, mas recor- dando no exame de consciência a vida quotidiana davam graças a Deus pelo que de bom tinham feito, e deploravam e choravam negligências em que tivessem incorrido e faltas que por descuido tivessem cometido. 30 Se notavam que lhes ia faltando o espírito de devoção lhes ou diminuía a habitual piedade, imaginavam que Deus os tinha abandonado. 31 No intuito de se aplicarem à oração, usavam diversos estratagemas com o fim de a oração não ser perturbada por uma sonolência traiçoeira30 . 32 Se alguém, como é costume, ou para as contingências duma via- gem ou por outro qualquer motivo, os deixava desfalcados de provisões de alimento ou de bebida, mortificavam-se com muitos dias de abstinência. 33 Com tais mortificações procuravam reprimir os incentivos carnais, a ponto de por vezes exporem ao gelo o corpo nu ou de o fazerem sangrar com afiados espinhos. 34 Era tal a aspereza com que cada um se ————— 26 Cf. TC 59, 11. 27 Cf. 1C 39, 6. 28 Cf. 1C 9, 11. 29 Cf. 1C 40, 1-2 30 Cf. 1C 40, 3-5; 2R 5, 3
  • 17. 17 tratava, que dava a impressão de se odiar a si mesmo. 35 Vivendo em paz e harmonia com todos, evitavam com extremo cuidado qualquer escândalo31 . 36 Todos nutriam sentimentos de humildade acerca de si mesmos, e de respeito para com os outros, sobretudo para com os sacerdotes. 37 Uma vez um sacerdote avisou certo irmão: «Vê lá, não sejas hipócrita!» Esse irmão tomou tanto a peito o aviso, que se considerou mesmo hipócrita, comentando: «Foi um sacerdote que o disse! Ora um sacerdote não pode mentir!» 38 E daí em diante passou a andar triste e aflito, até que o Santo lhe explicou com perspicácia o verdadeiro sentido da recomendação do sacerdote32 . 39 Refreavam a língua guardando silêncio com o máximo cuidado. Em conversas só gastavam o tempo necessário, sem nunca lhes sair da boca qualquer dito chocarreiro ou frívolo. 40 Tinham todos os sentidos tão disciplinados, que não gostavam de ver nem de ouvir nada que não fosse condizente com a religião33 . 41 Era simples a maneira de se apresentarem e modesto o modo de andarem, com os olhos baixados para a terra e o espí- rito erguido para o céu. 42 O Santo, com efeito, ensinava-lhes que não se deviam limitar a dominar os vícios carnais, mas deviam também a mortificar os sentidos exteriores, pelos quais entra a morte para a alma. 43 Acontecendo que o imperador Otão passasse com grande pompa por aquelas bandas para receber a coroa imperial, o santo Pai, que estava com os irmãos no já referido casebre junto ao caminho de passagem da comitiva, nem se dignou sair fora para ver, nem permitiu que saísse nin- guém a não ser um, para observar e recordar constantemente ao candidato à coroa que a sua glória pouco duraria34 . 44 Sentindo-se avalizado pela autoridade Apostólica, recusava-se a adular reis e príncipes35 . 45 Também fazia diligências para investigar diariamente a vida dos irmãos, não deixando impune nenhum procedimento que lhe parecesse menos razoável, e chamava-lhes a atenção para a mais leve negligência. ————— 31 TC 58, 5; AP 38, 7. 32 Cf. 1C 46, 3-9; 1R 2, 15. 33 Cf. 1C 41, 3-4. 34 Cf. 1C 43, 2-3. O caso aqui referido deve ter ocorrido em 1210. Otão IV (1198-1218) foi coroado em Roma no dia 4 de Outubro de 1209. Em 18 de Novembro foi destituído por Inocêncio III. Cf. FF1 p. 267, notas 93 e 94. 35 Cf. 1C 43, 6.
  • 18. 18 46 E os irmãos correspondiam, não só procurando cumprir escrupulosa- mente os conselhos que ele lhes dava como irmão ou os preceitos que lhes impunha como Pai, mas iam ainda mais longe, procurando por vezes adivinhar o que ele quereria que se fizesse. 47 De facto, para os estimular à perfeição, dizia-lhes ele que a verdadeira obediência não se devia limitar a cumprir a ordem verbal do superior, mas devia estender-se à vontade do mesmo, desde que fosse conhecida, e que o súbdito devia fazer aquilo que por qualquer indício lhe parecesse que o superior quereria36 . 48 A tal ponto uma santa simplicidade resplandecia nos irmãos e era tal a sua pureza de coração, que não havia entre eles sombra de fingimento: assim como entre eles havia uma só fé e um só espírito, também havia uma só vontade, conformidade de procedimentos, concórdia de critérios e delicadeza de atitudes. 49 São assim os testemunhos do venerável Pai, com que ele formava os seus novos filhos, não apenas por palavras, mas com verdadeiros exemplos, e pelos quais renovava o propósito e o empenho duma vida apostólica. 50 Que o teor de vida aprovado [pelo Papa] era aprovado no céu, isso logo no começo dessa iniciativa foi revelado a um piedoso indivíduo por meio duma visão dos santos Apóstolos Pedro e Paulo, a agradecerem ao Senhor pela renovação na terra da sua forma de vida e a intercederem pela conservação dessa Ordem religiosa. 51 Quando o bem- -aventurado Francisco teve conhecimento disso, comentou: «Se S. Pedro e S. Paulo intercedem por nós todos os dias, também é justo que nós os veneremos com uma oração quotidiana». 52 Daí adveio o costume de se referirem nominalmente os dois Apóstolos em cada uma das horas do Ofício da Santíssima Virgem, quando anteriormente nessas orações apenas se fazia uma referência genérica aos Apóstolos, segundo a praxe da Igreja de Roma37 . 53 A essas fórmulas de oração acrescentaram-se então expressões como estas: Protegei, Senhor, e Atendei-nos, ó Deus, e ainda dos vossos Apóstolos Pedro e Paulo – quando antes se dizia de todos os vossos Apóstolos, etc. ————— 36 Cf. 1C 45, 5. 37 Sobre a fidelidade á Igreja romana, cf. Ex 26, 1; 2R 1, 3; 1C 62, 8; 2C 24, 7; TC 46, 2; AP 31, 2.
  • 19. 19 Capítulo III A tolerância de S. Francisco 1 Muito se regozijava o Santo com o progresso dos irmãos, sem contudo deixar de cuidar dos mais fracos e dos atormentados por tenta- ções. 2 Quando certo irmão, assediado por uma tentação, lhe pediu que rezasse por ele, respondeu-lhe: «Meu filho, o facto de seres tentado mais me convence de seres um verdadeiro servo de Deus. Ninguém se deve considerar servo de Deus se não passar por tentações e tribulações. 3 Uma tentação vencida é dalguma forma como a aliança com que o Senhor des- posa a alma do seu servo. 4 Não são raros os que se gabam dos méritos de muitos anos e se dão por felizes por nunca terem sucumbido a tentações; mas como era o simples medo que os vencia antes do combate, conven- çam-se de que Deus terá em conta essa sua debilidade espiritual. 5 Lutas renhidas só ocorrem quando há grande valentia»38 . 6 Outro irmão, continuamente angustiado por uma tentação de ordem espiritual, que é bem mais esquiva e mais grave do que o instinto carnal, veio ter com o bem-aventurado Francisco, prostrou-se a seus pés, 7 sem no entanto nada conseguir dizer, com a voz embargada por lágrimas amargas e soluços. Percebendo o Santo que ele estava atormentado por espíritos malignos, exorcizou: «Ordeno-vos, demónios, que deixeis de atacar este meu irmão». 8 E imediatamente o irmão se viu livre de toda a tentação. 9 Nisto se patenteou o poder do Santo sobre os demónios e a sua condes- cendência para com o filho39 . 10 Por ele mesmo outrora ter sido vítima de tentações, aprendeu a ter compaixão dos que eram tentados. 11 Com efeito, em tempos passados tinha experimentado a mais violenta tentação carnal, e depois de se flagelar com aspereza para a debelar, para não perder a coragem após essa lição, atirou-se nu para uma camada de neve, expulsando do coração pelo sofrimento corporal uma infecção espiritual40 . 12 Noutra ocasião foi acometido por uma gravíssima tentação espiri- tual, que aliás redundou em seu maior benefício. 13 Durante muitos dias andou aflito, orando e chorando copiosamente. 14 Certo dia, no meio da oração imaginou ouvir uma voz: «Francisco, se tiveres fé, mesmo como um grão de mostarda, dirás a um monte que mude de sítio, e ele mudará». ————— 38 Cf. 2C 118, 1-7. 39 Cf. 2C 110 40 Cf. 2C 117
  • 20. 20 Replicou o Santo: «Que monte, Senhor, teria eu a pretensão de deslocar?» 15 E pela segunda vez ouviu: «O monte é a tua tentação.» Então, banhado em lágrimas, suplicou: «Senhor, faça-se como dizeis.» 16 E de imediato se acabou a tentação e se sentiu livre dela41 . 17 O seu feitio levava-o a condescender com humildade, a encorajar toda a gente e abrir-se com todos. Prestava reverência aos sacerdotes da Igreja, respeito aos idosos, honra aos nobres e aos ricos, mas consagrava um amor ainda mais profundo aos pobres. Procurava viver em paz com todas as categorias de gente, e com insistência aconselhava os irmãos a procederem da mesma forma, dizendo-lhes: 18 «Se dirigis às pessoas uma saudação de paz, deveis ter cheio de paz o vosso coração, de modo que jamais alguém fique zangado ou escandalizado por vossa causa, mas antes pelo contrário, se sinta mais inclinado a ser manso e benigno. 19 A nossa vocação é tratar dos feridos, fortalecer os alquebrados e trazer ao bom caminho os extraviados. 20 Muitos que porventura nos parecem membros do diabo ainda virão a ser discípulos de Cristo42 .» 21 No trato com os irmãos falava bondosamente não como juiz, mas como o pai a um filho ou o médico a um doente, de sorte que nele se con- cretizava a expressão do Apóstolo: Quem é que se sente fraco sem que eu também me sinta fraco43 ? 22 Para com os doentes corporais tinha também profunda compaixão, muita solicitude a respeito das suas necessidades; numa palavra, comportava-se com todos conforme convinha a cada um. 23 Não deixava de tratar com a devida honra pessoas importantes que vinham para a Ordem, e ponderando com piedade o que a cada um era devido, em todas as circunstâncias considerava prudentemente os diversos graus de dignidade44 . 24 Era efectivamente dotado de notável discrição e do dom da simplicidade, associando na perfeição a prudência da serpente com a simplicidade da pomba45 . ————— 41 Cf. 2C 115; LP 99; 42 Cf. TC 58, 5-6; 43 2 Cor 11,29; Cf. TC 59, 6; AP 39, 8-9. 44 Cf. 2C 57, 1-3. 45 LM 11. 1, 6
  • 21. 21 Capítulo IV A pobreza 1 Um empenho muito especial de Francisco foi o de observar a pobreza e a humildade e de estar sempre ocupado em actividades conve- nientes. 2 Sentia-se feliz em habitações pobrezinhas, em pequenas cabanas de madeira mais do que em construções de pedra. 3 Com frequência passava temporadas com alguns irmãos em eremitérios, onde o espaço de clausura era delimitado por um simples amontoado de silvas e umas choupanas lhes serviam de casas46 . 4 Mas viver assim em cidades, não lho permitia nem a maldade humana nem o grande número dos irmãos. 5 Detestava que qualquer irmão tivesse várias peças de roupa, bem como tecidos elegantes e finos47 . 6 Não se compreende num pobre uma nova peça de roupa, sendo muito menores as despesas de remendar a roupa velha. 7 Um tecido grosseiro é de facto mais áspero e mais pesado e agasalha menos, mas é isso que exige o piedoso projecto da Ordem, e pela graça de Deus o desconforto facilmente é superado com o uso. 8 Se a necessidade obrigasse alguém a usar por dentro uma túnica menos austera, ele não se opunha; queria no entanto que o hábito exterior conservasse as características de ser pobre e grosseiro, pois Deus nos pôs como exemplo de pobreza e penitência perante o mundo. 9 Mas observava ele que quando a necessidade resulta não dum motivo razoável mas da mera comodidade, isso é sinal de falta de espírito48 . 10 Costumava ele dizer que «não suportar com paciência as adversi- dades, não era senão voltar para o Egipto»49 . 11 Quanto a livros, queria que houvesse poucos, esses poucos não fossem luxuosos nem caros, mas apenas aptos para a necessária cultura de irmãos indigentes50 . 12 Acerca de dinheiro, também por fervor religioso não permitia aos irmãos possuí-lo nem sequer lidar com ele. Por isso é que uma vez castigou severamente certo irmão por ele ter tocado numas moe- ————— 46 Cf. 2C 56, 1; EP 5, 3. 47 Cf. 2C 69, 2. 48 Cf. 2C69, 12. 49 Alusão ao episódio descrito no livro bíblico dos Números (Nm 14,1-4), em que se refere que o povo israelita, liberto dos trabalhos forçados a que estivera submetido no Egipto, mas em dificuldades no deserto por falta de alimento (cf. Nm 11,4-4), se amotinou contra Moisés e em comício propôs o regresso ao Egipto (Nota do tradutor). Cf. 2C 69, 9; EP 15, 4 50 Cf. 2C 62, 1-2; EP 5, 1-2
  • 22. 22 das que encontrou no caminho. 13 Um outro irmão também recolheu uma moeda perdida no caminho, 14 com a intenção de a dar a leprosos, apesar de o companheiro o desaconselhar de fazer isso e lhe recordar a recomen- dação do Santo, de não fazer caso de dinheiro achado na rua – o resultado foi começar logo a ranger os dentes e perder a fala. 15 Perante isso, atirou fora a moeda, e logo se soltaram os lábios do irmão arrependido, e deu graças a Deus51 . 16 A fim de se precaver contra coisas supérfluas, nem sequer um sim- ples copo o Santo permitia que houvesse em casa, porque considerava possível mesmo sem copos remediar de qualquer outra forma os apuros duma necessidade extrema. 17 Confiava absolutamente na providência divina, como bem mostra a resposta que deu ao senhor Papa, quando este lhe objectou ser difícil viver sem nada possuir: 18 «Meu Senhor, eu tenho confiança que o Senhor Jesus Cristo, que prometeu dar-nos no Céu a vida gloriosa, não deixará de nos conceder na terra o necessário sustento do corpo no devido tempo»52 . 19 E ainda lhe propôs a seguinte parábola: «Certo rei, tendo casado com uma mulher, que era muito pobre, mas duma beleza extraordinária, teve dela filhos igualmente belos. 20 Quando os filhos cresceram, a mãe mandou-os ir ter com o rei para tratar deles. Ao reconhecê-los como seus filhos, por se parecerem com ele, abraçou-os e disse: “Vós sois meus filhos e herdeiros; não vos preocupeis! Se até a estranhos eu dou sustento à minha mesa, é mais que justo que o dê aos que por direito são meus herdeiros”53 . 21 Os irmãos pobres são filhos de Cristo pobre e duma Ordem pobre». 22 Já tinha a experiência de que o Senhor trata das coisas mais insig- nificantes. 23 Ao regressar da Espanha, debilitado por uma doença muito grave54 , disse no caminho ao irmão Bernardo que até seria capaz de tentar ressarcir as forças com a carne duma avezinha se a tivesse à mão… 24 E o curioso é que um desconhecido qualquer, atravessando um campo, lhe veio oferecer uma ave, tal como ele desejava, declarando: «Servo de Deus, aqui tens o que te oferece a clemência divina». 25 S. Francisco aceitou a oferta e por tudo agradeceu a Cristo, que assim tratara dele. 26 O que não queria era ser conivente com o mundo por causa de bens materiais. Quando o bispo de Assis lhe disse que lhe parecia ————— 51 Cf. 2C 65- 66. 52 Cf. AP 34, 4 53 Cf. 2C 16, 4-8; AP 35, 3-4; TC 50, 1-5; LM 3. 10, 2. 54 Cf. 1C 56, 7.
  • 23. 23 rigorosa demais a vida que ele escolhera de não possuir nada neste mundo, respondeu-lhe: 27 «Se tivéssemos propriedades, precisaríamos de armas para as proteger, pois dessa posse nascem muitas vezes desavenças e litígios, e com isso lá se ia o amor de Deus e do próximo»55 . 28 Repetia com frequência: «À medida que os irmãos vão fazendo pouco caso da pobreza, vai o mundo fazendo pouco caso deles56 . 29 Eles devem dar ao mundo bom exemplo; e o mundo deve dar-lhes a eles o sus- tento necessário. 30 Se deixarem de dar bom exemplo, também o mundo deixará de os ajudar: procurarão, mas nada encontrarão… 31 Como precaução para salvaguardar a pobreza, o Santo tinha receio de que aumentasse muito o número dos irmãos, e explicava-se: «Oxalá o mundo, vendo raramente irmãos Menores, se admire de serem poucos!57 » 32 Em tudo ele queria que os irmãos se contentassem com poucas coisas, e mesmo essas, fossem bens móveis ou imóveis, que não as consi- derassem como propriedade sua. Não queria ter nada como seu, a fim de mais plenamente possuir tudo no Senhor58 . Capítulo V A humildade 1 Francisco também praticou com esmero a humildade, virtude asso- ciada à pobreza. 2 Por isso queria que os irmãos usassem um hábito des- pretensioso, se cingissem com uma simples corda, se chamassem Menores, e nunca recebessem honrarias mundanas. 3 Quando o senhor bispo de Óstia lhe falou em conferir a irmãos cargos eclesiásticos honoríficos, recusou terminantemente a proposta, e respondeu que deviam continuar na mesma humilde situação. 4 Estava presente na altura S. Domingos, opondo-se também ele a que os seus irmãos ascendessem a tais cargos59 . 5 E a concor- dância com S. Francisco chegou ao ponto de lhe pedir um cordão para com ele cingir devotamente a túnica interior e de lhe sugerir que as suas duas Ordens Religiosas formassem uma só, e de afirmar que era a Francisco que todos os Religiosos deviam seguir. 6 Oh, como deveria ser imitada pelos respectivos filhos esta humildade e mútua caridade dos seus dois Pais ————— 55 Cf. AP 17, 7-8; TC 35, 6. 56 Cf. 2C 70, 1. 57 Cf. 2C 70, 5-6. 58 Cf. 1C 44, 6. 59 Cf. 2C 148.
  • 24. 24 fundadores! 7 Seria extremamente útil tanto para eles mesmos como para a Igreja. 8 Para com superiores e sacerdotes queria que os irmãos fossem tão respeitosos que os considerassem dignos de que lhes beijassem não apenas as mãos, mas até os próprios pés, pela reverência devida à sua dignidade e ao seu poder espiritual. 9 Afirmava com efeito: «Fomos constituídos auxilia- res dos clérigos em ordem à salvação das almas, competindo-nos a nós suprir aquilo que no seu ofício é de menos importância. 10 Cada um receberá o estipêndio condizente não com a sua categoria, mas com o seu trabalho. 11 Capacitai-vos, irmãos, de que o bem das almas é o fruto que mais agrada a Deus, e que ele se alcança melhor pela paz que pelo desentendimento». 12 E dizia também: «Submetei-vos aos superiores, a fim de que, quanto de nós dependa, não surja qualquer mal-entendido». 13 E que é que tem de mais sujeitarmo-nos aos superiores, se por amor de Deus devemos submeter-nos a toda a instituição humana60 ? 14 O sentimento de humildade para consigo mesmo levava-o a ter-se na conta de grande pecador, apesar de na realidade ser um espelho da mais completa santidade e sem qualquer contaminação carnal, como foi revelado ao santo irmão Leão, seu confessor, e foi informado ao Ministro Geral61 . 15 De facto, o confessor admirava-se de que S. Francisco, que em público se declarava como o maior dos pecadores – sendo que o justo é o primeiro a acusar-se a si mesmo – em privado nunca se acusava de nenhuma falta contra a castidade, e com muita discrição quis certificar-se se ele efectivamente nunca teria tido qualquer relacionamento sexual – declaração que nunca teria colhido do Santo, por mais que lhe perguntasse, precisamente por ele ser pessoa simples e duma pureza ilibada – foi-lhe isso mesmo revelado e demonstrado com um milagre todo especial. 16 Enquanto orava, esse irmão viu S. Francisco colocado num lugar tão elevado que ninguém podia chegar junto dele nem tocar-lhe, e ficou convencido de que essa visão significava o eminente grau da pureza do Santo. 17 Sem uma castidade imaculada não se explicava que o seu corpo fosse enriquecido com os sagrados estigmas. 18 Se há pessoas vulgares que por acção da graça divina e do seu esforço natural chegam à velhice de corpo impoluto, ninguém se admiraria que o corpo de Francisco, 19 a quem o Senhor dispensara tantas graças, se conservasse também imaculado. ————— 60 Cf. 1 Pe 2,13; 2C 146, 6; 1R 16, 6. 61 Cf. 2C 123, 8; LM 6. 6,7.
  • 25. 25 Capítulo VI A vida activa 1 Não se cansava o Santo de progredir na perfeição, recordando aos irmãos que o Senhor não tardaria a vomitar os frouxos e aqueles que não se dedicassem com entusiasmo a qualquer actividade. 2 Não aparecia diante dele qualquer irmão ocioso sem que ele o repreendesse com veemência. 3 Queria que os irmãos estivessem sempre ocupados ou na oração ou em qualquer actividade conveniente62 . 4 Muito se alegrou ao ouvir contar que em determinado eremitério da Espanha os irmãos tinham com esse intuito organizado o horário de modo a dedicarem parte da semana às ocupações domésticas, e outra parte à contemplação63 . 5 Foi aí que aconteceu este caso estranho. Certo dia, como um dos irmãos do grupo dos contemplativos não compareceu para a refeição, foi encontrado na cela estendido no chão com os braços abertos em forma de cruz, e embora não desse indícios de respiração nem de qualquer movimento, parecia estar vivo; além disso, acima da cabeça e abaixo dos pés ardiam candelabros irradiando um fulgor admirável. 6 Deixaram-no em paz, e logo o resplendor desapareceu; o homem veio a si, e avançando para a mesa da refeição, confessou a sua culpa, como era costume. 7 Contra o defeito da tristeza recomendava: «Se um servo de Deus por qualquer motivo se sentir angustiado, deve quanto antes recorrer à oração, e não se arredar da presença do Pai supremo enquanto ele lhe não conceder a alegria da sua salvação64 . 8 Consoante as oportunidades, as suas ocupações eram a pregação e a salvação do próximo. 9 Quantos progressos ele fez na doutrinação e na conversão das almas, só o sabe Deus, que lhe abriu o entendimento para compreender as Escrituras65 . 10 Certo Cardeal fez-lhe umas perguntas acerca de alguns assuntos abstrusos, esclarecendo: «Interrogo-te não por te considerar um erudito, mas por acreditar que estás possuído do espírito de Deus, e não terei dificuldade em aceitar o teor da tua resposta, pois estou convencido que provém de Deus»66 . 11 Sobre aquela passagem do profeta Ezequiel “se não exortares o pecador para o afastar do mau caminho, ele ————— 62 Cf. 2C 161; 1R 7, 2. 63 Cf. 2C 178, 2-4. 64 Sl 51,14. Cf. 2C 125, 9. 65 Lc 24,45. 66 Cf. 2C 104.
  • 26. 26 perecerá por causa do seu pecado, mas é a ti que eu pedirei contas do seu sangue”67 , alguém o interrogou uma vez se somos obrigados a admoestar todos aqueles que sabemos que vivem em pecado mortal, respondeu: 12 «Se a palavra do profeta se deve entender em sentido universal, como eu julgo, aceito perfeitamente que um servo de Deus deve ser tão brilhante pela santidade de vida, que com o esplendor do seu bom exemplo e com bons conselhos que dê, repreenda todos os ímpios. 13 Assim, será o resplendor da sua vida e o perfume da sua aura a denunciar a cada um a própria iniquidade.» 14 Ele mesmo não se limitava a dar lições com o seu exemplo, mas também por palavras, confirmadas por vezes com sinais prodigiosos, como se narra em suas biografias. 15 Vou referir um caso muito divulgado ocorrido na povoação lombarda de Alexandria. 16 Foi o Santo convidado por certo indivíduo temente a Deus, o qual lhe pediu para cumprir a norma do santo Evangelho que diz: “Comei do que vos for servido”68 . No momento em que acabavam de lhe servir à mesa uma boa peça de capão, alguém, fingidamente, apareceu à porta a pedir uma esmolinha por amor de Deus. Ao ouvir a súplica em nome de Deus, Francisco acondicionou a peça de carne num pedaço de pão e foi dar ao pedinte esse belo petisco, que ele não comeu, mas maliciosamente guardou. 17 E quando no dia seguinte o Santo pregava ao povo, o falso mendigo ergueu a voz para dizer: «Quereis saber quem é esse Francisco a quem honrais como Santo? 18 Vede esta carne que ele ontem me deu, quando estava a refastelar-se!». 19 Toda a gente o descompôs, ao ver que o que ele mostrava não era uma peça de capão, mas um peixe! O desfecho do episódio foi até o próprio culpado se espantar com o milagre e se ver obrigado a reconhecer o que toda a gente via [que se tratava de peixe, e não de carne], e diante de todos pediu perdão ao Santo e contou a tramóia diabólica que inventara. 20 Depois de o prevaricador ter reconhecido o seu erro, a prova material da falsa acusação voltou a ter o aspecto de carne… 21 Foi também notável o Santo no condão de expulsar demónios e na extraordinária graça de curas, que realizava sobretudo pelo poder da cruz69 . 22 Pelo sinal da cruz deu vista a cegos, repelia demónios e curava as mais variadas doenças. 23 Em Orte, um indivíduo afectado por uma úlcera enorme ————— 67 Ez 4,18; Cf. 2C 103. 68 Lc 10,8; 2C 78-79. 69 Cf. 1C 67.
  • 27. 27 entre os ombros, abençoado por ele com o sinal da cruz, ficou de repente e por completo liberto dessa chaga, sem dela restar o menor vestígio70 . 24 Na fervorosa devoção para com ele, muita gente com frequência lhe levava pães e outros géneros alimentícios para ele abençoar, acontecendo que eles se conservavam em bom estado durante muito tempo, e serviam para curar mazelas a quem deles se alimentasse71 . 25 Também se provou que pelo efeito das mesmas vitualhas se dissiparam fortes tempestades de trovoadas e granizo. 26 Da mesma forma, o simples facto de lhe tocar no hábito ou no cordão fazia com que desaparecessem doenças e febres e se recuperasse a desejada saúde. 27 Aconteceu-lhe uma ocasião ir ao tecto hospitaleiro dum militar cujo filho único se tinha afogado e desaparecera, e por mais buscas que se fizessem, o cadáver do jovem nunca mais foi encontrado. Levado pela sua própria compaixão e compadecido dos gemidos dos que choravam a morte do rapaz, parecendo-lhe ser ocasião propícia para Cristo confirmar as suas maravilhas em favor da firmeza da fé católica que o santo varão pregava, 28 suplicou a Cristo em orações como sempre devotas e piedosas, e conse- guiu indicar o lugar exacto onde o afogado tinha ficado no rio, preso pela roupa, e ressuscitando-o milagrosamente, libertou a família da dupla angústia da perda do jovem e da sua morte. 29 Eis o servo fiel e imitador do Senhor misericordioso, que, ao ver que levavam a sepultar o filho único duma mão viúva, se compadeceu dela72 e o ressuscitou. Eis um novo pro- feta como Elias e Eliseu, dos quais se refere que ressuscitaram os filhos dos seus hospedeiros! 30 Até seres irracionais lhe obedeciam. Entre outros episódios, uma ocasião em que o coaxar de rãs num lago próximo da igreja onde ele pre- gava dificultavam a pregação, mandou-as calar, a fim de também ele poder louvar a Deus. Elas não fizeram mais barulho, mesmo depois da pregação. 31 Até que mais tarde, voltando ele à mesma igreja e verificando que elas depois de ele falar continuavam sempre silenciosas, convidou-as a louva- rem o seu Criador como habitualmente faziam, compungido por durante tanto tempo as ter inibido. 32 Destes dois prodígios, o das rãs e o do jovem ressuscitado, anciãos dessa época passada convidados a depor, garantiram terem sido deles testemunhas – um deles chamava-se mesmo irmão Ver- dade, e diz-se que a sua sepultura se tornou notável em milagres. ————— 70 LM 12. 9; 3C 179. 71 Cf. 1C 63. 72 Lc 7,12-14.
  • 28. 28 33 Obedeciam-lhe ainda os próprios seres inanimados. Uma ocasião, depois de celebrado em Assis o capítulo geral, continuaram lá o irmão Monaldo e outros cerca de trinta irmãos, a fim de se esclarecerem com o irmão Francisco sobre assuntos espirituais73 . 34 Uma vez que precisavam de ficar para o dia seguinte, o Santo quis que lhes fosse servida uma refeição. 35 Mas o despenseiro não dispunha senão dum pequeno pão, e por isso o pobre Francisco mandou pedir a Clara que lhe enviasse alguns pães, se os tivesse, para a dita refeição. 36 Nessa altura ela só dispunha de três pães, e enviou-lhe dois. Ele então recorreu ao seguinte expediente: cortou-os todos aos bocadinhos, e pôs esses pedaços na mesa, explicando: «É este o pão da caridade». 37 Será preciso acrescentar alguma coisa? Com esses três pães ficaram plenamente satisfeitos os cerca de trinta irmãos, e dos restos ainda se recolheu um cesto cheio. 38 Nem a memória do povo nem os testemunhos escritos conservam os inúmeros prodígios com que Cristo quis distinguir o seu porta-bandeira e pregoeiro Francisco, e confirmou sem qualquer margem para dúvida a sua doutrina. 39 Mas ponhamos de parte a ociosidade, autêntica morte da alma, e quando nos metermos ao trabalho, não passemos por cima das dificuldades a respeito da doutrina e doutras coisas; deixemo-nos instruir pelo exemplo do santo Pai, e sobretudo do próprio Jesus Cristo, que viveu pobre e em dificuldades desde a sua juventude. 40 Li algures a respeito de certo irmão que num só dia rezou 50 Salmos, que o Senhor o livrou das penas do Purgatório. 41 Passando ele noites inteiras em oração, certa noite apareceu- -lhe o Salvador com a Virgem Santíssima, e à direita de Cristo uma cruz gigantesca que chegava até ao céu. 42 Disse então o Senhor ao fiel tão persistente na oração: «Trabalha com confiança e faz penitência, porque também eu quando estive no mundo vivi sempre em trabalhos». 43 Sigamos nós também o exemplo de Cristo e de S. Francisco no trabalho, para nos unirmos a eles no descanso. 44 Um patrão trabalhador não aprecia um empregado calaceiro. ————— 73 Cf. 1C 48, 7.
  • 29. 29 Capítulo VII As três Ordens 1 O resultado da ideologia de Francisco está bem patente nas três Ordens por ele fundadas. 2 A primeira Ordem é a dos irmãos Menores, cuja finalidade é servir o Senhor em pobreza e humildade segundo o Evangelho e pregar a con- versão. 3 Nos que ingressam nessa Ordem Religiosa são inúmeros os sinais de ela ser abençoada por Deus. 4 Seria quase impossível a quem quer que fosse descrever os prodígios com que Deus enriqueceu essa Ordem nos irmãos e pelos irmãos com que a dotou. 5 Vou no entanto referir-me a visões e a vocações mais notáveis, a revelações, embora poucas, que já se vão fazendo por parte de pessoas de confiança, de acontecimentos que lhes foram contados, pelos quais o Senhor se dignou comprovar manifestamente e sem sombra de dúvida a perfeição deste instituto religioso. 6 Contava o outrora Ministro Geral de santa memória padre frei Haymon que havia na Inglaterra um certo Prelado que em espírito foi arre- batado ao céu, onde, entre muitos Religiosos de vários institutos, com grande estranheza sua não viu nenhum irmão menor. Aparecendo-lhe tam- bém a mais bela das mulheres, a santíssima Mãe de Deus, correu para ela e interrogou-a sobre o mistério que o intrigava. 7 Disse-lhe o Bispo que estava surpreendido por não ver nem sequer um irmão menor a gozar daquela felicidade… Respondeu-lhe ela: «Anda comigo, que eu vou indicar-te onde é que eles estão». 8 E mostrando-lhe os irmãos em convívio íntimo e familiar com Cristo Senhor, acrescentou: «Vê como eles estão seguros e felizes sob as asas protectoras do Juiz; como eles, salva a tua alma». 9 O Bispo, considerando a graça da visão e o conselho salutar da Mãe de Deus, e obtido o consentimento do senhor Papa Gregório IX, ingressou na Ordem dos Frades Menores. 10 De alguns Religiosos também se conta que foram vistos abrigados sob o manto da santíssima Virgem; é assim que os irmãos são protegidos pela própria Mãe de Deus e pela sombra protectora das asas do Filho de Deus, ambos os dois desempenhando o papel de Querubins74 a protegerem os irmãos. ————— 74 Querubins são figuras míticas representando touros e/ou leões com asas, bem conhecidas nas antigas culturas religiosas da Mesopotâmia e do Egipto, e importadas por alguns redactores bíblicos do Antigo Testamento, sobretudo pelo profeta Ezequiel, onde aparecem nada menos de 17 vezes. No Novo Testamento não se fala em Querubins senão
  • 30. 30 11 É de crer que o referido Prelado tenha sido D. Radulfo, Mestre de Teologia e Bispo de Erfurt, que de facto ingressou na Ordem Franciscana. 12 Mas além desse houve ainda dois outros Radulfos, ambos doutores em Teologia, um dos quais de Paris, que também entrou na Ordem em circunstâncias deveras curiosas. 13 Enquanto certo dia se dedicava aos seus estudos, deu-lhe o sono e adormeceu com a cabeça sobre o livro. Sonhou então com o diabo a ameaçá-lo de o privar da visão, intimidando-o: «Ainda te hei-de cegar com esterco!» 14 Entretanto, o mestre acordou, mas mais tarde tornou a dormitar e a sonhar de novo com o diabo a repetir-lhe a mesma ameaça. Desta vez, porém, reagiu contra ele, apontando-lhe os dedos contra os olhos e ameaçando-o: «Não serás tu a cegar-me a mim; eu é que ainda te hei-de cegar a ti!». 15 Ora aconteceu que no dia seguinte, quando se assentava na sua cátedra doutoral, recebeu da Inglaterra uma carta de certo Bispo com a oferta de chorudo estipêndio [se para lá fosse leccionar]. 16 Interpretando a riqueza proposta como o “esterco” com que o diabo o queria cegar, desfez-se de todos os seus bens e ingressou na Ordem dos Frades Menores. 17 Há já muito tempo, acompanhei o então célebre Ministro Geral por terras da Alemanha e da Flandres. Passados muitos anos, em diversos encontros com irmãos, soube que houve de facto um cónego muito vene- rável que se resolveu a entrar na Ordem por ter sido miraculosamente curado de cegueira. 18 Devido ao muito tempo desde então decorrido, não posso garantir todas as circunstâncias, mas não duvido da cura dessa pessoa e da sua entrada na Ordem. Passo a descrever o facto provável como me foi contado. 19 Tratava-se de um cónego, de linhagem nobre, pessoa respeitável, muito piedoso e especialmente devoto da virgem Santa Eufémia. 20 Embora já de avançada idade e habituado a uma vida desafogada, não descurava a salvação da alma – perigo que costuma acontecer aos ricos –, no ardente desejo de empreender algo mais valioso, não deixava de pedir ao Senhor ————— numa única e breve referência ao A.T.: «Sobre a arca estavam os querubins da glória, a cobrirem o propiciatório com a sua sombra» (Heb 9,5). Na Bíblia representam e simbolizam a majestade, a presença e proximidade de Deus. Por serem alados, com muita frequência os textos sagrados, sobretudo os salmos, falam também em segurança e aconchego “à sombra ou debaixo das asas de Deus” (Cf. Sl 17,8; 36,8; 57,2; 61,5; 63,8). A teologia mística da Idade Média, criando a angelologia, elevou os querubins à classe angélica suprema. É nessa base que o Autor aqui apresenta ousadamente o Filho de Deus e sua Mãe como dois Querubins a abrigarem à sombra das suas asas os irmãos menores. (Nota do tradutor).
  • 31. 31 que lhe indicasse o caminho da salvação, 21 repetindo as palavras do profeta: Mostra-me, Senhor, os teus caminhos, e ensina-me as tuas veredas75 . 22 Mostra-me o caminho a seguir, porque para ti elevo a minha alma76 . 23 Também por intercessão da referida Virgem que tinha por advogada suplicava incessantemente que o Senhor lhe indicasse o estado mais con- veniente para a sua salvação. 24 E o Senhor inflamou-lhe o coração no sen- tido de renunciar resolutamente ao mundo na Ordem de S. Francisco. 25 Mas havia o óbice de ser doente e de na garganta padecer de um tumor que o deformava. 26 Por essa razão, o Ministro dos irmãos Menores ia adiando o seu ingresso, e com a devida prudência conforme podia o ia tentando dissuadir do propósito, asseverando-lhe que a sua vida espiritual nada tinha de reprovável nem impeditivo da salvação, e até seria frutuosa pelas muitas boas obras que poderia realizar. 27 Percebendo ele que lhe escapava a oportunidade de realizar o seu sonho e muito entristecido por isso, sucedeu que uma ocasião em que estava a rezar o acometeu uma leve sonolência. 28 E eis que lhe apareceu Santa Eufémia, de quem era devoto, acompanhada de grande séquito de outras Virgens, e o encorajou a ingressar na Ordem dos Frades Menores, curando-o do obstáculo que disso o impedia, e como prova irrefutável de que poderia aguentar os rigores da Ordem, curou-o do tumor, dizendo-lhe: 29 «Sirva-te isto de sinal de que ficas curado de todos os teus achaques». 30 Imediatamente lhe abriu e espremeu o inchaço do tumor da garganta para extrair todo o pus, e passando-lhe depois a mão pelo orifício aberto, completou a operação e restituiu ao homem a saúde perfeita. 31 Ao despertar, o piedoso senhor viu que estava de facto completamente curado. 32 Recebido na Ordem conforme desejava, nela passou a viver como um santo. 33 Consta que atingiu tal grau de virtude diante do Senhor, que nunca mais se sentindo embaraçado pela idade nem pelas delícias da vida a que estava acostumado, aguentou sem dificuldade os trabalhos da Ordem, e conseguia percorrer a pé distâncias maiores do que antes fazia a cavalo. 34 Também o célebre João, imperador de Constantinopla, avisado por divina revelação, envergou o hábito de S. Francisco. 35 Conta-se a respeito dele que enquanto os seus irmãos eram acompanhados cada um por sua comitiva, só ele foi privado de herança, sendo-lhe atribuída apenas a filia- ção na Ordem militar dos Templários ou dos Hospitalários. 36 Mas como era ainda jovem, de nobre linhagem e de notável valentia, quis a Providência ————— 75 Sl 25,4. 76 Sl 143,8.
  • 32. 32 divina que ele viesse a ser primeiramente o soberano do reino de Jerusalém, e depois, guindado à dignidade imperial, foi enaltecido a ponto de vir a ter por genro o próprio imperador Romano. 37 Foi além disso um acérrimo defensor da ortodoxia e lutador contra os infiéis. 38 Quando ele, ao pensar a sério sobre o termo da sua vida, ponderou quantos bens Deus lhe concedera, sentiu um desejo enorme, e acredita-se que divinamente inspirado, de saber como seria o fim da sua vida terrena. 39 Durante algum tempo alimentou esse desejo e insistiu em suplicar a Deus essa graça, até que uma noite, enquanto dormia, lhe apareceu um indivíduo vestido de branco e trazendo nas mãos um hábito, um cordão e umas sandálias como os que usavam os irmãos Menores. Chamando o imperador pelo nome, disse-lhe: 40 «João, uma vez que estás tão interessado em saber como será o teu fim, fica sabendo que morrerás amortalhado neste hábito; é essa a vontade divina». 41 Ao acordar, o imperador, horrorizado, segundo o seu instinto humano, com tal humilhação a que se imaginava sujeito, soltando clamorosos gemidos, acordou os que perto dele descansavam, segundo os costumes do reino. Porém, quando eles acorreram para saber o que se pas- sava, não lhes quis indicar a causa dos seus gritos. 42 Na noite seguinte apareceram-lhe em sonho dois cavalheiros igualmente vestidos de branco, trazendo cada um o equipamento fradesco, hábito, cordão e sandálias, e repetindo que ele morreria com aquela indu- mentária. 43 Ficou horrorizado como da primeira vez, e ao acordar repetiu a cena dos gemidos, mas recusou-se a revelar aos criados de quarto a causa da gritaria. 44 Numa terceira noite apareceram-lhe três personagens, vestidos de branco como os anteriores, com a indumentária a ele destinada – o hábito, o cordão e as sandálias – e, tal como nas aparições anteriores, afirmando uma vez mais que na morte iria vestido com aquelas roupas, acrescentando: 45 «Não penses que se trata duma ilusão ou dum sonho falacioso: tudo acontecerá conforme te dizemos». 46 Sobressaltado, o imperador mandou chamar imediatamente o irmão Ângelo, seu confessor. Ele veio logo, e deparando com o imperador a chorar na cama, disse-lhe: «Já sei o motivo porque me chamastes; também eu tive a vosso respeito uma revelação semelhante à vossa». 47 Poucos dias depois, o imperador foi acometido por uma febre terçã, e decidindo resolutamente entrar na Ordem, em conformidade com as visões havidas, nela terminou feliz os seus dias. 48 Mas como em vida, por causa da gravi- dade da doença e da debilidade de forças, não pôde desempenhar na Ordem
  • 33. 33 ofícios humildes, consta que exprimiu o seu santo desejo nestes termos: 49 «Ó dulcíssimo Senhor Jesus Cristo! Eu passei neste mundo uma vida regalada e pomposa, envergando vestes luxuosas. Oxalá que agora, pobre e humilde, a pedir esmola com um saco aos ombros, eu possa segui-te a ti, que foste verdadeiramente pobre e humilde!». 50 Neste gesto, uma personalidade tão importante deixou-nos um extraordinário exemplo, de sorte que não se envergonhem da pobreza e da humildade nem os grandes, nem os medianos, e menos ainda os menores. 51 Com esse seu voto cumpriu o desejo que os nobres costumam exprimir ao abraçarem esta Ordem, de serem os mais humildes, os mais mansos e os mais simples. 52 A caracte- rística mais notável dos fidalgos é precisamente a sobriedade na mansidão e na humildade. 53 Mas não é raro a graça de Deus tornar nobre a quem o não era, e o pecado da soberba e da preguiça fazer perder a nobreza a quem a tinha. E que mudança mais vergonhosa do que a de um nobre se tornar grosseiro? 54 Tão-pouco são de desprezar os mais pequeninos, a quem foi concedido combater contra o mal pelo Senhor; não há maior glória que a de ser soldado de Cristo. 55 Mas vou continuar com o assunto que abordei. O irmão Guilherme de feliz memória, outrora Ministro da Aquitânia, região a SW da França, contava que vivera na cidade de Carnot um doutor que por votos emitidos estava adstrito à Ordem dos Frades Menores. 56 No entanto, tendo terminado o prazo previsto para os irmãos entrarem na Ordem, estava uma ocasião a jogar xadrez junto à porta da igreja da Santíssima Virgem Maria, quando instantaneamente ficou cego. 57 Ao sentir-se privado de visão, sem que os circunstantes disso se apercebessem, derrubou com a mão as peças do jogo, chamou um rapaz que estava ali perto, pousou-lhe a mão sobre o ombro e cochichou-lhe que o guiasse para dentro da igreja. 58 Aí, prostrado com devoção e de lágrimas nos olhos diante do altar da Virgem, fez a promessa de não retardar mais a entrada na Ordem. 59 Sendo-lhe logo restituída a capacidade de ver, foi ter com os irmãos a combinar o dia em que faria a sua entrada efectiva. 60 Novamente, porém, faltou à palavra, e em vez de se dirigir para o convento voltou para o local do seu jogo favorito, e repetiu-se a cena da primeira vez: ficou invisual, entrou na igreja, e depois de muito choramingar, renovou a promessa de não diferir por mais tempo o ingresso na Ordem, se lhe fosse concedida a graça de recuperar o sentido da vista. Veio, de facto a recuperá-la, mas só bastante mais tarde do que da primeira vez. 61 Apesar destes avisos sobrenaturais, ainda por uma terceira vez a sua cobardia o impediu de cumprir a promessa de se encerrar no convento, e
  • 34. 34 tornou a adiar o ingresso definitivo. 62 Tal como nas conjunturas anteriores, deixou de ver, entrou na igreja, prostrou-se diante do altar da Mãe de Deus, chorou amargamente, reiterou a costumada promessa do efectivo ingresso na Ordem – e voltou a poder ver, se bem que só muito mais tarde que das outras vezes. 63 Mas às três foi de vez: convencido de que tinha de se mostrar agradecido a Deus e à Santíssima Virgem pelas três advertências prévias, que tão dolorosas experiências lhe mostravam, cumprindo o prometido, contou aos irmãos todas as peripécias ocorridas com ele, e cumpriu a promessa de entrar definitivamente na Ordem. 64 Mesmo assim, após o ingresso não depôs por completo o homem velho nem se adaptou à vida comunitária da Ordem. 65 A pretexto de necessidade, andava sempre calçado, comia com os doentes na enfermaria, queria dormir sempre em colchões, e no Inverno depois da Missa corria logo para a cozinha a aquecer-se. 66 Durante cerca de dois anos os irmãos toleraram, não sem grande desagrado, este seu procedimento tão pouco exemplar, sobretudo pelo facto de ele no mundo ter sido um cavalheiro muito honrado. Eis senão quando, uma bela noite sonhou que S. Francisco lhe apareceu e lhe fez um estranho pedido: 67 «Rogo-te, meu filho, que me transportes um bocadinho para outro sítio». Ele recusou-se, alegando como desculpa: «Não eu não tenho forças para pegar em ti, por ser fraco e doente, e tu seres grande e pesado». Contudo, perante a insistência do Santo em que o levasse, o nosso protagonista recorreu ao expediente de o fazer deitar, e puxando-lhe pelas pernas, assim o levar de rastos com a cabeça a roçar pelo chão. 68 S. Francisco bem gritava: «Assim não! Estás-me a magoar! Isso não é maneira de me transportares!» Mas enquanto o Santo assim arrastado não deixava de se queixar, o outro replicava: «Doutra forma não consigo deslocar-te». 69 Na manhã seguinte, depois da missa entrou na cozinha como de costume, e começou a contar o sonho que tivera. 70 Depois de o ouvir, um discreto irmão comentou em resposta: «É tal qual como sonhaste. Estás a fazer sofrer e a levar mal S. Francisco, ou seja a sua Ordem, pondo-a de rastos com a tua vida terrena e mesquinha, essa tua vida carnal e desordenada. 71 Ao ouvir a interpretação que o irmão dera do seu sonho, reconheceu que ele tinha razão, meteu a mão na consciência, pôs de parte agasalhos de peliça e calçado, deixou de frequentar a enfermaria e de usar almofadas de penas, assumiu a vida comunitária da Ordem, de que até ali não fizera caso, converteu-se, enfim, noutra pessoa, num religioso exemplar e num óptimo pregador. 72 Muito embora por negligência tivesse
  • 35. 35 adiado a conversão, não pôs de parte em absoluto o seu propósito de se fazer frade. 73 Mas a narrativa dum terrível exemplo para os recalcitrantes contra a vocação à Ordem que se obstinam e olham para trás, deve-se, ao que consta, ao irmão padre João de Inglaterra, que depois de ter leccionado teologia em Paris foi nomeado arcebispo de Cantuária. 74 A pessoa a quem ele se referia era um clérigo de Paris que prometera ingressar na Ordem dos Frades Menores, mas pouco antes da tomada de hábito recebeu da sua terra uma carta, com a notícia de ter sido nomeado cónego de certa igreja catedral. 75 Desistiu imediatamente de entrar na Ordem, e depois de ter exercido o canonicato durante pouco mais de meio ano na sua igreja, foi acometido de grave enfermidade. 76 Aconselhado pelos cónegos seus colegas a confessar-se, sempre se recusava a fazê-lo, como um desesperado. 77 Resolveram então os cónegos pedir aos irmãos Menores para irem visitar o doente, a ver se o convenciam a confessar-se. Quando eles chegaram, como já o encontraram muito debilitado, recomendaram-lhe com todo o empenho que fizesse uma confissão geral dos seus pecados, segundo o costume de qualquer bom cristão e verdadeiro católico. 78 Mas ele ripostou- -lhes: «Não percais tempo, irmãos, a tentar convencer-me disso. Eu já estou condenado. 79 Antes de vós virdes ter comigo, fui levado à presença de Deus, que me mostrou um rosto terrivelmente ameaçador e me disse: Chamei por ti, e não me respondeste77 , por isso vai para as penas eternas». 80 Ao pronunciar estas palavras, diante de todos exalou o último suspiro. 81 Na verdade, os juízos de Deus são como o abismo profundo78 e ninguém consegue saber porque é que Deus a uns salva com misericórdia e a outros condena com justiça. 82 Mas como é o Senhor quem pesa os corações79 , as suas sentenças não se baseiam em coisas exteriores, como as dos juízes humanos: ele vê, sem se enganar, o mais recôndito dos corações. 83 Tanto para enaltecer o estado religioso como para incitar à perse- verança, não quero deixar de referir um episódio de que tive conhecimento em Paris. 84 Abraçou aí a Ordem dos Frades Menores um doutor, cuja mãe o tinha criado à custa de esmolas e sustentado com muita solicitude apesar da sua pobreza. 85 Muito penalizada com a separação do filho, que considerava perdido para sua desafogada subsistência material, a mãe foi ter com ele, a ver se o convencia a desistir e voltar à situação anterior. 86 Mostrou-lhe o ————— 77 Cfr. Pr 1,24. 78 Cfr. Sl 36,7. 79 Cfr. Pr 16,2.
  • 36. 36 peito e os seios com que o amamentara, lembrando-lhe os enormes sacrifícios feitos e privações sofridas para o criar, e apresentando-lhe ainda outros argumentos no sentido de ele deixar a Ordem. 87 O filho teve pena da mãe, ficou abalado e resolvido a abandonar a Ordem no dia seguinte. 88 O plano de tal procedimento não provinha de malícia da sua parte: era uma cilada traiçoeiramente urdida pelo demónio sob a aparência de piedade. 89 E assim, como era seu costume, foi rezar diante da imagem dum crucifixo, dizendo a Deus: «Não quero deixar-vos, Senhor, só pretendo prestar ajuda à minha mãe, que cuidou de mim no meio de tanta penúria». Enquanto assim orava, olhou para a imagem do crucifixo e viu sangue a escorrer da chaga do peito de Cristo, e ouviu a voz do Senhor a dizer: «Eu tratei de ti com mais carinho do que a tua mãe e com o meu sangue te redimi; não deverias deixar-me por amor da tua mãe». 89 Abalado e estupefacto com o sangue que vira a escorrer e com a voz que ouvira, venceu a tentação e permaneceu na Ordem, pois não é sem razão que Cristo diz no Evangelho a respeito da mãe: Quem ama o pai ou a mãe mais que a mim, não é digno de mim80 . 91 Giratero de Barama, monge da Ordem beneditina, não podendo viver no seu mosteiro, como desejava, foi por isso transferido para outro mosteiro, onde no entanto também não conseguiu a tranquilidade espiritual por que suspirava. Dedicou-se então totalmente à oração, recitando todos os dias o saltério completo, associando à oração o jejum, para que o Senhor se dignasse mostrar-lhe o caminho da salvação, pelo qual melhor o pudesse servir. 92 Depois de muitos dias passados nesse regime de oração e jejum, viu em sonhos S. Francisco, e diante dele o texto do Evangelho, e ao pé do Evangelho a Regra. Admirado o monge de a Regra estar tão colada ao Evangelho, 93 perguntou o que significava aquilo, e o Santo explicou-lhe: «A Regra está tão perto do Evangelho, por ser fundada sobre o Evangelho». 94 Continuando o monge durante muitos dias a orar e a jejuar, ansioso por saber, se fosse da vontade de Deus, a que estado religioso é que a visão se referia, suplicava ao Senhor que se fosse como ele julgava, a visão se repetisse. 95 E enquanto assim orava, apareceu-lhe de novo S. Francisco com o Evangelho e a Regra, como da primeira vez. 96 Não obstante estes esclarecimentos, o piedoso monge reiterando a prática costumada de orar e jejuar, cada vez se sentia mais ansioso por ter a certeza de que o estado religioso apresentado nessas visões seria o mais agradável a Deus. 97 E tornou-lhe a aparecer mais uma vez S. Francisco, tal qual como nas ————— 80 Mt 10,37.
  • 37. 37 aparições anteriores, como que a dar-lhe a entender que queria recebê-lo na Ordem. 98 Mas o monge padecia duma grave doença na tíbia, e por isso disse a S. Francisco: «Os irmãos não iriam acreditar em mim nem me receberiam». Replicou o Santo: «Da tíbia estás desde agora curado, e isso te servirá de testemunho». 99 Tal como sonhara, ao acordar verificou que estava curado. 100 Procurou então entrar na Ordem, mas como o Ministro, pouco impressionável, adiasse a recepção, contou-lhe as visões que tivera e mostrou-lhe o resultado da cura obtida. 101 Recebido desta forma na Ordem, foi um irmão duma vida religiosa exemplar, morando santamente na Província de Colónia. 102 Foram irmãos dessas terras que deram estas informações. 103 Soube também dum caso contado por certo irmão, que se sabe ter sido muito considerado na Ordem, e me foi transmitido por outros irmãos. Um religioso da Ordem de Cister, dum mosteiro da diocese de Tolosa, veio ter com o irmão acima referido, a pedir-lhe para ser aceite na Ordem de S. Francisco. 104 Disse-lhe ele que um irmão falecido do seu mosteiro, que em vida fora seu companheiro predilecto, tal como na última doença antes da morte lhe tinha prometido invocando a Deus como testemunha, veio uma ocasião de noite chamá-lo para o capítulo dos irmãos leigos. 105 Pela afeição que lhe tinha, quis abraçá-lo, mas o defunto objectou: «Não me podes tocar nem sequer ver». 106 Perguntando-lhe o irmão se tinha algo a contar e como passava, respondeu: «É perigoso viver; quanto a mim, serei feliz». 107 «Então ainda não és feliz?» – perguntou o outro. «Ainda não!» – foi a resposta, dando-lhe assim a entender que ainda precisava de sufrágios para se purificar. 108 Insistiu o irmão em interrogá-lo sobre o estado tanto da sua Ordem Religiosa como de outras Ordens, e mais em concreto sobre algumas pessoas suas conhecidas, tanto consagradas como seculares. A resposta foi que de algumas Ordens Regulares eram muitos os condenados, e das pessoas referidas em particular, todas, com raras excepções, eram também condenadas. 109 E acerca de alguns disse muitas coisas íntimas a explicar a causa das respectivas condenações. 110 Mas eu é que não vou propalar as circunstâncias que ele referiu como causa da condenação de muitos, porque tudo aquilo que desacredita os outros é melhor silenciá-lo, a não ser que haja necessidade de o dizer. Todas as Ordens Religiosas são boas, desde que se cumpram as respectivas Regras. 111 Interrogado o defunto acerca dos irmãos Menores, declarou que ainda não tinha visto nenhum condenado, e os que tinham descido ao purgatório não tardariam a voar
  • 38. 38 para o céu, purificados. 112 Por fim, exortou o companheiro à perseverança e aconselhou-o a precaver-se de certos defeitos que ele tivera. 113 Assim, com respeito ao nosso assunto, em poucas palavras enalte- ceu consideravelmente a Ordem Franciscana. 114 Se é legítimo avaliar a sin- ceridade duma vida consagrada pela excelência do fim atingido, esse fim é prova evidente do mérito prévio. 115 E não é de admirar que seja fácil e rápida a passagem pelo purgatório para aqueles que neste mundo levaram uma vida de pureza, e suportando pelo Senhor frio e desnudez e sofri- mentos sem conta, fazem na terra o seu purgatório. 116 Aqui fica também um testemunho insuspeito de ódio ou fingida simpatia para com a Ordem, testemunho aliás vindo do inferno, mas con- dizente com visões vindas do céu. 117 Conta-se que na região dos Bascos havia um irmão muito virtuoso, espanhol de origem, que fora baptizado com o nome de Gonsalvo e professara na Ordem de Cister com o nome de António. Estava ele em devota oração quando lhe apareceu uma rapariga, dotada de feições encantadoras e embelezada com maravilhosos adornos, que o convidou a casar com ela. 118 Ele ripostou com aspereza: era um monge que fizera voto de castidade, por isso não podia contrair matrimónio. 119 «Por isso mesmo – replicou ela – deves tomar-me por esposa. Tenho contigo esta conversa em representação da Ordem Religiosa dos irmãos Menores, e a beleza e os adereços que vês em mim exprimem os dessa Ordem. Quanto a votos, entrando nela, com ela te desposarás e nela te salvarás». 120 Dito isto, desapareceu. 121 Noutra ocasião esse mesmo religioso viu S. Francisco e com ele outro santo irmão de nome Guilherme, cujos restos mortais, viveiro de milagres, jazem na igreja de S. Francisco. 122 Despertou-lhe também a curiosidade um leito maravilhoso, que o santo irmão Guilherme, por ele interrogado, disse que era exactamente o leito de S. Francisco. 123 «Então – disse o António – também eu quero deitar-me nele, para poder dizer que estive deitado numa cama tão encantadora». 124 Depois desta visão preten- diam os monges elegê-lo para Abade, mas a sua decisão foi entrar na Ordem dos Frades Menores, que ele interpretou como sendo o tal leito de S. Francisco. 125 Continuando os monges a reclamá-lo por meio da Cúria Romana, alegando entre outras razões que na Ordem de Cister ainda havia mais austeridade que na de S. Francisco, consta que este terá dito: «Mas eles não foram suplicantes e a pé à Cúria romana como eu fui». 126 Os monges foram despachados pelo Sumo Pontífice de mãos a abanar, e o irmão continuou na Ordem que escolhera. E foi um irmão de tão intensa
  • 39. 39 piedade, que, segundo se diz – o que é deveras admirável! – Tinha o condão de derramar lágrimas a seu bel-prazer, mesmo entre a barafunda de pessoas que estivessem ao pé dele. 127 Nunca lhe saía da boca nenhuma palavra inútil; mas de Deus falava tão amiúde e com tal entusiasmo que por vezes parecia estar ébrio, apesar de nunca beber nada que pudesse embebedar, e vinho só bebia o do sacrifício do Senhor. 128 Era zeloso em extremo pelo bem das almas, e por isso não se dedicava incansavelmente à pregação e a ouvir confissões. 129 Ensinava os irmãos a confessarem-se bem, a rezarem com fervor, a evitarem palavras ociosas, porque se assim procedessem, progrediriam na virtude mais do que seria de esperar. 130 Os seus feitos e as graças miraculosas por ele obtidas exigiriam muito tempo para se descreverem. 131 Agora vamos tratar da vocação [à Ordem]. Com certeza que é benquista de Deus uma Ordem Religiosa à qual ele mesmo chama com algum atractivo especial, Ordem que ele começou por fundar em persona- lidades perfeitas como Sião sobre o monte santo81 e depois ornamentou com pessoas ilustres como pedras polidas. 132 Entraram nela bispos, abades, arquidiáconos e famosos mestres de teologia; bem como príncipes, nobres e um sem-número de personagens notáveis pela fidalguia ou pela ciência – dir-se-ia mesmo a flor da fidalguia e da ciência. 133 Só para dar um ou outro exemplo, pondo de parte muitos mais, menciona-se o irmão Alexandre, clérigo e teólogo, que passa por ser o mais famoso mestre do seu tempo; e o já mencionado rei e imperador D. João, guerreiro valoroso, que de impe- rador passou a ser irmão Menor. Foi assim que o Senhor concretizou em Francisco aquele dito profético: Eu irei diante de ti para te aplanar os caminhos82 . 134 Seria quase impossível contar o sem-número de célebres e emi- nentes doutores de teologia da Ordem. 135 Mas por outro lado não se pode deixar de louvar a Cristo, que exalta os humildes, pelo facto de pertencer à Ordem dos Menores o lidador mais brioso e leal, bem como o mais famoso mestre de teologia e filosofia, 136 e ainda o mais conceituado pregador que é o irmão chamado João de Rupela, notável pela religiosidade, pela discrição e pela ciência, um homem de tão extraordinárias qualidades que ultrapassou a sagacidade dos seus próprios mestres criando na Faculdade de teologia as cadeiras de eloquência e de declamação, e ensaiou requintados ritmos de ————— 81 Cfr. Sl 87,1. 82 Cfr. Is 45,2.
  • 40. 40 elocução. 137 Tanto ele como o referido Alexandre deixaram escritos magistrais e muito úteis. 138 Depois dele veio o irmão Odo Rigaldo, um padre respeitável, ilustre por nascimento e mais ilustre ainda pela conduta, que foi pregador famoso, mestre de teologia, e depois arcebispo da diocese de Ratisbona. 139 Contrariado e quase constrangido a aceitar o bispado, brilhou no governo da diocese com o mesmo resplendor com que anteriormente brilhara na Ordem, a ponto de ser apresentado como um modelo de Prelados. 140 A segunda Ordem fundada por S. Francisco é a das virgens e senhoras com voto de castidade, e a sua característica fundamental é a de em clausura servirem a Deus em perpétuo silêncio e mortificação da carne. 141 A primeira flor desse jardim foi Santa Clara, devota discípula de S. Francisco. 142 Desde que o Santo viu que elas seguiam fielmente as suas orientações vivendo em extrema pobreza, prometeu-lhes o seu auxílio e o dos irmãos, enquanto no seu regime continuassem a professar a pobreza. 143 E sempre, até ao dia de hoje, Santa Clara e o seu mosteiro perseveraram no seu projecto de pobreza. 144 A terceira Ordem é a dos irmãos e irmãs de penitência, aberta tanto a clérigos como a leigos, tanto a virgens como a pessoas viúvas ou casadas, sendo o seu objectivo viverem honestamente em suas casas, dedicarem-se a obras de beneficência e evitarem a vaidade do mundo. 145 Por isso entre eles aparecem por vezes nobres militares e outros personagens que antes eram ilustres aos olhos do mundo, onde usavam preciosas roupas de pele, mas trocaram essas vestes e cavalgaduras luxuosas por outras mais humildes, a conviverem modestamente com indigentes, de sorte que não se pode pôr em dúvida de que são verdadeiros Religiosos. 146 A princípio era-lhes atribuído como Ministro um irmão [Menor], mas agora são governados por Ministros próprios, mas de modo a estarem sempre sob os cuidados, os conselhos e os auxílios dos irmãos Menores, pois são seus coirmãos, filhos do mesmo Pai espiritual. 147 Na redacção da regra e forma de vida desses irmãos da Ordem Terceira interveio o senhor papa Gregório de santa memória – que na altura ainda desempenhava um ofício de menor categoria – o qual, afeiçoado a S. Francisco e em íntima familiaridade com ele, supria com seus conhecimentos jurídicos aquilo que faltava ao Santo. 148 No entanto, São Francisco não se dava por satisfeito com as suas três Ordens, e procurava indicar um caminho de salvação e de penitência a todo o género humano.
  • 41. 41 149 Por isso, quando um determinado pároco lhe disse que gostaria de ser seu irmão, mas continuando na sua actividade paroquial e no mesmo modo de viver e de vestir, consta que o Santo lhe impôs a obrigação de dar anualmente por amor de Deus o que dos rendimentos da igreja tinha amealhado em anos anteriores. 150 Foi assim que o Senhor fez dele um grande povo83 e fez repousar sobre a sua cabeça a bênção de todos os homens84 . Capítulo VIII A morte e a trasladação de S. Francisco 1 Chegado ao termo da sua vida terrena, o santo Pai foi em paz ao encontro de Cristo, no ano 1226 da Encarnação do Senhor, com a idade de 45 anos85 . Contava quase 25 anos quando se deu a sua conversão da vida mundana, 2 e durante dois anos passou a viver uma vida eremítica86 . 3 Só no terceiro ano após a conversão fundou a Ordem dos Frades Menores e vestiu o hábito que por inspiração celeste escolhera. Ocorreu isso na basílica da Mãe de Deus e sempre Virgem Maria, igreja desde há muito conhecida por Santa Maria dos Anjos, que ele acarinhava com singular predilecção. Transcorridos entretanto 20 anos após a sua conversão, no mesmo local onde tivera um início auspicioso a sua vida religiosa, teve também o seu fim glorioso87 . 4 E não só ele previu mais ou menos o tempo do seu desen- lace, como até predisse o dia exacto em que deixaria este mundo. 5 Entre outros que no momento exacto da sua morte o viram a subir ao céu, apareceu a um santo irmão anónimo que se encontrava em êxtase; ia revestido de dalmática88 vermelha, incorporado como figura eminente num imenso e belo cortejo de glória indescritível89 . 6 Ao chegar ao seu aprazível ————— 83 Cf. Gn 12, 2. 84 Sir 44, 23. 85 Cf. TC 68, 1; 1C 88, 4. 86 Cf. 1C 21, 5; TC 21, 2; 25, 1. 87 Cf. 1C 21, 1-4; 88, 1; LM 3. 8, 9. 88 Paramento próprio da ordem do diaconado, usado até meados do século XX. Como S. Francisco era diácono – pois por humildade nunca quis ascender à ordem de presbítero – esta visão mostra-o a encaminhar-se para a liturgia celeste devidamente paramentado. (Nota do tradutor). 89 Cf. 2C 219,1.
  • 42. 42 destino, entrou no grandioso e delicioso palácio celestial, onde se viu cercado da gloriosa comitiva de muitos irmãos. 7 Aquando do seu passamento esteve também presente uma ilustre dama de Roma, Jacoba de Settesoli, uma senhora extremamente dedicada ao Santo, que viera acompanhada de considerável comitiva, condizente com a sua categoria social, e tratou do aparato conveniente para um funeral tão importante90 . 8 Aliás, o próprio Santo, que tinha sido seu director espiritual e que pela virilidade das suas virtudes lhe chamava “irmão Jacoba”, já tinha pedido para a chamarem, com desejo de a ver antes de morrer. 9 Mas quando o mensageiro estava mesmo pronto para sair, inopinadamente se ouviu à porta dos irmãos o grande estrépito dos criados e dos cavalos da sua devota discípula, que vinha visitar o seu ilustre mestre e pai espiritual. 10 É claro que o Santo concluiu que fora o Senhor quem lha tinha enviado, e ficou muito contente de a ver, e pela alegria que a visita lhe proporcionou, passou a respirar melhor, e deu a impressão de que ainda viveria um pouco mais. 11 Por isso, ela resolveu mandar embora parte da comitiva, e ficar apenas com poucas pessoas, na expectativa do desenlace do Santo. 12 Foi então que ele lhe prognosticou: «Eu vou partir no sábado ao fim da tarde; tu podes regressar a Roma no dia seguinte com a tua comitiva». 13 Exactamente no dia e na hora que predissera, foi o Santo recebido pelo Senhor para morar com ele na mansão eterna. 14 Choraram por ele os irmãos, sentindo-se desamparados do seu piedoso Pai, e choraram também por ele as virgens consagradas a Cristo, que lhe tinham seguido os passos, lamentando-se lacrimosamente: «Porque é que nos deixas inconsoláveis, ó Pai, e a quem vais entregar as tuas desoladas filhas?» 15 O seu santo corpo foi sepultado em Assis na igreja de S. Jorge, onde agora fica o mosteiro de Santa Clara91 . 16 Porém, passados poucos anos, foi trasladado com grande pompa e veneração para a igreja que em sua honra foi construída junto às muralhas da cidade num local chamado “a colina do paraíso”, por determinação do senhor Papa Gregório IX, que para a sua construção tinha assentado a primeira pedra. Para essa cerimónia foi tão numerosa a multidão de gente vinda das povoações vizinhas, que não couberam na cidade e tiveram de se acomodar como rebanhos em bandos espalhados pelos campos92 . 17 Para essa solene trasladação esperava-se e tinha-se como certa a presença do senhor Papa Gregório; mas tornando-se ————— 90 Cf. 3C 37; LP 101. 91 Cf. LM 15. 5,4. 92 Cf. 2C 220a, 1-3;
  • 43. 43 isso impossível por causa de assuntos urgentes da Igreja, mandou delegados para o representarem, 18 com cartas credenciais em que explicava a causa da sua inesperada ausência e consolando com afecto paternal os filhos do Santo, deu-lhes a conhecer o milagre de um morto ressuscitado por intercessão de S. Francisco. 19 Por meio dos mesmos delegados pontifícios enviou para a cerimónia uma preciosa cruz de ouro, requintada obra de joalharia, mas mais valiosa ainda do que por ser de ouro e ornada de pedras preciosas, por conter uma relíquia da cruz do Senhor93 . 20 Além disso enviou também por eles ornamentos e vasos sagrados destinados ao serviço religioso, bem como ricos paramentos para circunstâncias mais solenes. 21 Além disso atribuiu outros valiosos donativos para a construção da basílica e para as despesas da solenidade. A trasladação teve lugar no dia 25 de Maio do ano da graça 123094 . Capítulo IX Recensão de alguns milagres I – Inválidos reabilitados 1 Nunca o Senhor deixou de exaltar o seu Santo com maravilhosos e prodigiosos milagres, nem em vida nem depois da morte. Ficam aqui ape- nas alguns exemplos. Certa menina andou durante um ano com o pescoço torcido duma forma tão monstruosa que a cabeça lhe ficava quase colada a um ombro, e devido a essa posição defeituosa mal podia respirar de lado. Trazida ao sepulcro do Santo e colocada a cabeça deformada da criança por debaixo da urna, instantaneamente o pescoço e a cabeça tomaram a posição correcta. Espantada com mudança repentina, a criança começou a fugir e a chorar. No sítio do ombro onde a cabeça andara encostada ficou no entanto uma concavidade, porque a deformidade fora bastante prolongada95 . 2 Nicolau de Folinho, devido a ter a perna esquerda tolhida, sentia dores tão agudas que com os gritos que dava mal podia deixar dormir a vizinhança. Como não havia medicamentos que o curassem, confiou-se a S. Francisco e fez-se transportar ao seu túmulo. Passando aí uma noite em ————— 93 Cf. TC 72, 3. 94 Cf. LM 15.8,1. 95 Cf. 1C 127
  • 44. 44 oração, descontraiu-se-lhe a perna e já pôde regressar a casa sem muletas e louco de alegria96 . 3 Um menino tinha uma perna tão deformada que o joelho estava colado ao peito e o calcanhar à coxa. Trazido ao mausoléu de S. Francisco, ficou subitamente curado e de perfeita saúde97 . 4 Uma menina de Gúbio, depois de ter durante um ano as mãos para- líticas, perdeu também o exercício de todos os outros membros. Foi com uma imagem de cera levada ao túmulo de S. Francisco, onde perseverou durante oito dias, até que por fim todos os membros ficaram aptos a serem devidamente utilizados98 . 5 Outro rapazinho de Montenegro, com paralisia da cintura para baixo, e por isso impossibilitado de se sentar e de andar, passou vários dias deitado diante da porta da igreja onde repousa o corpo do Santo, até que um belo dia o levaram para dentro da igreja, e bastou-lhe tocar no túmulo do Santo para ficar são e salvo. Contava ele que no momento em que estendia a mão para receber umas peras que tinha a impressão de lhe estarem a ser oferecidas, um rapaz vestido com o hábito franciscano, que se encontrava em cima do sepulcro, lhe pegou na mão levantada e o ergueu, e depois de o ter curado e trazido para fora, desapareceu99 . 6 Um outro natural de Gúbio, cujo filho era tão estropiado que tinha as pernas completamente aderentes às nádegas, tendo-o trazido ao sarcófago do santo Pai, pôde reavê-lo são e salvo100 . 7 Certa menina da região de Nórcia, vítima de infindáveis sofrimentos, chegou a ser considerada como dominada pelo demónio, pois com frequência se punha a ranger os dentes, feria-se a si própria, não evitava obstáculos onde poderia cair nem tinha medo de graves situações de perigo. Em tão lamentável estado, além de ter perdido a fala e ter ficado paralítica, os pais transportaram-na a Assis montada num jumento, presa a um catre. E aconteceu que no dia da Circuncisão101 do Senhor estava ela prostrada diante do altar do Santo, quando sem mais nem menos vomitou qualquer ————— 96 CF. 1C 129 97 Cf. 1C 130. 98 Cf. 1C 134. 99 Cf. 1C 133. 100 Cf. 1C 134. 101 A festa da Circuncisão de Jesus, suprimida aquando da última grande reforma litúrgica, celebrava-se dantes no dia 1 de Janeiro – oito dias depois do Natal – em conformidade com o relato do evangelho de S. Lucas: «Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do Menino…» (Lc 2,21). (Nota do tradutor).
  • 45. 45 coisa esquisita… Levantou-se prontamente, beijou o altar, e sentindo-se curada de todos os padecimentos, prorrompeu em louvores a Deus e ao Santo. 8 Rigomagno, da diocese de Volterra, mal podendo sequer rastejar devido a uma medonha elefantíase, e abandonado por isso pela própria mãe, encomendou-se a S. Francisco e de imediato foi salvo do seu mal102 . 9 Na mesma diocese, duas mulheres consanguíneas eram tão entreva- das que mal se podiam mexer sem serem amparadas por outras pessoas, e já tinham as mãos esfoladas por tão esforçadamente se servirem delas para se movimentarem. Pois com uma simples promessa recobraram a saúde103 . 10 Tiago de Poggibonsi padecia duma cifose tão acentuada e disforme que andava com a cabeça quase colada aos joelhos. Depois de a mãe o ter levado a uma capela de S. Francisco e rezado ao Senhor suplicando a cura do filho, teve a felicidade de o trazer para casa são e salvo104 . 11 Na povoação de Vicalvi, pelos méritos do santo Pai a mão mirrada duma mulher ficou tão normal como a outra105 . 12 Na cidade de Cápua uma mulherzinha que prometera ir pessoal- mente visitar o sepulcro de S. Francisco, mas esquecida da promessa devido a qualquer ocorrência da vida de família, ficou repentinamente hemiplégica, completamente paralisada do lado direito. Não conseguindo virar a cabeça nem mexer o braço para lado nenhum, com seus brados constantes devidos às dores aflitivas, não deixava sossegar os vizinhos. Adregando de passarem perto da porta da doente dois irmãos, a pedido dum sacerdote entraram em casa dela. Confessando-se da promessa por cumprir e recebendo deles a absolvição, no mesmo instante ficou sã; e escarmentada com o castigo sofrido, deu-se pressa em cumprir o que prometera106 . 13 Enquanto dormia à sombra duma árvore, Bartolomeu de Nárni perdeu por completo a capacidade de usar um dos membros inferiores. Mas por ser extremamente pobre, compadeceu-se dele Francisco, que tanto tinha amado os pobres, e aparecendo-lhe em sonhos, mandou-o ir a determinado sítio. O desgraçado tentou arrastar-se para lá, mas ao desviar-se do caminho correcto, ouviu uma voz a dizer-lhe: «A paz esteja contigo! Eu sou aquele a quem te confiaste». E guiou-o para o local indicado. Aí o pobre estropiado ————— 102 Cf. 3C 168. 103 Cf. 3C 169. 104 Cf. 3C 170. 105 Cf. 3C 171. 106 Cf. 3C 172.
  • 46. 46 teve a impressão de que alguém lhe poisou uma mão no pé e outra na perna, e lhe restaurou esses membros inválidos. Tratava-se dum indivíduo de idade avançada, deficiente havia seis anos107 . 14 Havia no condado de Nárni certo rapazinho com uma perna de tal maneira deformada, que não conseguia andar senão apoiado em duas muletas. Atingido por essa invalidez desde a infância, e sem sequer conhe- cer o pai nem a mãe, vivia de esmolas mendigadas. Também ele foi curado da sua invalidez pelos méritos de S. Francisco, de modo a poder aonde lhe apetecesse sem mais precisar de arrimo108 . 15 Na povoação de Fano havia um estropiado que não conseguia separar das nádegas as pernas cheias de úlceras, exalando um cheiro tão pestilencial que nem os enfermeiros o queriam receber no hospital. Quem lhe valeu foi S. Francisco, cuja misericórdia ele invocou, e por cuja inter- cessão teve a felicidade e a alegria de se ver liberto do seu infortúnio109 . 16 Na cidade de Nárni vivia uma mulher com uma das mãos mirradas havia oito anos, sem poder fazer com ela absolutamente nada. Até que numa visão lhe apareceu S. Francisco e a curou, esticando-lhe a mão e tornando-a igual à que estava sã110 . II – Invisuais que recuperaram a vista 17 Chamava-se Sibíla uma mulher que durante muitos anos vivera sem ver nada, quando, triste com a sua cegueira, foi conduzida ao sepulcro do homem de Deus, onde recuperou a visão perdida e donde pôde regressar a casa esfuziante de alegria e júbilo111 . 18 Em Vicalvo, povoação da diocese de Sora, [cidade do Lácio], uma menina, cega de nascença, foi levada pela mãe a um santuário de S. Fran- cisco, e aí, por invocação do nome de Cristo e pelos méritos de S. Fran- cisco, adquiriu a faculdade de ver, que nunca antes experimentara112 . 19 Um cego de Spelo, trazido para diante do túmulo do Santo, recu- perou o sentido da vista que perdera havia muito tempo113 . ————— 107 Cf 1C 135. 108 Cf. 1C 128; 3C 161. 109 Cf. 1C 141; 3C 70. 110 Cf. 1C 141. 111 Cf. 1C 136. 112 Cf. 3C 171. 113 Cf. 1C 136.
  • 47. 47 20 Na cidade de Arezo, uma mulher que havia oito anos deixara de ver, readquiriu a visão na igreja de S. Francisco, construída perto da cidade114 . 21 Ainda na mesma cidade S. Francisco curou da cegueira o filho duma mulher pobrezinha que a mãe tinha encomendado ao Santo115 . 22 Em Poggibonsi, na diocese de Florença, uma mulher invisual, por revelação tida numa visão, começou a frequentar um santuário de S. Fran- cisco. E uma ocasião em que para lá foi conduzida e se prostrou diante do altar a implorar misericórdia, de imediato recobrou a vista, e regressou a casa sem precisar de ninguém a guiá-la116 . 23 Havia em Camerino uma mulher completamente cega do olho direito. Os seus pais, fazendo uma promessa, puseram-lhe por cima da vista afectada de cegueira um pano que tinha estado em contacto com S. Francisco, e assim ela recuperou a visão que tinha perdido. 24 Uma outra mulher de Gúbio, fazendo uma promessa semelhante, pôde tornar a ver a luz. 25 Também um invisual de Assis, cinco anos depois de ter perdido o sentido da vista, voltou a ver, ao tocar no túmulo de S. Francisco. 26 A Albertino de Nárni, que perdera o sentido da vista e ficara com as pálpebras pendentes até às maçãs do rosto, bastou-lhe encomendar-se a S. Francisco para tornar a ver a luz e ficar curado117 . III – Curas de surdos e mudos 27 Certa mulher da região da Apúlia há muito perdera a fala e sentia mesmo dificuldade em respirar. Uma noite, enquanto dormia, sonhou que a Santíssima Virgem Maria lhe apareceu e a aconselhou: «Se queres ficar sã, vai à igreja de S. Francisco de Venúsia, e aí obterás a tão almejada cura. Lá foi a mulher à referida igreja do Santo, e implorando do fundo do coração o seu valimento, imediatamente vomitou, diante de todos os que a viam, pedaços de carne, e ficou maravilhosamente curada118 . ————— 114 Cf. 3C 132. 115 Cf. 3C 133. 116 Cf. 3C 170. 117 Cf. 1C 136. 118 Cf. 3C 126.