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1
CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE
FRANCISCANA
23
Editorial Franciscana
BRAGA - 2003
2
Ficha Técnica
Coordenador:
Fr. José António Correia Pereira, ofm
Editorial Franciscana
Apt. 1217
4711-856 BRAGA
Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735
E-mail: edfranciscana@editorialfranciscana.org
Edição on-line no site:
www.editorialfranciscana.org
Capa:
Desenho de Fr. José Morais, ofm
Edição:
Editorial Franciscana
Propriedade:
Província Portuguesa da Ordem Franciscana
Depósito Legal: 14549/94
I. S. B. N.: 972-9190-46-1
Caderno 23 - 2003
Cada número dos Cadernos é vendido avulso
3
CLARA DE ASSIS, A “MULHER EVANGÉLICA” DO SÉCULO XIII
Ir. Maria Otília Fontoura osc
A MENORIDADE EM CLARA DE ASSIS
Marco Bartoli
ALEGRIA E PAZ
Fr. Timothy Radcliffe op
A REGRA, UM CAMINHO A SEGUIR
SEM CONCESSÕES AO ESPÍRITO DO MUNDO
Mensagem de João Paulo II às irmãs Clarissas,
por ocasião dos 750 anos da morte de Santa Clara de Assis
5
1 — Estudos
CLARA DE ASSIS,
A “MULHER EVANGÉLICA” DO SÉCULO XIII
Ir. Maria Otília Fontoura osc
6
CLARA DE ASSIS,
A “MULHER EVANGÉLICA” DO SÉCULO XIII
1. Vocação e missão de Clara
1.1. Vocação
1.2. Missão
2. São Damião: ideal e desafio
2. 1. Uma fraternidade evangélica
2. 2. O trabalho como expressão de pobreza
2. 3. Vida de oração e contemplação:
– Oração litúrgica e comunitária
– oração pessoal
2. 4. Vida eucarística: adoração e louvor
2. 5. Em fraterna amizade
2. 6. Em comunhão com a humanidade sofredora
3. Francisco e Clara: uma vocação comum, um mesmo carisma, uma
mesma família religiosa
7
1. Vocação e missão de Clara
1.1. Vocação
Em 1207, Francisco ajoelhava diante do crucifixo bizantino de São
Damião. Estando em oração, sentiu que Jesus lhe dizia:
―Francisco, vai e repara a minha Igreja que ameaça ruir‖1
.
Não compreendendo, então, o mandato do Senhor, lançou-se na
reconstrução da ermida. Quando, algum tempo depois, pedia a colabora-
ção dos que passavam, uma palavra profética saiu da sua boca:
―Vinde e ajudai-me na reconstrução de São Damião, porque um dia
hão-de morar aqui umas senhoras, cuja fama e vida santa glorificará o Pai
celeste em toda a Igreja‖2
. Francisco, que nessa altura ainda não tinha
irmãos, acabava de anunciar de forma profética, sob a acção do Espírito, a
Segunda Ordem Franciscana e a missão de Clara e suas Irmãs: ser
claridade, ser como cidade edificada na montanha, manifestando, com
a vida, a glória do Pai celeste.
Clara era ainda menina, quando Francisco, uns doze anos mais velho
do que ela, dá início à sua vida evangélica. Na Quaresma de 1211, a
jovem, que desde há algum tempo prestava atenção ao viver de Francisco,
acompanhada de sua mãe e irmãs, ouve as suas pregações em São Rufino.
Sensibilizada pelo ardor com que o jovem fala e convida à conversão
a Cristo e aos irmãos, a uma profunda conversão interior, pede para falar
com ele. Depois de alguns encontros, como refere Celano, Clara Offre-
duccio está decidida a seguir o mesmo caminho que Francisco e seus
Irmãos vão trilhando. O movimento franciscano encantava a jovem.
Contudo, a mentalidade medieval referente à mulher, condicionava as
suas opções. Sabe-se, porém, que dos grupos pauperístas, como os
valdenses, cátaros, humiliatas e outros, faziam parte mulheres, o que a
Igreja contestava.
Quando Deus pôs Clara no caminho de Francisco, a jovem é acolhida
como uma bênção. O Irmão reconhece, de imediato, ser ela o objecto da
profecia de São Damião. Clara e as Irmãs que o Senhor lhe enviasse, vive-
—————
1
LCL, 10, in FF II, p. 247.
2
TCL, 9-17, in FF II, pp. 69-70.
8
riam, pois, em clausura contemplativa no mosteiro anexo àquela pequena
Igreja3
; seriam o complemento da Primeira Ordem Franciscana. O seu
rosto feminino.
Contactado D. Guido, bispo de Assis, Francisco aceita das mãos de
Deus, com imensa satisfação, esta primeira filha e, com permissão do
mesmo prelado, começa a sua formação evangélica.
Na noite que se seguiu ao domingo de Ramos de 1212, a conselho de
Francisco e com o assentimento do prelado, Clara ―deixou a casa paterna,
a cidade e os familiares e apressou-se a ir para Santa Maria da Por-
ciúncula‖4
, onde os Irmãos celebravam as sagradas vigílias. Despojada das
suas jóias e vestes de festa e cortados os cabelos, Clara compromete-se
diante de Deus e da Igreja, ali representada pelo Irmão Francisco, a seguir
o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência e sem
próprio.
Clara não se sentia vocacionada para o casamento nem tão-pouco
para ser monja, mas sim para ser irmã menor. Nesta noite de domingo de
Ramos, afirma, com toda a potencialidade do seu ser, o direito que lhe
assiste, à luz do Evangelho, de escolher livremente o seu caminho. O gesto
de Clara restabelecia o primado de Deus e afirmava a liberdade de uma
mulher cristã seguir Jesus Cristo, segundo o impulso do seu coração: de
abraçar Cristo pobre como virgem pobre.
Clara Offreduccio não podia inserir-se em mosteiros do seu tempo,
verdadeiros senhorios detentores de privilégios e direitos. O estilo de vida
das monjas beneditinas, das cónegas regrantes de Santo Agostinho, ou das
reclusas, não respondia ao seu anseio. Era seu desejo, conforme o
mandato de Cristo, fazer opção pela pobreza evangélica, pela fraternidade
—————
3
O testemunho de Tiago de Vitry, bispo de São João d‘ Acre, sobre o movimento
franciscano tem-se prestado a opiniões algo confusas. Em carta de 1216, falando sobre o
movimento, diz: ―…as mulheres moram em comunidade em vários hospícios perto das
cidades. Não recebem nada, vivendo do trabalho de suas mãos‖. Paul Sabatier inter-
pretando o texto, defendeu o princípio de que as Clarissas, nos primeiros tempos, não
tiveram clausura e se entregavam ao cuidado dos doentes e leprosos. Alguns estudiosos
franciscanos, entre os quais Lemmes y Oliger, depois de profunda análise da questão,
pronunciando-se contra a posição assumida por Sabatier, afirmam que as damianitas
sempre viveram na clausura do seu mosteiro (Ignacio Omaechevarria, ofm, Escritos de
Santa Clara y documentos complementarios, edición bilingüe, BAC, Madrid, 1982, pp.
34-36).
4
LCL, 8, in FF II, p. 246.
9
cristã. Desejava descer a tomar lugar entre os pobres, os oprimidos, os
servos, os sem direitos. Desejava entregar-se a Cristo por amor dos
homens, seus irmãos.
Após a Páscoa de 1212, estão em São Damião as três primeiras irmãs
menores: Clara, Inês e Pacífica. Cumpria-se a profecia do Senhor.
Alma genuinamente franciscana, feita a deslumbrante descoberta do
amor gratuito do Pai, revelado em Jesus Cristo, Clara imergiu, com toda a
potencialidade do seu ser no absoluto de Deus, como consequência do
enamoramento por Cristo pobre e crucificado e n‘Ele se abraçou com a
plenitude do Amor, a humanidade e a criação.
Clara tem uma vocação peculiar. A discípula do Pobrezinho de Assis,
seguidora de Cristo em estilo novo, não é monja mas sim irmã: irmã
menor, irmã pobre, irmã vocacionada para a fraternidade. O estilo de
vida que abraça é novidade na Igreja. Clara é uma mulher nova, uma
mulher forte e fiel, cheia de fé e de esperança, que sabe o que quer e é
capaz de percorrer todos os caminhos para chegar aonde Deus a impele.
Mas, é mais do que isso: é uma inovadora que, rompendo com formas e
tradições monásticas, faz nascer em São Damião um novo estilo de vida
contemplativa: vida em fraternidade e serviço, vida pobre, humilde e
simples, uma vida acentuadamente eucarística e em sintonia com a huma-
nidade sofredora; em suma, vida de seguimento de Cristo pobre e cruci-
ficado.
Como íamos dizendo, o Senhor anunciara pela boca de Francisco a
origem da Segunda Ordem, cujo berço seria exactamente São Damião. No
Testamento, Clara reconhece ser ela e suas Irmãs, presentes e futuras, o
alvo da profecia. Com efeito, falando de Francisco, escreve: ―…iluminado
pelo Espírito Santo, profetizou, com grande alegria, a nosso respeito, tudo
o que mais tarde o Senhor veio a confirmar‖5
.
Clara era uma mulher de fé e fidelidade. Daí, que a sua vida fosse uma
peregrinação impulsionada pela força criadora de uma promessa. Esta
mulher forte e fiel, acreditou que era possível a vivência radical do
Evangelho e, totalmente tomada por Cristo, lançou-se, cheia de confiança
e sem vacilar, no seguimento dos seus passos. Assim, soube dar resposta,
—————
5
TCL, 11, in FF II, p. 69.
10
com a vida, às exigências divinas, à força sedutora que para ela era o
―Senhor Jesus‖.
Sendo a vida de oração, de intercessão e de comunhão com Deus
comum às diversas formas de vida consagrada, no caso da Clara, o
específico consiste no seu chamamento e envio profético.
1.2. Missão de Clara
Houve tempos em que o ideal de alguém se identificava com o
trabalho de santificação pessoal.
Respondendo a Cristo e sob a orientação de Francisco, a ―Plan-
tazinha‖ soube situar a sua doação e missão em termos eclesiais. Estava
bem persuadida, assim como suas Irmãs, de que Deus as chamara para
serem espelho e exemplo para os outros, para serem evangelicamente mis-
sionárias, para serem colaboradoras do próprio Deus junto dos homens,
suporte dos membros mais fracos do corpo místico de Cristo, como se lê
na terceira carta por ela escrita a Inês de Praga por 1238. Por isso se
sentiam impelidas a peregrinar na Igreja de Deus.
Clara sente-se chamada, a partir do mais íntimo do seu ser, a edificar
a Igreja, a dar a vida, a derramá-la toda inteira, não para sua realização
pessoal, mas porque recebeu um apelo: olhar, ver, ser luz, testemunhar
na Igreja de Deus, para glória do ―Altíssimo‖ e para bem dos homens. A
sua missão é, de certo modo, confirmar os outros na verdade, no amor,
na beleza que viu e que tocou. Daí que, para a discípula do Pobrezinho
de Assis, o importante, o sumamente importante, fosse a sua transfor-
mação em ícone da divindade, o abraçar e tocar o Verbo da vida, como
se lê nas suas cartas a Inês de Praga.
No percurso espiritual de Clara divisamos Belém, Nazaré e o
Calvário, quais livros abertos à contemplação da apaixonada pelo Senhor
Jesus Cristo que, de ouvinte atenta da Palavra evangélica se torna espelho
dessa mesma Palavra.
Como muito bem diz o nosso Ministro Geral, Frei Giacomo Bini, em
Clara de Assis, um hino de louvar, a fiel discípula de Francisco e suas
Irmãs, ―a partir do claustro da sua interioridade, seguindo o exemplo de
Maria, tornam-se acolhimento, morada e ícone do Deus de amor‖6
, teste-
munho que se projectava no exterior.
—————
6
Frei Giacomo Bini, Clara de Assis, um hino de louvor, Roma, 2002, p.12.
11
De São Damião, cada Irmã descobre todo o mundo e, fazendo suas as
alegrias, aspirações, preocupações e necessidades dos homens, por suas
próprias mãos as apresenta ao ―Pai das misericórdias‖, na expressão da
―Plantazinha‖ de Francisco.
Abrasada no ardor missionário, desejosa de abraçar o mundo inteiro e
se dar ao Senhor pelo martírio, Clara teria ido para Marrocos se o seu pai
espiritual disso a não impedisse.
Durante a sua doença, que durou uns trinta anos, a virgem Clara, à
semelhança do crucificado do Alverne, está crucificada com Jesus Cristo e,
em atitude redentora, permanece todos os dias em amorosa doação.
Abrasada em amor, totalmente voltada para os outros, está em continua
comunhão com seus irmãos em Cristo. Em todos pensa, por todos ora e
sofre. Para todos tem uma palavra evangélica, de ternura, de compreensão
e estímulo. Mesmo no seu leito de dor, mantém com as autoridades
eclesiásticas, com os seus Irmãos no carisma, com pessoas amigas, impor-
tantes ou de condição simples, as melhores relações. Ela é, diante de todas
as necessidades, um suporte e apoio espiritual. Na clausura, no seu leito de
doença, a Irmã Clara avança, à semelhança do Serafim de Assis, no
caminho da Cruz, identificando-se com o Esposo. Conforme a expressão
de Frei Giacomo Bini, Francisco e Clara são semente lançada à terra que
morrem para frutificar. Esta morte, amorosa e quotidiana, fazia parte da
missão destes arautos de Cristo que, fiéis ao Evangelho se entregam e
vivem com audácia o desafio da pobreza absoluta, da loucura da Cruz, do
despojamento total, do amor incondicional ao Criador e às criaturas. Sim,
o mistério da Cruz era, e continua a ser, o cerne da espiritualidade fran-
ciscano-clariana. Seguir ―Cristo, o Pobre crucificado‖, identificar-se com
Ele, n‘Ele se transformar, eis a razão de viver dos humildes seguidores do
Evangelho, no século XIII.
―Se com Ele morrermos na cruz da tribulação, com Ele habitaremos
na gloria dos santos‖7
, escreve Clara a Inês de Praga. O sofrimento vivido
em profunda união com Cristo, seu Esposo, identifica-a com o mesmo
Cristo.
São Damião interpela!
São Damião é ideal e desafio É fonte de vida nova!
—————
7
Cf., 2CCL, 21, in FF II, p. 95.
12
O P. Larañaga diz que ―Clara, na sua clausura contemplativa, levou à
plenitude o sonho mais profundo de Francisco de Assis: a ânsia de con-
templar o Rosto do Senhor e de se dedicar exclusivamente a cultivar o
desejo de Deus‖8
.
Ali, mãe e filhas, revestidas da ―dama pobreza‖, como transparência
do Evangelho de Cristo, denunciam o pecado do seu tempo e de todos os
tempos: o orgulho, a falta de amor, o egoísmo, a cobiça, o poder. É que a
sua pobreza é o Cristo pobre. São Damião é comunidade profética que,
ao mesmo tempo que interroga e responde, é facho de luz que compro-
mete. Mas, para tanto, é preciso subir a montanha da dor, é preciso
morrer, para tocar, para possuir o Absoluto, para ser transparência do
mesmo Senhor.
A sociedade do Século XIII precisou de Francisco e de Clara para
recuperar o sentido de Deus, o sentido de fraternidade. A Igreja do século
XIII precisou de Francisco e de Clara para reencontrar a sua identidade
evangélica.
São Damião, um espelho de Eternidade! Testemunha de que Deus
está, de que a sua luz ilumina, de que o seu amor marca e transforma, de
que Deus é todo o bem, o único bem. A herança das Irmãs Pobres, como
dos Irmãos Menores, era só Deus. Quem viu e tocou o Senhor, de nada
mais precisa. Ele basta.
Clara era a transparência de Jesus. No Testamento, Clara exorta
vivamente as suas Irmãs a ―que se esforcem por seguir sempre o caminho
da santa simplicidade, humildade e pobreza, e que levem uma vida santa‖.
Desta santidade de vida brotaria a luz, o esplendor, a beleza espiritual, a
claridade, o odor da ―boa fama‖ ao perto e ao longe. Seriam, então,
cidade edificada no alto da montanha anunciada pelo Cristo bizantino
de São Damião.
—————
8
Inácio Laranãga, ofm cap, O Irmão de Assis. Vida profunda de São Francisco, Lisboa,
1980, p. 239.
13
2. O mosteiro de São Damião – Ideal e desafio
São Damião, no dizer de Miglioranza, ―mais do que um mosteiro, foi
um ideal, um desafio, um sonho feito realidade‖9
. Um ideal feito de man-
sidão, de humildade, fraternidade, de sentido profundo de Deus e de
empenhamento ao serviço de todos. Um amor incomensurável de Deus e
das suas criaturas transparecia daquele ―pobre conventinho‖, que enchia de
mistério e emoção até os mais afastados de Deus. Poucas vezes a vivência
cristã se revestiu de tanta suavidade e encanto!
2.1. Uma fraternidade evangélica
A Regra de Santa Clara não é apenas a base jurídica que dá existência
à sua Ordem, um documento histórico que se olha com veneração e amor.
É antes a expressão de um carisma peculiar, de um programa de vida
sempre actual e sempre adaptável a tempos e lugares. Condensação do
genuíno carisma da Ordem, perpassada pela docilidade ao Espírito do
Senhor, pela abertura à Igreja e à humanidade, tem em si mesma a vitali-
dade evangélica. Contrariamente ao que se verificava com as então exis-
tentes, a Regra de Santa Clara é fraterna, humana e flexível. A pessoa da
Irmã, cercada do maior respeito, ganha dignidade e direitos que na época
não eram reconhecidos à mulher. Inteligente e criativa, a Irmã Clara soube
dar vida a um estilo novo, distanciado do estilo monacal do seu tempo.
Um estilo evangélico.
Nos mosteiros existentes no século XIII, a autoridade – o abade ou a
abadessa –, centro de uma orgânica estável e minuciosa, ocupando o vér-
tice de uma pirâmide, tudo prevê e determina.
Nas fraternidades franciscanas, portanto, entre as damianitas, o centro
é ocupado por Jesus, dispondo-se as Irmãs em seu redor. A igualdade, a
amizade, vínculo de união, surge como fruto da felicidade comum.
Em São Damião, não havia estruturas verticais; não havia classes
sociais nem privilégios, a não ser o privilégio de ser pobre. Ali havia a
simplicidade e a igualdade dos filhos de Deus. Só Cristo e a sua Mãe
pobrezinha serviam de modelo às damianitas.
—————
9
C. Miglioranza, ofm conv, ―Santa Clara de Asís‖, in Misiones franciscanas conven-
tuales, Buenos Aires, p. 77; citado por Maria Victoria Triviño, osc, in Clara de Asís
ante el espejo. História y espiritualidad, Madrid, 199, p. 105.
14
No mosteiro de São Damião, vivia-se, de facto, em fraternidade. Ali,
havia Irmãs igualmente consultadas e ouvidas. Os assuntos respeitantes à
utilidade e bem espiritual das Irmãs eram tratados em reunião conventual e
até as mais novas deviam ser ouvidas, ―pois muitas vezes é ao mais
pequenino que o Senhor revela aquilo que mais convém.‖10
O relaciona-
mento era perfeito: era fraternidade. Estamos diante de uma estrutura
horizontal, dignificante da pessoa humana, porque estrutura evangélica.
Um dos aspectos mais meritórios da Regra de Santa Clara é a
participação das Irmãs nas responsabilidades comuns:
- todas devem dar o seu consentimento na recepção de novas
vocações 11
;
- todas tomam parte na eleição da abadessa12
;
- nenhuma dívida importante deve ser contraída sem o
consentimento das Irmãs13
;
- para a escolha de Irmãs para os diversos cargos, é necessário o
consentimento da comunidade14
;
- a abadessa e as Irmãs são responsáveis pela guarda da pobreza,
pelo cuidado das doentes, pela observância do silêncio e da clausura, para
conservar a unidade do amor mútuo e da paz15
;
- a abadessa e suas Irmãs tratarão com caridade a Irmã culpada16
.
Porém, é nas passagens em que emprega o nós, que Clara imprime
mais firmemente e a sua personalidade e, simultaneamente, acentua a
corresponsabilidade das Irmãs, dando ao texto o valor de um compro-
misso comum. Vejamos:
- ―quando alguém … vier ter connosco‖17
;
—————
10
RCL, IV, 18, in FF II, p. 50.
11
RCL, II, 1, in FF II, p. 45.
12
RCL, IV, 1 e 7, in FF II, p. 49.
13
RCL, IV, 19, in FF II, p. 50.
14
RCL, IV, 22, in FF II, p. 51.
15
RCL, VI, 10-11, p. 53; VIII, 1-6, p. 55; VIII,12-17, p. 56; V, 1-4, p. 56;V, 5-14, pp.
51-52, in FF II.
16
RCL, IX, 4-6 e 18, in FF II, p. 57– 58.
17
RCL, II, 1, in FF, II p.45.
15
- ―considerando o bem-aventurado Pai que não temíamos nenhuma
espécie de pobreza, … mas que, pelo contrário tínhamos estas coisas por
grande delícia, … escreveu-nos a forma de vida‖18
;
- ―para que eu, … juntamente com minhas Irmãs‖19
;
- ―E assim … a fim de que observemos a pobreza e humildade de
Nosso Senhor Jesus Cristo, que firmemente professamos‖20
.
E as citações podiam multiplicar-se.
A consciência da responsabilidade da Irmã, ou seja a corres-
ponsabilidade fraterna, tem a máxima expressão no capítulo quarto, onde
se lê: ―… tanto a abadessa com as irmãs devem confessar, com toda a
humildade, as faltas e negligências públicas e comuns‖; e, como acima
referimos, ―… os assuntos respeitantes à utilidade e bem espiritual da
comunidade devem ser tratados em capítulo‖21
.
E, porque a pessoa da Irmã é olhada com todo o respeito em função
da dignidade que lhe é conferida pelo Evangelho, a Madre ―há-de com-
portar-se entre as suas Irmãs como serva de todas, familiar e disponível,
atenta às necessidades das sãs e das doentes22
; todas as Irmãs devem
cuidar e servir as Irmãs doentes, como gostariam de ser servidas, caso se
encontrassem na mesma situação23
. E, para construir dia a dia a frater-
nidade sobre a base do amor, as Irmãs empenhar-se-ão em evitar a
―soberba, vanglória, inveja e avareza, cuidados e solicitude das coisas
deste mundo, depreciação, murmuração, discórdia e desavença24
.
Em suma, em São Damião, todas se amavam com o amor de Cristo;
todas, conscientes de que eram chamadas a trabalhar na concórdia e na
paz, se auxiliavam mutuamente; todas se sentiam responsáveis pelo bem
comum.
Estamos diante de uma fraternidade evangélica.
—————
18
RCL, VI, 2,, in FF II, p. 53.
19
RCL, VI, 1, in FF II, p. 52.
20
RCL, XII, 12, in FF II, p. 62.
21
RCL, IV, 16-17, in FF II, p. 50.
22
RCL, IV,10-12, p. 50; VIII, 12-13, p. 56; X, 4, p. 59, in FF II.
23
RCL, VIII, 14,, in FF II, p. 56.
24
RCL, 6, in FF II, p. 59.
16
2.2. O trabalho como expressão de pobreza
Praticar a pobreza voluntária subtraindo-se à lei geral do trabalho,
seria deformar os conselhos evangélicos, os princípios cristãos. Francisco e
Clara compreenderam essa realidade. Por isso, consideravam o trabalho
―uma graça‖. A Irmã Clara, no seguimento do mandato de Cristo, traba-
lhava e queria que as suas Irmãs trabalhassem ―fiel e devotamente‖.
O trabalho, que começava depois de Tércia, deveria ser honesto e de
comum utilidade; deveriam trabalhar com devoção e fidelidade para evitar
a ociosidade, inimiga da alma, sem perderem o espírito de oração e
devoção ao qual todas as coisas devem subordinar-se. Durante o trabalho
o silêncio era habitual, pedido pelo coração, para permanecerem em união
com o Senhor. Somente era quebrado quando necessário e, então,
deveriam falar em voz baixa e em poucas palavras25
. As damianitas, dado
que viviam em profunda união com Cristo, conheciam o valor do silêncio,
do recolhimento, e dele sentiam necessidade íntima. É que, o trabalho,
embora sendo um meio de subsistência, era simultaneamente uma forma de
amar e de orar: amar a Deus na acção. Dentro de uma visão franciscana,
quer o trabalho quer a oração, impregnados de amor contemplativo,
testemunham Cristo, presente entre os seus filhos. Por isso, quando os
lábios da ―Plantazinha‖ e suas Irmãs se calavam, começavam a orar as
mãos26
. O trabalho era ―graça e bênção‖
Sabe-se que no mosteiro de São Damião havia um horário de trabalho
que coordenava as actividades quotidianas. É que o trabalho era, com a
esmola, a forma de normal de subsistência. Clara, recusando toda a
possessão, tudo o que constituísse rendimentos – propriedades ou dotes –,
afirma a sua fidelidade ao Evangelho e a sua vontade de que a fraternidade
seja e permaneça voluntariamente pobre.
Ela, como mãe e mestra daquela comunidade nascente, dava exemplo
de aplicação ao trabalho. Nunca queria estar ociosa, mesmo durante a
doença. A Irmã Pacífica de Guelfuccio depôs no processo de canonização
que ―durante o tempo em que esteve doente, a ponto de não se poder
erguer do leito, pedia que a sentassem e, amparada com almofadas, fiava e
tecia os panos com que confeccionava os corporais que depois oferecia às
—————
25
RCL, V, 4, in FF II, p. 51.
26
Chiara Augusta Lainati, osc, Santa Clara de Asís, 2ª edición, Oñate (Guipúzcoa),
1993, p. 120.
17
igrejas do vale e das colinas de Assis‖27
. Uma vez contou uns cinquenta,
muito belos e perfeitos.
Os trabalhos femininos tinham, então, um âmbito restrito. Excluindo o
fiar, tecer e bordar, dificilmente se poderia pensar em algo mais, pelo
menos dentro da clausura. Segundo alguns autores, Clara teria algum
tecelão em Assis que colaborava com o mosteiro no fornecimento das
matérias primas e na aceitação dos trabalhos confeccionados. Em São
Damião trabalhava-se. Nobres ou plebeias, damas ou servas, tornadas
Irmãs, fiavam, teciam, faziam todos os trabalhos domésticos, cuidavam da
horta com simplicidade e alegria. Da horta recebiam vários produtos,
essencialmente legumes e hortaliças que serviam para o quotidiano da
comunidade. Era a graça de poder trabalhar, a graça de formar e ser
fraternidade. Também cultivavam, no jardim e claustro do mosteiro, belas
e variadas flores.
Como acima íamos dizendo, os trabalhos realizados em São Damião,
não eram suficientes para sustentar a comunidade. Quando isso acontecia,
Clara recorria à ―mesa do Senhor‖. Saíam, então, as Irmãs externas a
receber os dons que o Pai lhes oferecia. Também dois Irmãos Menores
estavam ao serviço da comunidade para auxílio da sua pobreza28
, rece-
bendo, em seu favor, das mãos dos assisienses ou populações circunvi-
zinhas, o que o Senhor sabia precisarem.
Os mosteiros medievais tinham a sua subsistência assegurada com
rendas.
Clara e suas Irmãs viviam do trabalho e da ajuda dos fiéis. Viver do
trabalho num mosteiro medieval era viver em pobreza. Estar assegurada a
subsistência duma comunidade contemplativa pelo trabalho e pela caridade
dos fiéis era novidade na Igreja e doutrina impensável na Idade Média.
Porém, Clara e suas Irmãs sabiam que, se o Senhor alimenta as aves do
céu e veste os lírios do campo, não deixaria de velar por aquelas que,
confiantes, se entregavam à sua providência.
O mosteiro de São Damião, caminhando na sequela Christi, tornou-
-se, de facto, conforme o desejo de Francisco encarnado por Clara, oásis
de pobreza evangélica29
.
—————
27
PC, I, 11, p. 142; ver também: PC, II, 12, p.147-148 e VI,14, p.173, e ainda LCL, 28,
p. 262, in FF II.
28
PC, I, 15, in FF II, p. 143.
29
René-Charles Dhont, Chiara, madre e sorella, p. 10
18
2. 3. Vida de oração e contemplação
– Oração litúrgica
A vida litúrgica, elemento primário da vida contemplativa, aparece em
São Damião como o centro, o cerne, do viver quotidiano. De facto, uma
comunidade contemplativa é sustentada e vivificada pela oração litúrgica
comunitária – celebração eucarística e ofício divino –, que marcam o
ritmo duma caminhada espiritual. Daí a necessária abertura à Palavra de
Deus e à união fraterna.
Sabemos que São Francisco queria ver os Irmãos reunidos cada dia
para uma única missa de fraternidade em cada lugar onde estivessem.
Junto de São Damião residia uma pequena fraternidade de Frades Meno-
res, entre os quais havia dois clérigos aos quais competia celebrar quoti-
dianamente a Eucaristia, administrar os sacramentos às suas Irmãs e
anunciar-lhes a Palavra do Senhor.
Com quanta fé e amor, Santa Clara e suas Irmãs participavam na cele-
bração eucarística!… E esta celebração era tão importante que, nos dias
em que era permitida a comunhão, se houvesse doentes impossibilitadas de
se deslocarem ao coro, o capelão entrava na clausura e a Missa celebrava-
-se na intimidade familiar ―para sãs e enfermas‖.
A fraternidade franciscana, ainda que inteiramente distanciada dos
esquemas monásticos, atribuiu, desde o início, grande importância ao ofí-
cio divino como oração oficial da Igreja. Daí, que, em São Damião, o ofí-
cio divino fosse logo considerado como imprescindível oração de louvor,
no qual, salvo as Irmãs que não soubessem ler, todas deviam participar.
Nem a Irmã Clara poderia fazer de outra forma, dado que a fraternidade
de São Damião desejava ser versão contemplativa feminina do ideal de
Francisco. Clara, ao dispor que o ofício divino fosse rezado conforme o
costume dos Frades Menores, o ofício da Santa Igreja Romana, era
determinada pelo seu grande desejo de união com a Primeira Ordem: um
mesmo ritmo de oração seria o melhor testemunho de unidade de espírito
existente entre as filhas e filhos do Irmão Francisco.
À semelhança do que fizera o ―seu Pai e mestre‖ entre os seus
Irmãos, Clara não quis estabelecer duas classes de Irmãs.30
Em São
—————
30
A introdução de várias categorias de Irmãs na Ordem de Santa Clara, feita
posteriormente, foi contrária à Regra e anticarismática. Hoje, porém, esse desvio está
19
Damião não havia coristas e leigas. Assim o pedia o carisma franciscano.
Todas, com igual direito, participavam no ofício divino. Estavam, porém,
dispensadas as que não soubessem ler, como acima dissemos, ou se
encontrassem impedidas por razões de saúde.
Sabemos, pelas fontes biográficas que, em São Damião, o ofício
divino estava distribuído ao longo das 24 horas do dia, santificando assim
a caminhada quotidiana. Era recitado com devoção e harmonia, com a
simplicidade própria de espírito franciscano, sem exibição de instrumentos
ou Irmãs especializadas no canto, pois Clara não queria, de forma alguma,
que ali reinasse a ostentação que, tantas vezes, se verificava nos mosteiros
de beneditinas e cónegas regrantes31
.
Nesta oração de louvor e de súplica a Deus Pai, feita em união com
Cristo, Clara dava exemplo com a sua assiduidade e pontualidade. Era ela
que à meia-noite despertava as Irmãs, tocando delicadamente em cada
uma, para não interromper o sono das doentes, gesto de fina caridade.
Quando as Irmãs chegavam já ela havia acendido as lâmpadas e preparado
tudo para a oração32
. Eram, então, recitadas Matinas.
Santa Clara não apresenta nenhuma prescrição concreta em relação a
outras formas de oração comunitária, salvo o ofício de defuntos que
deviam rezar quando alguma Irmã falecesse33
. Clara, não prescreve ora-
ções e devoções comunitárias, nem tão-pouco confiava o bom andamento
da comunidade à multiplicidade de regulamentos disciplinares. Acreditava,
sim, na unção do Espírito Santo que ensina e guia os passos dos seus
eleitos. Por isso, no capítulo quinto da Regra, Clara fala do ―espírito de
santa unção e devoção ao qual todas as coisas devem servir‖ e recomenda
no décimo que as Irmãs ―acima de todas as coisas devem desejar ter o
espírito do Senhor e o seu santo modo de operar, orar sempre a Deus com
um coração puro‖. Em São Damião, a oração contemplativa não estava
sujeita a uma regulamentação. Não era necessário, pois, cada Irmã se abria
à acção divina com espontaneidade e amor. Ouçamos Celano:
—————
ultrapassado (Lázaro Iriarte, Letra e espírito da Regra de Santa Clara, Porto Alegre,
1978, pp. 36-37.
31
Isto não impede que, nos tempos hodiernos, conforme o actual critério da Igreja, o
canto tenha lugar nas celebrações litúrgicas das Clarissas. Antes pelo contrário, sabendo
que o canto é caminho de ascensão para o Senhor, devem dar solenidade e expressão
musical às celebrações, e mesmo estimular a presença e participação dos fiéis.
32
Cf. PC, II, 9; X, 3, pp.147 e 185, respectivamente e LCL, 20, p. 257, in FF II.
33
RCL, III, 6, in FF II, p. 48.
20
―De tal modo as damas pobres adquiriram o dom da contemplação
que nela aprendem o que se deve fazer e o que se deve evitar; conseguem
com extrema facilidade manter-se na presença de Deus, no louvor divino e
nas orações‖34
.
– Oração pessoal
As damianitas desenvolviam e aprofundavam a oração pessoal.
Depois de Vésperas, que tinham lugar à meia tarde, todo o tempo era con-
sagrado à oração a sós com o Esposo. Embora sendo Completas, o último
período de oração comunitária, cada uma entregava-se, com grande liber-
dade, ao colóquio com o Senhor, fazendo, muitas vezes vigília até à
madrugada. Essa longa oração, fruto de um grande amor, aproximava a
terra e céu, enriquecendo a comunidade dos homens.
O exemplo de Clara arrastava. As Irmãs que depuseram no processo
de canonização são unânimes em afirmar que madonna Clara era ―assídua
na oração e na contemplação e quando regressava da oração, o seu rosto
era mais claro e belo que o sol, e que das suas palavras emanava uma
doçura maravilhosa. Parecia até que já vivia no Céu‖35
. Ao sair da oração
animava e confortava as Irmãs. Segundo elas e o seu primeiro biógrafo,
Tomás de Celano, tinha momentos preferenciais para consagrar-se à ora-
ção contemplativa e pessoal: à meia-noite, terminada a recitação de Mati-
nas, quando ficava só por longo tempo, pela manhã depois de Tércia, ao
meio dia depois de Sexta. Durante as horas de Sexta e depois de Noa, que
a associavam à Paixão de Cristo, era tocada de grande compunção e
desejo de ser imolada com o Senhor36
Clara gostava de centrar-se no aniquilamento de Jesus Cristo, não
somente na imolação da Cruz, mas também no mistério de humilhação e
pobreza de Belém e da Eucaristia. E, sabendo que Maria santíssima, a Mãe
pobrezinha, era o melhor caminho para chegar ao Verbo de Deus, Clara
amava-a ternamente.
As damianitas no silêncio do mosteiro contemplavam embevecidas
Jesus na simplicidade do presépio de Belém, no mistério eucarístico, na
loucura amorosa da cruz, na glória da Jerusalém celeste. Todas procura-
—————
34
1C, 20, in FF I, 2ª edição, p. 245.
35
PC, I, 9; II, 9; IV, 4, pp. 141, 147 e 163 respectivamente; VI, 3-4; VII, 3, p.171-172 e
175; X, 3, p. 185, in FF II.
36
LCL, 30, p. 264, in FF II.
21
vam ―viver em íntima união com Cristo, aderir a Ele com todas as fibras
do seu coração‖37
, vê-lo nas criaturas e na criação, vê-lo na bondade dos
homens, no sorriso da criança, na beleza do sol, no perfume da flor. Para
as Irmãs de São Damião, como para toda a alma franciscana, viver em
oração contemplativa era também entrar com todas as criaturas de Deus,
no mundo do Louvor, da Glória, do Amor e do Encanto.
A contemplação franciscana tem o seu matiz próprio. Em Francisco,
como em Clara de Assis, a vida contemplativa brotou do encanto. Eles não
estão em função de si mesmos, mas da Igreja e do mundo. O segredo das
suas vidas foi o enamoramento por Jesus Cristo e, na sequência desse
enamoramento, o seu grande ideal foi a identificação com Cristo pobre e
crucificado, que se traduziu em seguimento. A vivência radical do santo
Evangelho foi neles uma consequência do êxtase de amor por Jesus.38
Adorar! Foi esse o sonho lindo de Clara de Assis. Em São Damião,
Clara e suas Irmãs viviam imersas na adoração do Altíssimo, Omnipotente
e Bom Senhor.
2. 4. Vida eucarística: adoração e louvor
No século XIII, à medida que os teólogos aprofundaram a doutrina
eucarística, pondo em relevo a permanência de Cristo nas sagradas
espécies, viu-se a conveniência de que a reserva destinada aos doentes
saísse dos armários, onde nem sempre se encontrava com a devida
dignidade e se colocasse em lugares mais apropriados, em tabernáculos
abertos na ábside ou em ―imagens-sacrários‖ que guardavam uma peque-
nina caixa; podia colocar-se também sobre o altar em cibórios ou numa
bela urna em forma de arca, que se ia enriquecendo com metais nobres e
pedrarias39
Em São Damião havia uma caixinha ou urna de prata e marfim para a
reserva do Santíssimo, colocada sobre o altar, que permitia às damianitas a
adoração permanente. Ali vivia-se em amorosa adoração, pois Clara de
Assis era uma ―Mulher Eucarística‖.
—————
37
4 CCL 9, in FF II, p. 107.
38
David de Azevedo, ofm, S. Francisco de Assis, Fé e Vida, Braga, 1984, pp. 30-43.
39
Jiménez, História de la espiritualidad franciscana, Barcelona, 1969, p. 647
22
De facto, entre as Irmãs Pobres, no seguimento da doutrina do IV
Concílio de Latrão (1215), desenvolveu-se a espiritualidade eucarística,
praticando-se, como se disse, mesmo a adoração e desagravo ao Santís-
simo Sacramento, o que era novidade. As damianitas foram as pioneiras a
acolher esta doutrina conciliar e de tal forma que Santa Clara aparece
como arauto no reflorescimento eucarístico do século XIII. A piedade
popular assim o compreendeu; os artistas representam repetidamente
Santa Clara com a custódia nas mãos. É uma linguagem de símbolos que
expressa quanto a sua vida esteve vinculada ao sacramento do Corpo do
Senhor.
Clara desejava que suas filhas comungassem; ela, quando o fazia,
comovia-se até às lágrimas, segundo depõem algumas Irmãs no processo
de canonização40
. Na Regra deixou determinado que as Irmãs
comungassem sete vezes por ano: ―No dia do Natal do Senhor, na Quinta-
-Feira Santa, na Páscoa, no Pentecostes, na Assunção de Nossa Senhora,
na festa de S. Francisco e no dia de Todos os Santos‖41
. Hoje parece-nos
incompreensível esta prescrição da Regra. Contudo, naquela época
representava um grande amor à Eucaristia.
Sabemos que o IV Concílio de Latrão, querendo incrementar o amor
ao Corpo e Sangue do Senhor, determinou que os fiéis se confessassem e
comungassem uma vez por ano42
. Em função da época, e desta prescrição
conciliar, a determinação de Santa Clara representava, pois, um grande
amor ao Santíssimo Sacramento, um verdadeiro culto pelo Corpo do
Senhor. Nos dias em que as religiosas comungavam, Santa Clara, que-
rendo ver a comunidade, tanto as sãs como as doentes, reunidas em volta
do altar, permitia a entrada do capelão, tendo, então, lugar a celebração
eucarística no interior da clausura43
.
Clara penetrava e vivia o mistério da fé, sinal de unidade, vínculo de
caridade. Este amor à Eucaristia e à adoração, novidade no século XIII,
como já referimos, deixou-o Santa Clara às suas Irmãs e filhas como
legado perpétuo. E tão gostosamente tem sido assumido por todas que,
desde há oito séculos, não há mosteiro da Segunda Ordem Franciscana
—————
40
PC II, 11, III, 7, IX, 10, pp. 147, 154, 184 respectivamente e LCL, 28, p. 262, in FF
II.
41
RCL, III, 14, in FF II, p. 49.
42
Lázaro Iriarte, Letra e espírito da Regra de Santa Clara, p. 50.
43
RCL, III, 15, in FF II, p. 49.
23
onde não se faça a adoração eucarística todo o dia ou pelo menos umas
largas horas44
.
Não faz sentido que se procure, em raízes adventícias e tardias, os
alicerces ou incremento da adoração, louvor e desagravo do Santíssimo
Sacramento tão peculiar à Segunda Ordem Franciscana. No mosteiro de
São Damião está a raiz, e bem alicerçada e profunda, do amor eucarístico
que as filhas de Santa Clara devem viver e difundir.
A Irmã Clara e suas Irmãs eram mulheres evangélicas, mulheres euca-
rísticas! Os seus dias deslizavam alegres e felizes na contemplação
amorosa de Cristo, com quem queriam identificar-se. Aquelas boas reli-
giosas, no escondimento do claustro, vivendo em pobreza, oração silen-
ciosa e contemplativa, proclamavam o encanto que Deus é e assumiam,
com Cristo, as dores, as alegrias e as esperanças dos homens.
2. 5. Em fraterna amizade
Clara era delicada, afável e atenta às necessidades das suas Irmãs.
Havia nela uma visível simpatia para com todas, que se traduzia em
expressões de ternura, em atitudes ditadas pelo muito amor que havia em
seu coração de mãe e de irmã.
Clara era feliz, imensamente feliz. E, porque o era, tinha necessidade
de deixar transparecer em gestos rasgados de profunda amizade toda a sua
riqueza interior. Acolhedora, compassiva e cheia de misericórdia, a Irmã
Clara quer que se preste atenção às jovens, às doentes e às fracas, não só
no sentido físico, mas também e, sobretudo, no sentido espiritual. Veja-
mos:
- ―Às irmãs incapacitadas de cumprirem todo o rigor da observância,
aconselhava-as a contentarem-se com um regime mais suave. E, quando
alguma se sentia mais perturbada pela tentação, ou era dominada pela
tristeza, era ela mesma que a chamava à parte e a consolava‖45
.
—————
44
Há também testemunhos certos de que, em 1230, João Parente, Ministro Geral dos
Frades Menores, tomou providências para que se colocasse o Santíssimo Sacramento
em píxide de prata ou marfim em lugar seguro, o que as Irmãs fizeram. Conserva-se
uma custódia que dizem ser do tempo de Santa Clara, embora haja algumas dúvidas
sobre o assunto.
45
LCL, 38, in FF II, p. 269.
24
- Clara permite que as Irmãs, ―sempre e em toda a parte, possam
dizer, em poucas palavras e em voz baixa, o que for necessário‖46
.
- Deseja que na enfermaria, ―para distracção, consolação e serviço das
doentes‖, as Irmãs possam sempre falar47
e ―que nada lhes falte, quer em
conselhos quer na alimentação quer em qualquer outra coisa que a doença
exija48
;
- que as doentes… ―possam usar travesseiros de penas… e pantufas e
meias de lã‖49
.
Clara, com o seu admirável jeito de ser irmã e mãe carinhosa, dava
importância às relações interpessoais no seio da fraternidade. Quer que as
relações fraternas sejam repassadas de carinho, de muita amizade; que
entre as Irmãs haja abertura, e um amor tão grande, que possam ―Confia-
damente manifestar umas às outras as suas necessidades, pois, se uma mãe
ama e cria a sua filha carnal, com quanto mais carinho não deve cada qual
amar e ajudar a sua irmã espiritual‖50
!… Com amor e zelo evangélico,
estimula todas as suas Irmãs ao perdão recíproco, vínculo de caridade. A
amizade fraterna, o amor de Cristo estavam tão presentes na fra-
ternidade!… Clara a isso estimulava suas Irmãs e filhas:
―Amai-vos umas às outras com o amor de Cristo, manifestai em obras
o amor que vos vai no coração, a fim de que, movidas por este exemplo,
as irmãs se sintam estimuladas a crescer cada vez mais no amor de Deus e
na mútua caridade‖
A Plantazinha é presença amiga. O encanto que lhe vai na alma tra-
duz-se nos mais delicados gestos que lhe sugere o seu coração maternal.
Ouçamos Tomás de Celano:
―A venerável abadessa não cuidava só do bem espiritual das irmãs,
também zelava, com imensa caridade pelo seu bem-estar físico. Assim, nas
noites frias, enquanto as irmãs dormiam, era ela própria que as cobria‖51
.
Gostava de prestar às Irmãs doentes os mais delicados serviços, de lavar
os pés às Irmãs externas quando regressavam com os dons que o Senhor
lhes proporcionara, e, sem qualquer escrúpulo, dispensava do jejum as
—————
46
RCL, V, 4, in FF II, p. 51.
47
RCL, V, 3, in FF II, p. 51.
48
RCL, VIII, 13, in FF II, p. 56.
49
RCL, VIII, 17-18, in FF II, p. 56.
50
RCL, VIII, 15-16, in FF II, p. 56.
51
LCL, 38, in FF II, p. 269.
25
doentes, as fracas e as jovens. Clara, boa e amiga, cultivava entre as suas
filhas os mais finos sentimentos e isso contribuía, como diz Celano, para
que ali não houvesse lugar para tibiezas ou desencantos52
.
Era na contemplação de Deus, no contacto directo com o Senhor, que
esta ―mulher evangélica‖ encontrava força para ser amor, para ser mãe.
Diz-nos Celano que, quando Clara regressava da oração ―inflamada pelo
fogo do altar do Senhor, transmitia palavras ardentes que incendiavam o
coração das irmãs. Todas ficavam admiradas da doçura que saía da sua
boca e do extraordinário brilho que emanava do seu rosto‖53
.
As longas horas de contemplação amorosa que Clara todos os dias
passa junto do Santíssimo Sacramento, fazem crescer no seu íntimo a
amizade, o encanto, o respeito para com cada uma das Irmãs. Elas são um
dom de Deus, são a expressão da ternura do Pai. Diante delas, a santa
abadessa sente-se mergulhada em adoração.
Não admira, pois, que no seu relacionamento com cada Irmã, a
Plantazinha de Francisco use, muitas vezes, palavras repassadas de cari-
nhosa amizade: queridas filhas, filhinhas, senhoras minhas, irmã e mãe,
esposa e mãe.
Não deixaremos de dizer que esta amizade cristã e franciscana era
extensiva a todos quantos privavam com Clara, particularmente seus
Irmãos da Primeira Ordem. A Francisco, seu mestre espiritual, muitas
vezes se dirige com o carinhoso apelativo de Pai e, quando o bondoso Frei
Reinaldo a visitou no leito de dor, a Irmã Clara mostrou-lhe o seu
reconhecimento e fraterna amizade chamando-lhe ―querido Irmão‖54
,
como refere Celano.
2. 6. Em comunhão com a humanidade sofredora
A oração contemplativa da Clara e de suas Irmãs, era cheia de fé e de
esperança. Centrava-se nos interesses do Pai e nas necessidades dos
homens: a glória do Senhor, a sua vontade, o seu reino de amor, as urgên-
cias eclesiais e da humanidade em geral. Em São Damião vivia-se em
profunda comunhão com os demais. Ali existia a mais delicada sensibili-
dade diante das reais e graves necessidades da Igreja. A sua vida interior, a
—————
52
LCL, 20, in FF II, p. 257.
53
LCL, 20, in FF II, p. 256.
54
LCL, 44, in FF II, p. 273.
26
contemplação do Senhor em que viviam mergulhadas, mantinha-as abertas,
atentas e receptivas aos seus irmãos em Cristo. Celano fala com
entusiasmo do poder de intercessão, do fascínio, do poder de irradiação da
fraternidade: lares que começavam a viver mais cristãmente; mosteiros que
se renovavam espiritualmente; inimigos que se perdoavam; doentes que
ficavam curados; casais que, decidindo-se pela vida de consagração, de
comum acordo seguiam Cristo na vida religiosa; donzelas que, movidas
pelo exemplo da virgem Clara, abraçavam a vida do claustro. A santidade
daquelas almas generosas fez-se torrente que, como os braços de um rio,
irriga a Igreja e o mundo.
Como era forte a sua sensibilidade eclesial!… O cardeal Hugolino, em
carta dirigida a madonna Clara diz cheio de confiança: ―recomendo-te a
minha alma e o meu espírito, tal como Cristo se encomendou ao Pai no
alto da Cruz, para que, no dia de juízo, respondas por mim, caso não te
tenhas preocupado o suficiente com a minha salvação55
. Mais tarde,
quando papa, com o nome de Gregório IX, quantas vezes confiava as suas
dificuldades às Irmãs do mosteiro de São Damião!…
E que diremos do seu carinho, do seu zelo, da sua oração para com
os Irmãos Menores doentes, como Frei Estêvão, preocupados ou necessi-
tados de alento; das suas Irmãs doentes, aflitas ou quiçá desencantadas;
dos muitos doentes que recorriam a Clara?… Não era ela, para todos,
canal de graças?… Que dizer do alento, do amor, que tantas vezes infun-
diu na alma do Irmão Francisco?!..Basta recordar a sua ternura, o seu
poder espiritual sobre o seu Pai e mestre aquando da crise da Primeira
Ordem por 1221-1223; a confiança nela depositada quando desejou saber
a vontade do Senhor: continuar a pregar ou dedicar-se à contemplação?
Quando sabia concretamente de alguém que ofendia a Deus, sofria e
intercedia pela sua transformação. Foi assim que o cavaleiro Hugolino que,
durante mais de vinte e dois anos vivera separado da esposa Guiduccia,
como depôs no processo de canonização de Clara, se reconciliou com ela
e voltou ao lar56
.
São muitos os testemunhos da eficácia da intercessão de Clara e suas
filhas em favor da cidade de Assis. Sempre que algum problema, ameaça
ou calamidade se fazia sentir, os assisienses sabiam que tinham no mos-
teiro mãos levantadas ao Céu suplicando perdão e bênção. Eles sabiam
—————
55
CHg. 3, in FF II, p. 432.
56
PC, XVI, 4, in FF II, p. 207.
27
que São Damião era o seu baluarte de defesa, porque oásis de oração e de
paz, e a ele recorriam com confiança. Foi o que aconteceu aquando das
incursões dos sarracenos em 1240 e de Vital de Antuérpia, sob as ordens
de Frederico II, em 1241. A oração e penitência das religiosas, recebida
pelo Senhor, libertou a cidade do assédio57
.
3. Francisco e Clara: Uma vocação comum, um mesmo carisma,
uma mesma família religiosa
Recordando, como acima ficou dito, que a Segunda Ordem
Franciscana, sob a acção do Espírito, foi profeticamente anunciada por
Francisco, quando reparava a igrejinha de São Damião, podemos dizer que
tem a raiz nas palavras dirigidas a Francisco quando, ainda no início da sua
caminhada de conversão, foi interpelado por Cristo a reparar a sua
Igreja. Desde, então, Clara passou a existir no coração e na mente do
Irmão, como a ―senhora pobre‖, ―a cristã‖, a mulher evangélica, que o
Senhor punha ao seu lado para fazer a mesma caminhada de fé e de vida
de seguimento de Cristo, numa dimensão que, embora não sendo paralela,
era complementar. A Pomba prateada ou Pomba do franciscanismo,
como repetidamente a chama Guedes de Amorim58
, é a pedra angular
sobre a qual assenta a nova Ordem, tradução feminina, sob a forma
claustral, do ideal de Francisco, seu pai e mestre espiritual.
Sendo única a vocação franciscana  renovar a vida de Cristo na
terra , nasce daí a necessidade de uma total abertura à vontade do Pai em
amor contemplativo, ao seguimento e transformação em Cristo, o Pobre
Crucificado, e, simultaneamente, a disponibilidade ao serviço dos homens,
no anúncio da Palavra.
Francisco irá mundo fora, liberto das coisas materiais, disponível para
caminhar, cantando como ―arauto do grande Rei‖, e comprometido
somente com Cristo, numa imensa clausura aberta, num convento feito ao
ar livre, entre o arvoredo, as ervas do campo e as flores; a sua ―Planta-
zinha‖, mulher de fé profunda e de pobreza, no silêncio contemplativo,
como o de Maria, ficará com suas Irmãs no seu pequeno mosteiro. Nesse
—————
57
Cf. PC, II, 20, p. 150; III, 18-19, p. 157; VI, 10-11, p. 173; IX,2, p. 181; XIII, 9,
p.199, XVIII, 6, p. 212, in FF II; também LCL, 21-23, pp. 257-259, in FF II.
58
Guedes de Amorim, Francisco de Assis, Renovador da Humanidade, Lisboa, 1960,
pp. 188, 247, 397, 402 e outras.
28
oásis de amor e de paz, estas filhas de Deus oram, amam e contemplam,
para que Francisco e seus Irmãos, na sua vida itinerante e humilde, possam
reparar a Igreja do Senhor. A ―Flor de Altura ―, como gentilmente a chama
o poeta José Régio,59
a mulher evangélica do século XIII, dentro do
pequenino mosteiro de São Damião, no segredo de Deus, numa longa
noite de silêncio contemplativo, fecundando a acção de Francisco e seus
Irmãos, adorando e orando pela humanidade inteira, é o complemento da
vocação do ―Poverello de Assis‖. Inseridas na fraternidade que tinha
Francisco por cabeça, comum era a sua missão: restaurar a Igreja de
Cristo, ser luz, ser claridade. E único era o carisma, pois, como dizia o
Irmão Francisco, ―… um só e mesmo espírito levou os irmãos e as
senhoras pobres a deixaram o mundo‖60
.
E o testemunho daquelas mulheres evangélicas era força fecundante
que, como rio de águas cristalinas, levava vida e vigor espiritual aos
homens, seus irmãos. Não admira que em Clara, coração aberto ao
mistério de Cristo, Francisco encontrasse força e luz em situações de
obscuridade e de dúvida.
Os anos iam passando.
Para o ―Pobrezinho de Assis‖, a grande família que o Senhor lhe dera,
era uma árvore única, crescendo com expressões diferentes, mas
complementares. Francisco e Clara surgem como exemplo maravilhoso de
um relacionamento amigo e terno, sempre orientado para Deus, único e
sumo bem. Detecta-se neles algo de misterioso, de fascínio, de transfigu-
ração. Eram espelho de Deus.
Em suma: O frade menor e a irmã clarissa, porque enamorados por
Jesus, eram e são chamados à identificação com o Senhor, à vivência do
Evangelho, em pobreza e fraternidade. Ambos são chamados a responder
com a vida, à ordem do Senhor: ―Francisco, vai e repara a minha casa
que, como vês, está quase em ruína‖61
. Uma mesma vocação, um mesmo
ideal, uma mesma responsabilidade, uma mesma resposta a dar.62
A
diferença está tão somente na forma de concretizá-la:
—————
59
Em louvor de Santa Clara (organizado por Armindo Augusto), Braga, 1954, pp. 199-
-200
60
2C, 204, in FF I, 2ª edição, p. 537.
61
2C, 10, in FF I, 2ª edição, p. 367.
62
Chiara Augusta Lainati, osc, Santa Clara de Asís. Prólogo à edição espanhola, p. 7.
29
O frade menor actua, por mandato do Senhor, no meio dos irmãos,
proclamando e testemunhando a plenitude do amor de Jesus Cristo, a
bondade de Deus e a fraternidade dos homens; a irmã clarissa, no escon-
dimento do claustro, vivendo em pobreza, em oração silenciosa e contem-
plativa, dá testemunho de Cristo em contemplação a sós com o Pai, pro-
clama ―o encanto que Deus é‖ e assume, com Cristo pobre e crucificado,
as dores, as alegrias e as esperanças dos homens.
Francisco e Clara!… Uma Família Franciscana, uma mesma vocação,
um mesmo ideal: o encanto, o enamoramento por Jesus Cristo. Uma só e
mesma vocação contemplativa.
O Irmão Francisco e a sua ―Plantazinha‖ tinham consciência desta
missão comum. Francisco, diante da fidelidade das damianitas, mulheres
evangélicas, fortes e fiéis no seguimento da Cruz e na vivência do carisma,
quis assumi-las como filhas, e isso, em seu nome e dos seus sucessores,
conforme o texto de Celano:
―Quando o Pai, mercê das numerosas provas de altíssima perfeição, as
viu decididas a aceitarem, por amor de Cristo, toda a espécie de trabalhos
e provações, e a não se desviarem nunca das santas normas recebidas,
prometeu-lhes firmemente, a elas e às que viessem a professar o mesmo
teor da vida pobre, o seu apoio e o dos irmãos. Enquanto viveu, manteve
sempre escrupulosamente esta promessa e, prestes a morrer, recomendou
encarecidamente aos irmãos que tivessem por elas as mesmas atenções‖63
.
Clara e suas Irmãs, viam em Francisco o pai, o irmão e, de certo
modo, a mãe que as alimentava com a sua espiritualidade; o mestre que as
levava sempre a superarem-se para as mergulhar em Deus.
No Testamento, o escrito mais impregnado de recordações pessoais e
franciscanas, que encerra todo o carisma da Segunda Ordem, a Pomba do
franciscanismo, evoca com a alma cheia de emoção e gratidão, a pessoa
daquele que foi ―nossa coluna e única consolação, nossa fortaleza, nosso
fundador, assistente no serviço de Deus‖64
e, que, ―movido de grande
ternura para connosco, se obrigou, por si e pela sua Ordem, a ter por nós,
tal como por seus irmãos, diligente caridade e uma solicitude particular‖65
.
Como consequência, Clara abandona-se a esta protecção e solicitude: ―Do
—————
63
2C, 204, in FF I, 2ª edição, p. 537.
64
TCL, 38 e 48, in FF II, pp. 71 e73.
65
TÇL, 29, in FF II, 71.
30
mesmo modo recomendo as minhas irmãs presentes e futuras ao sucessor
do nosso bem-aventurado Pai Francisco e a toda a sua Ordem, para que
nos ajudem a progredir cada vez mais no serviço de Deus e a observar
cada vez melhor, sobretudo, a santíssima pobreza‖66
.
Ao redigir a Regra, a Irmã Clara, recordando que no início da sua
conversão, ela e suas irmãs, haviam prometido obediência ao bem-
-aventurado Francisco, no capítulo I, deixa expresso o seu desejo e a sua
vontade de forma irrevogável: ―… da mesma maneira promete obediência
inviolável aos seus sucessores. E as outras Irmãs estejam sempre obrigadas
a obedecer ao sucessor do bem-aventurado Francisco‖67
.
Quem não vê implícita, nas entrelinhas dos textos de Francisco e de
Clara, a vontade de tão santos fundadores, de que as Irmãs Clarissas
tenham com o Primeira Ordem Franciscana ligação jurídica bem
definida?…
Esta filha querida do ―Poverello‖ encarna, de forma ímpar, o ideal
recebido e, na clausura de São Damião, sustenta e anima os seus Irmãos na
fidelidade ao projecto de Francisco. Depois da sua morte, a 11 de Agosto
de 1253, os Irmãos Menores ―descobrem em Clara a guarda do projecto
evangélico originário‖68
.
Deus, condutor da história dos homens, em cada época suscita os
profetas de que a Igreja precisa. No século XIII, Francisco e Clara foram
instrumentos de Deus para a renovação necessária e adequada.
—————
66
TCL, 50, p. 73; RCL, 4, p. 53, in FF II.
67
RCL, I, 4, in FF II, p. 45
68
Frei Giacomo Bini, op. cit., p. 21.
31
A MENORIDADE EM CLARA DE ASSIS
Marco Bartoli*
—————
*
Das Actas do Congresso celebrado em Roma, em 26 e 27 de Novembro de 2002,
Minores et subditi omnibus
32
A MENORIDADE EM CLARA DE ASSIS
O tema da minoritas (menoridade) em Clara de Assis é um problema
historiográfico assaz intrigante sob muitos aspectos. Entrando nele
directamente, poderíamos perguntar: por que razão os discípulos de
Francisco se chamaram irmãos menores e as mulheres, que também
prometeram obediência, nunca se chamaram irmãs menores?
A resposta não é tão simples como pode parecer, tanto mais que a
designação de irmãos menores não é de todo ignorada nas fontes coevas,
nem a menoridade, como conteúdo, deixou por certo de merecer alguma
vez todo o apreço da própria Clara1
. Afonso Marini recorda, por exemplo,
uma passagem da segunda carta a Inês da Boémia, em que se diz: ―Eu te
exorto a não esqueceres o teu santo propósito e, qual outra Raquel, não
—————
1
Eu mesmo, como muitíssimos outros antes de mim, a propósito da da menoridade de
Clara, mesmo em sede de congresso, utilizei outro famoso texto dos escritos de Clara,
da Regra, que diz: ―Com efeito, muitas vezes é ao mais pequenino que o Senhor revela
aquilo que mais convém”(cf. Fontes Franciscanas II, Editorial Franciscana, Braga,
1996, obra que citaremos neste artigo como FFII). A expressão é ao mais
pequenino(menor) que o senhor revela, é tirada da regra de S. Bento (cf.3,3), mas ali se
diz iuniore (o mais jovem). Clara parece ter substituído conscientemente a palavra
iuniore por minori tirando o acento tónico do problema da idade para a importância no
seio da comunidade. Tudo isto pode ser sugestivo, mas devemos deixar isto de parte,
porque uma leitura recente duma Bula que continha a Regra, conservado no
Protomosteiro, estabeleceu que a leitura correcta é iuniori, tal como vem na Regra de S.
Bento. Agradeço ao P. Lehmann o haver-me esclarecido sobre este erro, e sobretudo o
último estude de CHIARA AGNESE ACQUADRO, ――Frecuentemente el Señor revela al
menor lo que es mejor‖. Um erro de leitura já velho, de cinco séculos». Em Collectanea
Franciscana 71 /3-4(2001), 521-526.
33
percas de vista as motivações do início. Mantém-te firme no que já
alcançaste‖2
. Segundo Marini, ―Raquel, mulher de Jacob, com a irmã mais
velha, Lia, era tida como símbolo da vida contemplativa, já que no Génesis
20,16, se lê que Raquel é a filha menor de Labão. Ora o «início‖ a que
Inês, qual outra Raquel, é convidada por Clara a ter sempre presente,
parece ser aqui a ―menoridade‖ franciscana, mais do que a contemplação
em sentido estrito3
.
Seja como for, em todos os escritos de Clara o termo menor está
exclusivamente associado aos irmãos menores, como se o ter de aludir
sequer à condição de menoridade lhe provocasse algum pudor ou reserva.
É talvez devido a este silenciamento que, tanto quanto sei, não são muitos
os estudos dedicados ao tema da menoridade em Clara de Assis4
.
Esta escassez de estudos não deixa de nos surpreender um tanto, pois
sabemos, por outra parte, que o primeiro e conhecidíssimo testemunho
sobre o movimento iniciado por Francisco de Assis falava explicitamente
não só de irmãos como também de irmãos menores. Aludo aqui, como se
está a perceber, à carta de Tiago de Vitry, escrita em 1216, imediatamente
após a sua participação em Perusa nas exéquias de Inocêncio III: ―Apesar
de todo o mal que grassa pelo mundo, encontrei uma grande consolação
ao ver uma enorme quantidade de homens e de mulheres renunciar a todos
os bens e a deixar, por amor de Cristo, a vida mundana. Eram vulgarmente
chamados Irmãos e Irmãs menores. Tanto o senhor Papa como os
Cardeais professam uma grande estima por estes irmãos‖5
.
Poder-se-ia pensar que Tiago de Vitry se tivesse simplesmente
confundido, aplicando às mulheres o mesmo nome utilizado para os
homens. Mas talvez se possa avançar outra explicação. Alguns anos mais
tarde, o Papa Gregório IX, na carta Ad audientiam nostram de 21 de
—————
2
2CCL 11
3
«Antologia degli scritti di santa Chiara», a cura de A. MARINI, em Chiara d’Assisi.
Con Francesco sulla via di Cristo, Asís-Santa Maria dos Anjos 1993, 51-661; 115-152,
a citação está na p. 132.
4
Um dos pouco que em tempos relativamente recente se interessou pelo temo foi P.
OPTATO VON ASSELDONK, ――Sorores minores‖. Um nova visão do problema», em Sel.
Fran. 69 (1994) 373-406.
5
FFII p. 477
34
Dezembro de 1241, tomava posição contra algumas mulheres a quem
chamavam ―minoretae‖ (menores): ―Aos veneráveis irmãos, Arcebispos e
Bispos que recebam esta carta, saúde e bênção apostólica. Sabeis certa-
mente que chegou ao nosso conhecimento o caso de algumas mulheres
que circulam pelas vossas cidade e dioceses e falsamente afirmam fazer
parte da ordem de São Damião. Para se tornarem mais credíveis, andam
descalças e vestem o hábito das monjas da dita Ordem. Por isso lhes
chamam descalças, cordígeras ou menores. É sabido que as monjas de S.
Damião vivem a clausura perpétua como serviço prestado a Deus. E uma
vez que isso causa perplexidade à Ordem de São Damião e indignação aos
Frades Menores e esta falsa Ordem causa escândalo aos ditos frades e às
ditas monjas, ordenamos com esta Carta Apostólica, a todos vós, que as
obrigueis, com censura eclesiástica, a renunciar a tal hábito e respectivo
cordão, depois de as terdes admoestado logo que sejais informados da sua
presença, concedendo-lhes faculdade de apelar‖6
.
Era pois desta forma que o Papa afirmava não convir tal menoridade
às monjas da Ordem de São Damião, embora, por outro lado, as suas
palavras sejam a prova provada de que a menoridade nos meados do
século XIII não era apanágio apenas de homens, antes andava igualmente
associada a grupos de mulheres que viviam a opção franciscana numa vida
itinerante. A este respeito, Maria Pia Alberzoni observou ser ―significativo
que tal fenómeno (das minoretae) só se tivesse manifestado nos inícios da
década de 40 de 1200, o que poderá indiciar o facto de haverem estado até
então no centro das atenções, mercê da mediação de Frei Elias, e de serem
reconhecidas de alguma maneira pela Ordem franciscana ou por uma parte
dela, e encaminhadas na direcção das que definimos como fundações de
clarissas (clareanas)‖7
.
Segundo um testemunho tardio, Francisco teria reagido vivamente
contra a denominação de irmãs menores a si próprias arrogada por certos
—————
6
FFII p. 474
7
M.P. Alberzoni, Chiara e il papato, Milan, 1995, 91. Há que observar que no século
XVII, L. Iacobili, historiador da santidade da Umbria, anotava, referindo-se ao ano
1216: ―Santa Clara de Assis veio a Folinho em companhia de Marsebilia e Cristiana,
suas discípulas, para edificar um mosteiro da sua Ordem de São Damião, chamado
depois das Minorisse…”, Folinho, Biblioteca Iacobilli, cod. A.V. 6, c. 56; ed. Em M.
SENSI, ―Le clarisse a Foligno nel sec. XIII‖, em CF 47 (1977), 358, documento II.
35
grupos femininos, ou porventura a elas atribuída a partir do exterior8
.
Teria inclusivamente invocado a assistência do cardeal Ugolino para que
―de futuro, se não chamassem irmãs menores, mas dominae, ou seja,
senhoras9
. Embora tardia, esta tradição revela no entanto que persiste um
certo embaraço nos ambientes franciscanos, face ao termo menores
aplicado às mulheres, embaraço que vemos repercutir-se ainda em Fra
Mariano de Florença, no início do séc. XVI, no seu Libro della dignità et
le excellentie… ―Mas quando São Francisco voltou de Santiago e ouviu da
parte dos irmãos que se tinham edificado mosteiros em muitas terras e
cidades e que muitas irmãs se chamavam menores, grandemente se doeu
por não querer tê-las ali perto, dando aso a que os irmãos tivessem
familiaridades com mulheres e daí se levantassem sinistras suspeitas entre
o povo. Pelo que não quis tomar conta delas, excepto as já mencionadas,
de São Damião‖10
.
Parece certo, todavia, que em contextos de algum modo periféricos,
relativamente à região umbro-toscana onde nasceram as primeiras
comunidades próximas da experiência de São Damião, a designação de
—————
8
«Dizia o mesmo Fr. Estevão que o bem-aventurado Francisco não queria ter familia-
ridade com nenhuma mulher e não permitia que as mulheres o tratassem com modos
familiares; só parecia ter afecto para com a bem-aventurada Clara. E, não obstante,
quando falava com ela ou falava dela, tratava-a sempre com o nome de ‗cristã‘. E tinha
grande solicitude para com ela e seu mosteiro. E nunca autorizou a fundação de outros
mosteiros, mesmo que alguns tenham sido abertos, mas por influência de outros. E
quando soube que as mulheres, reunidas nesses mosteiros, se chamavam irmãs, per-
turbou-se muito e exclamou: ―O Senhor tirou-nos as mulheres e o diabo deu-nos as
irmãs‖. O Cardeal Hugoloino, bispo de Óstia, então Protector da Ordem dos Menores,
acompanhava estas irmãs com grande afecto. Uma vez ao despedir-se de Francisco,
disse-lhe: ‗Confio-te estas senhoras‘. Francisco, então, respondeu-lhe com graça: ‗Santo
pai, de agora em diante não se chamarão irmãs menores, mas como tu disseste,
senhoras‘. E desde então, chamaram-se Senhoras e não Irmãs», em Fonti Francescane
2682-2683.
9
Cf. STANISLAO DA CAMPAGNOLA, Introduzione, em Fonti FrancescaneI, p.315
10
MARIANO DE FLORENCIA, Libro della dignitá et le excellentie del Ordine della
Seraphica Madre delle Povere Donne Sancta Chiara da Assisi (Biblioteca de Estudios
Franciscanos 18), edição preparada por G. Boccali, Florencia-Assis 1986, 55, n. 39. Isto
no seguimento duma larga tradição, dado que, por exemplo, numa compilação de Paris
do século XIII, na perícopa narrada por Fr. Estevão, vem anteposta a assinatura
―(Francisco) não queria que se chamassem menores, mas senhoras‖, AFH 76 (1983),
89, n. 504.
36
irmãs menores fosse aplicada também a experiências de vida em comum. É
o caso, por exemplo, de Verona, cujas transformações institucionais foram
estudadas por Varanini11
; não se devendo também esquecer que no códice
de Volterra, onde se encontra o texto audite poverelle, junto à regra de
Clara, se lê: ―Esta é a Regra das senhoras ―minoritas‖ de Verona da
Ordem de santa Clara de Campo Márcio‖12
. Digno de menção é ainda o
caso de Trento. onde um grupo de mulheres, de inspiração inegavelmente
franciscana, vivia, ao que parece, uma vida religiosa em comum ao serviço
dum hospital13
. O caso de Trento surge ainda mais significativo se
tivermos em conta o facto de terem partido precisamente de Trento as
quatro mulheres que deram início ao mosteiro de são Francisco de Praga,
projectado e fundado em íntima e explícita relação com São Damião por
Inês da Boémia14
. Importa não esquecer finalmente que as mulheres que se
tinham reunido em volta de Isabel, irmã do rei Luís IX; eram
habitualmente chamadas minorese (minoritas?) e que numerosos
mosteiros, também em Itália (entre os quais o de São Lourenço in
Panisperna, em Roma) tinham tomado a Regra e denominação de Isabel15
.
Em todo o caso, no território umbro-toscano, a partir da década de
40 do ano 1200, o termo menores deixa de se aplicar às comunidades de
vida religiosa feminina agregadas à experiência de Clara. A condenação
formal das ―minoretae‖ constituía de facto um impedimento insuperável ao
uso do mesmo termo para as comunidades de vida religiosa unidas a São
Damião. É bem conhecido, por outra parte, o facto de que, enquanto nas
Constituições de Ugolino se preferir o termo senhoras pobres, Clara, nos
seus escritos, prefere falar de irmãs pobres, conforme diz solenemente no
começo da Regra: ―A forma de vida da Ordem das Irmãs Pobres, instituída
pelo bem-aventurado Francisco, é esta: observar o santo Evangelho de
—————
11
G.M. VARANINI, «Per la storia dei Minori la Verona nel Duecento», em Minoritismo
e centri venetoi nel Duecento, edicão preparada por G. Gracco («Civis. Studi e testi», 7
(1983)), 93-101.
12
A notícia relativa à Audite Poverella encontra-se na Collectanea Franciscana 48
(1978), 17. Cf. Também a nota de G. Bocali ao texto de mariano de Florencia, Il libro
della dignitá…, 58, n.1.
13
G.M. VARANINI, Uomini e donne in comunitá, (Quaderni di storia religiosa 1994).
14
Sobre os acontecimentos veja-se A. MARINI, Agnese di Bohemia, Roma 1991,
(Biblioteca seráfico-cappucina, 38).
15
Cf. A. BLASUCCI, «Clarisse Isabelliane o Minoresse», em Dizionario degli Stituti di
Perfezione, II, Roma (1975), 1.146.
37
Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em
castidade.‖ Nenhuma dúvida pode haver de que, aqui, Irmãs Pobres é a
tradução no feminino de Irmãos Pobres, que se encontra na respectiva
passagem da Regra bulada. A hipótese que se pode legitimamente adiantar
é que Clara, na impossibilidade de usar o termo irmãs menores (sobretudo
depois da carta Ad audientiam nostram de Gregório IX) teria optado por
Irmãs Pobres, expressão que mais próxima lhe soava.
Fica no entanto por explicar a relutância por parte das mais altas
autoridades eclesiásticas relativamente ao uso do termo menores, aplicado
às experiências religiosas femininas. Nesse intento, talvez seja útil tentar
estabelecer qual o valor semântico do termo no séc. XIII. Desejaria tomar
como ponto de partida a definição de menoridade optada por Pedro de
João Olivi no seu comentário à Regra, por se tratar dum texto redigido
poucos anos depois da morte de Clara e reflectir de algum modo a cultura
e sensibilidade então dominantes em toda a Ordem.
―Ao falar, pois, dos irmãos menores, mostra claramente que a
principal virtude e razão desta Regra está na suma submissão e humildade
e na unidade íntima do amor fraterno‖16
.
É meu entendimento que Olivi identificava nestas palavras dois
significados principais, um, por assim dizer, de cariz social, a ―submissão,
e o outro, mais especificamente religioso, a ―humildade‖.
Relativamente ao primeiro aspecto, parece-me indubitável que
menoridade tem um valor muito concreto: o daquele que se encontra na
situação de dependência, de inferioridade, de submissão em relação a
outrem, como recorda Francisco no Testamento: ―Éramos sem letras e a
todos submissos.‖. Conforme já notava Estanislau de Campagnola, ―a
origem da designação de irmãos menores nasceu sem dúvida de um tipo
de conduta evangélico, mas exprimia também uma renúncia às distinções
entre ―maiores‖ e ―menores‖ que dominavam e se entrechocavam nas
grandes cidades italianas. Exactamente quando Francisco voltava de
Roma, concluiu-se em Assis (9 de Novembro de 1210) um pacto entre
―maiores‖ e ―menores‖, em virtude do qual a população do Município
—————
16
D. FLOOD, Peter’s Olivi Rule Commentary, Wiesbaden 1972, 117.
38
obteve a isenção do serviço e menagem feudais em vista duma pacífica
convivência entre as duas classes‖17
.
A menoridade franciscana revestia-se também de um carácter
especificamente social. Para usar as mesmas palavras de Raoul Manselli:
―entrar a fazer parte (da fraternidade) significava também aceitar a vida, ou
seja, aquela condição de marginalidade relativamente ao resto da
sociedade que Francisco escolhera depois do encontro com o leproso e
que, baseada na leitura do Evangelho, ele próprio tinha podido precisar e
clarificar depois, averbando por escrito o projecto duma Regra a aprovar
pelo Papa‖18
.
Parece-me ter sido justamente este aspecto social que constituiu o
maior problema para as mulheres que desejavam seguir Francisco no
caminho da menoridade. O abandono de qualquer estatuto social garantido
e a opção duma vida a todos submetida devia constituir motivo de
preocupação, tratando-se de mulheres jovens como Clara e suas com-
panheiras. Há uma reflexão sobre este problema na Legenda da virgem
Santa Clara, quando se fala da reacção dos familiares apenas souberam
que Clara se tinha refugiado em São Paulo das Abadessas: ―…juntaram-se
e dirigiram-se ao local. Usando da força e da violência, conselhos
dissuasores e promessas vãs, tentaram demovê-la de situação tão humi-
lhante e tão em desacordo com a sua condição e sem precedentes nas
redondezas‖19
. Os familiares querem convencer Clara a renunciar a tal
vileza (vilitas), que as Fontes Franciscanas traduzem por ―condição de
humilhante baixeza‖, de todo inconveniente para a famílias e sem
precedentes na região.
Esta ―vileza‖ de Clara, como já tentei demonstrar noutra ocasião, não
consistia tanto na opção pela vida monástica, como certamente na venda
que fizera do dote e na distribuição do seu produto pelos pobres.. Neste
sentido, a vileza identifica-se com a submissão e a menoridade: uma vez
em São Paulo das Abadessas, Clara devia ser não já uma monja de coro,
mas, muito mais modestamente, uma simples irmã serviçal. Tal condição
—————
17
STANISLAO DA CAMPAGNOLA, Introduzione, em Fonti Francescane, p. 315.
18
R. MANSELLI, Vida de san Francisco de Asís, Ed. Franciscan Aránzazu, Oñati, 1977
19
LCL 9, FFII, p. 246
39
era considerada aviltante para uma jovem, filha duma das melhores famílias
de Assis.
Que a Legenda não se enganava muito, ao descrever a opção de Clara
como desusada na região, pode ver-se no confronto com outras vidas de
santas mulheres, suas contemporâneas. Se examinarmos, por exemplo, o
antigo ofício litúrgico redigido em honra de Filipa Mareri antes de 1247,
verificamos como esta mulher, de nobre linhagem, escolheu certamente o
desprezo do mundo com as suas dignidades e riquezas, mas permaneceu
no território do feudo da família com algumas companheiras, depois de ter
recebido do irmão um público instrumento de estável isenção e de
perpétua liberdade. Em suma, mesmo escolhendo a via evangélica do
amor a Deus e ao próximo, Filipa era e continuou a ser baronesa20
.
Percurso análogo ao de Filipa é o de Margarida Colonna, que continuou a
viver no feudo da família, unida aos seus famosos e importantes irmãos21
.
Rosa de Viterbo, que provinha duma família porventura nada pobre,
era certamente mulher do povo e não uma aristocrata, e a sua opção de
vida religiosa, permanecendo laica, não comportou qualquer mudança no
ponto de vista social22
.
Mudança em sentido inverso foi a que viveu Margarida de
Cortona, que, para alcançar uma impossível proeminência social, fugiu de
casa para viver maritalmente com um jovem abastado de Montepulciano.
A morte súbita deste levou Margarida a uma amarga reflexão sobre as suas
opções de vida e, em consequência, a escolher sem vacilações o caminho
da penitência. Do ponto de vista pessoal, certamente que Margarida terá
tido uma consciência humilíssima de si mesma, unida a um arguto
conhecimento do próprio pecado, mas do ponto de vista social nada
—————
20
Cf. E. PASZTOR, «Filippa Mareri e Chiara d‘Assisi», em Donne e sante. Studi sulla
religiosità femmenile nel Medio Evo, Roma 2000, 173-196.
21
Sobre Margarita Colonna consulte-se: B. Margherita Colonna. Le due vite scritte dal
fratelo Giovanni senatore in Roma e da Stafania monaca de S. Silvestro in Capite,
textos inéditos do século XIII ilustrados e publicados pelo P. Livario Liger, OFM,
Roma, 1935.
22
Entre as muitas publicações sobre Rosa de Viterbo, gostaria de aconselhar o que
sinteticamente escreveu, há algum tempo, o P. MARIANO D‘ALATRI, Rosa da Viterbo tra
mito e storia, en «Lunario Romano 1979»: Feitos e figuras de Lazio medieval, 345-354.
40
houve, no seu percurso biográfico, que se assemelhasse à mencionada
―vileza‖ que tinha caracterizado o de Clara de Assis.23
Outra figura, sempre associada ao mundo dos laicos que gravitavam
em torno do movimento franciscano, além do de Margarida de Cortona, é
Humiliana dei Cerchi. Também ela, não obstante as graves incompreensões
que a opuseram ao pai depois da morte do marido, permaneceu sempre em
casa da família, no centro de Florença24
. Um pouco à semelhança das
outras piedosas mulheres, viveu uma vida de penitência e de mortificação
pessoal, praticando a pobreza voluntária e a renúncia aos bens. Apesar
disso, de nenhuma delas se poderia falar de autêntica opção de
menoridade, enquanto opção de submissão e de ignobilidade.
A única figura feminina que, em certo sentido, se aproxima de Clara
neste aspecto só além dos Alpes a vamos encontrar. Refiro-me a Isabel de
Hungria. Falecido o marido, renunciou ao seu próprio estatuto social,
vendeu os bens e, com o produto granjeado, mandou construir uma lepro-
saria, onde passou o resto dos breves dias servindo os enfermos e os
pobres25
.
A menoridade, tanto para Clara como para Isabel, teve também um
valor social: ambas renunciaram às comodidades próprias da sua condição
a fim de se colocarem conscientemente ao serviço de todos,
designadamente dos últimos dos últimos. Em Clara, certamente mais do
que em Isabel, esta opção foi por ela encarnada numa vida religiosa em
comunidade, e é por isso que, tanto a dimensão social como a religiosa de
menoridade, aparecem nela estreitamente unidas.
—————
23
No que respeita a Margarida de Cortona, o texto de referência é a Legenda de vita et
miraculis Beatae margaritae de Cortona, edição crítica preparada por Fortunato
Iozeelli, Grottaferrata 1997.
24
Sobre as Humiliatas vejam-se os trabalhos de Ana Benvenutti, reeditados em «In
Castro poenitentiae». Santità e società femmenile nell’Italia medievale, Roma 1990
sobre todo mas pgs. 59-100.
25
Sobre Isabel da Hungria e sobre a relação da sua espiritualidade com o dos Frades
Menores consulte-se «Elisabetta d‘Ungherria», em Il grande libro dei Santi, Dizionario
enciclopédico, col. I, Cinisello Bálsamo 1998, 591-594.
41
A par da submissão, encontramos em Clara, fortemente vincada, a
humildade. Na Legenda da virgem Santa Clara sublinha-se a miúdo,
quase como uma constante de biografia monástica, o facto da abadessa
não desdenhar dos serviços mais desprezíveis. De Clara se diz inclusi-
vamente que não tinha o menor pejo em esvaziar os vasos de cabeceira das
irmãs doentes e de as servir à mesa, mas, para além deste lugar comum
hagiográfico, cuja veracidade se não deve pôr em dúvida26
, impõe-se
sublinhar a forma como Clara quis construir a sua comunidade sobre o
modelo duma família normal, mas numa correlação diametralmente
inversa.
A frase que melhor ilustra este modelo está contida no capítulo X da
Regra, onde se diz: ―A abadessa trate as irmãs com tanta familiaridade,
que possam elas falar-lhe e tratá-la como senhoras a sua serva; pois assim
deve ser: que a abadessa seja a serva de todas as irmãs‖27
. Apesar desta
frase ter paralelo equivalente na Regra bulada28
, pode considerar-se como
uma expressão basilar do pensamento da santa. Clara sabia muito bem com
que perversidade se dirigiam os senhores às suas servas nas casas
senhoriais e, por isso, quis inverter explicitamente este modelo na sua
Regra: a abadessa devia aceitar ser tratada como serva pelas irmãs. Neste
sentido, embora a palavra, nos escritos de Clara, jamais se aplique ao
serviço em favor das irmãs, a sua humildade comunitária encarna duma
maneira precisa uma atitude de fundo da menoridade inculcada por São
Francisco: a do serviço. Ministrare significa ―servir‖, mas servir nos
trabalhos domésticos, como Marta do evangelho, que se lamentava ao
Senhor de a irmã a ter deixado sozinha a ministrare. O retrato que Clara
faz na sua Regra da abadessa é justamente a de serva ou, melhor ainda, a
de famula (que é o exacto paralelo feminino de minister) que não
desdenha ocupar-se das actividades mais servis. Este aspecto da sua
humildade revela, a meu ver, melhor que qualquer outro, o lado doméstico
e comunitário, por assim dizer, da menoridade de Clara. Ainda hoje, se é
verdade que as abadessas clarissas, diferentemente do que acontece
noutras famílias religiosas, não apresentam no hábito qualquer sinal
exterior que exteriorize a sua dignidade, deve-se provavelmente à influên-
—————
26
LCL 12, FFII p. 249.
27
RCL 10, 4-5, FFII p. 59.
28
2R 10, 5-6.
42
cia da menoridade de Clara ao longo duma tão grande experiência comu-
nitária.
Se voltarmos à definição de menoridade proposta por Pedro de João
Olivi, sobre que nos detivemos ao princípio, há ainda um ponto a salientar:
―Ao falar, pois, dos irmãos menores evidencia claramente que a principal
virtude e razão desta Regra consiste na perfeita submissão e humildade e
na íntima unidade do amor fraterno‖. Para Olivi, a perfeita submissão e
humildade não é certamente uma debilidade, antes uma força (virtude) e
um sentido profundo (razão) da Regra.
Talvez valha a pena determo-nos neste sentido de força e de virtude,
já que na linguagem corrente de hoje a menoridade anda frequentemente
associada a uma ideia de debilidade, se não mesmo de aviltamento e
sujeição. Aqui chegado, permito-me sair de uma envolvência estritamente
historiográfica para observar como hoje em dia um modelo cultural em
certo sentido superior, sobretudo nos países mais ricos, cultiva e reforça o
sentido de impotência29
. Este sentido funciona no caso da multiplicação
das informações que caracterizam o mundo globalizado. Nunca, como
hoje, os homens e as mulheres tiveram um tal acesso às notícias do mundo
inteiro. Toda a notícia mereceria uma reacção, um assumir de
responsabilidades, segundo o princípio enunciado por Paulo VI (―jamais
poderemos dizer que não sabíamos‖). Se não queremos ser esmagados
pelo sentido de culpa, impõe-se que nos refugiemos no sentido de impo-
tência que permita dizer: os problemas são tantos que nada posso fazer.
Por isso, a impotência chega a ser funcional para o caso da pretendida
inocência ou, talvez melhor, para a não culpabilidade.
Em certos aspectos, este sentido de impotência compagina-se com a
menoridade. Ambos albergam o conhecimento da própria pequenez e
finitude pessoais, mas, ao passo que a impotência, apregoada pelos actuais
mass media, induz à resignação e passividade relativamente ao mundo e
seus problemas, a menoridade optada por Francisco era conhecida por
toda a primeira geração minorítica (pelo menos até Pedro de João Olivi,
inclusive) como uma virtude, uma força e uma oportunidade.
—————
29
O P. RICOEUR, em La memoire, l’histoire et l’oubli, Paris, 2000, dedicou páginas
interessantes ao tema da sensibilidade vitimista.
43
Para mim tenho que este sentido forte de menoridade foi igualmente
o de Clara, que, desfrutando embora de um sentido vivíssimo da sua
pequenez, possuía também um fortíssimo sentido de que a menoridade por
ela escolhida voluntariamente era abençoada pelo Senhor que a
confortava. É o que transparece, por exemplo, na sua famosa bênção, com
cujas palavras me parece oportuno concluir:
―Eu vos abençoo durante a minha vida e depois da minha morte,
quanto posso e mais do que posso, com todas as bênçãos que o Pai das
misericórdias concedeu ou venha a conceder aos seus filhos e filhas espi-
rituais, no céu e na terra, e com as quais um pai ou mãe espiritual abençoa
e abençoará seus filhos e filhas espirituais. Assim seja‖.
Traduziu Fr. José David Antunes
45
ALEGRIA E PAZ
Fr. Timothy Radcliffe op*
—————
*
Conferência proferida durante o Capítulo Geral dos Franciscanos – Junho de 2003
46
ALEGRIA E PAZ
É para mim uma grande alegria estar no meio de vós. Quando eu fui
Mestre Geral dos Dominicanos, a relação com a vossa Ordem era muito
importante para mim. Tive uma grande amizade com Fr. Hermann e Fr.
Giacomo e os nossos Conselhos reuniram, em conjunto, por várias vezes.
Pediram-me para partilhar convosco alguns pensamentos sobre a
missão. A concepção franciscana e dominicana de missão é ao mesmo
tempo semelhante e diferente.. Temos uma longa história partilhada sobre
a missão. O primeiro documento oficial da Igreja enviando os franciscanos
em missão, assinado por Honório III em 1225, também se dirigia aos
dominicanos. Fomos enviados juntos como missionários ao norte de
África. Também houve problemas entre nós, como sempre acontece entre
irmãos.
Quando li o relatório do Fr. Giacomo a este Capítulo Geral, pareceu-
-me semelhante àquele que enviei ao nosso último Capítulo. Enfrentamos
os mesmos desafios e temos projectos semelhantes: uma comunidade
internacional em Bruxelas; o reforço duma comunidade em Istambul;
renovação na África do Norte, etc. E também temos uma Comissão de
Direitos Humanos em Genebra. Algumas vezes tive de me concentrar para
me assegurar que não estava a ler o meu próprio relatório. Mas também
somos muito diferentes, como o foram Francisco e Domingos. Assim
espero que o que vou dizer sirva de complemento. Se não, ficarei
consolado recordando um dos meus irmãos da Conferência dos Estados
Unidos: Quando se sentou, depois de falar, pareceu-lhe que os aplausos
tinham sido fracos. Um pouco desgostoso desabafou com o vizinho:
―Espero que a conferência não tenha sido tão má‖! Ao que o outro
respondeu: ―Deixa lá. A culpa não é tua, é de quem te convidou‖!
47
Primeiro, um comentário introdutório: estão a reflectir sobre a missão
num clima de crise para a vida religiosa. A maioria das Ordens religiosas
sentem as mesmas dificuldade: A escassez de vocações em algumas partes
do mundo e o abandono desta forma de vida. No seu relatório diz o Fr.
Giacomo: ―Nestes anos a Ordem decaiu em número e isto ainda será mais
notório nos próximos tempos‖. Num tempo de crise, é fácil perder o ardor
missionário e voltar-se para dentro. É tentador preocupar-se pela
sobrevivência, de forma que cada Província olha as suas próprias
necessidade e esquece a missão de toda a Ordem, cada comunidade pensa
na sua própria sobrevivência e esquece a Província e cada frade esquece o
seu irmão e pensa só nas suas próprias necessidades. Quando começamos
a pensar em termos de sobrevivência, estamos acabados. Por que razão um
jovem se haveria de juntar a nós, se só pensamos em sobreviver? Ainda
bem que neste Capítulo não foram ir por aí e quiseram pensar na missão.
O mais importante é não temer esta crise. A nossa missão está em
partilhar a vida de Cristo. E a vida de Cristo esteve marcada pela crise. A
sua missão alcança a máxima crise na Última Ceia. Jesus reúne os
discípulos à sua volta, quando a comunidade se está quase a desintegrar:
Judas já O tinha vendido; Pedro está prestes a negá-lO. E a maioria dos
outros discípulos vai fugir. A vida de Cristo encaminha-se para o fracasso
e a derrota. Mas é num momento de crise que realiza o gesto tão cheio de
esperança: Toma o pão e dá-o aos seus discípulos dizendo: ―Isto é o meu
corpo entregue por vós‖. Quando a comunidade se está desintegrando,
proclama a nova Aliança. Cada eucaristia que celebramos actualiza o
memorial desta crise vencida e transcendida. Não há nada que temer
perante as crises. A Igreja nasceu duma. Seguir a Cristo é passar por
numerosas crises. As nossas Ordens viveram muitas: para vós a morte de
Francisco, para as nossas Ordens a crise da peste negra, a reforma, a
revolução Francesa, os dolorosos e gloriosos anos depois do Concílio
Vaticano II. As crises são o trampolim para o Reino.
Os Franciscanos, ainda mais que os Dominicanos, sempre acentuaram
que a sua missão se enraizava na forma de vida, a sua vida. Fr. Giacomo
diz no seu relatório: ―Mais que geográfica, a missão dos Franciscanos é
48
antropológica‖1
. Intuo que no coração de sua missão está a alegria de S.
Francisco. A sua regra manda que os frades vão pelo mundo ―com alegria
e felicidade‖. Ninguém acredita que um pregador tristonho é portador de
boas notícias. Como escreveu Nietzsche: ―Os discípulos de Cristo
deveriam mostrar-se mais redimidos‖.
S. Francisco e seus primeiros irmãos viviam cheios de alegria. As
cartas de Clara estão cheias de alegria. O mesmo se pode dizer de S.
Domingos e seus primeiros irmãos. Muitas vezes se descreve a S. Domin-
gos como um homem que ria com seus irmãos. E esta é a autoridade mais
fundamental dum pregador. Conta a história que um dia um grupo de
noviços começou a rir durante as Completas. Um dos irmãos mais velhos
zangou-se com eles por rirem na igreja. Mas Jordão da Saxónia, sucessor
de S. Domingos, repreendeu-o e disse aos noviços: ―Riam até vos apetecer
e não liguem ao que diz este irmão. Tendes a minha autorização. Devemos
rir quando nos conseguimos libertar do maligno… riam, pois, e
manifestem contentamento até à saciedade‖. Um frade tristonho não podia
ser membro da Ordem dos Pregadores.
O Cardeal Suhard, antigo Bispo de Paris, escreveu: ―Ser testemunho
não consiste em comprometer-se com propagandas ou amotinar as turbas,
mas em crer num mistério vivo. Significa viver de tal forma que a própria
vida não teria sentido se Deus não existisse‖2
. As pessoas seriam atraídas
ao Evangelho se encontrassem em nós uma alegria inexplicável, que não
teria sentido se Deus não existisse. Seriam atraídos e ficariam atónitos com
a nossa alegria. Teria que ser um sinal interpelativo vivo e um convite. Um
dia passando pela cidade velha de Jerusalém, de regresso a casa, vi, através
duma porta, uma casa cheia de Hassidin que bailavam. Na sua alegria eu vi
a sua fé.
Francisco acreditava que a própria vida é uma entrada na vida de
Jesus. E a missão de Jesus começou com a alegria do Pai no baptismo.
Emerge das águas e escuta-se uma voz dizendo: ―Tu és o meu filho muito
amado, em ti pus as minhas complacências.‖ A fons et origo da missão de
—————
1
P. 88
2
Growth or Decline, Notre Dame 1951, quoted by S. Hauerwas, Sanctify the Time,
Edimburgh 1998, p. 38.
49
Jesus é a alegria que o Pai tem no Filho e a alegria que o Filho tem no Pai,
que é o Espírito Santo. O mestre Eckhard, dominicano e místico alemão,
diz que no centro da vida de Deus há um riso incontível. ―O Pai ri com o
Filho e o Filho ri com o Pai, e o riso traz prazer e o prazer traz alegria e a
alegria traz amor.‖3
Diz que a alegria de Deus é como um cavalo
galopando num campo, cortando o ar com prazer.
Toda a nossa pregação é um convite às pessoas a encontrar o seu
lugar nessa alegria. Jesus iniciou a sua missão participando numa festa e
bebendo com cobradores de impostos e prostitutas. Encontrou prazer em
estar com eles; deleitava-se na sua companhia. A Igreja não tem nada que
dizer sobre qualquer assunto, mormente sobre moral, enquanto as pessoas
não sintam a Igreja como um espaço de alegria, no qual se Deus se
compraz. A gente mais marginal, cujas vidas são uma tragédia e não vivem
de acordo com as leis da Igreja, deveriam encontrar em nós, uma
comunidade que, de muitas formas, lhes diz: ―É maravilhoso que existais‖.
Os pregadores deveriam estar motivados por uma indescritível alegria, que
se levanta como um sinal interpelativo. Porque são estas pessoas tão
felizes? Qual é o seu segredo?
Neste Capítulo os franciscanos reflectem sobre a missão da Ordem
num contexto novo, o da aldeia global na qual todos os seres humanos são
vizinhos. Creio que a alegria franciscana tem, aqui, um especial teste-
munho a oferecer. Antes de mais é uma alegria que brota da pobreza, o
que parecerá uma loucura num mundo em que o dinheiro comanda.
Depois é uma alegria que sonha com o Reino e que é vital para um mundo
que já não sonha com o futuro.
A alegria de Francisco era a de um homem pobre que tudo recebia
como uma prenda. Como nada possuía, então viveu num mundo de total
generosidade. Cada bocado de pão era um presente. Diz-se que no
Capítulo das Esteiras, S. Domingos ficou surpreendido com a confiança
que os 5000 frades tinham em ser alimentados com ofertas (Fl 18). Natu-
ralmente os historiadores dominicanos duvidam da historicidade deste
relato.
—————
3
Sermão 18, in F. Pfeiffer, Aalen 1962 quoted in Murray, op. Cit. P. 132
50
Esta mendicidade era mais que optimismo. Era uma maneira de estar
no mundo, onde tudo é experimentado como um dom. Francisco era um
homem sempre surpreendido pelos presentes que Deus lhes dava: comida
e bebida, luz e água, irmãos e irmãs e até a existência. Ser um mendigo é
viver num universo de dons. E Francisco teve sempre a alegria de um
eterno Natal. Este sentido de dom foi central, também, para a teologia de
Tomás de Aquino. Ele acreditava que se olhando o mundo com claridade,
com Veritas, verdade, então via-se que tudo é um dom de Deus. Percebe-
-se assim que a alegria franciscana e dominicana fundem as suas raízes
numa visão do mundo em clave de gratuidade.
Francisco recusou o mundo de seu pai, que era um comerciante, um
homem de mercado. Mas desde então o mundo inteiro converteu-se num
mercado. Tudo se converteu numa comodidade com um preço. Nos
tempos de Francisco e Domingos, ninguém pensava que pudesse possuir
terras. Alguém podia ter o uso da terra, mas esta pertencia a Deus.
Segundo Aquino, toda a posse privada estava condicionada pela bem
comum de toda a humanidade. Mas gradualmente tudo se pôs no mercado
que é este mundo moderno: terra e água, e sobretudo os seres humanos.
Agora quatro ou cinco das maiores companhias internacionais estão em
competição pela propriedade de todas as sementes e, por este meio, da
fertilidade da terra. Há até quem queira ter a propriedade do mapa humano
de ADN, tomando posse da nossa própria natureza. Por isso a alegria do
Poverello contradiz a forma moderna de olhar a realidade e abre os nossos
olhos para uma nova maneira de encarar o mundo. A minha experiência
diz-me que os irmãos mais felizes são os pobres. Vivem num mundo de
dons e quando falam de Deus as suas palavras têm autoridade. (E se não
sabem como desfazer-se das riquezas, podem entregá-las aos
dominicanos, para ver quem é mais feliz!…)
A alegria franciscana oferece outro tipo de desafios à nossa aldeia
global. É um desafio com perpectiva utópica. É a alegria daqueles que já
têm um pé no Reino. Isto verifica-se, sobretudo, nas histórias de S.
Francisco com os animais. Elas sugerem mais do que parecem. Quando
pregava às aves ou reconciliava os habitantes de Gúbio com o lobo, vemos
como o Reino começa a tornar-se presente: ―Então o lobo habitará com o
cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão
comerão juntos, e um menino os conduzirá‖ (Is 11, 6).
51
Diz-se que quando pregava aos peixes, estes se retiravam felizes (Fl
40). (Eu sou um dominicano típico porque a minha primeira reacção a
estas histórias é perguntar como é possível saber se um peixe está feliz!
Temos uma relação diferente com os animais. Talvez porque somos
animais, os Domini Canes (cães do senhor)… pelo que devem tratar-nos
bem). Albertto Magno interessava-se pelos peixes, mas não os queria
compreender. Queria saber se faziam ruído ou não quando acasalavam e
oferecia às ostras pedaços de metal para ver se era verdade que os
comiam. Tinha uma serpente como mascote que se embebedou e andava
perdida pelos claustros4
.
Esta utópica alegria franciscana é um convite ao nosso mundo
posmoderno. Vivemos numa sociedade que perdeu por completo a
capacidade de o sonhar no futuro. Eu cresci numa cultura onde se acre-
ditava que a humanidade se dirigia a algum sítio. Para uns era o paraíso
capitalista, para outros o paraíso socialista. Os carros e os aviões torna-
vam-se cada dia mais velozes. Os países foram libertados do governo
tirânico da Inglaterra. Até a comida inglesa mudou. Podiam-se comer rãs e
caracóis. O Reino estava próximo. Todos estes sonhos os resumiu Martin
Luther no famoso discurso de 28 de Agosto de 1963: ―Eu tenho um
sonho‖. O sonho era a liberdade, quando ―todos os filhos de Deus, homens
negros e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos forem
capazes de se dar as mãos e cantar com as palavras do velho cântico
espiritual dos negros: ―Finalmente livres! Finalmente livres! Graças a Deus
Todo-Poderoso, somos finalmente livres.‖
Quarenta anos depois, esses sonhos perderam-se. O muro de Berlim
caiu, terminou a guerra fria, mas como escreveu Fukuyama, a história
terminou. Vivemos na geração do hoje, do imediato, que tem medo de
pensar no amanhã. Não se vive o sentido duma humanidade a caminho
para um destino comum: o triunfo sobre a pobreza e a injustiça. Tivemos
algumas vitórias: derrubou-se a apartheid e já não existe o império
soviético. Mas há poucas situações como o Brasil do presidente Lula, que
nos oferecem alguma razão para acreditar que os sonhos ainda se podem
realizar. Parte da vossa missão como franciscanos é, certamente, renovar
—————
4
Simon Tugwell OP, Albert and Thomas: Selected Writings, New York, 1988, p. 29
52
os sonhos da humanidade. É uma alegria que rejeita a resignação e o
fatalismo. Parra isso precisais de vos deixar penetrar duma alegria
escatológica, que seja a antecipação da alegria do Reino. Esta utopia pode
acabar mal, como sucedeu com os seguidores de Joaquim de Fiore, os
Fraticelli. Se o Evangelho deve ser pregado, temos de sonhar. Dizia Oscar
Wilde que nenhum mapa do mundo é exacto se não inclui a utopia.
Desta maneira a missão franciscana, fundada na alegria da genero-
sidade de Deus, desafia a mentalidade do mercado, onde tudo é comprado
e vendido. Será uma alegria escatológica que mantém viva a aventura do
nosso peregrinar. Se tendes que renovar o espírito de missão, então reflecti
sobre como manter viva esta alegria em vossas comunidades. Estão os
irmãos alegres em fraternidade? Isto implica um cuidado verdadeiro pela
felicidade do outro. Necessitamos de estar atentos à felicidade do nosso
irmão. Se não o fazemos, então as nossas pregações serão vazias.
Necessitamos de nos alegrar em nossos irmãos e deleitarmo-nos com o seu
ser. Mesmo sendo muito difíceis, talvez loucos, podemos aprender a olhá-
-los como Deus os olha, deleitando-se na sua mera existência. São
Francisco pede que nos alegremos com o que o Senhor faz e diz através
dos irmãos. Precisamos de nos deleitar assim com eles. Quando Fr. Ricério
passava por tempos de sofrimento e desespero, só precisava que Francisco
lhe dissesse que o amava, coisa que ele fez. ―Meu filho caríssimo, frei
Ricério, de entre todos os irmãos que há no mundo, eu te amo de maneira
particular‖ (Fl 27). Preocupamo-nos assim pela felicidade do irmão?
Temos coragem de lho dizer? Estão os nossos olhos abertos para os
aceitar como dom de Deus?
Também devemos estar atentos aos sonhos dos irmãos. A maioria das
pessoas são atraídas para a vida religiosa porque sonharam com uma vida
transformada. Isto ainda é mais certo tratando-se dos franciscanos. O
Poverello encanta os corações jovens. Acontece que quando os jovens nos
procuram constatam que o seus sonhos estão longe da realidade ordinária
e monótona da vida religiosa, onde vivem pessoas que não são melhores
que a maioria das pessoas do mundo. Isto é um choque e uma desilusão.
Os sonhos desvanecem-se e os jovens ficam tristes e muitas vezes
desertam. Precisamos de encontrar maneira de formar os nossos jovens
como sonhadores realistas, sem excluir a alegria utópica de Francisco.
Precisamos de irmãos com olhos abertos, capazes de nos olhar como
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Cadernos 23_4ec3ac277fe24

  • 2. 2 Ficha Técnica Coordenador: Fr. José António Correia Pereira, ofm Editorial Franciscana Apt. 1217 4711-856 BRAGA Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735 E-mail: edfranciscana@editorialfranciscana.org Edição on-line no site: www.editorialfranciscana.org Capa: Desenho de Fr. José Morais, ofm Edição: Editorial Franciscana Propriedade: Província Portuguesa da Ordem Franciscana Depósito Legal: 14549/94 I. S. B. N.: 972-9190-46-1 Caderno 23 - 2003 Cada número dos Cadernos é vendido avulso
  • 3. 3 CLARA DE ASSIS, A “MULHER EVANGÉLICA” DO SÉCULO XIII Ir. Maria Otília Fontoura osc A MENORIDADE EM CLARA DE ASSIS Marco Bartoli ALEGRIA E PAZ Fr. Timothy Radcliffe op A REGRA, UM CAMINHO A SEGUIR SEM CONCESSÕES AO ESPÍRITO DO MUNDO Mensagem de João Paulo II às irmãs Clarissas, por ocasião dos 750 anos da morte de Santa Clara de Assis
  • 4.
  • 5. 5 1 — Estudos CLARA DE ASSIS, A “MULHER EVANGÉLICA” DO SÉCULO XIII Ir. Maria Otília Fontoura osc
  • 6. 6 CLARA DE ASSIS, A “MULHER EVANGÉLICA” DO SÉCULO XIII 1. Vocação e missão de Clara 1.1. Vocação 1.2. Missão 2. São Damião: ideal e desafio 2. 1. Uma fraternidade evangélica 2. 2. O trabalho como expressão de pobreza 2. 3. Vida de oração e contemplação: – Oração litúrgica e comunitária – oração pessoal 2. 4. Vida eucarística: adoração e louvor 2. 5. Em fraterna amizade 2. 6. Em comunhão com a humanidade sofredora 3. Francisco e Clara: uma vocação comum, um mesmo carisma, uma mesma família religiosa
  • 7. 7 1. Vocação e missão de Clara 1.1. Vocação Em 1207, Francisco ajoelhava diante do crucifixo bizantino de São Damião. Estando em oração, sentiu que Jesus lhe dizia: ―Francisco, vai e repara a minha Igreja que ameaça ruir‖1 . Não compreendendo, então, o mandato do Senhor, lançou-se na reconstrução da ermida. Quando, algum tempo depois, pedia a colabora- ção dos que passavam, uma palavra profética saiu da sua boca: ―Vinde e ajudai-me na reconstrução de São Damião, porque um dia hão-de morar aqui umas senhoras, cuja fama e vida santa glorificará o Pai celeste em toda a Igreja‖2 . Francisco, que nessa altura ainda não tinha irmãos, acabava de anunciar de forma profética, sob a acção do Espírito, a Segunda Ordem Franciscana e a missão de Clara e suas Irmãs: ser claridade, ser como cidade edificada na montanha, manifestando, com a vida, a glória do Pai celeste. Clara era ainda menina, quando Francisco, uns doze anos mais velho do que ela, dá início à sua vida evangélica. Na Quaresma de 1211, a jovem, que desde há algum tempo prestava atenção ao viver de Francisco, acompanhada de sua mãe e irmãs, ouve as suas pregações em São Rufino. Sensibilizada pelo ardor com que o jovem fala e convida à conversão a Cristo e aos irmãos, a uma profunda conversão interior, pede para falar com ele. Depois de alguns encontros, como refere Celano, Clara Offre- duccio está decidida a seguir o mesmo caminho que Francisco e seus Irmãos vão trilhando. O movimento franciscano encantava a jovem. Contudo, a mentalidade medieval referente à mulher, condicionava as suas opções. Sabe-se, porém, que dos grupos pauperístas, como os valdenses, cátaros, humiliatas e outros, faziam parte mulheres, o que a Igreja contestava. Quando Deus pôs Clara no caminho de Francisco, a jovem é acolhida como uma bênção. O Irmão reconhece, de imediato, ser ela o objecto da profecia de São Damião. Clara e as Irmãs que o Senhor lhe enviasse, vive- ————— 1 LCL, 10, in FF II, p. 247. 2 TCL, 9-17, in FF II, pp. 69-70.
  • 8. 8 riam, pois, em clausura contemplativa no mosteiro anexo àquela pequena Igreja3 ; seriam o complemento da Primeira Ordem Franciscana. O seu rosto feminino. Contactado D. Guido, bispo de Assis, Francisco aceita das mãos de Deus, com imensa satisfação, esta primeira filha e, com permissão do mesmo prelado, começa a sua formação evangélica. Na noite que se seguiu ao domingo de Ramos de 1212, a conselho de Francisco e com o assentimento do prelado, Clara ―deixou a casa paterna, a cidade e os familiares e apressou-se a ir para Santa Maria da Por- ciúncula‖4 , onde os Irmãos celebravam as sagradas vigílias. Despojada das suas jóias e vestes de festa e cortados os cabelos, Clara compromete-se diante de Deus e da Igreja, ali representada pelo Irmão Francisco, a seguir o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência e sem próprio. Clara não se sentia vocacionada para o casamento nem tão-pouco para ser monja, mas sim para ser irmã menor. Nesta noite de domingo de Ramos, afirma, com toda a potencialidade do seu ser, o direito que lhe assiste, à luz do Evangelho, de escolher livremente o seu caminho. O gesto de Clara restabelecia o primado de Deus e afirmava a liberdade de uma mulher cristã seguir Jesus Cristo, segundo o impulso do seu coração: de abraçar Cristo pobre como virgem pobre. Clara Offreduccio não podia inserir-se em mosteiros do seu tempo, verdadeiros senhorios detentores de privilégios e direitos. O estilo de vida das monjas beneditinas, das cónegas regrantes de Santo Agostinho, ou das reclusas, não respondia ao seu anseio. Era seu desejo, conforme o mandato de Cristo, fazer opção pela pobreza evangélica, pela fraternidade ————— 3 O testemunho de Tiago de Vitry, bispo de São João d‘ Acre, sobre o movimento franciscano tem-se prestado a opiniões algo confusas. Em carta de 1216, falando sobre o movimento, diz: ―…as mulheres moram em comunidade em vários hospícios perto das cidades. Não recebem nada, vivendo do trabalho de suas mãos‖. Paul Sabatier inter- pretando o texto, defendeu o princípio de que as Clarissas, nos primeiros tempos, não tiveram clausura e se entregavam ao cuidado dos doentes e leprosos. Alguns estudiosos franciscanos, entre os quais Lemmes y Oliger, depois de profunda análise da questão, pronunciando-se contra a posição assumida por Sabatier, afirmam que as damianitas sempre viveram na clausura do seu mosteiro (Ignacio Omaechevarria, ofm, Escritos de Santa Clara y documentos complementarios, edición bilingüe, BAC, Madrid, 1982, pp. 34-36). 4 LCL, 8, in FF II, p. 246.
  • 9. 9 cristã. Desejava descer a tomar lugar entre os pobres, os oprimidos, os servos, os sem direitos. Desejava entregar-se a Cristo por amor dos homens, seus irmãos. Após a Páscoa de 1212, estão em São Damião as três primeiras irmãs menores: Clara, Inês e Pacífica. Cumpria-se a profecia do Senhor. Alma genuinamente franciscana, feita a deslumbrante descoberta do amor gratuito do Pai, revelado em Jesus Cristo, Clara imergiu, com toda a potencialidade do seu ser no absoluto de Deus, como consequência do enamoramento por Cristo pobre e crucificado e n‘Ele se abraçou com a plenitude do Amor, a humanidade e a criação. Clara tem uma vocação peculiar. A discípula do Pobrezinho de Assis, seguidora de Cristo em estilo novo, não é monja mas sim irmã: irmã menor, irmã pobre, irmã vocacionada para a fraternidade. O estilo de vida que abraça é novidade na Igreja. Clara é uma mulher nova, uma mulher forte e fiel, cheia de fé e de esperança, que sabe o que quer e é capaz de percorrer todos os caminhos para chegar aonde Deus a impele. Mas, é mais do que isso: é uma inovadora que, rompendo com formas e tradições monásticas, faz nascer em São Damião um novo estilo de vida contemplativa: vida em fraternidade e serviço, vida pobre, humilde e simples, uma vida acentuadamente eucarística e em sintonia com a huma- nidade sofredora; em suma, vida de seguimento de Cristo pobre e cruci- ficado. Como íamos dizendo, o Senhor anunciara pela boca de Francisco a origem da Segunda Ordem, cujo berço seria exactamente São Damião. No Testamento, Clara reconhece ser ela e suas Irmãs, presentes e futuras, o alvo da profecia. Com efeito, falando de Francisco, escreve: ―…iluminado pelo Espírito Santo, profetizou, com grande alegria, a nosso respeito, tudo o que mais tarde o Senhor veio a confirmar‖5 . Clara era uma mulher de fé e fidelidade. Daí, que a sua vida fosse uma peregrinação impulsionada pela força criadora de uma promessa. Esta mulher forte e fiel, acreditou que era possível a vivência radical do Evangelho e, totalmente tomada por Cristo, lançou-se, cheia de confiança e sem vacilar, no seguimento dos seus passos. Assim, soube dar resposta, ————— 5 TCL, 11, in FF II, p. 69.
  • 10. 10 com a vida, às exigências divinas, à força sedutora que para ela era o ―Senhor Jesus‖. Sendo a vida de oração, de intercessão e de comunhão com Deus comum às diversas formas de vida consagrada, no caso da Clara, o específico consiste no seu chamamento e envio profético. 1.2. Missão de Clara Houve tempos em que o ideal de alguém se identificava com o trabalho de santificação pessoal. Respondendo a Cristo e sob a orientação de Francisco, a ―Plan- tazinha‖ soube situar a sua doação e missão em termos eclesiais. Estava bem persuadida, assim como suas Irmãs, de que Deus as chamara para serem espelho e exemplo para os outros, para serem evangelicamente mis- sionárias, para serem colaboradoras do próprio Deus junto dos homens, suporte dos membros mais fracos do corpo místico de Cristo, como se lê na terceira carta por ela escrita a Inês de Praga por 1238. Por isso se sentiam impelidas a peregrinar na Igreja de Deus. Clara sente-se chamada, a partir do mais íntimo do seu ser, a edificar a Igreja, a dar a vida, a derramá-la toda inteira, não para sua realização pessoal, mas porque recebeu um apelo: olhar, ver, ser luz, testemunhar na Igreja de Deus, para glória do ―Altíssimo‖ e para bem dos homens. A sua missão é, de certo modo, confirmar os outros na verdade, no amor, na beleza que viu e que tocou. Daí que, para a discípula do Pobrezinho de Assis, o importante, o sumamente importante, fosse a sua transfor- mação em ícone da divindade, o abraçar e tocar o Verbo da vida, como se lê nas suas cartas a Inês de Praga. No percurso espiritual de Clara divisamos Belém, Nazaré e o Calvário, quais livros abertos à contemplação da apaixonada pelo Senhor Jesus Cristo que, de ouvinte atenta da Palavra evangélica se torna espelho dessa mesma Palavra. Como muito bem diz o nosso Ministro Geral, Frei Giacomo Bini, em Clara de Assis, um hino de louvar, a fiel discípula de Francisco e suas Irmãs, ―a partir do claustro da sua interioridade, seguindo o exemplo de Maria, tornam-se acolhimento, morada e ícone do Deus de amor‖6 , teste- munho que se projectava no exterior. ————— 6 Frei Giacomo Bini, Clara de Assis, um hino de louvor, Roma, 2002, p.12.
  • 11. 11 De São Damião, cada Irmã descobre todo o mundo e, fazendo suas as alegrias, aspirações, preocupações e necessidades dos homens, por suas próprias mãos as apresenta ao ―Pai das misericórdias‖, na expressão da ―Plantazinha‖ de Francisco. Abrasada no ardor missionário, desejosa de abraçar o mundo inteiro e se dar ao Senhor pelo martírio, Clara teria ido para Marrocos se o seu pai espiritual disso a não impedisse. Durante a sua doença, que durou uns trinta anos, a virgem Clara, à semelhança do crucificado do Alverne, está crucificada com Jesus Cristo e, em atitude redentora, permanece todos os dias em amorosa doação. Abrasada em amor, totalmente voltada para os outros, está em continua comunhão com seus irmãos em Cristo. Em todos pensa, por todos ora e sofre. Para todos tem uma palavra evangélica, de ternura, de compreensão e estímulo. Mesmo no seu leito de dor, mantém com as autoridades eclesiásticas, com os seus Irmãos no carisma, com pessoas amigas, impor- tantes ou de condição simples, as melhores relações. Ela é, diante de todas as necessidades, um suporte e apoio espiritual. Na clausura, no seu leito de doença, a Irmã Clara avança, à semelhança do Serafim de Assis, no caminho da Cruz, identificando-se com o Esposo. Conforme a expressão de Frei Giacomo Bini, Francisco e Clara são semente lançada à terra que morrem para frutificar. Esta morte, amorosa e quotidiana, fazia parte da missão destes arautos de Cristo que, fiéis ao Evangelho se entregam e vivem com audácia o desafio da pobreza absoluta, da loucura da Cruz, do despojamento total, do amor incondicional ao Criador e às criaturas. Sim, o mistério da Cruz era, e continua a ser, o cerne da espiritualidade fran- ciscano-clariana. Seguir ―Cristo, o Pobre crucificado‖, identificar-se com Ele, n‘Ele se transformar, eis a razão de viver dos humildes seguidores do Evangelho, no século XIII. ―Se com Ele morrermos na cruz da tribulação, com Ele habitaremos na gloria dos santos‖7 , escreve Clara a Inês de Praga. O sofrimento vivido em profunda união com Cristo, seu Esposo, identifica-a com o mesmo Cristo. São Damião interpela! São Damião é ideal e desafio É fonte de vida nova! ————— 7 Cf., 2CCL, 21, in FF II, p. 95.
  • 12. 12 O P. Larañaga diz que ―Clara, na sua clausura contemplativa, levou à plenitude o sonho mais profundo de Francisco de Assis: a ânsia de con- templar o Rosto do Senhor e de se dedicar exclusivamente a cultivar o desejo de Deus‖8 . Ali, mãe e filhas, revestidas da ―dama pobreza‖, como transparência do Evangelho de Cristo, denunciam o pecado do seu tempo e de todos os tempos: o orgulho, a falta de amor, o egoísmo, a cobiça, o poder. É que a sua pobreza é o Cristo pobre. São Damião é comunidade profética que, ao mesmo tempo que interroga e responde, é facho de luz que compro- mete. Mas, para tanto, é preciso subir a montanha da dor, é preciso morrer, para tocar, para possuir o Absoluto, para ser transparência do mesmo Senhor. A sociedade do Século XIII precisou de Francisco e de Clara para recuperar o sentido de Deus, o sentido de fraternidade. A Igreja do século XIII precisou de Francisco e de Clara para reencontrar a sua identidade evangélica. São Damião, um espelho de Eternidade! Testemunha de que Deus está, de que a sua luz ilumina, de que o seu amor marca e transforma, de que Deus é todo o bem, o único bem. A herança das Irmãs Pobres, como dos Irmãos Menores, era só Deus. Quem viu e tocou o Senhor, de nada mais precisa. Ele basta. Clara era a transparência de Jesus. No Testamento, Clara exorta vivamente as suas Irmãs a ―que se esforcem por seguir sempre o caminho da santa simplicidade, humildade e pobreza, e que levem uma vida santa‖. Desta santidade de vida brotaria a luz, o esplendor, a beleza espiritual, a claridade, o odor da ―boa fama‖ ao perto e ao longe. Seriam, então, cidade edificada no alto da montanha anunciada pelo Cristo bizantino de São Damião. ————— 8 Inácio Laranãga, ofm cap, O Irmão de Assis. Vida profunda de São Francisco, Lisboa, 1980, p. 239.
  • 13. 13 2. O mosteiro de São Damião – Ideal e desafio São Damião, no dizer de Miglioranza, ―mais do que um mosteiro, foi um ideal, um desafio, um sonho feito realidade‖9 . Um ideal feito de man- sidão, de humildade, fraternidade, de sentido profundo de Deus e de empenhamento ao serviço de todos. Um amor incomensurável de Deus e das suas criaturas transparecia daquele ―pobre conventinho‖, que enchia de mistério e emoção até os mais afastados de Deus. Poucas vezes a vivência cristã se revestiu de tanta suavidade e encanto! 2.1. Uma fraternidade evangélica A Regra de Santa Clara não é apenas a base jurídica que dá existência à sua Ordem, um documento histórico que se olha com veneração e amor. É antes a expressão de um carisma peculiar, de um programa de vida sempre actual e sempre adaptável a tempos e lugares. Condensação do genuíno carisma da Ordem, perpassada pela docilidade ao Espírito do Senhor, pela abertura à Igreja e à humanidade, tem em si mesma a vitali- dade evangélica. Contrariamente ao que se verificava com as então exis- tentes, a Regra de Santa Clara é fraterna, humana e flexível. A pessoa da Irmã, cercada do maior respeito, ganha dignidade e direitos que na época não eram reconhecidos à mulher. Inteligente e criativa, a Irmã Clara soube dar vida a um estilo novo, distanciado do estilo monacal do seu tempo. Um estilo evangélico. Nos mosteiros existentes no século XIII, a autoridade – o abade ou a abadessa –, centro de uma orgânica estável e minuciosa, ocupando o vér- tice de uma pirâmide, tudo prevê e determina. Nas fraternidades franciscanas, portanto, entre as damianitas, o centro é ocupado por Jesus, dispondo-se as Irmãs em seu redor. A igualdade, a amizade, vínculo de união, surge como fruto da felicidade comum. Em São Damião, não havia estruturas verticais; não havia classes sociais nem privilégios, a não ser o privilégio de ser pobre. Ali havia a simplicidade e a igualdade dos filhos de Deus. Só Cristo e a sua Mãe pobrezinha serviam de modelo às damianitas. ————— 9 C. Miglioranza, ofm conv, ―Santa Clara de Asís‖, in Misiones franciscanas conven- tuales, Buenos Aires, p. 77; citado por Maria Victoria Triviño, osc, in Clara de Asís ante el espejo. História y espiritualidad, Madrid, 199, p. 105.
  • 14. 14 No mosteiro de São Damião, vivia-se, de facto, em fraternidade. Ali, havia Irmãs igualmente consultadas e ouvidas. Os assuntos respeitantes à utilidade e bem espiritual das Irmãs eram tratados em reunião conventual e até as mais novas deviam ser ouvidas, ―pois muitas vezes é ao mais pequenino que o Senhor revela aquilo que mais convém.‖10 O relaciona- mento era perfeito: era fraternidade. Estamos diante de uma estrutura horizontal, dignificante da pessoa humana, porque estrutura evangélica. Um dos aspectos mais meritórios da Regra de Santa Clara é a participação das Irmãs nas responsabilidades comuns: - todas devem dar o seu consentimento na recepção de novas vocações 11 ; - todas tomam parte na eleição da abadessa12 ; - nenhuma dívida importante deve ser contraída sem o consentimento das Irmãs13 ; - para a escolha de Irmãs para os diversos cargos, é necessário o consentimento da comunidade14 ; - a abadessa e as Irmãs são responsáveis pela guarda da pobreza, pelo cuidado das doentes, pela observância do silêncio e da clausura, para conservar a unidade do amor mútuo e da paz15 ; - a abadessa e suas Irmãs tratarão com caridade a Irmã culpada16 . Porém, é nas passagens em que emprega o nós, que Clara imprime mais firmemente e a sua personalidade e, simultaneamente, acentua a corresponsabilidade das Irmãs, dando ao texto o valor de um compro- misso comum. Vejamos: - ―quando alguém … vier ter connosco‖17 ; ————— 10 RCL, IV, 18, in FF II, p. 50. 11 RCL, II, 1, in FF II, p. 45. 12 RCL, IV, 1 e 7, in FF II, p. 49. 13 RCL, IV, 19, in FF II, p. 50. 14 RCL, IV, 22, in FF II, p. 51. 15 RCL, VI, 10-11, p. 53; VIII, 1-6, p. 55; VIII,12-17, p. 56; V, 1-4, p. 56;V, 5-14, pp. 51-52, in FF II. 16 RCL, IX, 4-6 e 18, in FF II, p. 57– 58. 17 RCL, II, 1, in FF, II p.45.
  • 15. 15 - ―considerando o bem-aventurado Pai que não temíamos nenhuma espécie de pobreza, … mas que, pelo contrário tínhamos estas coisas por grande delícia, … escreveu-nos a forma de vida‖18 ; - ―para que eu, … juntamente com minhas Irmãs‖19 ; - ―E assim … a fim de que observemos a pobreza e humildade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que firmemente professamos‖20 . E as citações podiam multiplicar-se. A consciência da responsabilidade da Irmã, ou seja a corres- ponsabilidade fraterna, tem a máxima expressão no capítulo quarto, onde se lê: ―… tanto a abadessa com as irmãs devem confessar, com toda a humildade, as faltas e negligências públicas e comuns‖; e, como acima referimos, ―… os assuntos respeitantes à utilidade e bem espiritual da comunidade devem ser tratados em capítulo‖21 . E, porque a pessoa da Irmã é olhada com todo o respeito em função da dignidade que lhe é conferida pelo Evangelho, a Madre ―há-de com- portar-se entre as suas Irmãs como serva de todas, familiar e disponível, atenta às necessidades das sãs e das doentes22 ; todas as Irmãs devem cuidar e servir as Irmãs doentes, como gostariam de ser servidas, caso se encontrassem na mesma situação23 . E, para construir dia a dia a frater- nidade sobre a base do amor, as Irmãs empenhar-se-ão em evitar a ―soberba, vanglória, inveja e avareza, cuidados e solicitude das coisas deste mundo, depreciação, murmuração, discórdia e desavença24 . Em suma, em São Damião, todas se amavam com o amor de Cristo; todas, conscientes de que eram chamadas a trabalhar na concórdia e na paz, se auxiliavam mutuamente; todas se sentiam responsáveis pelo bem comum. Estamos diante de uma fraternidade evangélica. ————— 18 RCL, VI, 2,, in FF II, p. 53. 19 RCL, VI, 1, in FF II, p. 52. 20 RCL, XII, 12, in FF II, p. 62. 21 RCL, IV, 16-17, in FF II, p. 50. 22 RCL, IV,10-12, p. 50; VIII, 12-13, p. 56; X, 4, p. 59, in FF II. 23 RCL, VIII, 14,, in FF II, p. 56. 24 RCL, 6, in FF II, p. 59.
  • 16. 16 2.2. O trabalho como expressão de pobreza Praticar a pobreza voluntária subtraindo-se à lei geral do trabalho, seria deformar os conselhos evangélicos, os princípios cristãos. Francisco e Clara compreenderam essa realidade. Por isso, consideravam o trabalho ―uma graça‖. A Irmã Clara, no seguimento do mandato de Cristo, traba- lhava e queria que as suas Irmãs trabalhassem ―fiel e devotamente‖. O trabalho, que começava depois de Tércia, deveria ser honesto e de comum utilidade; deveriam trabalhar com devoção e fidelidade para evitar a ociosidade, inimiga da alma, sem perderem o espírito de oração e devoção ao qual todas as coisas devem subordinar-se. Durante o trabalho o silêncio era habitual, pedido pelo coração, para permanecerem em união com o Senhor. Somente era quebrado quando necessário e, então, deveriam falar em voz baixa e em poucas palavras25 . As damianitas, dado que viviam em profunda união com Cristo, conheciam o valor do silêncio, do recolhimento, e dele sentiam necessidade íntima. É que, o trabalho, embora sendo um meio de subsistência, era simultaneamente uma forma de amar e de orar: amar a Deus na acção. Dentro de uma visão franciscana, quer o trabalho quer a oração, impregnados de amor contemplativo, testemunham Cristo, presente entre os seus filhos. Por isso, quando os lábios da ―Plantazinha‖ e suas Irmãs se calavam, começavam a orar as mãos26 . O trabalho era ―graça e bênção‖ Sabe-se que no mosteiro de São Damião havia um horário de trabalho que coordenava as actividades quotidianas. É que o trabalho era, com a esmola, a forma de normal de subsistência. Clara, recusando toda a possessão, tudo o que constituísse rendimentos – propriedades ou dotes –, afirma a sua fidelidade ao Evangelho e a sua vontade de que a fraternidade seja e permaneça voluntariamente pobre. Ela, como mãe e mestra daquela comunidade nascente, dava exemplo de aplicação ao trabalho. Nunca queria estar ociosa, mesmo durante a doença. A Irmã Pacífica de Guelfuccio depôs no processo de canonização que ―durante o tempo em que esteve doente, a ponto de não se poder erguer do leito, pedia que a sentassem e, amparada com almofadas, fiava e tecia os panos com que confeccionava os corporais que depois oferecia às ————— 25 RCL, V, 4, in FF II, p. 51. 26 Chiara Augusta Lainati, osc, Santa Clara de Asís, 2ª edición, Oñate (Guipúzcoa), 1993, p. 120.
  • 17. 17 igrejas do vale e das colinas de Assis‖27 . Uma vez contou uns cinquenta, muito belos e perfeitos. Os trabalhos femininos tinham, então, um âmbito restrito. Excluindo o fiar, tecer e bordar, dificilmente se poderia pensar em algo mais, pelo menos dentro da clausura. Segundo alguns autores, Clara teria algum tecelão em Assis que colaborava com o mosteiro no fornecimento das matérias primas e na aceitação dos trabalhos confeccionados. Em São Damião trabalhava-se. Nobres ou plebeias, damas ou servas, tornadas Irmãs, fiavam, teciam, faziam todos os trabalhos domésticos, cuidavam da horta com simplicidade e alegria. Da horta recebiam vários produtos, essencialmente legumes e hortaliças que serviam para o quotidiano da comunidade. Era a graça de poder trabalhar, a graça de formar e ser fraternidade. Também cultivavam, no jardim e claustro do mosteiro, belas e variadas flores. Como acima íamos dizendo, os trabalhos realizados em São Damião, não eram suficientes para sustentar a comunidade. Quando isso acontecia, Clara recorria à ―mesa do Senhor‖. Saíam, então, as Irmãs externas a receber os dons que o Pai lhes oferecia. Também dois Irmãos Menores estavam ao serviço da comunidade para auxílio da sua pobreza28 , rece- bendo, em seu favor, das mãos dos assisienses ou populações circunvi- zinhas, o que o Senhor sabia precisarem. Os mosteiros medievais tinham a sua subsistência assegurada com rendas. Clara e suas Irmãs viviam do trabalho e da ajuda dos fiéis. Viver do trabalho num mosteiro medieval era viver em pobreza. Estar assegurada a subsistência duma comunidade contemplativa pelo trabalho e pela caridade dos fiéis era novidade na Igreja e doutrina impensável na Idade Média. Porém, Clara e suas Irmãs sabiam que, se o Senhor alimenta as aves do céu e veste os lírios do campo, não deixaria de velar por aquelas que, confiantes, se entregavam à sua providência. O mosteiro de São Damião, caminhando na sequela Christi, tornou- -se, de facto, conforme o desejo de Francisco encarnado por Clara, oásis de pobreza evangélica29 . ————— 27 PC, I, 11, p. 142; ver também: PC, II, 12, p.147-148 e VI,14, p.173, e ainda LCL, 28, p. 262, in FF II. 28 PC, I, 15, in FF II, p. 143. 29 René-Charles Dhont, Chiara, madre e sorella, p. 10
  • 18. 18 2. 3. Vida de oração e contemplação – Oração litúrgica A vida litúrgica, elemento primário da vida contemplativa, aparece em São Damião como o centro, o cerne, do viver quotidiano. De facto, uma comunidade contemplativa é sustentada e vivificada pela oração litúrgica comunitária – celebração eucarística e ofício divino –, que marcam o ritmo duma caminhada espiritual. Daí a necessária abertura à Palavra de Deus e à união fraterna. Sabemos que São Francisco queria ver os Irmãos reunidos cada dia para uma única missa de fraternidade em cada lugar onde estivessem. Junto de São Damião residia uma pequena fraternidade de Frades Meno- res, entre os quais havia dois clérigos aos quais competia celebrar quoti- dianamente a Eucaristia, administrar os sacramentos às suas Irmãs e anunciar-lhes a Palavra do Senhor. Com quanta fé e amor, Santa Clara e suas Irmãs participavam na cele- bração eucarística!… E esta celebração era tão importante que, nos dias em que era permitida a comunhão, se houvesse doentes impossibilitadas de se deslocarem ao coro, o capelão entrava na clausura e a Missa celebrava- -se na intimidade familiar ―para sãs e enfermas‖. A fraternidade franciscana, ainda que inteiramente distanciada dos esquemas monásticos, atribuiu, desde o início, grande importância ao ofí- cio divino como oração oficial da Igreja. Daí, que, em São Damião, o ofí- cio divino fosse logo considerado como imprescindível oração de louvor, no qual, salvo as Irmãs que não soubessem ler, todas deviam participar. Nem a Irmã Clara poderia fazer de outra forma, dado que a fraternidade de São Damião desejava ser versão contemplativa feminina do ideal de Francisco. Clara, ao dispor que o ofício divino fosse rezado conforme o costume dos Frades Menores, o ofício da Santa Igreja Romana, era determinada pelo seu grande desejo de união com a Primeira Ordem: um mesmo ritmo de oração seria o melhor testemunho de unidade de espírito existente entre as filhas e filhos do Irmão Francisco. À semelhança do que fizera o ―seu Pai e mestre‖ entre os seus Irmãos, Clara não quis estabelecer duas classes de Irmãs.30 Em São ————— 30 A introdução de várias categorias de Irmãs na Ordem de Santa Clara, feita posteriormente, foi contrária à Regra e anticarismática. Hoje, porém, esse desvio está
  • 19. 19 Damião não havia coristas e leigas. Assim o pedia o carisma franciscano. Todas, com igual direito, participavam no ofício divino. Estavam, porém, dispensadas as que não soubessem ler, como acima dissemos, ou se encontrassem impedidas por razões de saúde. Sabemos, pelas fontes biográficas que, em São Damião, o ofício divino estava distribuído ao longo das 24 horas do dia, santificando assim a caminhada quotidiana. Era recitado com devoção e harmonia, com a simplicidade própria de espírito franciscano, sem exibição de instrumentos ou Irmãs especializadas no canto, pois Clara não queria, de forma alguma, que ali reinasse a ostentação que, tantas vezes, se verificava nos mosteiros de beneditinas e cónegas regrantes31 . Nesta oração de louvor e de súplica a Deus Pai, feita em união com Cristo, Clara dava exemplo com a sua assiduidade e pontualidade. Era ela que à meia-noite despertava as Irmãs, tocando delicadamente em cada uma, para não interromper o sono das doentes, gesto de fina caridade. Quando as Irmãs chegavam já ela havia acendido as lâmpadas e preparado tudo para a oração32 . Eram, então, recitadas Matinas. Santa Clara não apresenta nenhuma prescrição concreta em relação a outras formas de oração comunitária, salvo o ofício de defuntos que deviam rezar quando alguma Irmã falecesse33 . Clara, não prescreve ora- ções e devoções comunitárias, nem tão-pouco confiava o bom andamento da comunidade à multiplicidade de regulamentos disciplinares. Acreditava, sim, na unção do Espírito Santo que ensina e guia os passos dos seus eleitos. Por isso, no capítulo quinto da Regra, Clara fala do ―espírito de santa unção e devoção ao qual todas as coisas devem servir‖ e recomenda no décimo que as Irmãs ―acima de todas as coisas devem desejar ter o espírito do Senhor e o seu santo modo de operar, orar sempre a Deus com um coração puro‖. Em São Damião, a oração contemplativa não estava sujeita a uma regulamentação. Não era necessário, pois, cada Irmã se abria à acção divina com espontaneidade e amor. Ouçamos Celano: ————— ultrapassado (Lázaro Iriarte, Letra e espírito da Regra de Santa Clara, Porto Alegre, 1978, pp. 36-37. 31 Isto não impede que, nos tempos hodiernos, conforme o actual critério da Igreja, o canto tenha lugar nas celebrações litúrgicas das Clarissas. Antes pelo contrário, sabendo que o canto é caminho de ascensão para o Senhor, devem dar solenidade e expressão musical às celebrações, e mesmo estimular a presença e participação dos fiéis. 32 Cf. PC, II, 9; X, 3, pp.147 e 185, respectivamente e LCL, 20, p. 257, in FF II. 33 RCL, III, 6, in FF II, p. 48.
  • 20. 20 ―De tal modo as damas pobres adquiriram o dom da contemplação que nela aprendem o que se deve fazer e o que se deve evitar; conseguem com extrema facilidade manter-se na presença de Deus, no louvor divino e nas orações‖34 . – Oração pessoal As damianitas desenvolviam e aprofundavam a oração pessoal. Depois de Vésperas, que tinham lugar à meia tarde, todo o tempo era con- sagrado à oração a sós com o Esposo. Embora sendo Completas, o último período de oração comunitária, cada uma entregava-se, com grande liber- dade, ao colóquio com o Senhor, fazendo, muitas vezes vigília até à madrugada. Essa longa oração, fruto de um grande amor, aproximava a terra e céu, enriquecendo a comunidade dos homens. O exemplo de Clara arrastava. As Irmãs que depuseram no processo de canonização são unânimes em afirmar que madonna Clara era ―assídua na oração e na contemplação e quando regressava da oração, o seu rosto era mais claro e belo que o sol, e que das suas palavras emanava uma doçura maravilhosa. Parecia até que já vivia no Céu‖35 . Ao sair da oração animava e confortava as Irmãs. Segundo elas e o seu primeiro biógrafo, Tomás de Celano, tinha momentos preferenciais para consagrar-se à ora- ção contemplativa e pessoal: à meia-noite, terminada a recitação de Mati- nas, quando ficava só por longo tempo, pela manhã depois de Tércia, ao meio dia depois de Sexta. Durante as horas de Sexta e depois de Noa, que a associavam à Paixão de Cristo, era tocada de grande compunção e desejo de ser imolada com o Senhor36 Clara gostava de centrar-se no aniquilamento de Jesus Cristo, não somente na imolação da Cruz, mas também no mistério de humilhação e pobreza de Belém e da Eucaristia. E, sabendo que Maria santíssima, a Mãe pobrezinha, era o melhor caminho para chegar ao Verbo de Deus, Clara amava-a ternamente. As damianitas no silêncio do mosteiro contemplavam embevecidas Jesus na simplicidade do presépio de Belém, no mistério eucarístico, na loucura amorosa da cruz, na glória da Jerusalém celeste. Todas procura- ————— 34 1C, 20, in FF I, 2ª edição, p. 245. 35 PC, I, 9; II, 9; IV, 4, pp. 141, 147 e 163 respectivamente; VI, 3-4; VII, 3, p.171-172 e 175; X, 3, p. 185, in FF II. 36 LCL, 30, p. 264, in FF II.
  • 21. 21 vam ―viver em íntima união com Cristo, aderir a Ele com todas as fibras do seu coração‖37 , vê-lo nas criaturas e na criação, vê-lo na bondade dos homens, no sorriso da criança, na beleza do sol, no perfume da flor. Para as Irmãs de São Damião, como para toda a alma franciscana, viver em oração contemplativa era também entrar com todas as criaturas de Deus, no mundo do Louvor, da Glória, do Amor e do Encanto. A contemplação franciscana tem o seu matiz próprio. Em Francisco, como em Clara de Assis, a vida contemplativa brotou do encanto. Eles não estão em função de si mesmos, mas da Igreja e do mundo. O segredo das suas vidas foi o enamoramento por Jesus Cristo e, na sequência desse enamoramento, o seu grande ideal foi a identificação com Cristo pobre e crucificado, que se traduziu em seguimento. A vivência radical do santo Evangelho foi neles uma consequência do êxtase de amor por Jesus.38 Adorar! Foi esse o sonho lindo de Clara de Assis. Em São Damião, Clara e suas Irmãs viviam imersas na adoração do Altíssimo, Omnipotente e Bom Senhor. 2. 4. Vida eucarística: adoração e louvor No século XIII, à medida que os teólogos aprofundaram a doutrina eucarística, pondo em relevo a permanência de Cristo nas sagradas espécies, viu-se a conveniência de que a reserva destinada aos doentes saísse dos armários, onde nem sempre se encontrava com a devida dignidade e se colocasse em lugares mais apropriados, em tabernáculos abertos na ábside ou em ―imagens-sacrários‖ que guardavam uma peque- nina caixa; podia colocar-se também sobre o altar em cibórios ou numa bela urna em forma de arca, que se ia enriquecendo com metais nobres e pedrarias39 Em São Damião havia uma caixinha ou urna de prata e marfim para a reserva do Santíssimo, colocada sobre o altar, que permitia às damianitas a adoração permanente. Ali vivia-se em amorosa adoração, pois Clara de Assis era uma ―Mulher Eucarística‖. ————— 37 4 CCL 9, in FF II, p. 107. 38 David de Azevedo, ofm, S. Francisco de Assis, Fé e Vida, Braga, 1984, pp. 30-43. 39 Jiménez, História de la espiritualidad franciscana, Barcelona, 1969, p. 647
  • 22. 22 De facto, entre as Irmãs Pobres, no seguimento da doutrina do IV Concílio de Latrão (1215), desenvolveu-se a espiritualidade eucarística, praticando-se, como se disse, mesmo a adoração e desagravo ao Santís- simo Sacramento, o que era novidade. As damianitas foram as pioneiras a acolher esta doutrina conciliar e de tal forma que Santa Clara aparece como arauto no reflorescimento eucarístico do século XIII. A piedade popular assim o compreendeu; os artistas representam repetidamente Santa Clara com a custódia nas mãos. É uma linguagem de símbolos que expressa quanto a sua vida esteve vinculada ao sacramento do Corpo do Senhor. Clara desejava que suas filhas comungassem; ela, quando o fazia, comovia-se até às lágrimas, segundo depõem algumas Irmãs no processo de canonização40 . Na Regra deixou determinado que as Irmãs comungassem sete vezes por ano: ―No dia do Natal do Senhor, na Quinta- -Feira Santa, na Páscoa, no Pentecostes, na Assunção de Nossa Senhora, na festa de S. Francisco e no dia de Todos os Santos‖41 . Hoje parece-nos incompreensível esta prescrição da Regra. Contudo, naquela época representava um grande amor à Eucaristia. Sabemos que o IV Concílio de Latrão, querendo incrementar o amor ao Corpo e Sangue do Senhor, determinou que os fiéis se confessassem e comungassem uma vez por ano42 . Em função da época, e desta prescrição conciliar, a determinação de Santa Clara representava, pois, um grande amor ao Santíssimo Sacramento, um verdadeiro culto pelo Corpo do Senhor. Nos dias em que as religiosas comungavam, Santa Clara, que- rendo ver a comunidade, tanto as sãs como as doentes, reunidas em volta do altar, permitia a entrada do capelão, tendo, então, lugar a celebração eucarística no interior da clausura43 . Clara penetrava e vivia o mistério da fé, sinal de unidade, vínculo de caridade. Este amor à Eucaristia e à adoração, novidade no século XIII, como já referimos, deixou-o Santa Clara às suas Irmãs e filhas como legado perpétuo. E tão gostosamente tem sido assumido por todas que, desde há oito séculos, não há mosteiro da Segunda Ordem Franciscana ————— 40 PC II, 11, III, 7, IX, 10, pp. 147, 154, 184 respectivamente e LCL, 28, p. 262, in FF II. 41 RCL, III, 14, in FF II, p. 49. 42 Lázaro Iriarte, Letra e espírito da Regra de Santa Clara, p. 50. 43 RCL, III, 15, in FF II, p. 49.
  • 23. 23 onde não se faça a adoração eucarística todo o dia ou pelo menos umas largas horas44 . Não faz sentido que se procure, em raízes adventícias e tardias, os alicerces ou incremento da adoração, louvor e desagravo do Santíssimo Sacramento tão peculiar à Segunda Ordem Franciscana. No mosteiro de São Damião está a raiz, e bem alicerçada e profunda, do amor eucarístico que as filhas de Santa Clara devem viver e difundir. A Irmã Clara e suas Irmãs eram mulheres evangélicas, mulheres euca- rísticas! Os seus dias deslizavam alegres e felizes na contemplação amorosa de Cristo, com quem queriam identificar-se. Aquelas boas reli- giosas, no escondimento do claustro, vivendo em pobreza, oração silen- ciosa e contemplativa, proclamavam o encanto que Deus é e assumiam, com Cristo, as dores, as alegrias e as esperanças dos homens. 2. 5. Em fraterna amizade Clara era delicada, afável e atenta às necessidades das suas Irmãs. Havia nela uma visível simpatia para com todas, que se traduzia em expressões de ternura, em atitudes ditadas pelo muito amor que havia em seu coração de mãe e de irmã. Clara era feliz, imensamente feliz. E, porque o era, tinha necessidade de deixar transparecer em gestos rasgados de profunda amizade toda a sua riqueza interior. Acolhedora, compassiva e cheia de misericórdia, a Irmã Clara quer que se preste atenção às jovens, às doentes e às fracas, não só no sentido físico, mas também e, sobretudo, no sentido espiritual. Veja- mos: - ―Às irmãs incapacitadas de cumprirem todo o rigor da observância, aconselhava-as a contentarem-se com um regime mais suave. E, quando alguma se sentia mais perturbada pela tentação, ou era dominada pela tristeza, era ela mesma que a chamava à parte e a consolava‖45 . ————— 44 Há também testemunhos certos de que, em 1230, João Parente, Ministro Geral dos Frades Menores, tomou providências para que se colocasse o Santíssimo Sacramento em píxide de prata ou marfim em lugar seguro, o que as Irmãs fizeram. Conserva-se uma custódia que dizem ser do tempo de Santa Clara, embora haja algumas dúvidas sobre o assunto. 45 LCL, 38, in FF II, p. 269.
  • 24. 24 - Clara permite que as Irmãs, ―sempre e em toda a parte, possam dizer, em poucas palavras e em voz baixa, o que for necessário‖46 . - Deseja que na enfermaria, ―para distracção, consolação e serviço das doentes‖, as Irmãs possam sempre falar47 e ―que nada lhes falte, quer em conselhos quer na alimentação quer em qualquer outra coisa que a doença exija48 ; - que as doentes… ―possam usar travesseiros de penas… e pantufas e meias de lã‖49 . Clara, com o seu admirável jeito de ser irmã e mãe carinhosa, dava importância às relações interpessoais no seio da fraternidade. Quer que as relações fraternas sejam repassadas de carinho, de muita amizade; que entre as Irmãs haja abertura, e um amor tão grande, que possam ―Confia- damente manifestar umas às outras as suas necessidades, pois, se uma mãe ama e cria a sua filha carnal, com quanto mais carinho não deve cada qual amar e ajudar a sua irmã espiritual‖50 !… Com amor e zelo evangélico, estimula todas as suas Irmãs ao perdão recíproco, vínculo de caridade. A amizade fraterna, o amor de Cristo estavam tão presentes na fra- ternidade!… Clara a isso estimulava suas Irmãs e filhas: ―Amai-vos umas às outras com o amor de Cristo, manifestai em obras o amor que vos vai no coração, a fim de que, movidas por este exemplo, as irmãs se sintam estimuladas a crescer cada vez mais no amor de Deus e na mútua caridade‖ A Plantazinha é presença amiga. O encanto que lhe vai na alma tra- duz-se nos mais delicados gestos que lhe sugere o seu coração maternal. Ouçamos Tomás de Celano: ―A venerável abadessa não cuidava só do bem espiritual das irmãs, também zelava, com imensa caridade pelo seu bem-estar físico. Assim, nas noites frias, enquanto as irmãs dormiam, era ela própria que as cobria‖51 . Gostava de prestar às Irmãs doentes os mais delicados serviços, de lavar os pés às Irmãs externas quando regressavam com os dons que o Senhor lhes proporcionara, e, sem qualquer escrúpulo, dispensava do jejum as ————— 46 RCL, V, 4, in FF II, p. 51. 47 RCL, V, 3, in FF II, p. 51. 48 RCL, VIII, 13, in FF II, p. 56. 49 RCL, VIII, 17-18, in FF II, p. 56. 50 RCL, VIII, 15-16, in FF II, p. 56. 51 LCL, 38, in FF II, p. 269.
  • 25. 25 doentes, as fracas e as jovens. Clara, boa e amiga, cultivava entre as suas filhas os mais finos sentimentos e isso contribuía, como diz Celano, para que ali não houvesse lugar para tibiezas ou desencantos52 . Era na contemplação de Deus, no contacto directo com o Senhor, que esta ―mulher evangélica‖ encontrava força para ser amor, para ser mãe. Diz-nos Celano que, quando Clara regressava da oração ―inflamada pelo fogo do altar do Senhor, transmitia palavras ardentes que incendiavam o coração das irmãs. Todas ficavam admiradas da doçura que saía da sua boca e do extraordinário brilho que emanava do seu rosto‖53 . As longas horas de contemplação amorosa que Clara todos os dias passa junto do Santíssimo Sacramento, fazem crescer no seu íntimo a amizade, o encanto, o respeito para com cada uma das Irmãs. Elas são um dom de Deus, são a expressão da ternura do Pai. Diante delas, a santa abadessa sente-se mergulhada em adoração. Não admira, pois, que no seu relacionamento com cada Irmã, a Plantazinha de Francisco use, muitas vezes, palavras repassadas de cari- nhosa amizade: queridas filhas, filhinhas, senhoras minhas, irmã e mãe, esposa e mãe. Não deixaremos de dizer que esta amizade cristã e franciscana era extensiva a todos quantos privavam com Clara, particularmente seus Irmãos da Primeira Ordem. A Francisco, seu mestre espiritual, muitas vezes se dirige com o carinhoso apelativo de Pai e, quando o bondoso Frei Reinaldo a visitou no leito de dor, a Irmã Clara mostrou-lhe o seu reconhecimento e fraterna amizade chamando-lhe ―querido Irmão‖54 , como refere Celano. 2. 6. Em comunhão com a humanidade sofredora A oração contemplativa da Clara e de suas Irmãs, era cheia de fé e de esperança. Centrava-se nos interesses do Pai e nas necessidades dos homens: a glória do Senhor, a sua vontade, o seu reino de amor, as urgên- cias eclesiais e da humanidade em geral. Em São Damião vivia-se em profunda comunhão com os demais. Ali existia a mais delicada sensibili- dade diante das reais e graves necessidades da Igreja. A sua vida interior, a ————— 52 LCL, 20, in FF II, p. 257. 53 LCL, 20, in FF II, p. 256. 54 LCL, 44, in FF II, p. 273.
  • 26. 26 contemplação do Senhor em que viviam mergulhadas, mantinha-as abertas, atentas e receptivas aos seus irmãos em Cristo. Celano fala com entusiasmo do poder de intercessão, do fascínio, do poder de irradiação da fraternidade: lares que começavam a viver mais cristãmente; mosteiros que se renovavam espiritualmente; inimigos que se perdoavam; doentes que ficavam curados; casais que, decidindo-se pela vida de consagração, de comum acordo seguiam Cristo na vida religiosa; donzelas que, movidas pelo exemplo da virgem Clara, abraçavam a vida do claustro. A santidade daquelas almas generosas fez-se torrente que, como os braços de um rio, irriga a Igreja e o mundo. Como era forte a sua sensibilidade eclesial!… O cardeal Hugolino, em carta dirigida a madonna Clara diz cheio de confiança: ―recomendo-te a minha alma e o meu espírito, tal como Cristo se encomendou ao Pai no alto da Cruz, para que, no dia de juízo, respondas por mim, caso não te tenhas preocupado o suficiente com a minha salvação55 . Mais tarde, quando papa, com o nome de Gregório IX, quantas vezes confiava as suas dificuldades às Irmãs do mosteiro de São Damião!… E que diremos do seu carinho, do seu zelo, da sua oração para com os Irmãos Menores doentes, como Frei Estêvão, preocupados ou necessi- tados de alento; das suas Irmãs doentes, aflitas ou quiçá desencantadas; dos muitos doentes que recorriam a Clara?… Não era ela, para todos, canal de graças?… Que dizer do alento, do amor, que tantas vezes infun- diu na alma do Irmão Francisco?!..Basta recordar a sua ternura, o seu poder espiritual sobre o seu Pai e mestre aquando da crise da Primeira Ordem por 1221-1223; a confiança nela depositada quando desejou saber a vontade do Senhor: continuar a pregar ou dedicar-se à contemplação? Quando sabia concretamente de alguém que ofendia a Deus, sofria e intercedia pela sua transformação. Foi assim que o cavaleiro Hugolino que, durante mais de vinte e dois anos vivera separado da esposa Guiduccia, como depôs no processo de canonização de Clara, se reconciliou com ela e voltou ao lar56 . São muitos os testemunhos da eficácia da intercessão de Clara e suas filhas em favor da cidade de Assis. Sempre que algum problema, ameaça ou calamidade se fazia sentir, os assisienses sabiam que tinham no mos- teiro mãos levantadas ao Céu suplicando perdão e bênção. Eles sabiam ————— 55 CHg. 3, in FF II, p. 432. 56 PC, XVI, 4, in FF II, p. 207.
  • 27. 27 que São Damião era o seu baluarte de defesa, porque oásis de oração e de paz, e a ele recorriam com confiança. Foi o que aconteceu aquando das incursões dos sarracenos em 1240 e de Vital de Antuérpia, sob as ordens de Frederico II, em 1241. A oração e penitência das religiosas, recebida pelo Senhor, libertou a cidade do assédio57 . 3. Francisco e Clara: Uma vocação comum, um mesmo carisma, uma mesma família religiosa Recordando, como acima ficou dito, que a Segunda Ordem Franciscana, sob a acção do Espírito, foi profeticamente anunciada por Francisco, quando reparava a igrejinha de São Damião, podemos dizer que tem a raiz nas palavras dirigidas a Francisco quando, ainda no início da sua caminhada de conversão, foi interpelado por Cristo a reparar a sua Igreja. Desde, então, Clara passou a existir no coração e na mente do Irmão, como a ―senhora pobre‖, ―a cristã‖, a mulher evangélica, que o Senhor punha ao seu lado para fazer a mesma caminhada de fé e de vida de seguimento de Cristo, numa dimensão que, embora não sendo paralela, era complementar. A Pomba prateada ou Pomba do franciscanismo, como repetidamente a chama Guedes de Amorim58 , é a pedra angular sobre a qual assenta a nova Ordem, tradução feminina, sob a forma claustral, do ideal de Francisco, seu pai e mestre espiritual. Sendo única a vocação franciscana  renovar a vida de Cristo na terra , nasce daí a necessidade de uma total abertura à vontade do Pai em amor contemplativo, ao seguimento e transformação em Cristo, o Pobre Crucificado, e, simultaneamente, a disponibilidade ao serviço dos homens, no anúncio da Palavra. Francisco irá mundo fora, liberto das coisas materiais, disponível para caminhar, cantando como ―arauto do grande Rei‖, e comprometido somente com Cristo, numa imensa clausura aberta, num convento feito ao ar livre, entre o arvoredo, as ervas do campo e as flores; a sua ―Planta- zinha‖, mulher de fé profunda e de pobreza, no silêncio contemplativo, como o de Maria, ficará com suas Irmãs no seu pequeno mosteiro. Nesse ————— 57 Cf. PC, II, 20, p. 150; III, 18-19, p. 157; VI, 10-11, p. 173; IX,2, p. 181; XIII, 9, p.199, XVIII, 6, p. 212, in FF II; também LCL, 21-23, pp. 257-259, in FF II. 58 Guedes de Amorim, Francisco de Assis, Renovador da Humanidade, Lisboa, 1960, pp. 188, 247, 397, 402 e outras.
  • 28. 28 oásis de amor e de paz, estas filhas de Deus oram, amam e contemplam, para que Francisco e seus Irmãos, na sua vida itinerante e humilde, possam reparar a Igreja do Senhor. A ―Flor de Altura ―, como gentilmente a chama o poeta José Régio,59 a mulher evangélica do século XIII, dentro do pequenino mosteiro de São Damião, no segredo de Deus, numa longa noite de silêncio contemplativo, fecundando a acção de Francisco e seus Irmãos, adorando e orando pela humanidade inteira, é o complemento da vocação do ―Poverello de Assis‖. Inseridas na fraternidade que tinha Francisco por cabeça, comum era a sua missão: restaurar a Igreja de Cristo, ser luz, ser claridade. E único era o carisma, pois, como dizia o Irmão Francisco, ―… um só e mesmo espírito levou os irmãos e as senhoras pobres a deixaram o mundo‖60 . E o testemunho daquelas mulheres evangélicas era força fecundante que, como rio de águas cristalinas, levava vida e vigor espiritual aos homens, seus irmãos. Não admira que em Clara, coração aberto ao mistério de Cristo, Francisco encontrasse força e luz em situações de obscuridade e de dúvida. Os anos iam passando. Para o ―Pobrezinho de Assis‖, a grande família que o Senhor lhe dera, era uma árvore única, crescendo com expressões diferentes, mas complementares. Francisco e Clara surgem como exemplo maravilhoso de um relacionamento amigo e terno, sempre orientado para Deus, único e sumo bem. Detecta-se neles algo de misterioso, de fascínio, de transfigu- ração. Eram espelho de Deus. Em suma: O frade menor e a irmã clarissa, porque enamorados por Jesus, eram e são chamados à identificação com o Senhor, à vivência do Evangelho, em pobreza e fraternidade. Ambos são chamados a responder com a vida, à ordem do Senhor: ―Francisco, vai e repara a minha casa que, como vês, está quase em ruína‖61 . Uma mesma vocação, um mesmo ideal, uma mesma responsabilidade, uma mesma resposta a dar.62 A diferença está tão somente na forma de concretizá-la: ————— 59 Em louvor de Santa Clara (organizado por Armindo Augusto), Braga, 1954, pp. 199- -200 60 2C, 204, in FF I, 2ª edição, p. 537. 61 2C, 10, in FF I, 2ª edição, p. 367. 62 Chiara Augusta Lainati, osc, Santa Clara de Asís. Prólogo à edição espanhola, p. 7.
  • 29. 29 O frade menor actua, por mandato do Senhor, no meio dos irmãos, proclamando e testemunhando a plenitude do amor de Jesus Cristo, a bondade de Deus e a fraternidade dos homens; a irmã clarissa, no escon- dimento do claustro, vivendo em pobreza, em oração silenciosa e contem- plativa, dá testemunho de Cristo em contemplação a sós com o Pai, pro- clama ―o encanto que Deus é‖ e assume, com Cristo pobre e crucificado, as dores, as alegrias e as esperanças dos homens. Francisco e Clara!… Uma Família Franciscana, uma mesma vocação, um mesmo ideal: o encanto, o enamoramento por Jesus Cristo. Uma só e mesma vocação contemplativa. O Irmão Francisco e a sua ―Plantazinha‖ tinham consciência desta missão comum. Francisco, diante da fidelidade das damianitas, mulheres evangélicas, fortes e fiéis no seguimento da Cruz e na vivência do carisma, quis assumi-las como filhas, e isso, em seu nome e dos seus sucessores, conforme o texto de Celano: ―Quando o Pai, mercê das numerosas provas de altíssima perfeição, as viu decididas a aceitarem, por amor de Cristo, toda a espécie de trabalhos e provações, e a não se desviarem nunca das santas normas recebidas, prometeu-lhes firmemente, a elas e às que viessem a professar o mesmo teor da vida pobre, o seu apoio e o dos irmãos. Enquanto viveu, manteve sempre escrupulosamente esta promessa e, prestes a morrer, recomendou encarecidamente aos irmãos que tivessem por elas as mesmas atenções‖63 . Clara e suas Irmãs, viam em Francisco o pai, o irmão e, de certo modo, a mãe que as alimentava com a sua espiritualidade; o mestre que as levava sempre a superarem-se para as mergulhar em Deus. No Testamento, o escrito mais impregnado de recordações pessoais e franciscanas, que encerra todo o carisma da Segunda Ordem, a Pomba do franciscanismo, evoca com a alma cheia de emoção e gratidão, a pessoa daquele que foi ―nossa coluna e única consolação, nossa fortaleza, nosso fundador, assistente no serviço de Deus‖64 e, que, ―movido de grande ternura para connosco, se obrigou, por si e pela sua Ordem, a ter por nós, tal como por seus irmãos, diligente caridade e uma solicitude particular‖65 . Como consequência, Clara abandona-se a esta protecção e solicitude: ―Do ————— 63 2C, 204, in FF I, 2ª edição, p. 537. 64 TCL, 38 e 48, in FF II, pp. 71 e73. 65 TÇL, 29, in FF II, 71.
  • 30. 30 mesmo modo recomendo as minhas irmãs presentes e futuras ao sucessor do nosso bem-aventurado Pai Francisco e a toda a sua Ordem, para que nos ajudem a progredir cada vez mais no serviço de Deus e a observar cada vez melhor, sobretudo, a santíssima pobreza‖66 . Ao redigir a Regra, a Irmã Clara, recordando que no início da sua conversão, ela e suas irmãs, haviam prometido obediência ao bem- -aventurado Francisco, no capítulo I, deixa expresso o seu desejo e a sua vontade de forma irrevogável: ―… da mesma maneira promete obediência inviolável aos seus sucessores. E as outras Irmãs estejam sempre obrigadas a obedecer ao sucessor do bem-aventurado Francisco‖67 . Quem não vê implícita, nas entrelinhas dos textos de Francisco e de Clara, a vontade de tão santos fundadores, de que as Irmãs Clarissas tenham com o Primeira Ordem Franciscana ligação jurídica bem definida?… Esta filha querida do ―Poverello‖ encarna, de forma ímpar, o ideal recebido e, na clausura de São Damião, sustenta e anima os seus Irmãos na fidelidade ao projecto de Francisco. Depois da sua morte, a 11 de Agosto de 1253, os Irmãos Menores ―descobrem em Clara a guarda do projecto evangélico originário‖68 . Deus, condutor da história dos homens, em cada época suscita os profetas de que a Igreja precisa. No século XIII, Francisco e Clara foram instrumentos de Deus para a renovação necessária e adequada. ————— 66 TCL, 50, p. 73; RCL, 4, p. 53, in FF II. 67 RCL, I, 4, in FF II, p. 45 68 Frei Giacomo Bini, op. cit., p. 21.
  • 31. 31 A MENORIDADE EM CLARA DE ASSIS Marco Bartoli* ————— * Das Actas do Congresso celebrado em Roma, em 26 e 27 de Novembro de 2002, Minores et subditi omnibus
  • 32. 32 A MENORIDADE EM CLARA DE ASSIS O tema da minoritas (menoridade) em Clara de Assis é um problema historiográfico assaz intrigante sob muitos aspectos. Entrando nele directamente, poderíamos perguntar: por que razão os discípulos de Francisco se chamaram irmãos menores e as mulheres, que também prometeram obediência, nunca se chamaram irmãs menores? A resposta não é tão simples como pode parecer, tanto mais que a designação de irmãos menores não é de todo ignorada nas fontes coevas, nem a menoridade, como conteúdo, deixou por certo de merecer alguma vez todo o apreço da própria Clara1 . Afonso Marini recorda, por exemplo, uma passagem da segunda carta a Inês da Boémia, em que se diz: ―Eu te exorto a não esqueceres o teu santo propósito e, qual outra Raquel, não ————— 1 Eu mesmo, como muitíssimos outros antes de mim, a propósito da da menoridade de Clara, mesmo em sede de congresso, utilizei outro famoso texto dos escritos de Clara, da Regra, que diz: ―Com efeito, muitas vezes é ao mais pequenino que o Senhor revela aquilo que mais convém”(cf. Fontes Franciscanas II, Editorial Franciscana, Braga, 1996, obra que citaremos neste artigo como FFII). A expressão é ao mais pequenino(menor) que o senhor revela, é tirada da regra de S. Bento (cf.3,3), mas ali se diz iuniore (o mais jovem). Clara parece ter substituído conscientemente a palavra iuniore por minori tirando o acento tónico do problema da idade para a importância no seio da comunidade. Tudo isto pode ser sugestivo, mas devemos deixar isto de parte, porque uma leitura recente duma Bula que continha a Regra, conservado no Protomosteiro, estabeleceu que a leitura correcta é iuniori, tal como vem na Regra de S. Bento. Agradeço ao P. Lehmann o haver-me esclarecido sobre este erro, e sobretudo o último estude de CHIARA AGNESE ACQUADRO, ――Frecuentemente el Señor revela al menor lo que es mejor‖. Um erro de leitura já velho, de cinco séculos». Em Collectanea Franciscana 71 /3-4(2001), 521-526.
  • 33. 33 percas de vista as motivações do início. Mantém-te firme no que já alcançaste‖2 . Segundo Marini, ―Raquel, mulher de Jacob, com a irmã mais velha, Lia, era tida como símbolo da vida contemplativa, já que no Génesis 20,16, se lê que Raquel é a filha menor de Labão. Ora o «início‖ a que Inês, qual outra Raquel, é convidada por Clara a ter sempre presente, parece ser aqui a ―menoridade‖ franciscana, mais do que a contemplação em sentido estrito3 . Seja como for, em todos os escritos de Clara o termo menor está exclusivamente associado aos irmãos menores, como se o ter de aludir sequer à condição de menoridade lhe provocasse algum pudor ou reserva. É talvez devido a este silenciamento que, tanto quanto sei, não são muitos os estudos dedicados ao tema da menoridade em Clara de Assis4 . Esta escassez de estudos não deixa de nos surpreender um tanto, pois sabemos, por outra parte, que o primeiro e conhecidíssimo testemunho sobre o movimento iniciado por Francisco de Assis falava explicitamente não só de irmãos como também de irmãos menores. Aludo aqui, como se está a perceber, à carta de Tiago de Vitry, escrita em 1216, imediatamente após a sua participação em Perusa nas exéquias de Inocêncio III: ―Apesar de todo o mal que grassa pelo mundo, encontrei uma grande consolação ao ver uma enorme quantidade de homens e de mulheres renunciar a todos os bens e a deixar, por amor de Cristo, a vida mundana. Eram vulgarmente chamados Irmãos e Irmãs menores. Tanto o senhor Papa como os Cardeais professam uma grande estima por estes irmãos‖5 . Poder-se-ia pensar que Tiago de Vitry se tivesse simplesmente confundido, aplicando às mulheres o mesmo nome utilizado para os homens. Mas talvez se possa avançar outra explicação. Alguns anos mais tarde, o Papa Gregório IX, na carta Ad audientiam nostram de 21 de ————— 2 2CCL 11 3 «Antologia degli scritti di santa Chiara», a cura de A. MARINI, em Chiara d’Assisi. Con Francesco sulla via di Cristo, Asís-Santa Maria dos Anjos 1993, 51-661; 115-152, a citação está na p. 132. 4 Um dos pouco que em tempos relativamente recente se interessou pelo temo foi P. OPTATO VON ASSELDONK, ――Sorores minores‖. Um nova visão do problema», em Sel. Fran. 69 (1994) 373-406. 5 FFII p. 477
  • 34. 34 Dezembro de 1241, tomava posição contra algumas mulheres a quem chamavam ―minoretae‖ (menores): ―Aos veneráveis irmãos, Arcebispos e Bispos que recebam esta carta, saúde e bênção apostólica. Sabeis certa- mente que chegou ao nosso conhecimento o caso de algumas mulheres que circulam pelas vossas cidade e dioceses e falsamente afirmam fazer parte da ordem de São Damião. Para se tornarem mais credíveis, andam descalças e vestem o hábito das monjas da dita Ordem. Por isso lhes chamam descalças, cordígeras ou menores. É sabido que as monjas de S. Damião vivem a clausura perpétua como serviço prestado a Deus. E uma vez que isso causa perplexidade à Ordem de São Damião e indignação aos Frades Menores e esta falsa Ordem causa escândalo aos ditos frades e às ditas monjas, ordenamos com esta Carta Apostólica, a todos vós, que as obrigueis, com censura eclesiástica, a renunciar a tal hábito e respectivo cordão, depois de as terdes admoestado logo que sejais informados da sua presença, concedendo-lhes faculdade de apelar‖6 . Era pois desta forma que o Papa afirmava não convir tal menoridade às monjas da Ordem de São Damião, embora, por outro lado, as suas palavras sejam a prova provada de que a menoridade nos meados do século XIII não era apanágio apenas de homens, antes andava igualmente associada a grupos de mulheres que viviam a opção franciscana numa vida itinerante. A este respeito, Maria Pia Alberzoni observou ser ―significativo que tal fenómeno (das minoretae) só se tivesse manifestado nos inícios da década de 40 de 1200, o que poderá indiciar o facto de haverem estado até então no centro das atenções, mercê da mediação de Frei Elias, e de serem reconhecidas de alguma maneira pela Ordem franciscana ou por uma parte dela, e encaminhadas na direcção das que definimos como fundações de clarissas (clareanas)‖7 . Segundo um testemunho tardio, Francisco teria reagido vivamente contra a denominação de irmãs menores a si próprias arrogada por certos ————— 6 FFII p. 474 7 M.P. Alberzoni, Chiara e il papato, Milan, 1995, 91. Há que observar que no século XVII, L. Iacobili, historiador da santidade da Umbria, anotava, referindo-se ao ano 1216: ―Santa Clara de Assis veio a Folinho em companhia de Marsebilia e Cristiana, suas discípulas, para edificar um mosteiro da sua Ordem de São Damião, chamado depois das Minorisse…”, Folinho, Biblioteca Iacobilli, cod. A.V. 6, c. 56; ed. Em M. SENSI, ―Le clarisse a Foligno nel sec. XIII‖, em CF 47 (1977), 358, documento II.
  • 35. 35 grupos femininos, ou porventura a elas atribuída a partir do exterior8 . Teria inclusivamente invocado a assistência do cardeal Ugolino para que ―de futuro, se não chamassem irmãs menores, mas dominae, ou seja, senhoras9 . Embora tardia, esta tradição revela no entanto que persiste um certo embaraço nos ambientes franciscanos, face ao termo menores aplicado às mulheres, embaraço que vemos repercutir-se ainda em Fra Mariano de Florença, no início do séc. XVI, no seu Libro della dignità et le excellentie… ―Mas quando São Francisco voltou de Santiago e ouviu da parte dos irmãos que se tinham edificado mosteiros em muitas terras e cidades e que muitas irmãs se chamavam menores, grandemente se doeu por não querer tê-las ali perto, dando aso a que os irmãos tivessem familiaridades com mulheres e daí se levantassem sinistras suspeitas entre o povo. Pelo que não quis tomar conta delas, excepto as já mencionadas, de São Damião‖10 . Parece certo, todavia, que em contextos de algum modo periféricos, relativamente à região umbro-toscana onde nasceram as primeiras comunidades próximas da experiência de São Damião, a designação de ————— 8 «Dizia o mesmo Fr. Estevão que o bem-aventurado Francisco não queria ter familia- ridade com nenhuma mulher e não permitia que as mulheres o tratassem com modos familiares; só parecia ter afecto para com a bem-aventurada Clara. E, não obstante, quando falava com ela ou falava dela, tratava-a sempre com o nome de ‗cristã‘. E tinha grande solicitude para com ela e seu mosteiro. E nunca autorizou a fundação de outros mosteiros, mesmo que alguns tenham sido abertos, mas por influência de outros. E quando soube que as mulheres, reunidas nesses mosteiros, se chamavam irmãs, per- turbou-se muito e exclamou: ―O Senhor tirou-nos as mulheres e o diabo deu-nos as irmãs‖. O Cardeal Hugoloino, bispo de Óstia, então Protector da Ordem dos Menores, acompanhava estas irmãs com grande afecto. Uma vez ao despedir-se de Francisco, disse-lhe: ‗Confio-te estas senhoras‘. Francisco, então, respondeu-lhe com graça: ‗Santo pai, de agora em diante não se chamarão irmãs menores, mas como tu disseste, senhoras‘. E desde então, chamaram-se Senhoras e não Irmãs», em Fonti Francescane 2682-2683. 9 Cf. STANISLAO DA CAMPAGNOLA, Introduzione, em Fonti FrancescaneI, p.315 10 MARIANO DE FLORENCIA, Libro della dignitá et le excellentie del Ordine della Seraphica Madre delle Povere Donne Sancta Chiara da Assisi (Biblioteca de Estudios Franciscanos 18), edição preparada por G. Boccali, Florencia-Assis 1986, 55, n. 39. Isto no seguimento duma larga tradição, dado que, por exemplo, numa compilação de Paris do século XIII, na perícopa narrada por Fr. Estevão, vem anteposta a assinatura ―(Francisco) não queria que se chamassem menores, mas senhoras‖, AFH 76 (1983), 89, n. 504.
  • 36. 36 irmãs menores fosse aplicada também a experiências de vida em comum. É o caso, por exemplo, de Verona, cujas transformações institucionais foram estudadas por Varanini11 ; não se devendo também esquecer que no códice de Volterra, onde se encontra o texto audite poverelle, junto à regra de Clara, se lê: ―Esta é a Regra das senhoras ―minoritas‖ de Verona da Ordem de santa Clara de Campo Márcio‖12 . Digno de menção é ainda o caso de Trento. onde um grupo de mulheres, de inspiração inegavelmente franciscana, vivia, ao que parece, uma vida religiosa em comum ao serviço dum hospital13 . O caso de Trento surge ainda mais significativo se tivermos em conta o facto de terem partido precisamente de Trento as quatro mulheres que deram início ao mosteiro de são Francisco de Praga, projectado e fundado em íntima e explícita relação com São Damião por Inês da Boémia14 . Importa não esquecer finalmente que as mulheres que se tinham reunido em volta de Isabel, irmã do rei Luís IX; eram habitualmente chamadas minorese (minoritas?) e que numerosos mosteiros, também em Itália (entre os quais o de São Lourenço in Panisperna, em Roma) tinham tomado a Regra e denominação de Isabel15 . Em todo o caso, no território umbro-toscano, a partir da década de 40 do ano 1200, o termo menores deixa de se aplicar às comunidades de vida religiosa feminina agregadas à experiência de Clara. A condenação formal das ―minoretae‖ constituía de facto um impedimento insuperável ao uso do mesmo termo para as comunidades de vida religiosa unidas a São Damião. É bem conhecido, por outra parte, o facto de que, enquanto nas Constituições de Ugolino se preferir o termo senhoras pobres, Clara, nos seus escritos, prefere falar de irmãs pobres, conforme diz solenemente no começo da Regra: ―A forma de vida da Ordem das Irmãs Pobres, instituída pelo bem-aventurado Francisco, é esta: observar o santo Evangelho de ————— 11 G.M. VARANINI, «Per la storia dei Minori la Verona nel Duecento», em Minoritismo e centri venetoi nel Duecento, edicão preparada por G. Gracco («Civis. Studi e testi», 7 (1983)), 93-101. 12 A notícia relativa à Audite Poverella encontra-se na Collectanea Franciscana 48 (1978), 17. Cf. Também a nota de G. Bocali ao texto de mariano de Florencia, Il libro della dignitá…, 58, n.1. 13 G.M. VARANINI, Uomini e donne in comunitá, (Quaderni di storia religiosa 1994). 14 Sobre os acontecimentos veja-se A. MARINI, Agnese di Bohemia, Roma 1991, (Biblioteca seráfico-cappucina, 38). 15 Cf. A. BLASUCCI, «Clarisse Isabelliane o Minoresse», em Dizionario degli Stituti di Perfezione, II, Roma (1975), 1.146.
  • 37. 37 Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade.‖ Nenhuma dúvida pode haver de que, aqui, Irmãs Pobres é a tradução no feminino de Irmãos Pobres, que se encontra na respectiva passagem da Regra bulada. A hipótese que se pode legitimamente adiantar é que Clara, na impossibilidade de usar o termo irmãs menores (sobretudo depois da carta Ad audientiam nostram de Gregório IX) teria optado por Irmãs Pobres, expressão que mais próxima lhe soava. Fica no entanto por explicar a relutância por parte das mais altas autoridades eclesiásticas relativamente ao uso do termo menores, aplicado às experiências religiosas femininas. Nesse intento, talvez seja útil tentar estabelecer qual o valor semântico do termo no séc. XIII. Desejaria tomar como ponto de partida a definição de menoridade optada por Pedro de João Olivi no seu comentário à Regra, por se tratar dum texto redigido poucos anos depois da morte de Clara e reflectir de algum modo a cultura e sensibilidade então dominantes em toda a Ordem. ―Ao falar, pois, dos irmãos menores, mostra claramente que a principal virtude e razão desta Regra está na suma submissão e humildade e na unidade íntima do amor fraterno‖16 . É meu entendimento que Olivi identificava nestas palavras dois significados principais, um, por assim dizer, de cariz social, a ―submissão, e o outro, mais especificamente religioso, a ―humildade‖. Relativamente ao primeiro aspecto, parece-me indubitável que menoridade tem um valor muito concreto: o daquele que se encontra na situação de dependência, de inferioridade, de submissão em relação a outrem, como recorda Francisco no Testamento: ―Éramos sem letras e a todos submissos.‖. Conforme já notava Estanislau de Campagnola, ―a origem da designação de irmãos menores nasceu sem dúvida de um tipo de conduta evangélico, mas exprimia também uma renúncia às distinções entre ―maiores‖ e ―menores‖ que dominavam e se entrechocavam nas grandes cidades italianas. Exactamente quando Francisco voltava de Roma, concluiu-se em Assis (9 de Novembro de 1210) um pacto entre ―maiores‖ e ―menores‖, em virtude do qual a população do Município ————— 16 D. FLOOD, Peter’s Olivi Rule Commentary, Wiesbaden 1972, 117.
  • 38. 38 obteve a isenção do serviço e menagem feudais em vista duma pacífica convivência entre as duas classes‖17 . A menoridade franciscana revestia-se também de um carácter especificamente social. Para usar as mesmas palavras de Raoul Manselli: ―entrar a fazer parte (da fraternidade) significava também aceitar a vida, ou seja, aquela condição de marginalidade relativamente ao resto da sociedade que Francisco escolhera depois do encontro com o leproso e que, baseada na leitura do Evangelho, ele próprio tinha podido precisar e clarificar depois, averbando por escrito o projecto duma Regra a aprovar pelo Papa‖18 . Parece-me ter sido justamente este aspecto social que constituiu o maior problema para as mulheres que desejavam seguir Francisco no caminho da menoridade. O abandono de qualquer estatuto social garantido e a opção duma vida a todos submetida devia constituir motivo de preocupação, tratando-se de mulheres jovens como Clara e suas com- panheiras. Há uma reflexão sobre este problema na Legenda da virgem Santa Clara, quando se fala da reacção dos familiares apenas souberam que Clara se tinha refugiado em São Paulo das Abadessas: ―…juntaram-se e dirigiram-se ao local. Usando da força e da violência, conselhos dissuasores e promessas vãs, tentaram demovê-la de situação tão humi- lhante e tão em desacordo com a sua condição e sem precedentes nas redondezas‖19 . Os familiares querem convencer Clara a renunciar a tal vileza (vilitas), que as Fontes Franciscanas traduzem por ―condição de humilhante baixeza‖, de todo inconveniente para a famílias e sem precedentes na região. Esta ―vileza‖ de Clara, como já tentei demonstrar noutra ocasião, não consistia tanto na opção pela vida monástica, como certamente na venda que fizera do dote e na distribuição do seu produto pelos pobres.. Neste sentido, a vileza identifica-se com a submissão e a menoridade: uma vez em São Paulo das Abadessas, Clara devia ser não já uma monja de coro, mas, muito mais modestamente, uma simples irmã serviçal. Tal condição ————— 17 STANISLAO DA CAMPAGNOLA, Introduzione, em Fonti Francescane, p. 315. 18 R. MANSELLI, Vida de san Francisco de Asís, Ed. Franciscan Aránzazu, Oñati, 1977 19 LCL 9, FFII, p. 246
  • 39. 39 era considerada aviltante para uma jovem, filha duma das melhores famílias de Assis. Que a Legenda não se enganava muito, ao descrever a opção de Clara como desusada na região, pode ver-se no confronto com outras vidas de santas mulheres, suas contemporâneas. Se examinarmos, por exemplo, o antigo ofício litúrgico redigido em honra de Filipa Mareri antes de 1247, verificamos como esta mulher, de nobre linhagem, escolheu certamente o desprezo do mundo com as suas dignidades e riquezas, mas permaneceu no território do feudo da família com algumas companheiras, depois de ter recebido do irmão um público instrumento de estável isenção e de perpétua liberdade. Em suma, mesmo escolhendo a via evangélica do amor a Deus e ao próximo, Filipa era e continuou a ser baronesa20 . Percurso análogo ao de Filipa é o de Margarida Colonna, que continuou a viver no feudo da família, unida aos seus famosos e importantes irmãos21 . Rosa de Viterbo, que provinha duma família porventura nada pobre, era certamente mulher do povo e não uma aristocrata, e a sua opção de vida religiosa, permanecendo laica, não comportou qualquer mudança no ponto de vista social22 . Mudança em sentido inverso foi a que viveu Margarida de Cortona, que, para alcançar uma impossível proeminência social, fugiu de casa para viver maritalmente com um jovem abastado de Montepulciano. A morte súbita deste levou Margarida a uma amarga reflexão sobre as suas opções de vida e, em consequência, a escolher sem vacilações o caminho da penitência. Do ponto de vista pessoal, certamente que Margarida terá tido uma consciência humilíssima de si mesma, unida a um arguto conhecimento do próprio pecado, mas do ponto de vista social nada ————— 20 Cf. E. PASZTOR, «Filippa Mareri e Chiara d‘Assisi», em Donne e sante. Studi sulla religiosità femmenile nel Medio Evo, Roma 2000, 173-196. 21 Sobre Margarita Colonna consulte-se: B. Margherita Colonna. Le due vite scritte dal fratelo Giovanni senatore in Roma e da Stafania monaca de S. Silvestro in Capite, textos inéditos do século XIII ilustrados e publicados pelo P. Livario Liger, OFM, Roma, 1935. 22 Entre as muitas publicações sobre Rosa de Viterbo, gostaria de aconselhar o que sinteticamente escreveu, há algum tempo, o P. MARIANO D‘ALATRI, Rosa da Viterbo tra mito e storia, en «Lunario Romano 1979»: Feitos e figuras de Lazio medieval, 345-354.
  • 40. 40 houve, no seu percurso biográfico, que se assemelhasse à mencionada ―vileza‖ que tinha caracterizado o de Clara de Assis.23 Outra figura, sempre associada ao mundo dos laicos que gravitavam em torno do movimento franciscano, além do de Margarida de Cortona, é Humiliana dei Cerchi. Também ela, não obstante as graves incompreensões que a opuseram ao pai depois da morte do marido, permaneceu sempre em casa da família, no centro de Florença24 . Um pouco à semelhança das outras piedosas mulheres, viveu uma vida de penitência e de mortificação pessoal, praticando a pobreza voluntária e a renúncia aos bens. Apesar disso, de nenhuma delas se poderia falar de autêntica opção de menoridade, enquanto opção de submissão e de ignobilidade. A única figura feminina que, em certo sentido, se aproxima de Clara neste aspecto só além dos Alpes a vamos encontrar. Refiro-me a Isabel de Hungria. Falecido o marido, renunciou ao seu próprio estatuto social, vendeu os bens e, com o produto granjeado, mandou construir uma lepro- saria, onde passou o resto dos breves dias servindo os enfermos e os pobres25 . A menoridade, tanto para Clara como para Isabel, teve também um valor social: ambas renunciaram às comodidades próprias da sua condição a fim de se colocarem conscientemente ao serviço de todos, designadamente dos últimos dos últimos. Em Clara, certamente mais do que em Isabel, esta opção foi por ela encarnada numa vida religiosa em comunidade, e é por isso que, tanto a dimensão social como a religiosa de menoridade, aparecem nela estreitamente unidas. ————— 23 No que respeita a Margarida de Cortona, o texto de referência é a Legenda de vita et miraculis Beatae margaritae de Cortona, edição crítica preparada por Fortunato Iozeelli, Grottaferrata 1997. 24 Sobre as Humiliatas vejam-se os trabalhos de Ana Benvenutti, reeditados em «In Castro poenitentiae». Santità e società femmenile nell’Italia medievale, Roma 1990 sobre todo mas pgs. 59-100. 25 Sobre Isabel da Hungria e sobre a relação da sua espiritualidade com o dos Frades Menores consulte-se «Elisabetta d‘Ungherria», em Il grande libro dei Santi, Dizionario enciclopédico, col. I, Cinisello Bálsamo 1998, 591-594.
  • 41. 41 A par da submissão, encontramos em Clara, fortemente vincada, a humildade. Na Legenda da virgem Santa Clara sublinha-se a miúdo, quase como uma constante de biografia monástica, o facto da abadessa não desdenhar dos serviços mais desprezíveis. De Clara se diz inclusi- vamente que não tinha o menor pejo em esvaziar os vasos de cabeceira das irmãs doentes e de as servir à mesa, mas, para além deste lugar comum hagiográfico, cuja veracidade se não deve pôr em dúvida26 , impõe-se sublinhar a forma como Clara quis construir a sua comunidade sobre o modelo duma família normal, mas numa correlação diametralmente inversa. A frase que melhor ilustra este modelo está contida no capítulo X da Regra, onde se diz: ―A abadessa trate as irmãs com tanta familiaridade, que possam elas falar-lhe e tratá-la como senhoras a sua serva; pois assim deve ser: que a abadessa seja a serva de todas as irmãs‖27 . Apesar desta frase ter paralelo equivalente na Regra bulada28 , pode considerar-se como uma expressão basilar do pensamento da santa. Clara sabia muito bem com que perversidade se dirigiam os senhores às suas servas nas casas senhoriais e, por isso, quis inverter explicitamente este modelo na sua Regra: a abadessa devia aceitar ser tratada como serva pelas irmãs. Neste sentido, embora a palavra, nos escritos de Clara, jamais se aplique ao serviço em favor das irmãs, a sua humildade comunitária encarna duma maneira precisa uma atitude de fundo da menoridade inculcada por São Francisco: a do serviço. Ministrare significa ―servir‖, mas servir nos trabalhos domésticos, como Marta do evangelho, que se lamentava ao Senhor de a irmã a ter deixado sozinha a ministrare. O retrato que Clara faz na sua Regra da abadessa é justamente a de serva ou, melhor ainda, a de famula (que é o exacto paralelo feminino de minister) que não desdenha ocupar-se das actividades mais servis. Este aspecto da sua humildade revela, a meu ver, melhor que qualquer outro, o lado doméstico e comunitário, por assim dizer, da menoridade de Clara. Ainda hoje, se é verdade que as abadessas clarissas, diferentemente do que acontece noutras famílias religiosas, não apresentam no hábito qualquer sinal exterior que exteriorize a sua dignidade, deve-se provavelmente à influên- ————— 26 LCL 12, FFII p. 249. 27 RCL 10, 4-5, FFII p. 59. 28 2R 10, 5-6.
  • 42. 42 cia da menoridade de Clara ao longo duma tão grande experiência comu- nitária. Se voltarmos à definição de menoridade proposta por Pedro de João Olivi, sobre que nos detivemos ao princípio, há ainda um ponto a salientar: ―Ao falar, pois, dos irmãos menores evidencia claramente que a principal virtude e razão desta Regra consiste na perfeita submissão e humildade e na íntima unidade do amor fraterno‖. Para Olivi, a perfeita submissão e humildade não é certamente uma debilidade, antes uma força (virtude) e um sentido profundo (razão) da Regra. Talvez valha a pena determo-nos neste sentido de força e de virtude, já que na linguagem corrente de hoje a menoridade anda frequentemente associada a uma ideia de debilidade, se não mesmo de aviltamento e sujeição. Aqui chegado, permito-me sair de uma envolvência estritamente historiográfica para observar como hoje em dia um modelo cultural em certo sentido superior, sobretudo nos países mais ricos, cultiva e reforça o sentido de impotência29 . Este sentido funciona no caso da multiplicação das informações que caracterizam o mundo globalizado. Nunca, como hoje, os homens e as mulheres tiveram um tal acesso às notícias do mundo inteiro. Toda a notícia mereceria uma reacção, um assumir de responsabilidades, segundo o princípio enunciado por Paulo VI (―jamais poderemos dizer que não sabíamos‖). Se não queremos ser esmagados pelo sentido de culpa, impõe-se que nos refugiemos no sentido de impo- tência que permita dizer: os problemas são tantos que nada posso fazer. Por isso, a impotência chega a ser funcional para o caso da pretendida inocência ou, talvez melhor, para a não culpabilidade. Em certos aspectos, este sentido de impotência compagina-se com a menoridade. Ambos albergam o conhecimento da própria pequenez e finitude pessoais, mas, ao passo que a impotência, apregoada pelos actuais mass media, induz à resignação e passividade relativamente ao mundo e seus problemas, a menoridade optada por Francisco era conhecida por toda a primeira geração minorítica (pelo menos até Pedro de João Olivi, inclusive) como uma virtude, uma força e uma oportunidade. ————— 29 O P. RICOEUR, em La memoire, l’histoire et l’oubli, Paris, 2000, dedicou páginas interessantes ao tema da sensibilidade vitimista.
  • 43. 43 Para mim tenho que este sentido forte de menoridade foi igualmente o de Clara, que, desfrutando embora de um sentido vivíssimo da sua pequenez, possuía também um fortíssimo sentido de que a menoridade por ela escolhida voluntariamente era abençoada pelo Senhor que a confortava. É o que transparece, por exemplo, na sua famosa bênção, com cujas palavras me parece oportuno concluir: ―Eu vos abençoo durante a minha vida e depois da minha morte, quanto posso e mais do que posso, com todas as bênçãos que o Pai das misericórdias concedeu ou venha a conceder aos seus filhos e filhas espi- rituais, no céu e na terra, e com as quais um pai ou mãe espiritual abençoa e abençoará seus filhos e filhas espirituais. Assim seja‖. Traduziu Fr. José David Antunes
  • 44.
  • 45. 45 ALEGRIA E PAZ Fr. Timothy Radcliffe op* ————— * Conferência proferida durante o Capítulo Geral dos Franciscanos – Junho de 2003
  • 46. 46 ALEGRIA E PAZ É para mim uma grande alegria estar no meio de vós. Quando eu fui Mestre Geral dos Dominicanos, a relação com a vossa Ordem era muito importante para mim. Tive uma grande amizade com Fr. Hermann e Fr. Giacomo e os nossos Conselhos reuniram, em conjunto, por várias vezes. Pediram-me para partilhar convosco alguns pensamentos sobre a missão. A concepção franciscana e dominicana de missão é ao mesmo tempo semelhante e diferente.. Temos uma longa história partilhada sobre a missão. O primeiro documento oficial da Igreja enviando os franciscanos em missão, assinado por Honório III em 1225, também se dirigia aos dominicanos. Fomos enviados juntos como missionários ao norte de África. Também houve problemas entre nós, como sempre acontece entre irmãos. Quando li o relatório do Fr. Giacomo a este Capítulo Geral, pareceu- -me semelhante àquele que enviei ao nosso último Capítulo. Enfrentamos os mesmos desafios e temos projectos semelhantes: uma comunidade internacional em Bruxelas; o reforço duma comunidade em Istambul; renovação na África do Norte, etc. E também temos uma Comissão de Direitos Humanos em Genebra. Algumas vezes tive de me concentrar para me assegurar que não estava a ler o meu próprio relatório. Mas também somos muito diferentes, como o foram Francisco e Domingos. Assim espero que o que vou dizer sirva de complemento. Se não, ficarei consolado recordando um dos meus irmãos da Conferência dos Estados Unidos: Quando se sentou, depois de falar, pareceu-lhe que os aplausos tinham sido fracos. Um pouco desgostoso desabafou com o vizinho: ―Espero que a conferência não tenha sido tão má‖! Ao que o outro respondeu: ―Deixa lá. A culpa não é tua, é de quem te convidou‖!
  • 47. 47 Primeiro, um comentário introdutório: estão a reflectir sobre a missão num clima de crise para a vida religiosa. A maioria das Ordens religiosas sentem as mesmas dificuldade: A escassez de vocações em algumas partes do mundo e o abandono desta forma de vida. No seu relatório diz o Fr. Giacomo: ―Nestes anos a Ordem decaiu em número e isto ainda será mais notório nos próximos tempos‖. Num tempo de crise, é fácil perder o ardor missionário e voltar-se para dentro. É tentador preocupar-se pela sobrevivência, de forma que cada Província olha as suas próprias necessidade e esquece a missão de toda a Ordem, cada comunidade pensa na sua própria sobrevivência e esquece a Província e cada frade esquece o seu irmão e pensa só nas suas próprias necessidades. Quando começamos a pensar em termos de sobrevivência, estamos acabados. Por que razão um jovem se haveria de juntar a nós, se só pensamos em sobreviver? Ainda bem que neste Capítulo não foram ir por aí e quiseram pensar na missão. O mais importante é não temer esta crise. A nossa missão está em partilhar a vida de Cristo. E a vida de Cristo esteve marcada pela crise. A sua missão alcança a máxima crise na Última Ceia. Jesus reúne os discípulos à sua volta, quando a comunidade se está quase a desintegrar: Judas já O tinha vendido; Pedro está prestes a negá-lO. E a maioria dos outros discípulos vai fugir. A vida de Cristo encaminha-se para o fracasso e a derrota. Mas é num momento de crise que realiza o gesto tão cheio de esperança: Toma o pão e dá-o aos seus discípulos dizendo: ―Isto é o meu corpo entregue por vós‖. Quando a comunidade se está desintegrando, proclama a nova Aliança. Cada eucaristia que celebramos actualiza o memorial desta crise vencida e transcendida. Não há nada que temer perante as crises. A Igreja nasceu duma. Seguir a Cristo é passar por numerosas crises. As nossas Ordens viveram muitas: para vós a morte de Francisco, para as nossas Ordens a crise da peste negra, a reforma, a revolução Francesa, os dolorosos e gloriosos anos depois do Concílio Vaticano II. As crises são o trampolim para o Reino. Os Franciscanos, ainda mais que os Dominicanos, sempre acentuaram que a sua missão se enraizava na forma de vida, a sua vida. Fr. Giacomo diz no seu relatório: ―Mais que geográfica, a missão dos Franciscanos é
  • 48. 48 antropológica‖1 . Intuo que no coração de sua missão está a alegria de S. Francisco. A sua regra manda que os frades vão pelo mundo ―com alegria e felicidade‖. Ninguém acredita que um pregador tristonho é portador de boas notícias. Como escreveu Nietzsche: ―Os discípulos de Cristo deveriam mostrar-se mais redimidos‖. S. Francisco e seus primeiros irmãos viviam cheios de alegria. As cartas de Clara estão cheias de alegria. O mesmo se pode dizer de S. Domingos e seus primeiros irmãos. Muitas vezes se descreve a S. Domin- gos como um homem que ria com seus irmãos. E esta é a autoridade mais fundamental dum pregador. Conta a história que um dia um grupo de noviços começou a rir durante as Completas. Um dos irmãos mais velhos zangou-se com eles por rirem na igreja. Mas Jordão da Saxónia, sucessor de S. Domingos, repreendeu-o e disse aos noviços: ―Riam até vos apetecer e não liguem ao que diz este irmão. Tendes a minha autorização. Devemos rir quando nos conseguimos libertar do maligno… riam, pois, e manifestem contentamento até à saciedade‖. Um frade tristonho não podia ser membro da Ordem dos Pregadores. O Cardeal Suhard, antigo Bispo de Paris, escreveu: ―Ser testemunho não consiste em comprometer-se com propagandas ou amotinar as turbas, mas em crer num mistério vivo. Significa viver de tal forma que a própria vida não teria sentido se Deus não existisse‖2 . As pessoas seriam atraídas ao Evangelho se encontrassem em nós uma alegria inexplicável, que não teria sentido se Deus não existisse. Seriam atraídos e ficariam atónitos com a nossa alegria. Teria que ser um sinal interpelativo vivo e um convite. Um dia passando pela cidade velha de Jerusalém, de regresso a casa, vi, através duma porta, uma casa cheia de Hassidin que bailavam. Na sua alegria eu vi a sua fé. Francisco acreditava que a própria vida é uma entrada na vida de Jesus. E a missão de Jesus começou com a alegria do Pai no baptismo. Emerge das águas e escuta-se uma voz dizendo: ―Tu és o meu filho muito amado, em ti pus as minhas complacências.‖ A fons et origo da missão de ————— 1 P. 88 2 Growth or Decline, Notre Dame 1951, quoted by S. Hauerwas, Sanctify the Time, Edimburgh 1998, p. 38.
  • 49. 49 Jesus é a alegria que o Pai tem no Filho e a alegria que o Filho tem no Pai, que é o Espírito Santo. O mestre Eckhard, dominicano e místico alemão, diz que no centro da vida de Deus há um riso incontível. ―O Pai ri com o Filho e o Filho ri com o Pai, e o riso traz prazer e o prazer traz alegria e a alegria traz amor.‖3 Diz que a alegria de Deus é como um cavalo galopando num campo, cortando o ar com prazer. Toda a nossa pregação é um convite às pessoas a encontrar o seu lugar nessa alegria. Jesus iniciou a sua missão participando numa festa e bebendo com cobradores de impostos e prostitutas. Encontrou prazer em estar com eles; deleitava-se na sua companhia. A Igreja não tem nada que dizer sobre qualquer assunto, mormente sobre moral, enquanto as pessoas não sintam a Igreja como um espaço de alegria, no qual se Deus se compraz. A gente mais marginal, cujas vidas são uma tragédia e não vivem de acordo com as leis da Igreja, deveriam encontrar em nós, uma comunidade que, de muitas formas, lhes diz: ―É maravilhoso que existais‖. Os pregadores deveriam estar motivados por uma indescritível alegria, que se levanta como um sinal interpelativo. Porque são estas pessoas tão felizes? Qual é o seu segredo? Neste Capítulo os franciscanos reflectem sobre a missão da Ordem num contexto novo, o da aldeia global na qual todos os seres humanos são vizinhos. Creio que a alegria franciscana tem, aqui, um especial teste- munho a oferecer. Antes de mais é uma alegria que brota da pobreza, o que parecerá uma loucura num mundo em que o dinheiro comanda. Depois é uma alegria que sonha com o Reino e que é vital para um mundo que já não sonha com o futuro. A alegria de Francisco era a de um homem pobre que tudo recebia como uma prenda. Como nada possuía, então viveu num mundo de total generosidade. Cada bocado de pão era um presente. Diz-se que no Capítulo das Esteiras, S. Domingos ficou surpreendido com a confiança que os 5000 frades tinham em ser alimentados com ofertas (Fl 18). Natu- ralmente os historiadores dominicanos duvidam da historicidade deste relato. ————— 3 Sermão 18, in F. Pfeiffer, Aalen 1962 quoted in Murray, op. Cit. P. 132
  • 50. 50 Esta mendicidade era mais que optimismo. Era uma maneira de estar no mundo, onde tudo é experimentado como um dom. Francisco era um homem sempre surpreendido pelos presentes que Deus lhes dava: comida e bebida, luz e água, irmãos e irmãs e até a existência. Ser um mendigo é viver num universo de dons. E Francisco teve sempre a alegria de um eterno Natal. Este sentido de dom foi central, também, para a teologia de Tomás de Aquino. Ele acreditava que se olhando o mundo com claridade, com Veritas, verdade, então via-se que tudo é um dom de Deus. Percebe- -se assim que a alegria franciscana e dominicana fundem as suas raízes numa visão do mundo em clave de gratuidade. Francisco recusou o mundo de seu pai, que era um comerciante, um homem de mercado. Mas desde então o mundo inteiro converteu-se num mercado. Tudo se converteu numa comodidade com um preço. Nos tempos de Francisco e Domingos, ninguém pensava que pudesse possuir terras. Alguém podia ter o uso da terra, mas esta pertencia a Deus. Segundo Aquino, toda a posse privada estava condicionada pela bem comum de toda a humanidade. Mas gradualmente tudo se pôs no mercado que é este mundo moderno: terra e água, e sobretudo os seres humanos. Agora quatro ou cinco das maiores companhias internacionais estão em competição pela propriedade de todas as sementes e, por este meio, da fertilidade da terra. Há até quem queira ter a propriedade do mapa humano de ADN, tomando posse da nossa própria natureza. Por isso a alegria do Poverello contradiz a forma moderna de olhar a realidade e abre os nossos olhos para uma nova maneira de encarar o mundo. A minha experiência diz-me que os irmãos mais felizes são os pobres. Vivem num mundo de dons e quando falam de Deus as suas palavras têm autoridade. (E se não sabem como desfazer-se das riquezas, podem entregá-las aos dominicanos, para ver quem é mais feliz!…) A alegria franciscana oferece outro tipo de desafios à nossa aldeia global. É um desafio com perpectiva utópica. É a alegria daqueles que já têm um pé no Reino. Isto verifica-se, sobretudo, nas histórias de S. Francisco com os animais. Elas sugerem mais do que parecem. Quando pregava às aves ou reconciliava os habitantes de Gúbio com o lobo, vemos como o Reino começa a tornar-se presente: ―Então o lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos, e um menino os conduzirá‖ (Is 11, 6).
  • 51. 51 Diz-se que quando pregava aos peixes, estes se retiravam felizes (Fl 40). (Eu sou um dominicano típico porque a minha primeira reacção a estas histórias é perguntar como é possível saber se um peixe está feliz! Temos uma relação diferente com os animais. Talvez porque somos animais, os Domini Canes (cães do senhor)… pelo que devem tratar-nos bem). Albertto Magno interessava-se pelos peixes, mas não os queria compreender. Queria saber se faziam ruído ou não quando acasalavam e oferecia às ostras pedaços de metal para ver se era verdade que os comiam. Tinha uma serpente como mascote que se embebedou e andava perdida pelos claustros4 . Esta utópica alegria franciscana é um convite ao nosso mundo posmoderno. Vivemos numa sociedade que perdeu por completo a capacidade de o sonhar no futuro. Eu cresci numa cultura onde se acre- ditava que a humanidade se dirigia a algum sítio. Para uns era o paraíso capitalista, para outros o paraíso socialista. Os carros e os aviões torna- vam-se cada dia mais velozes. Os países foram libertados do governo tirânico da Inglaterra. Até a comida inglesa mudou. Podiam-se comer rãs e caracóis. O Reino estava próximo. Todos estes sonhos os resumiu Martin Luther no famoso discurso de 28 de Agosto de 1963: ―Eu tenho um sonho‖. O sonho era a liberdade, quando ―todos os filhos de Deus, homens negros e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos forem capazes de se dar as mãos e cantar com as palavras do velho cântico espiritual dos negros: ―Finalmente livres! Finalmente livres! Graças a Deus Todo-Poderoso, somos finalmente livres.‖ Quarenta anos depois, esses sonhos perderam-se. O muro de Berlim caiu, terminou a guerra fria, mas como escreveu Fukuyama, a história terminou. Vivemos na geração do hoje, do imediato, que tem medo de pensar no amanhã. Não se vive o sentido duma humanidade a caminho para um destino comum: o triunfo sobre a pobreza e a injustiça. Tivemos algumas vitórias: derrubou-se a apartheid e já não existe o império soviético. Mas há poucas situações como o Brasil do presidente Lula, que nos oferecem alguma razão para acreditar que os sonhos ainda se podem realizar. Parte da vossa missão como franciscanos é, certamente, renovar ————— 4 Simon Tugwell OP, Albert and Thomas: Selected Writings, New York, 1988, p. 29
  • 52. 52 os sonhos da humanidade. É uma alegria que rejeita a resignação e o fatalismo. Parra isso precisais de vos deixar penetrar duma alegria escatológica, que seja a antecipação da alegria do Reino. Esta utopia pode acabar mal, como sucedeu com os seguidores de Joaquim de Fiore, os Fraticelli. Se o Evangelho deve ser pregado, temos de sonhar. Dizia Oscar Wilde que nenhum mapa do mundo é exacto se não inclui a utopia. Desta maneira a missão franciscana, fundada na alegria da genero- sidade de Deus, desafia a mentalidade do mercado, onde tudo é comprado e vendido. Será uma alegria escatológica que mantém viva a aventura do nosso peregrinar. Se tendes que renovar o espírito de missão, então reflecti sobre como manter viva esta alegria em vossas comunidades. Estão os irmãos alegres em fraternidade? Isto implica um cuidado verdadeiro pela felicidade do outro. Necessitamos de estar atentos à felicidade do nosso irmão. Se não o fazemos, então as nossas pregações serão vazias. Necessitamos de nos alegrar em nossos irmãos e deleitarmo-nos com o seu ser. Mesmo sendo muito difíceis, talvez loucos, podemos aprender a olhá- -los como Deus os olha, deleitando-se na sua mera existência. São Francisco pede que nos alegremos com o que o Senhor faz e diz através dos irmãos. Precisamos de nos deleitar assim com eles. Quando Fr. Ricério passava por tempos de sofrimento e desespero, só precisava que Francisco lhe dissesse que o amava, coisa que ele fez. ―Meu filho caríssimo, frei Ricério, de entre todos os irmãos que há no mundo, eu te amo de maneira particular‖ (Fl 27). Preocupamo-nos assim pela felicidade do irmão? Temos coragem de lho dizer? Estão os nossos olhos abertos para os aceitar como dom de Deus? Também devemos estar atentos aos sonhos dos irmãos. A maioria das pessoas são atraídas para a vida religiosa porque sonharam com uma vida transformada. Isto ainda é mais certo tratando-se dos franciscanos. O Poverello encanta os corações jovens. Acontece que quando os jovens nos procuram constatam que o seus sonhos estão longe da realidade ordinária e monótona da vida religiosa, onde vivem pessoas que não são melhores que a maioria das pessoas do mundo. Isto é um choque e uma desilusão. Os sonhos desvanecem-se e os jovens ficam tristes e muitas vezes desertam. Precisamos de encontrar maneira de formar os nossos jovens como sonhadores realistas, sem excluir a alegria utópica de Francisco. Precisamos de irmãos com olhos abertos, capazes de nos olhar como