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3
CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE
FRANCISCANA
24
Editorial Franciscana
BRAGA – 2004
4
Índice
O ROSTO DE JESUS EM SANTA CLARA
PROJECTADO NO NOSSO MUNDO
Fr. David de Azevedo ofm
A IRMÃ MORTE NOS ESCRITOS
DE SANTA CLARA
(Nos 750 anos do seu passamento)
Ir. Maria V. Triviño, osc
A IRMÃ MORTE NOS ESCRITOS
DE SANTA CLARA
(Nos 750 anos do seu passamento)
Ir. Maria V. Triviño, osc
SER FRANCISCANOS E FRANCISCANAS HOJE
*Fr. José Rodríguez Carballo, ofm
Ministro Geral
O DECLÍNIO FRANCISCANO NO OCIDENTE:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE
Fr. Luís Oviedo
Documentos
A Pobreza, Carisma Capuchinho
Mensagem de João Paulo II aos Capuchinhos italianos
pela ocasião do ―Capítulo das Esteiras‖
5
I — Estudos
O ROSTO DE JESUS EM SANTA CLARA
PROJECTADO NO NOSSO MUNDO
Fr. David de Azevedo ofm*
—————
*
Conferência proferida no dia 4 de, no Mosteiro de S. Miguel das Aves, no âmbito das
"Jornadas Clarianas", lá realizadas.
6
O ROSTO DE JESUS EM SANTA CLARA
PROJECTADO NO NOSSO MUNDO
Celebramos os 750 anos da morte de Santa Clara e da aprovação da
sua Regra, respectivamente em 11 e 9 de Agosto de 1253. Dois aconteci-
mentos dignos de memória solene para a humanidade, porque Santa Clara é
figura de destaque na galeria das mulheres mais ilustres da história; e a sua
Regra, como experiência do Evangelho, define uma filosofia de vida de
importância decisiva para o a realização do homem como homem.
Escolhemos como tema o Rosto de Jesus em Santa Clara, porque o
rosto é a presença da pessoa e o relacionamento interpessoal é central na
vida de Clara e indispensável para que a vida do homem seja um vida ver-
dadeiramente humana. O Capítulo Geral da Ordem Franciscana celebrado
em Madrid em 1973 promulgou um documento intitulado Declaração so-
bre a vocação da Ordem nos Dias de Hoje. No parágrafo quinto estabelece:
"No coração da vida franciscana encontra-se a experiência de fé em Deus
no encontro pessoal com Jesus Cristo"1
. A afirmação vale com igual pre-
cisão para a espiritualidade clariana. No coração da espiritualidade de Santa
Clara está uma experiência singular de fé em Deus, no encontro pessoal
com Jesus. Tudo brota desse encontro. Vamos, pois, considerar, primeiro, a
centralização de Clara no rosto de Jesus; depois, seu enamoramento e amor
esponsal; e, finalmente, dois traços do rosto de Jesus.
I – CENTRALIZADA NO ROSTO DE JESUS
Sua Santidade o Papa João Paulo II na carta apostólica No Início dum
Novo Milénio, depois de recordar a celebração do ano jubilar, ao voltar-se
para o futuro, para o novo milénio, apresenta como título da sua reflexão, a
—————
1
– Declaração sobre a Vocação da Ordem nos dias de Hoje, Ed. Franciscana, Brga 1973,
p. 11
7
expressão: Um rosto a Contemplar. É um título singularmente feliz porque
dum significado crucial para a vida cristã. O que é decisivo nesta não são
comportamentos impessoais: a crença num determinado elenco de doutri-
nas, a observância dum código de normas morais, fosse ele o mais sublime,
ou a proposta duma filosofia política capaz de construir um mundo ideal;
mas sim a relação do homem com Deus – que é pessoa – e a relação do
homem com o homem – que pessoa é também. Só quando as relações entre
os homens forem autenticamente inter-pessoais, é que o homem estará no
seu "habitat" próprio. É essa a grande prioridade do novo milénio.
Santa Clara está nesta corrente. A vida da irmã clarissa tem alguns tra-
ços configuradores: a contemplação, a fraternidade, a igualdade, a pobreza,
a clausura, o silêncio, a vida comunitária e outros, mas as irmãs não vivem
para isso. Vivem para Jesus. Tirem Jesus da vida delas e que é que fica?…
No seu Testamento – escrito talvez em 1247, como forma de acentuar o seu
carisma em contraste com a regra proposta por Inocêncio IV – Clara, de-
pois de proclamar a sublimidade da vocação clariana, afirma: "O Filho de
Deus fez-se nosso caminho (cf. Jo 14-16), como nos mostrou e ensinou
pela palavra e exemplo o nosso bem-aventurado pai S. Francisco, seu
apaixonado imitador" (Ibd. 5). O Filho de Deus fez-se nosso caminho en-
quanto centro de amor, como indicia o adjectivo " apaixonado". Francisco
foi imitador, porque antes foi apaixonado. Mais à frente Clara recomenda
as suas irmãs à protecção da Igreja e do Cardeal Protector, "a fim de que,
por amor daquele Senhor que foi reclinado pobre no presépio, pobre viveu
no mundo e nu ficou sobre o patíbulo, se dignem conduzir o pequenino re-
banho que, na sua Igreja santa, o Senhor Pai gerou com a palavra e exem-
plo do bem-aventurado Pai São Francisco" (TCl 45-46). Note-se a emoção
e encanto com que Clara se refere "àquele Senhor que foi reclinado no pre-
sépio, pobre viveu no mundo e nu ficou na patíbulo". Não a comovem a
pobreza e a humildade como virtudes ascéticas, mas sim "aquele Senhor",
no presépio, na vida e na Cruz. Na Regra é de novo a pessoa de Cristo que
aparece no centro: "A forma e vida da Ordem das Irmãs Pobres que
S. Francisco instituiu é esta: Observar o santo Evangelho de Nosso Senhor
Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade (cf Mat
19,22)" (RCl 1-2). A forma e vida das Irmãs Pobres não é outra senão con-
templar Nosso Senhor Jesus Cristo e torná-lo presente, como num espelho,
pela observância do santo Evangelho. Por seu lado, S. Francisco diz no seu
Testamento: "E, depois que o Senhor me deu o cuidado dos irmãos, nin-
guém me ensinava o que devia fazer; mas o mesmo Altíssimo me revelou
que devia viver segundo a forma do Santo Evangelhos" (T 14). Francisco
8
saltou sobre todas as formas tradicionais de vida religiosa que lhe eram
propostas (cf. LP 114), para se fixar directamente e só no Evangelho. E fê-
-lo não porque considerava o Evangelho a única proposta religiosa e polí-
tica capaz de renovar a Igreja e de converter a sociedade de então, mas por-
que estava enamorado de Jesus e o Evangelho era para ele Jesus.
Esta centralização na pessoa de Jesus é ainda mais forte nas cartas de
Clara a Santa Inês de Praga. Na primeira, depois de lembrar a possibilidade
que Inês teve de aceitar casamento com o Imperador, diz com encanto:
"Mas a tudo isso renunciastes. Antes preferistes abraçar com todo o afecto
de alma e coração a santíssima pobreza, escolhendo um esposo de lin-
hagem mais nobre, o Senhor Jesus Cristo, que guardará imaculada e incó-
lume a tua virgindade. (E continua em jeito de hino):
Amando-O sereis casta,
abraçando-O, ficareis mais pura,
acolhendo-O, sereis virgem.
O seu poder é mais forte,
a sua generosidade, mais excelsa,
o seu aspecto, mais formoso,
o seu amor, mais suave
e as suas graças, de maior encanto". (1CCl 6-9).
Na segunda carta, advertindo Inês contra as pressões que havia contra
a opção pela pobreza absoluta, encoraja-a: "Esta é aquele perfeição pela
qual o Rei dos céus se unirá a ti na mansão celeste, onde reina sentado num
trono de estrelas. Pois que desprezaste a glória da realeza terrena, e renun-
ciaste às delícias dum casamento imperial, tornaste-te imitadora da altís-
sima pobreza e em espírito de grande humildade e caridade, seguiste as pe-
gadas daquele que te achou digna para esposa" (2CCl 5-7). E mais à frente:
"Antes, como virgem pobre, abraça a Cristo pobre. Contempla-O despre-
zado por teu amor e segue-O tornando-te desprezível por Ele neste mundo.
Contempla, nobre rainha, o teu Esposo. Sendo o mais belo dos filhos dos
homens (cf Sl 44,3) transformou-se, para tua salvação, no mais desprezível
dos mortais" (Ibid. 17-20).
O mesmo enlevo na terceira carta: "Alegra-te, tu também, em Cristo
(Fl 4, 4) caríssima e não te envolva qualquer névoa de amargura, dilecta
Senhora em Cristo, alegria dos anjos e coroa das irmãs. Fixa o teu olhar no
espelho da eternidade, deixa a tua alma banhar-se no esplendor da glória e
une o teu coração Àquele que é a encarnação da essência divina, para que,
9
contemplando-O, te transformes inteiramente na imagem da sua divindade.
(…) Ama, repito, aquele Filho do Deus Altíssimo, nascido da Virgem, que
o concebeu sem deixar de ser virgem" (3CCl 11-17).
Na quarta carta, depois de felicitar Inês por ter desposado o Cordeiro
de Deus, deixa o coração transbordar:
"Feliz daquela a quem foi dado
gozar desta íntima união,
e que aderiu com todas as fibras do seu coração
Àquele cuja beleza
é contemplada por todos os santos do exército celeste,
cujo amor nos encanta,
cuja contemplação nos vivifica,
cuja bondade e benignidade nos basta,
A sua doçura satisfaz-nos plenamente
e a sua recordação ilumina-nos com suavidade.
O seu amor ressuscita os mortos,
e a sua visão beatífica
santifica os habitantes da Jerusalém celeste.
Ele é o esplendor da eterna glória,
a luz da eterna luz,
o espelho sem mancha (cf Sb 7,20). (4CCl 9-14).
Perdoe o leitor tão longas citações, mas pareceu-nos não dever privá-lo
de saborear o encanto e poesia de Clara. Alem disso, este encanto mostra
bem que a relação era de Esposo-esposa, e não qualquer função de caracter
utilitarista.
Terá esta centralização na Pessoa de Jesus algum sentido para hoje?…
Não será preciso demonstrá-lo. A vida dos humanos na actualidade situa-se
quase totalmente no campo da economia: produção, eficácia, profissiona-
lismo, competição, consumo, negócios, grandes empresas, grandes fábricas,
grandes superfícies comerciais, lutas laborais, jogos de bolsa, grupos finan-
ceiros, etc., etc.. Jesus disse: "Já não vos chamo servos, mas amigos".
Quando chegará o dia em que as relações dos homens entre si serão preva-
lentemente relações de amizade?…
10
II – ENAMORAMENTO E AMOR ESPONSAL
Tentámos contemplar a centralização de Clara na Pessoa de Jesus, mas
importa projectar mais luz sobre essa relação. O cristão pode fixar-se em
Jesus duma forma interesseira. Jesus é o Redentor, porque a mentalidade
está dominada pelo problema do pecado. Jesus é a Vítima de Expiação,
porque predomina a ideia da justiça divina. Jesus é o Mestre, porque são
necessárias normas para definir os caminhos da vida. Jesus é o Modelo,
porque é necessário espevitar o zelo contra as injustiças e o fogo para a li-
bertação dos oprimidos. Em todos estes casos é o homem quem está no
centro. Não foi essa a posição de Clara. Jesus não está em função de Clara,
nem Clara em função de Jesus. As coisas passam-se em registo diferente.
Simplesmente: amar. Clara é uma flor. Clara é um fruto… simplesmente
porque se sente amada e ama. As clarissas não estão em função de nada.
São flores, são uma primavera… simplesmente porque se sentem amadas e
amam; e isso basta.
Este enamoramento manifesta-se em duas linhas: na veemência do
falar e nas imagens esponsais. Por dentro das palavras de Clara há um
força incontível de encanto, de ternura e de paixão. Só algumas expressões
"Observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo" (RCl 2);
"Clara indigna serva de Cristo e plantazinha do bem-aventurado Francisco"
(RCl 1,3); "depois que o altíssimo Pai celestial" (RCl 6, 1); "a altíssima po-
breza que abraçámos" (RCl 6, 3); "em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo
e sua santíssima Mãe" (RCl 12, 11). Repare-se na frequência dos superlati-
vos. No Testamento é a mesma melodia: "O Filho de Deus fez-se nosso
caminho" (TCl 2); "Qual não deve ser a solicitude e empenho que devemos
pôr em realizar, de alma e corpo, os mandamentos de Deus nosso Pai" (TCl
18); e, referindo-se a S. Francisco: o "nosso bem-aventurado Pai S. Fran-
cisco"; "ele que, depois de Deus, era a nossa coluna, a nossa única conso-
lação e nossa fortaleza" (TCl 38); "E eu Clara, indigna serva de Cristo e das
Irmãs Pobres de S. Damião e plantazinha do santo Pai" (TCl 37); "Eis por-
que, de joelhos em terra, prostrada de corpo e alma, recomendo à Santa
Igreja romana… a fim de que por amor daquele Senhor que pobre foi recli-
nado no presépio, pobre viveu no mundo e nu morreu na patíbulo" (TCl 44-
-47). Mesmo quando não visa directamente a Jesus, e esta vibração de
Clara é ressonância da ternura que tem por Ele.
É ainda mais enternecido o seu sentir nas imagens esponsais que pas-
samos a focar nas cartas. Sendo correspondência entre duas almas femini-
nas, é natural que o falar de Clara assuma imagens do amor esponsal. Posto
11
que frequente na espiritualidade de então, por influxo de S. Bernardo, Guil-
herme de S. Tierry e da escola de S. Victor, a beleza com que Clara o
"canta" é bem pessoal dela.
A palavra "esposa" referida a Inês aparece pelo menos dez vezes e o
qualificativo de "esposo" aplicado a Jesus, quatro vezes, mas o fio das pa-
lavras, linha após linha, é um sentir todo repassado de melodia esponsal, às
vezes compondo verdadeiros hinos nupciais. Assim na primeira carta:
Amando-O sereis casta,
abarçando-O, ficareis mais pura,
acolhendo-O, sereis virgem.
O seu poder é mais forte.
a sua generosidade, mais excelsa,
o seu aspecto., mais formoso,
o seu amor, mais suave
e as suas graças de maior encanto.
Ele vos segura em seus braços,
e ornamenta de pedras preciosas o vosso peito,
e enfeita de jóias inestimáveis
vossas orelhas,
e vos envolve de pérolas cintilantes,
coroando-vos com a coroa de ouro,
marcada pelo sinal da santidade (cf Ecl 45.14) (1 CCl 8-11)
Na carta segunda: "Contempla nobre rainha o teu esposo. Sendo o
mais belo dos filhos dos homens, transformou-se, para tua salvação, no
mais desprezível dos mortais… Olha, medita e contempla e que o teu co-
ração se inflame na sua imitação" (e logo, como eflúvio espontâneo):
Se com Ele sofreres,
com Ele reinarás:
se com Ele chorares,
com Ele exultarás;
se com Ele morreres na cruz da tribulação,
com Ele habitarás na glória dos santos,
na mansão celeste,
e teu nome será gravado
no livro da vida
e para sempre glorificado ente os homens" (Ap 3, 5). (2CCl 20-21).
12
Mais emocionada ainda a encontramos na última carta, já sobre o fim
da sua vida, em 1253, em texto já citado acima. Juntando ao conceito de
esposo à imagem de espelho, exorta: "Contempla diariamente este espelho,
ó rainha e esposa de Jesus Cristo. (…) Neste espelho poderás contemplar,
com a graça de Deus, como resplandece a bem-aventurada pobreza, a santa
humildade e a inefável caridade. Contempla, no fundo deste espelho, a po-
breza, pois está colocado no presépio e envolto em paninhos. Oh maravil-
hosa humildade! Oh admirável pobreza! O rei dos anjos, o Senhor do céu e
da terra reclinado num presépio! Ao centro desse espelho contempla a
humildade e a santa pobreza. Quantas tribulações e sofrimentos não supor-
tou para resgatar o género humano! E no fim deste espelho contempla a
inefável caridade que o fez sofrer no patíbulo da cruz a morte mais infame.
(…) (E, plena de anseios e profundo amor, põe na boca de Inês):
Atrai-me a Ti
e correrei ao odor dos teus perfumes,
ó celeste Esposo.
Correrei sem desfalecer,
até que me introduzas na sala do festim,
até que a minha cabeça
repouse sobre a tua mão esquerda,
e a tua direita me abrace com ternura
e me beijes com o ósculo suavíssimo da tua boca.
(cf. Ct 1,3. 2, 4-6; 1,l); (4CCl 15-32).
Mais uma vez, alargando o pensamento, terá este aspecto afectivo al-
guma importância para a vida social? O Pai Américo, numa festa de cari-
dade em 1956, partindo do hino à caridade (1 Cor 13), gritava no cinema
Tivoli: "Tirem a caridade do mundo e que é que fica?… Tirem a caridade
do mundo e que é que fica?… Tirem a caridade do mundo e que é que
fica?… Sem a caridade, nada presta… sem a caridade, nada vale… sem a
caridade, nada dura…". Nós poderíamos dizer: Tirem a amizade do mundo
e que é que fica?… Ou, melhor ainda: "Tirem a ternura do mundo e que é
que fica?… Pode o mundo ter riquezas a deitar por fora… grandes viven-
das… grandes palácios… etc., etc., etc., se dentro do mundo não há ter-
nura?!… Teremos um mundo árido, duro e frio. Os mosteiros de clarissas
deverão ser canteiros a emanar esse perfume indispensável ao homem.
13
III – JESUS POBRE E HUMILDE
Além da natureza da relação com Jesus – uma paixão enamorada – é
importante focar dois traços do rosto de Jesus, para termos uma ideia de
como ele era para Clara. Em primeiro lugar, a pobreza. A linguagem es-
ponsal de Clara prolonga-se nas referências à pobreza. Tanto nas Cartas
como na Regra. No Testamento, dos seus 79 parágrafos, 56 são sobre a po-
breza. Para compreender a pobreza, porém, importa realçar duas vertentes:
a descida de Jesus e a não-propriedade.
A descida de Jesus – Na pobreza de Jesus, juntamente com a pobreza
material – que contempla com tanto encanto no Presépio, na vida pública e
no Calvário – e mais importante ainda do que ela – Clara admira sobretudo
a humildade, a descida do Verbo de Deus, do seu trono real até à pequenez
do seio de Maria e à candura do presépio: "Se, pois, um tão grande Senhor
desceu ao seio da Virgem Maria e apareceu desprezível, desamparado e
pobre neste mundo, para que os homens, pobres desamparados e carencia-
dos do divino alimento, nele se tornassem ricos, possuindo o Reino dos
Céus, alegrai-vos e rejubilai, enchei-vos de grande prazer e de alegrias espi-
rituais" (1CCl 19-21). Na carta segunda: "Contempla, nobre rainha, o teu
Esposo. Sendo o mais belo dos filhos dos homens, transformou-se, para tua
salvação, no mais desprezível dos mortais". (2CCl 20).. Na terceira: "Ama,
repito, aquele Filho do Deus Altíssimo, nascido da Virgem, que O conce-
beu sem deixar de ser virgem. Vive unida à Mãe dulcíssima que deu à luz o
Filho que nem os céus puderam conter. E, todavia, ela o levou no pequeno
claustro do seu ventre sagrado e o formou no seu seio de donzela" (3CCl
17-19). E na quarta: "Contempla, no fundo deste espelho, a pobreza, pois
está colocado no presépio e envolto em paninhos. Oh maravilhosa humil-
dade! Oh admirável pobreza! O Rei dos reis, o Senhor do céu e da terra re-
clinado num presépio" (4CCl 19-22).
Ao contemplar esta auto-humilhação, esta auto-pequenez de Deus,
Clara está bem no centro do sentir de Francisco. É também assim que o
Santo de Assis vê, antes de mais, a santa pobreza, contemplando os misté-
rios da Encarnação e da Eucaristia. No início do opúsculo intitulado Avisos
Espirituais ou Exortações, no início, digo, das suas Exortações, Francisco
coloca, como pórtico de entrada, essa infinita descida do Verbo: "Por isso,
ó filhos dos homens, até quando haveis de ser de coração duro? Porque
não reconheceis a verdade e acreditais no Filho de Deus? Eis que Ele se
humilha cada dia como quando baixou do seu trono real, a tomar carne no
14
seio da Virgem; cada dia desce do seio do Pai, sobre o altar, para as mãos
do sacerdote!" (Ex 1ª 14-18). Na Carta a toda a Ordem, pedindo a ado-
ração dos irmãos, principalmente dos que são ou desejam ser sacerdotes,
para a Santa Eucaristia, exclama: "Que o homem todo se espante, que o
mundo todo trema, que o céu exulte, quando sobre o altar, nas mãos do sa-
cerdote, está Cristo, o Filho de Deus vivo! Oh! grandeza admirável, oh!
condescendência assombrosa, oh! humildade sublime, oh! sublimidade
humilde, que o Senhor de todo o universo, Deus e Filho de Deus, se
humilde a ponto de esconder, para nossa salvação, nas aparências dum bo-
cado de pão. Vede, irmãos, a humildade de Deus, e derramai diante dele os
vossos corações; humilhai-vos também vós para que Ele vos exalte. Em
conclusão: nada de vós mesmos retenhais para vós, a fim de que totalmente
vos possua Aquele que totalmente a vós se dá" (CO 26-29).
A Ir. Maria do Rosário, clarissa do mosteiro de Monte Real, em livro
recente, escreve com profunda intuição e beleza feminina: "Clara pertence
àquela estirpe de "águias imperiais" que, pairando nas alturas, fitam o sol.
S. João começa a sua narrativa evangélica a partir da Fonte: "No princípio
era o Verbo (…) e o Verbo era Deus…) Tudo começou a existir por meio
dele e sem Ele nada foi criado. Nele estava a Vida e a Vida era a luz dos
homens (…) O Verbo era a luz verdadeira que, vindo a este mundo, a todo
o homem ilumina. Estava no mundo, e o mundo foi feito por Ele, mas o
mundo não o conheceu. Veio ao que era seu e os seus não o receberam (Jo
1, 1-11). Clara, como S. João, remonta ao Verbo no seio do Pai. É aí a gé-
nese da sua Pobreza.: porque o Verbo de Deus desceu do seio do Pai e ani-
quilou-se a si mesmo, fazendo-se homem – servo – por nosso amor. Deus
atreve-se a descer dos Céus para lavar os pés aos homens… A Pobreza de
um Deus não começa para Clara no Presépio ou em Nazaré, mas no ani-
quilamento do Verbo. (…) Clara contempla, em abismos de vertigem, o
Verbo incriado baixar ao seio duma Virgem que vive no anonimato… (E
um pouco à frente, à guisa de conclusão): A Pobreza em Clara não é o
"sustine et abstine" dos estoicos ou dos cínicos (…) A verdadeira pobreza
de Clara está no interior, é a seiva da árvore que lhe dá a Vida Teologal. A
renúncia à posse de bens (…) é apenas a casca da árvore"2
. A pobreza é,
pois, uma realidade teologal. É preciso distinguir no Evangelho a superfície
– que neste caso seria a pobreza material – e as funduras do Mistério que
nos dão o significado teológico da mesma.
—————
2
– MARIA DO ROSÁRIO F. GASPAR, Clara – a constelação e o signo, Ed.- Paulinas,
2004, p. 316 s.
15
Esta descida e auto-doação do Verbo – a pobreza – nasce na essência
da Santíssima Trindade – que é Amor -; e define toda a lógica de Jesus.
Aos discípulos que discutiam entre si sobre qual deles era o maior, Jesus
contesta: "Sabeis que os chefes das nações as governam como se fossem
seus senhores e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja
assim entre vós. Pelo contrário quem entre vós quiser fazer-se grande, seja
o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro seja vosso
servo. Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para ser-
vir e dar a sua vida para resgatar a multidão" (Mt 20, 25-28). É a definição
mais perfeita da palavra "menor" que faz parte do nome da Ordem Francis-
cana, Ordem dos Frades Menores. O franciscano é alguém que sente uma
alergia visceral a tudo o que seja grandeza, poder, dominação, auto-
-afirmação de si mesmo. Pelo contrário, sente-se como uma fonte cujo
existir é todo e só oferecer continuamente sua água cristalina. Em total
gratuidade e generosidade, sem um mínimo movimento de retorno ou a
mais ténue intenção de sentido contrário, voltada para si mesmo. "O Filho
do Homem não veio para ser servido, mas para servir". Esta foi a pobreza
de Jesus. Giovanni Miccoli, nesta linha de pensamento, depois de recordar
a Carta de Francisco a Um Ministro, conclui: "A misericórdia para com os
pecadores e o amor dos inimigos vão unidos à rejeição de todo o acto de
violência, de poder e de domínio sobre os outros e convidam a adoptar
uma lógica que constitui uma mudança total e a antítese absoluta em re-
lação à lógica que domina as relações habituais entre os homens.(O su-
blinhado é nosso. Fixe-se sobretudo a expressão "antítese absoluta"). E
continua: "É neste contexto de ideias, exortações e de opções que se situa o
augúrio da paz – "O Senhor te dê a Paz" – que caracteriza a maneira fran-
ciscana de saudar. É este contexto que lhe dá o significado profundo: não se
trata só do desejo de que diminuam os conflitos e contendas. Trata-se (vol-
tamos a sublinhar) da vontade de se apartar da lógica do mundo, feita de
possessão, de poder e de afirmação de si mesmo, como condição para rea-
lizar a paz"3
. Estas palavras – que consideramos absolutamente exactas –
revelam a importância do "Rosto de Cristo", visto por Clara de Assis, para
o mundo de hoje.
A não-propriedade – De significado semelhante e de amplitude maior
ainda é o tema da "não propriedade", o não ter nada de seu, para viver sus-
—————
3
– MICCOLI G. Francisvco de Assis – Realidad y Memoria de una Experiencia
Cristiana, Ed- Aranzazu, 1994, p. 79.
16
penso da Divina Providência. Logo no início da Regra de Clara, tal como
na de Francisco, há uma palavra que surpreende. Em vez de pobreza diz
sem próprio. "A Regra e vida das Irmãs Pobres é esta: observar o santo
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem pró-
prio, e em castidade" (RCl 1-2). A formulação habitual seria: "vivendo em
obediência, em pobreza e em castidade". Porque terá Francisco, e depois
Clara, substituído pobreza por sem próprio? Porque nela está a diferença
decisiva entre pobreza relativa e pobreza absoluta. Nas demais ordens reli-
giosas, a ordem ou mosteiro, como colectividade, mantinha a propriedade
dos seus bens: terrenos e outras fontes de rendimento para garantir o sus-
tento dos seus membros. Francisco nada quer ter de seu. Nem individual
nem colectivamente. Nada que se lhe apresente como uma segurança dife-
rente do Pai. Foi este o cavalo de batalha de Clara durante toda a sua vida,
até à aprovação da sua Regra dois dias antes de morrer. Por solicitação de
Roma, o mosteiro de S. Damião aceitou inicialmente a Regra de S. Bento,
mas Clara logo conseguiu de Inocêncio III, em 1216, o "privilegium pau-
pertatis, que era precisamente isso: não poder ter terrenos para sustento das
Irmãs. Por encargo de Honório III, o Cardeal Hugolino, entre 1219 e 1221
procurou estruturar os grupos de "mulheres religiosas" que se multiplica-
vam no centro e norte da Itália; e para tanto redigiu uma regra de teor cis-
terciense, na qual se impunha a clausura, a dependência directa de Roma e
o direito de possuir terrenos para sustento das religiosas. Em 1228, já
como papa, sob o nome de Gregório IX, quis atrair S. Damião para o seu
monaquismo, mas Clara resistiu. E como o ponto de maior melindre era o
possuir terrenos, o Papa renovou o "privilegium paupertatis". Em 1247 o
Papa Inocêncio IV publicou uma nova regra para os mosteiros hugolinia-
nos; e estendeu-a a S. Damião. Mais uma vez Clara advertiu o perigo e, in-
satisfeita, começou a redigir a "sua" Regra que, não obstante as pressões do
papa e do cardeal protector, acabou por ver aprovada pelo mesmo Inocên-
cio IV, em 9 de Agosto de 1253, dois dias antes morrer. Deste problema
aparecem indícios bem claros no Testamento e na Regra. No Testamento
(1247): "Se para salvaguardar a dignidade e isolamento do mosteiro se
achar conveniente em determinada altura, adquirir terrenos fora da horta,
não se adquira mais do que o absolutamente necessário. E de maneira nen-
huma se cultive ou se semeie este terreno, antes se deixe baldio e inculto"
(TCl 54-55). E na Regra (1253): "Por isso, não recebam, por si ou por
interposta pessoa, algum domínio ou propriedade, ou alguma coisa que ra-
zoavelmente possa ser considerada como tal. Só podem ter aquela porção
de terra que honestamente se achar necessário para decoro e isolamento do
17
mosteiro, a qual não poderá ser cultivada senão como horta para satisfazer
as necessidades da comunidade" (RCl 12-14). Admite que haja algum ter-
reno, mas não para garantir sustento das Irmãs, mas somente para salva-
guardar a dignidade e isolamento do mosteiro. Porquê esta resistência?
Porque Jesus dissera: "Olhai as aves do céu: não semeiam, nem ceifam.,
nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai do céu alimenta-as. Não valeis
vós mais do que elas? (…) Olhai como crescem os lírios do campo: não
trabalham nem fiam. Pois eu vos digo: Nem Salomão em toda a sua mag-
nificência, se vestiu como qualquer deles" (Mt 6, 26-29). E ainda: "As ra-
posas têm tocas e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do Homem não
tem onde reclinar a cabeça". Clara queria existir como Jesus: existir entre-
gue à Providência divina. Ser como um dom de Deus que nos faz existir
como a corrente eléctrica mantém iluminada a lâmpada suspensa no tecto.
Ser alimentada dia a dia pelo Pai do céu que inspira a caridade dos irmãos.
Um mundo de confiança, de gratidão e de alegria.
A pobreza absoluta tem ainda outro aspecto que a liga à humildade e à
fraternidade. Não propriamente pela partilha de bens, como se compreende
habitualmente, mas pelo respeito ante a liberdade de cada um. Copiando da
Regra dos Frades Menores, Clara faz escrever no c. VIII da sua Regra: "As
Irmãs nada tenham de seu, nem casa, nem lugar nem coisa alguma. Como
peregrinas e estrangeiras, servindo o Senhor em pobreza e humildade, com
muita confiança sejam enviadas a pedir esmola. E não devem ter vergonha
porque também o Senhor por nós se fez pobre neste mundo. Esta é a ex-
celência da altíssima pobreza que a vós, minhas irmãs caríssimas, vos
constituiu herdeiras e rainhas do Reino dos Céus. Fez-vos pobres das coisas
temporais mas enobreceu-vos de virtudes. Seja esta a herança que vos leve
à terra dos vivos. Apegai-vos bem a elas, minhas queridas irmãs, e nen-
huma outra coisa, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Santíssima
Mãe, jamais queirais ter debaixo do céu". (RCl 8, 1-6).
"Sola abdicatio dominii facit pauperem". Um pobre só é pobre quando
não tem nada seu, quando abdica de ser dono das coisas. Quando Roma
declarou que os bens que os frades usam são propriedade da Santa Sé, al-
guns membros do clero secular e alguns mestres da Universidade de Paris
acharamn que a solução não passava dum fingimento, "fictio iuris". Di-
ziam: "Eu só posso usar aquilo que é meu… e daquilo que é meu faço o
que eu quero e ninguém tem nada com isso". A reacção deve situar-se no
seu contexto histórico. Não é mera questão de economia, mas de organi-
zação social. Na mentalidade de então o distintivo da nobreza estava em ser
18
Senhor, ser Dom (D. António, D. Nuno, D. Sancho…) ter domínios, não
depender de ninguém ser mais que os outros, dominar. Ora era precisa-
mente isso provocava – e deve provocar sempre – uma alergia mortal no
franciscano. O Capítulo Geral de 1967, que na renovação das Constituições
Gerais pôs de lado as tradicionais Declarações Pontifícias e suprimiu tanta
coisa, manteve, todavia, esta declaração aparentemente jurídica. É que se
trata dum tema decisivo, tanto no que diz respeito a Deus: ter para com Ele
uma gratidão total; como no que diz respeito aos homens: não ser mais que
os outros. Todos iguais, nada de classes, nada de dominação… Era verda-
deiramente revolucionário. Desmoronava a sociedade. Mas o Evangelho é
isto.
Se os homens de hoje se sentissem como as avezinhas do céu… que
tudo recebem de Deus… sentissem que são verdadeiramente filhos do Pai
celeste… que devem administrar os bens e talentos para a felicidade dos
irmãos… que a circulação de bens – que chamamos comércio – é na rea-
lidade uma inter-comunhão de amizade e solicitude… se não quisessem
dominar ninguém… oprimir ninguém… ser mais que ninguém, mas, pelo
contrário, procurassem zelar pela liberdade e felicidade todos… teríamos
realizadas as utopias dos profetas. Um caso prático: o trabalho. S. Francisco
disse: "os irmãos trabalhem fiel e devotamente (…) não por causa da co-
biça do preço do trabalho, mas para dar bom exemplo e repelir a ociosi-
dade". Hoje, em vez de "dar bom exemplo e repelir a ociosidade", diría-
mos: para fazer a felicidade de todos, principalmente dos mais carecidos.
Paradoxal! Não é o salário que importa!… Mas colaborar para a felicidade
dos outros!… E S. Francisco continuava: "e quando não lhes derem o preço
do trabalho, recorram "mesa do Senhor", pedindo esmola de porta em
porta" (T 20-22). Pedir esmola é uma possibilidade extrema. Hoje, a "mesa
do Senhor" seria a inter-comunhão de amizade e a solicitude mútua, nas-
cida da alegria ver os outros felizes". Fazer do mundo uma "mesa do Sen-
hor, fazer do mundo uma família de irmãos, eis um desafio, para todos nós,
do Rosto de Jesus em Santa Clara.4
—————
4
– Reflexões mais extensas sobre estas projecções da espiritualidade franciscana nos
grandes temas da vida humana, pode encontrar em DAVID DE AZEVEDO, OFM, Francisco
de Assis, Fé e Vida, 2ª Edição, Ed. Franciscana, Braga, 2003.
19
A IRMÃ MORTE NOS ESCRITOS
DE SANTA CLARA
(Nos 750 anos do seu passamento)
Ir. Maria V. Triviño, osc*
—————
*
Artigo publicado nas Selecciones de Franciscanismo, nº 97, 2003.
20
A IRMÃ MORTE NOS ESCRITOS DE SANTA CLARA
(Nos 750 anos do seu passamento)
A morte é uma realidade a que ninguém consegue subtrair se. O que se
disse de Moisés, que partiu deste mundo pelo caminho que todos se-
guem (Dt 34,5) dir-se-á de todos os que chegámos e hão-de chegar à vida.
É fácil filosofar acerca da morte.
Podemos entrar em reflexões teológicas, e é esse, de facto, o objecto
duma parte da dogmática que estuda os novíssimos, a escatologia.
A morte é a fronteira, a porta, a passagem de um a outro estado de que
só temos notícia pela revelação "Creio na ressurreição dos mortos e na vida
eterna". É esta a nossa fé. Aquilo que esperamos. E quando a fé se funda-
mentar na visão, e a esperança se diluir na posse, permanecerá sempre o
amor. A vida eterna decide-se no juízo graças a uma iluminação que há-de
permitir o conhecimento sem véus de Deus e da própria consciência.
Na reflexão medieval sobre a morte fazem-se duas propostas: uma ne-
gativa, que pretende mover à conversão pela consideração da brevidade da
vida, da caducidade dos bens terrenos, da angústia da agonia, da corrupti-
bilidade, etc…; outra positiva, que alimenta a esperança cristã na bem-
-aventurança eterna, no gozo da ressurreição da carne. Destes dois aspectos
se extraía um ensinamento para viver no Bem, e a serenidade para morrer
em Paz.
Santa Clara escutou e meditou, sem dúvida, aquilo que no seu tempo
se ouvia a respeito da morte. Porém, quando sobre ela exorta e escreve, pa-
rece não ter em conta os aspectos negativos. Ao acompanharmos Clara de
21
Assis nos 750 anos da sua morte, o percurso que vamos seguir é o da fran-
ciscana humildade e simplicidade, da pobreza e obediência, a via da Beleza
e da contemplação transformadora, que faz da morte um encontro desejado
e jubiloso.
São Francisco chamou "irmã" à morte e, exultando, acolheu-a entre
louvores. Clara recebeu-a dando graças ao Pai pela esmola da vida. Para
que também assim a vejamos impõe-se-nos encontrar a chave da santa po-
breza, do despojamento, da humildade original. Aquilo, numa palavra, que
Leclerc chama "um coração leve". Desgraçadamente, porém, "o homem
moderno tem o coração pesado. Percorrendo sofregamente os caminhos do
poder, o coração torna-se-lhe cada vez mais pesado. Tenhamos a coragem
de reconhecer: nem temos leve o coração, nem sabemos o que isso seja".
Cristo disse: "Vinde a Mim todos os que andais afadigados e sobrecarrega-
dos e Eu vos aliviarei" (Mt 11, 28-30). Ele tirou de cima de nós a pesada
lousa que nos oprimia na caminhada e nós apressámo-nos a carregar nova-
mente com ela.
Um coração leve – como o que vemos claramente em Francisco de
Assis – retira toda a sua força e serenidade do relacionamento íntimo com a
fonte da vida e do ser. Uma relação de carácter, que lhe permite comportar-
-se tal qual a criança em presença do último segredo das coisas e encontrar
a felicidade no seu Criador.
Daí essa segurança última na existência que não se deixa perturbar
com coisa alguma. Daí também essa feliz confiança, essa divina alegria de
existir. "Obrigado, Senhor, por me terdes criado", exclamava Clara pouco
antes de morrer. Esta expressão de Clara é um eco fiel do cântico de Fran-
cisco. Seria inútil procurar nesse cântico o mais ténue vestígio de angústia,
mesmo perante a morte. Nele só brilha o esplendor da manhã, à hora do sol
nascente, quando o orvalho ainda não apresenta vestígios de qualquer pas-
sagem1
.
Nos seus escritos, Clara fala da morte onze vezes. É quanto nos basta
para seguirmos o seu pensamento, uma vez que tais referências são bastante
uniformes e espaçadas no tempo.
—————
1
LECLERC, E., Desponta o Sol em Assis, EF, Braga, 1999, p. 158
22
Podemos abrir dois apartados nestes seus textos: os que contemplam a
morte do Filho de Deus e os que se referem ao instante da morte de Fran-
cisco e de Clara.
1. JESUS MORREU POBRE E DESNUDO
Chegou o momento em que, para Clara de Assis, a reflexão sobre a
morte corporal se dilui na contemplação da morte do Filho de Deus. Morrer
será fitar os olhos no divino amante Crucificado, obediente, desnudo, ren-
dido… e com ele morrer num lance de total entrega, de obediência, de
desapropriação, de amor esponsal.
"E no fim deste espelho contempla a inefável caridade que O fez pade-
cer no patíbulo da cruz a morte mais infame" (4CCL 23)2
.
Por penosas que sejam as circunstâncias que acompanhem a agonia,
nada pode ser considerado bastantemente humilhante e doloroso quando
vemos o Filho de Deus morrer da morte mais infame. Sabemos que quando
Frei Reinaldo, ao acompanhar Clara na sua agonia, "a quis exortar à paciên-
cia, ela respondeu-lhe com toda a franqueza: ‗Querido Irmão, desde que me
foi dado conhecer a graça do meu Senhor Jesus Cristo por meio do seu
servo Francisco, nenhuma pena me foi molesta, nenhuma penitência me
pareceu severa, nem nenhuma doença me foi difícil de suportar" (LCl 44).
A graça começou a transformar Clara desde que conheceu Francisco
nos alvores da remota juventude. Agora, ao chegar ao derradeiro momento,
bem podiam os jograis de Francisco cantar-lhe a última estrofe do Cântico
das Criaturas: "Felizes os que aceitam em paz a dor, porque chegou para
eles o tempo da consolação".
Já não havia para Clara pena suficientemente molesta, ou amargura
bastantemente amarga que não se transformasse em doçura. Essa confissão
da Senhora Pobre, providencialmente preciosa para conhecermos a sua for-
taleza de ânimo e os frutos de tão porfiada contemplação do Espelho da
eternidade, temos que a agradecer à solicitude loquaz de Frei Reinaldo.
"Varão piedoso" era ele, mas, em vez de lhe dar consolação em transe tão
—————
2
As citações são feitas a partir das FONTES FRANCISCANAS II – SANTA CLARA DE ASSIS,
ESCRITOS, BIOGRAFIAS, DOCUMENTOS, EF, Braga, 1996
23
difícil como fez frei Junípero, "molestava-a com palavras supérfluas" (cf.
LCL 45).
Jesus é o Espelho da eternidade onde Clara, nele reflectida, busca a
vera efígie divina e tenta a sua semelhança com Ele. É o Espelho em que
anseia transfigurar-se por inteiro, em perfeita sintonia e comunhão. Consta
o Espelho de três partes ou momentos e neles se contempla o mistério de
Cristo: no começo o nascimento do Senhor pobre, em Belém; no centro a
vida pública; no fim a morte e ressurreição.
Quando Francisco e Clara repetiam uma e mil vezes: "Tu és Humil-
dade", repeliam energicamente de si mesmos a veleidade de serem alguma
coisa, a fim de que a humildade do Filho de Deus pudesse encher por com-
pleto todos os escaninhos de suas almas.
Quando diziam: "Tu és Paciência", parecia-lhes impossível haver no
mundo pena alguma que não pudessem suportar em paz.
Quando diziam: "Tu és Doçura, tu és Mansidão‖ sentiam não haver
doçura comparável à do olhar do Senhor. Nem nada tão amargo que não
pudessem transformar imediatamente em doçura. E, como dizia São Leão
Magno: "A amargura não é motivada pela maneira de actuar da justiça di-
vina, mas da maldade humana. E neste sentido, é mais deplorável a atitude
de quem pratica o mal do que a situação de quem tem de padecer por causa
da maldade, porque ao injusto a malícia acarreta-lhe castigo, ao passo que a
paciência do justo leva-o à glória. Aos pacíficos e mansos, aos que estão
dispostos a tolerar toda a espécie de injustiça é-lhes prometida a posse da
terra‖3
.
E quando diziam: "Tu és Caridade, tu és Ternura" rendiam-se ao amor
do Salvador, "em extremo" fascinados por Ele. E choravam todas as lágri-
mas do mundo, movidos de compaixão, embriagados com a inefável ter-
nura do Filho de Deus na sua paixão e na sua cruz.
Se caminhar é ter os olhos, a mente e o coração fixos no Filho de
Deus para nos tornarmos, como ele, pobres, humildes, amorosos, mansos…
—————
3
Sermão 95, 4-6; PL 54, 462-464. Ofício de Leituras do Sábado XXII, do Tempo
Comum.
24
morrer que será ? É imitar o Esposo, tendo em pouca monta o sofrimento, é
dar-lhe graças antegozando a proximidade do encontro:
"Contempla, nobre rainha, o teu Esposo. Sendo o mais belo dos filhos
dos homens, transformou-se, para tua salvação, no mais desprezível dos
mortais. Morreu na Cruz, no meio dos maiores sofrimentos, golpeado e
vezes sem conta açoitado em todo corpo. Olha, medita e contempla e que o
teu coração se inflame na sua imitação " (2CCL 20-21).
Quem, de si esquecido, perseverar nessa contemplação é levado ao
abraço que identifica, como virgem pobre, é totalmente transfigurado após
ter seguido a pobreza, a humildade, paciência, mansidão e doçura… do
Filho de Deus. Ruminado então pela sua inefável caridade, quem com ele
morrer com ele reinará.
"Receberás a coroa da imortalidade" (5CCL).
A morte, nos aspectos negativos, está vencida. Será qual irmã abrindo
a porta da bem-aventurança. Júbilo, santidade, esplendor… para sempre!
É esta, em toda a sua simplicidade, a argumentação de Clara a respeito
da morte. Há um Espelho, Cristo pobre. Um espelho que urge imitar na
vida e na morte. Em estreito abraço, com Ele se vive, se morre e se alcança
a eterna bem-aventurança. Os braços para esse abraço transfigurados e glo-
rificante são a humildade e a pobreza.
Pobre, humilhado e desnudo morreu o Senhor no leito da cruz. Des-
nudo, reclinado sobre a terra nua do aniquilamento e da cinza, morria Fran-
cisco… Abrasado em inefável caridade, morre o Senhor. Abraçada a Cristo
pobre, virgem pobre, em seráfico arrebatamento, morria Clara.
2. FRANCISCO DEIXA COMO HERANÇA A SANTA POBREZA, ANTES E
DEPOIS DA SUA MORTE
Outra série de textos se referem igualmente à morte de Francisco e de
Clara, porém uma morte escandida em dois tempos: um "antes" e um "de-
pois". De qualquer modo, o denominador comum é invariavelmente a santa
pobreza do Filho de Deus que as irmãs, tanto presentes como futuras, de-
vem abraçar.
25
a) O legado de Francisco "antes da sua morte "
A influência de São Francisco não terminou com o seu passamento.
Clara recorda e escreve que a vida é um caminho interior, uma evolução
mística para se chegar ao abraço: "O Filho de Deus fez-se nosso caminho,
como nos mostrou e ensinou pela palavra e exemplo o nosso bem-
-aventurado Pai São Francisco, seu apaixonado imitador" (TCL 5). De re-
sto, ele teve sempre um cuidado amoroso e a mais diligente solicitude no
acompanhamento das irmãs pobres, quais senhoras suas, num caminhar que
era o seguimento fiel das pegadas do Filho de Deus (1Pe 2,21, manso,
humilde e pobre…
Pouco antes da sua morte Francisco legou-lhes a Santa Pobreza em
escrito firme e singelo. Tal como ele se comprometia a observar a Pobreza
"até ao fim", isso mesmo pedia o fizessem as senhoras pobres. Clara re-
colhe esse escrito e integra-o na redacção da Regra. É sua convicção que,
tanto para as irmãs que puderam venerar as chagas do "verdadeiro amante
do Filho de Deus", como para as que viriam depois, nada seria tão forte e
aliciante como aquela exortação testamentária em forma de testemunho.
“E para que nem nós, nem as que nos hão-de suceder nos desviásse-
mos da altíssima pobreza que abraçámos, pouco antes de morrer, nova-
mente nos escreveu a sua última vontade: „Eu, o pequeno irmão Francisco,
quero seguir a vida e a pobreza do nosso altíssimo Senhor Jesus Cristo e
da sua santíssima Mãe e perseverar nela até ao fim, rogo-vos, minhas sen-
horas, e vos aconselho, que vivais sempore nesta santíssima vida e po-
breza. E conservai-vos muito atentas para que de nenhum modo jamais vos
afasteis dela, por ensinamentos ou conselhos, donde quer que venham”
(RCI VI, 6 …).
b) O legado de Francisco para "depois da sua morte"
Francisco exortou as Senhoras Pobres a que, depois da sua morte…
continuassem abraçadas à pobreza do Filho de Deus como forma de vida.
Deixou muitos escritos que não chegaram até nós, ou chegaram em reco-
lhas cujos destinatários ainda hoje ignoramos se eram irmãs ou irmãos.
"Não contente em nos exortar durante a vida, com muitas palavras e
exemplos, ao amor e observância da santíssima pobreza, deixou-nos tam-
bém muitos escritos, para que, depois da sua morte, de modo nenhum nos
afastássemos dela, a exemplo do Filho de Deus que, enquanto viveu neste
mundo, nunca da santa pobreza se quis desviar" (TCI 34-35).
26
São estas as referências de Clara à morte de São Francisco. Visam ine-
vitavelmente a imitação da santíssima vida e pobreza do Senhor e de sua
bendita Mãe pobrezinha. Há ainda outra citação que transferimos para mais
adiante pelo facto de coincidir com a própria exortação de Clara.
3. CLARA EXORTA À OBSERVÂNCIA DA POBREZA PARA ALÉM DA SUA
MORTE
Porém, após a morte de Francisco, irmãs houve que claudicaram des-
viando-se da santa pobreza. Este facto foi ensejo para palavras de Clara em
que nunca reflectiremos bastantemente e que denunciam bem a dor e de-
cepção que lhe coube sofrer como fundadora e mãe.
"Eu, Clara, indigna serva de Cristo e das irmãs pobres de São Da-
mião e plantazinha do santo Pai, considerando com as outras minhas
irmãs a sublimidade da nossa profissão e o mandato de tão grande Pai, e
ao mesmo tempo a fragilidade das nossas irmãs – fragilidade que nós
mesmas temíamos depois da morte do nosso Pai Francisco que, depois de
Deus, era a nossa coluna, a nossa única consolação e fortaleza…" (TCL
37-38).
Olhando para além do seu tempo, Clara exorta "a que, depois da
minha morte… " Na verdade, morta ela, a influência da sua santidade e dos
seus ensinamentos jamais se extinguiria. Como transparecendo luminosa-
mente de um véu, o seu magistério continua a inspirar e a renovar a fideli-
dade ao abraço de Cristo pobre.
"Frequentemente renovamos a nossa adesão voluntária à nossa sen-
hora, a santíssima pobreza, a fim de que, depois da minha morte, as irmãs,
tanto as presentes como as futuras, de nenhum modo delas se apartem"
(TCL 39).
"E se acontecesse terem as referidas irmãs de deixar este lugar para se
mudarem para outro, sintam-se mesmo assim obrigadas a guardar depois da
minha morte, onde quer que se encontrem, a sobredita pobreza que a Deus
prometemos e a nosso Pai Francisco" (TCL 52).
As irmãs presentes e as que vierem na sucessão dos tempos… Todas
as irmãs… em toda a parte…, quer se mantenham num mesmo lugar ou se
transfiram para outro… Sempre e em toda a parte hão-de permanecer abra-
çadas à Pobreza, a exemplo do Filho de Deus, segundo a forma do Evange-
lho que a Igreja aprovou para Francisco e Clara.. Na vida e na morte:..
27
"Esta é a excelência da altíssima pobreza que a vós, minhas, irmãs
caríssimas, vos constituiu herdeiras e rainhas do Reino dos Céus, fez-vos
pobres das coisas temporais e enobreceu-vos de virtudes. Apegai-vos bem
a ela, minhas queridas irmãs, e nenhuma outra coisa, em nome de Nosso
Senhor Jesus Cristo e sua Santíssima Mãe, jamais queirais ter debaixo do
céu" (RCL VIII,4-6).
Abraçai-vos a Cristo pela altíssima pobreza que vos torna herdeiros de
Deus como filhos, co-herdeiros com Cristo como irmãos e esposas. Re-
serva para vós uma habitação nas moradas eternas e ofereceu amizade de
gente de tão bom trato, como é os santos em sua glória. Clara conjura em
nome daquele Jesus, ante cujo poder e soberania se dobram todos os joel-
hos no céu, na terra e nos abismos…
Nada há mais poderoso do que a humildade e a pobreza do Filho de
Deus, conquanto não seja fácil anunciá-las a uma sociedade que aposta no
bem-estar e na cultura do lazer. Nada há mais apetecível do que a mansi-
dão, fortaleza no meio da insegurança propiciada pela violência. Para que
apetecer outras riquezas? "O que se propõe e proclama em todo o orbe não
é Cristo ostentando poder terreno, nem um Cristo opulento de riquezas
terrenas, ou um Cristo resplandecente de felicidade terrena, mas um Cristo
crucificado. Dele escarneceram povos soberbos e o mesmo continuam a
fazer os que ainda hoje lhes pagam a herança. Porque quando se pregou a
Cristo crucificado para que nele cressem uns quantos ante a irrisão dos po-
vos, os coxos andavam, os mudos falavam, os cegos viam e os mortos vol-
tavam à vida. Assim, finalmente, a soberba terrena pôde dar-se conta de
não haver nada mais poderoso do que a humildade divina. E desse modo a
salubérrima humildade humana pôde defender-se, por obra e graça da di-
vina imitação"4
.
—————
4
Santo Agostinho, Carta 236-6, Madrid 1944, BAC 99-b, 398.
28
4. CLARA ABENÇOA. ―DEPOIS DA MINHA MORTE…‖
Já prestes a morrer, a Senhora Pobre avançava no tempo antes de sair
do tempo. Mãe e fundadora, dispõe-se a deixar a sua bênção. Com essa
bênção deseja repartir todo o bem alcançado em favor de todos os seus de-
votos e filhas. Mais, teve em mente não apenas as que então estavam com
ela como as que viriam depois.
"Eu, Clara, serva de Cristo e plantazinha do nosso pai São Francisco,
irmã e mãe vossa e de todas as irmãs pobres, ainda que indigna… vos
abençoo durante a minha vida e depois da minha morte, quanto posso e
mais do que posso, com todas as bênçãos que o Pai das misericórdiascon-
cedeu ou venha a conceder aos seus filhos e filhas espirituais…" (BCL
6.11-12).
Clara promete uma bênção que continuará actuante depois da sua
morte. Por isso ela diz abençoar "quanto pode e mais do que pode". Na
verdade, lega-nos uma bênção de tão longo alcance que ainda hoje, no sé-
culo XXI, envolve todos os seus devotos e não apenas os seus filhos e fil-
has. Tão é isto uma confissão de fé na vida bem-aventurada, na comunhão
dos santos? Se alguma dúvida nos restasse sobre tão ardente fé, que se
move no eixo que une misticamente os três estratos da Igreja, atentemos em
como ela associa e compromete na mesma causa, na mesma bênção, todos
os santos e santas.
CONCLUSÃO
Fascinada pela pobreza, mansidão e doçura do Filho de Deus na vida e
na morte, Clara já não busca mais espelhos nem outros pensamentos a res-
peito da irmã morte senão os de "morrer com Ele para com Ele reinar".
Nem outra coisa sabe recomendar para além da fidelidade à imitação da
humildade e pobreza do Filho de Deus "até ao fim".
Esta a lição para a vida: "Abraçar a Cristo pobre como virgem pobre."
Esta a lição para a morte: "Se com Ele morrermos com Ele reinare-
mos."
Se virmos as palavras de Clara à luz das que ela própria escreveu a sua
irmã Inês: "É do agrado de Deus que eu parta…"; se, mais ainda, nos lem-
brarmos as suas últimas palavras: "Obrigado, Senhor, por me terdes
criado…‖ por terdes tratado de mim com a ternura duma mãe para com o
29
seu filhinho…, melhor veremos a unidade rectilínea de toda uma vida em
que o passamento deste mundo é algo natural, previsto e ditoso.
Ela sabe que, um dia, Deus a chamou pelo nome, sabe que foi criada
com inefável amor durante toda a vida – uma vida que, segundo o nosso
cômputo, terá totalizado 59 anos e oito meses – e que sempre caminhou
com os olhos postos no Filho de Deus. Agora, a morte era como que o
chamamento do divino Amante, ansioso por levá-la nos braços ao banquete
das núpcias eternas. "É do agrado de Deus que eu me vá". O mesmo amor
que a criou e a santificou vem buscá-la para lhe dar a plenitude do gozo, do
amor e da doçura.
Os olhos de Clara fecharam-se. Silenciou a água, emudeceu o vento, o
fogo acolheu-se debaixo das cinzas, a mãe terra abriu-lhe os braços. As es-
trelas correram o véu e ela desferiu voo para além do sol e da lua a fim de
reinar para sempre. "Clara morreu rodeada pelas irmãs, pelos primeiros
companheiros de Francisco e seus também, na morada onde sempre vivera.
Morreu como uma rainha, ou antes, como a jovem esposa que recebe da
rainha-mãe o dote desde sempre preparado para com ela reinar"5
.
Clara ensina a arte de morrer com a serenidade e a doçura infinita de
Deus.
Clara ensina-nos a arte de morrer na infinita serenidade e doçura de
Deus.
—————
5
Bartoli, M., Clara de Asís, Oñate 1992, Ed. Franciscana, p. 265.
31
CLARA,
CO-FUNDADORA DO FRANCISCANISMO
Fr. Isidro Lamelas, ofm*
—————
*
Palestra pronunciada a 25 de Junho de 2004, no Mosteiro de S. José, Vila das Aves
32
CLARA,
CO-FUNDADORA DO FRANCISCANISMO
―Por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher‖. Se
a sentença foi usada no passado e, em muitos casos, confirmada pelos fac-
tos, ela é hoje menos aceite pela sua carga de preconceito… Porque há-de a
mulher estar ―atrás‖? perguntam as mentes emancipadas dos nossos dias.
Mas talvez já noutros tempos não fosse bem assim. Pelo menos não o é no
caso de Clara e Francisco. Primeiro, porque Francisco não se assume como
―um grande homem‖, mas o ―menor e mais miserável dos homens‖, depois
porque Clara não merece permanecer ―detrás‖ ou sob a sombra de Fran-
cisco, como sucedeu em tempos passados (ou sucede ainda?). Bastará re-
cordar que só no século XX os seus escritos foram recuperados e estuda-
dos: como foi possível esconder uma tal luz sob o alqueire?
E, no entanto, a riqueza do carisma franciscano só será plenamente
abrangido se colocarmos Francisco e Clara não um atrás ou à frente do ou-
tro, mas lado a lado ou no coração um do outro, pois ambos são parte e,
com Deus, o todo de uma mesma e única aventura. Tal aventura nada tem a
ver com as cores românticas com que o vulgo frequentemente pinta a re-
lação entre os dois jovens de Assis. O movimento franciscano a que deram
origem e continua vivo só se explica pelos alicerces bem mais profundos
sobre os quais assenta.
Sabemos que a vocação e o caminho de Clara nasceram e amadurece-
ram na escuta de Francisco e na frequência da fraternidade minorítica pri-
mitiva. Mas quantos outros e outras não escutaram Francisco? Porém, só
Clara soube, como ninguém, ler no coração do Poverello e conhecer exac-
tamente a sua vontade em relação aos irmãos menores assim como relati-
vamente às Damas pobres de S. Damião. Clara é, sem dúvida, o espelho ou
o reflexo mais lúcido do mundo interior de Francisco. Isso sucede porque
33
ela encontrou em Francisco algo que procurava, e alcançou porque bus-
cava, isto é, tinha inquietudes e, por isso, encontrou o seu tesouro.
Não sabemos ao certo de quem partiu a iniciativa do primeiro enco-
ntro: de Francisco ou de Clara? Ou do Espírito? O que sabemos é que,
paulatinamente, a relação entre Clara e Francisco é patenteada em dois mo-
vimentos aparentemente contraditórios: de um lado o grande desejo de
Clara de ver frequentemente Francisco; por outro lado, o progressivo dis-
tanciamento físico de Francisco que evita cada vez mais encontrar-se com
as suas ―Damas‖, sem, no entanto, alguma vez as abandonar (cf. 2C 204):
―Quando as virgens de Cristo, vindas de todas as partes do mundo, se
lançavam numa vida de alta perfeição… foi-se o pai furtando pouco e
pouco a visitá-las, não, todavia, sem redobrar de solicitude ao amá-las
ainda mais no Espírito… Efectivamente… prometeu-lhes firmemente, a
elas e às que viessem a professar o mesmo teor de vida pobre, o seu inde-
fectível apoio e o dos irmãos. Enquanto viveu, manteve, sempre escrupulo-
samente esta promessa, e, prestes a morrer, recomendou encarecidamente
aos irmãos que tivessem por elas as mesmas atenções, porquanto, dizia ele,
um só e mesmo espírito levou os irmãos e as senhoras pobres a deixarem o
mundo” (2C 204).
Por sua vez, S. Clara, no seu Testamento, afirma: ―Recomendo as min-
has irmãs presentes e futuras ao sucessor do nosso bem-aventurado Pai
Francisco e a toda a Ordem, para que nos ajudem a progredir no serviço
de Deus e a observar cada vez melhor sobretudo a santíssima pobreza‖
(TCL 50-51).
E, na sua Regra, ―Clara e suas irmãs prometem obediência ao bem-
-aventurado Francisco, da mesma maneira promete obediência inviolável
aos seus sucessores‖ (1,4). Em flagrante contradição com a Regra não bu-
lada (12,1.3), Clara e suas irmãs assumem, ―livremente‖ (Regra 6,1) a obe-
diência a Francisco e seus sucessores.
Como vemos, há uma sintonia perfeita nas palavras e no comporta-
mento. O ―amor espiritual‖ de que fala Francisco é muito mais real que
qualquer outro amor, por que não é possessivo, não atrofia, não infantiliza,
mas faz crescer ou ―progredir‖, como anseia Clara.
Por isso, segura que estava que este era também o desejo de Francisco,
tudo fará para que os frades continuem a exercer o ministério pastoral em
S. Damião. E teve de lutar tenazmente para que entre as duas Ordens se
mantivesse a relação mútua querida por ela como por Francisco: isto é, para
que entre ambas se mantivesse a comunicação espiritual que germinou en-
tre Francisco e Clara.
34
O verbo ―germinar‖ não vem ao acaso. A própria Mãe Clara se auto-
-assume como ―plantazinha‖ de S. Francisco. Que significa este diminu-
tivo? Dependência e subserviência? De modo nenhum. Uma planta, por
pequena que seja, tem vida própria e não é a dimensão que garante a beleza
das flores ou a qualidade dos frutos. ―Plantinha‖ de Francisco, porque
muito próxima e alimentada da mesma seiva, mas com uma vida própria,
com um vigor próprio e original. A ―pequena planta‖ não é mais que uma
―muda‖, isto é, um rebento que brota da seiva comum da planta matriz.
Mas, uma vez despontado, este rebento cresce por conta própria, permane-
cendo fiel à planta-mãe.
Compreende-se que toda a planta necessita de um ―plantador‖, mas
depois, torna-se autónoma, sem deixar de necessitar dos cuidados daquele.
O plantador e o jardineiro é Francisco, mas foi Clara que cresceu e, à sua
volta fez-se jardim. Ela aparece-nos, por isso, tão viva e tão pujante como
Francisco.
A metáfora da ―planta‖ traduz, pois, bastante adequadamente o vín-
culo entre Francisco e Clara, entre a primeira e a segunda Ordem: as irmãs
clarissas são franciscanas e não beneditinas; mas exprime igualmente a
identidade e as possibilidades de desenvolvimento próprios de cada uma.
Clara e sua Ordem são outra árvore que mergulha as suas raízes no
mesmo solo que Francisco e produz, por isso, flores semelhantes e frutos
próprios. Por isso, podemos e devemos afirmar que Clara é tão mãe da Fa-
mília Franciscana quanto é Francisco seu pai. Os fundamentos da sua espi-
ritualidade são comuns aos de Francisco (Jesus Crucificado, pobreza, con-
templação, fraternidade), porém, Clara nunca copia, mas recria. Quer seguir
à risca o exemplo de Francisco, porém, a sua imitação não é mimética mas
criativa e marcada pela exuberância da sua experiência feminina de Deus.
Clara e Francisco dificilmente seriam o que são um sem o outro, mas são
irredutíveis um ao outro.
Clara e Francisco iluminam-se e completam-se, portanto, mutuamente.
E se na génese da vocação de Clara foi determinante o testemunho de Fran-
cisco, no discernimento e na consolidação do posterior carisma franciscano
é difícil avaliar de onde veio o maior contributo1
. Mas não nos preocupe-
mos com tais comparações, pois não serão os pedestais por nós construídos
que diferenciarão a sua equidistância do Sol Altíssimo.
—————
1
A sua figura como mãe do franciscanismo emerge sobretudo nos 27 anos que viveu após
a morte de Francisco.
35
Um dos testemunhos do processo de canonização de S. Clara narra
que, tendo certo frade da Ordem dos Frades Menores, de nome Estêvão,
ficado doente, S. Francisco o enviou ao mosteiro de S. Damião, para que
Clara fizesse sobre ele o sinal da cruz. Uma vez cumprido este desejo, o
referido frade dormiu um pouco sobre o mesmo lugar onde Clara costu-
mava rezar. Quando acordou, estava curado. Comeu qualquer coisa e re-
gressou ao seu convento‖2
.
Este episódio, confirmado por outras fontes, ilustra bem o clima de
proximidade e colaboração que, por querer do próprio Francisco, vigorava
entra as duas ordens. Francisco confia a Clara a cura de um irmão, porque
está certo da ―força‖ de que Clara é dotada. Por outro lado, Clara e suas
irmãs não poupam meios espirituais e materiais para ajudar este irmão en-
fermo em hora de dificuldades.
Depois da morte de Francisco, Clara continuou, durante os 27 anos de
vida que lhe restaram, fiel ao primitivo ideal de Francisco, nomeadamente
no que se refere às relações com a primeira Ordem. Não por acaso os mais
íntimos confidentes de Francisco serão também os confidentes de Clara
(cf. LCL 45). Tendo presente que estes primeiros anos do movimento fran-
ciscano foram marcados por ventos e marés tempestuosos, Clara não se
deixou ficar como espectadora alheia ao que ia sucedendo com o movi-
mento religioso iniciado por Francisco.
Na vida do beato Egídio conta-se que, em determinado dia, um douto
frade foi enviado a pregar a S. Damião. Enquanto este falava, frei Egídio
interrompeu-o, tomando a palavra em sua vez para pregar às sorores. O
referido frade muito mais douto, acedeu humildemente a tal intromissão. O
que levou Clara a exclamar: ―pareceu-me ter visto o próprio Francisco‖3
.
Este episódio mostra, por um lado, que Clara continua a assegurar às
suas irmãs a partilha do pão da palavra, recorrendo aos frades mais doutos;
por outro lado, a presença de frei Egídio em S. Damião, dá a entender que
era comum que a referida pregação fosse escutada juntamente pelos irmãos
e as irmãs. Por outro lado, como o mesmo episódio parece mostrar, Clara,
S. Damião e suas irmãs continuam a ser o garante da conservação da me-
mória de Francisco e do franciscanismo.
Como afirma Fr. Giacomo Bini, ―Francisco constitui o momento inspi-
racional da comum vocação; Clara, na sua fidelidade, garante a continuação
do primitivo projecto de vida de Francisco. Da clausura de S. Damião, ela e
—————
2
ProcC 2,15.
3
Dicta B. Aegidii, 73.
36
suas irmãs sustentam e animam os seguidores da forma de vida francis-
cana‖4
Tomás de Celano, ao escrever em 1228, a primeira biografia de
S. Francisco, já se refere a Clara como ―pedra preciosa e inabalável, ali-
cerce para as outras pedras que se haviam de sobrepor‖ (1C 18,29). A força
expressiva da metáfora arquitectónica reaparece num outro passo em que
Celano se refere às origens do ―edifício espiritual‖ que Francisco e Clara
erigiram a partir de S. Damião:
―Depois da restauração material da Igreja de S. Damião, um edifício
espiritual muito mais precioso ia ser erguido pelo Pai naquele mesmo lu-
gar, sob a conduta do Espírito Santo… como já anteriormente o Espírito
Santo havia predito, devia ali ser fundada uma Ordem de santas virgens,
as quais, como reserva de pedras vivas e trabalhadas, serviriam a seu
tempo para a restauração da casa do céu” (2C 204).
Francisco viu em S. Damião o símbolo e a realidade, o alicerce e o
edifício a construir. E Clara é a pedra angular desse edifício que, sem ela,
ficaria mais pobre e mais frágil. Na verdade, ela conferiu ao edifício fran-
ciscano o traço artístico e a profundidade que distingue as obras de arte que
Deus planeou. Enquanto o jovem Francisco incorreu na tentação de perma-
necer em S. Damião, preso à sua tarefa de ―reconstrução‖, Clara guia-o
para a novidade e as alturas de uma Igreja espiritual e interior. Ela é, na
Igreja, a primeira mulher fundadora: deu origem a uma Ordem religiosa,
deu-lhe uma espiritualidade e redigiu-lhe uma Regra, a primeira saída das
mãos de uma mulher.
Podemos, por isso, dizer que é ela a primeira a realizar e a mostrar o
sentido do mandato: repara a minha Igreja. E, como continua Celano, ―um
nobre edifício de pérolas preciosas emerge sobre ela‖ (1C 19).
Em Clara a utopia de Francisco fez-se clarividente e realidade. Ela não
é, pois, a sombra mas a luz de Francisco. Ambos são dotados de uma ener-
gia e personalidade fortes, mas une-os o mesmo espírito, o mesmo ideal e
radicalidade, o mesmo projecto evangélico. Dois apaixonados pela vida, e
uma mesma paixão: seguir Cristo pobre e humilde; duas almas inconfundí-
veis, mas uma mesma vocação: restaurar a casa de Deus. Clara é o incenso
que o fogo brotado de Francisco transformou em perfume irradiante.
Clara assume plenamente as consequências da sua aliança esponsal, a
qual implica a total comunhão de bens. Narra a Legenda que, num mo-
mento de carência maior, Clara partiu a meio o único pão que restava no
—————
4
Fr. GIACOMO BINI, Clara de Assis, um hino de louvor, II.
37
mosteiro, enviando uma das partes aos filhos de Francisco. Este gesto da
partilha do pouco pão que resta exprime bem o vínculo de comunhão na
pobreza que une ambas as ordens (LCL 15). Mas explica também o milagre
da multiplicação de tantos bens que Deus opera em ambas.
Por isso reagirá com surpreendente firmeza quando algo ou alguém
põe em causa a comunhão espiritual e o cerne do carisma franciscano, e
tudo fará para salvaguardar as boas relações com os irmãos da primeira Or-
dem. Recordemos apenas um conhecido episódio:
―Uma vez, quando o papa Gregório [IX] proibiu qualquer frade de ir
sem sua licença aos mosteiros das Senhoras. A piedosa madre, doendo-se
porque ia ser mais raro para os Irmãos o manjar da doutrina sagrada, la-
mentou: ‗Tire-nos também os outros frades, já que nos privou dos que nos
davam o alimento da vida‖. E, na mesma hora, devolveu aos ministros to-
dos os irmãos esmoleres‖ (LCL 37). Clara ameaça recorrer à ―greve de
fome‖, caso o papa promova a separação das duas ordens. O que levou o
papa a retirar imediatamente a proibição, entregando o caso ao Ministro
geral.
Por estas e por outras, Paul Sabatier pode retratar Clara como ―uma
mulher que durante todo um quarto de século susteve uma luta de todos os
dias, mantendo-se ao mesmo tempo respeitosa e inquebrantável‖. ―Nin-
guém me ensinou o que devia fazer‖. A mesma firmeza de Francisco, ex-
pressa nestas palavras, aparece também na atitude de Clara. Tal atitude não
manifesta qualquer tipo de arrogância ou sede de protagonismo, mas a
plena confiança na iniciativa do Altíssimo
De facto, tudo fez para evitar as intromissões inconvenientes dos sen-
hores feudais e dos bispos, e, quando lhe foi ―imposta‖ a Regra de
S. Bento, Clara tudo fez para permanecer fiel ao ideal de Francisco e para
ter como único privilégio viver sem privilégios (―Privilégio da Pobreza).
Em contrapartida, conhecendo ―por dentro‖ e envolvendo-se total-
mente no mesmo projecto evangélico de Francisco, Clara revelou sempre
um particular empenho em manter e incrementar a comunhão com os irm-
ãos:
– Conservando e exortando à fidelidade, à memória e vontades de
Francisco, explicitamente evocadas na sua Regra (cap. 6) e no seu Testa-
mento (2, 3, 4-5, 7, 8-15, 17, 22, 23), assumindo para si e suas irmãs a pa-
ternidade espiritual de Francisco (TCL 22);
– No seu Testamento encomenda suas irmãs ao cuidado da Igreja e dos
irmãos menores;
38
– Na sua Regra pede explicitamente quatro irmãos menores para o
serviço do mosteiro: um capelão, um clérigo de boa fama, e dois irmãos
leigos: Pedimos à Ordem dos Frades Menores, pelo amor de Deus e o
bem-aventurado Pai S. Francisco, que nos faculte sempre esta graça até
agora nunca regateada‖ (12,5).
– Toda a história das duas ordens mostram como este matrimónio feliz
entre ambas perdurará: desde S. António de Lisboa que cuidará das irmãs
pobres de Arcella até aos nossos dias.
O caminho percorrido por Clara no sentido de preservar seu carisma
será árduo como o de Francisco. Passou por momentos e situações difíceis
e combates que se prolongaram até à sua morte. Dificuldades que se pro-
longarão ao longo dos séculos, até aos nossos dias. Tais lutas nasceram
sempre, porém, de uma exigência de radicalidade e fidelidade ao Evan-
gelho e a Francisco. E, por isso, cabe-nos a nós hoje e aqui procurar, sem
medo de ―ir à luta‖, a mesma fidelidade, para sermos mais evangélicos e
mais sal e luz do mundo.
―Clara morreu vitoriosa, não contra alguém, contra Gregório IX ou
contra Inocêncio IV, ou contra a autoridade, mas vitoriosa consigo e com
eles. São dois os elementos que fazem tão original o catolicismo de S.
Francisco e S. Clara: a submissão em liberdade, e a liberdade na submis-
são‖ (P. Sabatier).
Submissão à Igreja e a Francisco, porque via em ambos a fonte da sua
própria liberdade e neste último o exemplo acabado daquilo que ela mesma
procurava viver de modo autónomo e responsável. Ela é, por isso, com
Francisco, fundadora e mestra da nossa comum espiritualidade. Ela é fun-
damental para toda a família franciscana, e para o nosso mundo. As nossas
irmãs clarissas são as guardadoras deste tesouro de precioso valor para a
nossa família religiosa.
Com e como Clara e Francisco cabe-nos hoje a nós incrementar a co-
munhão espiritual e fraterna e a permuta do ―pão espiritual‖ que nos faz
crescer como franciscanos e como Igreja. Aprendamos com os nossos fun-
dadores a transformar o tempo em templo e as clausuras e os conventos em
viveiros de liberdade e crescimento humano, espiritual. E que Clara e Fran-
cisco nos ajudem a ser fiéis ao carisma que eles plantaram e, por eles, Deus
fez crescer e multiplicar-se até nós.
39
SER FRANCISCANOS E FRANCISCANAS HOJE
*Fr. José Rodríguez Carballo, ofm
Ministro Geral*
—————
*
Palestra dirigida à Ordem Franciscana Secular, pelo Ministro Geral, aquando da sua
visita a Portugal, Março de 2004.
40
SER FRANCISCANOS E FRANCISCANAS HOJE
Queridos Irmãos e Irmãs
Alegra-me muito estar convosco. Saúdo-vos cordialmente a todos,
queridos Ministros provinciais e queridos irmãos e irmãs da Família Fran-
ciscana. O Senhor vos dê a sua paz!
Nestes dias em que não cessam de chegar-nos notícias de combates e
de morte, em que o Santo Padre, perante a violência dos poderosos das
nações, convida todos a construir pontes em vez de muros, em que se eleva
a voz dos povos pedindo a paz, constantemente negada, sentimo-nos cha-
mados a oferecer, uma vez mais, aos irmãos e irmãs do nosso tempo a sau-
dação de paz que o Senhor revelou a São Francisco. Esta saudação nos seus
lábios não continha nenhuma retórica, pois comunicava aos irmãos o dom
da paz que havia recebido pessoalmente de Deus e que ele mesmo vivia na
sua vida. O nosso desejo é que se possa dizer o mesmo de nós, franciscanos
do terceiro milénio. Com efeito, também nós, quando saudamos desejando
a paz, queremos fazê-lo sobretudo como homens e mulheres que encontra-
ram a verdadeira paz no encontro com o Ressuscitado e nos passos de São
Francisco e de Santa Clara, e desejam dá-la aos seus irmãos; gostaríamos
que todas as nossas acções e os nossos gestos se convertessem em anúncio
da salvação que encontrámos, em anúncio da verdadeira paz. De facto, sa-
bemos, como nos recordava João Paulo II, que ―os homens do nosso tempo,
talvez nem sempre conscientemente, pedem aos crentes de hoje não apenas
que nos falem de Cristo, mas de certo modo que no-lo façam ―ver‖ […]. O
nosso testemunho seria por outro lado imensamente deficiente se não
fôssemos os primeiros a contemplar o seu rosto‖ (Novo Millennio ineunte
16).
41
HOMENS E MULHERES DE CONTEMPLAÇÃO
Para sermos verdadeiros anunciadores e portadores de paz é, pois, in-
dispensável partir da dimensão contemplativa da nossa vida. Só mantendo-
-nos numa relação vital com o Senhor teremos olhos novos para ler a histó-
ria que vivemos e estar significativamente presentes nela. Assim, perante as
mudanças cada vez mais rápidas da sociedade e do mundo, os nossos esfor-
ços apontarão exactamente para a elaboração de novos projectos que ex-
pressem o sentido da nossa presença. Mas não podemos esquecer que este
sentido nos é dado na relação com Deus e que sem Ele todo o projecto será
estéril.
Por isso, é cada vez mais urgente o chamamento de São Francisco a
todos os franciscanos e franciscanas para que, ―removido todo o impedi-
mento e posto de parte todo o cuidado e solicitude, do melhor modo que
possam, trabalhem por servir, amar, adorar e honrar ao Senhor Deus com
um coração limpo e espírito puro‖ (1R 22, 26). O que primeiramente nos
deveria caracterizar como homens e mulheres no seguimento de Cristo pelo
caminho traçado por Francisco e por Clara deveria ser precisamente ter o
olhar constantemente voltado para o Senhor, ou, dito com palavras de São
Francisco, ―ter o Espírito do Senhor e a sua santa operação‖ (2R 10, 9).
Manter este único ponto de referência significa alcançar a unidade na
própria vida e, portanto, viver reconciliados consigo mesmos e com os ou-
tros. É talvez o maior sinal profético que podemos oferecer hoje aos nossos
irmãos. Mas para isso, temos que nos converter continuamente para que
Jesus Cristo seja verdadeiramente o centro da nossa vida e da vida da nossa
fraternidade. Assim, a nossa vida poderá ―converter-se em anúncio de um
modo de viver alternativo ao do mundo e da cultura dominante‖, pois ―com
seu estilo de vida e a busca do Absoluto [a vida consagrada] quase insinua
uma terapia espiritual para os males do nosso tempo‖ (Partir de Cristo
[PC] 6a).
Poderemos falar de renovação da nossa vida e da nossa presença se
estamos dispostos e na medida em que estivermos dispostos a acolher a
Palavra e a Eucaristia ―com um coração limpo e espírito puro‖, a convertê-
-las no eixo central das nossas actividades, a fazer crescer as nossas frater-
nidades a partir do intercâmbio e da participação destas riquezas inesgotá-
veis.
Como sabemos, tudo isto requer de nós uma grande disposição para
nos pormos seriamente a avaliar o tempo pessoal e comunitário que dedi-
camos, tanto quantitativa como qualitativamente, à vida com Deus, pois ―é
42
necessário aderir cada vez mais a Cristo, centro da vida consagrada, e vol-
tar a percorrer um caminho de conversão e de renovação que, como na ex-
periência inicial dos Apóstolos, antes e depois da sua ressurreição, seja um
recomeçar a partir de Cristo” (PC 21a). Só recomeçando a partir de Cristo
a nossa vida poderá ser verdadeiramente um cântico que dá glória a Deus
no alto do Céu e paz na terra aos homens que Ele ama (cfr. Lc 2, 14).
HOMENS E MULHERES QUE VIVEM A FRATERNIDADE NO
DIÁLOGO
Vivendo neste diálogo com Cristo, Palavra de Deus vivo, abre-se ao
ser humano a possibilidade de um verdadeiro diálogo com os irmãos. Efec-
tivamente, na relação com a Palavra feita carne aprendemos a conhecer o
amor de Deus aos seus filhos e a todas as criaturas, e, portanto, a entrar em
diálogo com elas a partir desse amor e não simplesmente de nós mesmos.
Nesta nova relação, que abarca todos os aspectos da pessoa e toda a reali-
dade que a rodeia, o que era amargo pode tornar-se verdadeiramente em
doçura de alma e corpo (cfr. T 3). Re-criados à imagem de Cristo Jesus, Ele
―que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a
Deus; no entanto esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo‖
(Fl 2, 6s), também nós queremos despojar-nos de nós mesmos e ir ao enco-
ntro dos homens e acolhê-los com o mesmo amor e respeito com que Cristo
nos acolheu.
Abraçar o outro na sua pobreza, respeitando a sua alteridade, viver
com ele a experiência de sermos irmãos e irmãs significa romper as bar-
reiras do egoísmo e do individualismo que, talvez hoje mais do que nunca,
são a causa dos males da sociedade. Para fomentar esta mudança, temos
que partir da nossa experiência quotidiana, das nossas fraternidades, pois,
como ensina o Senhor ―todos conhecerão que sois meus discípulos se vos
amardes uns aos outros‖ (Jo 13, 35). Por isso é indispensável comprometer-
-se a que nas fraternidades se criem as condições para viver o que prome-
temos e se dediquem tempos à programação e à avaliação comunitária do
caminho que se está a percorrer em comum.
Neste sentido, as nossas fraternidades podem chegar a ser verdadeiras
escolas nas quais se aprende e se ensina a viver o despojamento de si
mesmo para dar espaço à vida do irmão na nossa própria vida, do mesmo
modo que a mãe está disposta a renunciar às suas próprias necessidades
43
para satisfazer as do filho, realizando assim a sua maternidade (cfr. 2R 6, 8-
-10).
A forma de vida franciscana converte-se então, para o mundo de hoje,
num desafio para substituir toda a forma de domínio e de exploração do
outro, cujo fim são a afirmação pessoal, pela escuta e o acolhimento que se
exprimem no serviço e na participação dos bens e cujo fim é a promoção da
justiça e da paz.
Abrir-se ao diálogo significa não se refugiar em posições consideradas
adquiridas de uma vez para sempre, mas estar abertos e disponíveis, cons-
cientes de que o outro não é um inimigo de quem temos de nos defender ou
a quem derrotar, mas alguém que, como nós, é portador de verdade, pois
Deus manifesta-se em todo o irmão e irmã. Na escola de Francisco e de
Clara de Assis, queremos aprender a escutar o outro, ―pois muitas vezes o
Senhor revela à que é menor o que é mais conveniente‖ (RCL 4, 18), e a
falar com ele como fez Francisco com o Sultão, que ―intensamente como-
vido pelas suas palavras o escutava com grande prazer‖ (1C 57b).
HOMENS E MULHERES QUE QUEREM VIVER NOS LUGARES
DE FRACTURA
Sem dúvida alguma, semelhante itinerário é difícil de percorrer, pois é
contrário às lógicas que parecem prevalecer hoje e que, por isso, não são
totalmente alheias nem sequer à nossa própria vida, à vida das nossas fra-
ternidades e da nossa actividade pastoral.
Numa sociedade que parece ter perdido a referência aos valores de que
surgiu, vemos impor-se um mercado que, com frequência carente de regras,
não faz senão aumentar as diferenças entre ricos e pobres, perseguindo
como único fim o crescimento incessante dos que dominam este sistema
sem se preocupar com os meios utilizados nem com as consequências que
produz. O uso da força e da violência são justificados como instrumentos a
que é lícito recorrer para garantir a convivência pacífica entre os povos e as
pessoas. Espezinham-se os direitos dos mais pobres e dos mais débeis e
sente-se a necessidade de afirmar a própria identidade negando a do outro.
Renasce o mito da própria superioridade e com ele a ilusão de não estar ao
serviço da verdade, mas de possuí-la. Enfim, subordina-se tudo ao engano
da própria e imediata afirmação e realização.
Contra esta lógica, negação de todo o diálogo, como seguidores de
Francisco e de Clara que encontraram a felicidade no encontro com o outro
44
e não na sua negação, não queremos fechar os olhos a estas realidades de
pecado, mas assumi-las e vivê-las com aqueles que as sofrem, repetindo
uma vez mais que nos sentimos felizes quando convivemos com gente de
baixa condição e desprezada, com os pobres e os débeis, com os enfermos e
leprosos, e com os mendigos dos caminhos (cfr. 1R 9, 2). Esta é a tarefa
que a Igreja confiou às comunidades de vida consagrada: ―fomentar a espi-
ritualidade de comunhão, antes de mais no seu interior e também na pró-
pria comunidade eclesial e para além das suas fronteiras, iniciando ou res-
tabelecendo constantemente o diálogo da caridade, sobretudo onde o
mundo de hoje está dilacerado pelo ódio étnico ou por loucuras homicidas‖
(Vita Consecrata [VC] 51a).
Seguindo a voz do Espírito que guia os nossos passos, queremos co-
meçar por nós mesmos, a partir da nossa realidade de cada dia, vivendo
nela não apenas uma convivência entre pessoas diferentes pela sua idade e
cultura, mas dando testemunho de que se pode viver a reconciliação acei-
tando precisamente o valor de tais diferenças em vez de as eliminar. Ao
mesmo tempo, desejamos privilegiar a nossa presença nos lugares onde
aparecem mais dramaticamente as feridas provocadas pelo pecado do
mundo e ser aí testemunhas da misericórdia e profetas da esperança.
HOMENS E MULHERES TESTEMUNHAS DA ESPERANÇA
Com santa Clara confessamos que no encontro com o Salvador nos foi
revelado o ―Pai das misericórdias‖ (2Cor 1, 3), a quem queremos dar graças
com toda a nossa vida (cfr. TCL). A experiência de que Deus se fez miseri-
córdia em Jesus nos impulsiona a olhar o homem com olhos diferentes so-
bretudo quando está ferido na sua dignidade. O primeiro e principal gesto
de misericórdia, como nos ensina a parábola do ―Pai misericordioso‖ (cfr.
Lc 15, 11-32), consiste em devolver a dignidade à pessoa. Esta é sem dú-
vida a perspectiva de São Francisco na sua Carta a um Ministro, na qual
concebe o exercício da autoridade como um serviço de misericórdia: ―E é
desta forma que eu quero ver se amas o Senhor e a mim, seu servo e teu, se
procederes assim: Que não haja no mundo nenhum irmão que por muito
que tenha pecado e venha ao encontro do teu olhar a pedir misericórdia, se
vá de ti sem o teu perdão. E se não vier pedir misericórdia, pergunta-lhe tu
se a quer. E se, depois, mil outras vezes vier ainda à tua presença para o
mesmo, ama-o mais que a mim, a fim de o trazeres ao Senhor. E que sem-
pre te enchas de compaixão por esses desgraçados‖ (CM 9-11).
45
O dom da misericórdia consiste, portanto, no amor que atrai os
homens para o Senhor. Um dom que não devemos oferecer só quando nos
pedem, pelo contrário, devemos adiantar-nos a oferecê-lo a quem dele pre-
cise. Neste sentido, a misericórdia é uma atitude vital, um modo de ser en-
tre e com os outros, mais do que uma acção que se deva realizar em deter-
minadas circunstâncias.
E fomos chamados a ser testemunhas da misericórdia num mundo que
tende a opor-se à misericórdia e a considerá-la supérflua. Se a lógica ven-
cedora é a do domínio e do controlo da natureza, das nações e das pessoas,
parece não haver espaço para a misericórdia (cfr. Dives in Misericordia 2),
que seria a atitude do débil e do perdedor, a atitude de quem renuncia a im-
por o seu direito sobre o outro para lhe devolver a dignidade perdida ou
negada.
Certamente estar com estas pessoas ou do seu lado significa decidir-se
entre duas alternativas e ter a valentia de se comprometer, como fez São
Francisco, que levou a todos a misericórdia de Deus Pai e não teve medo da
crítica dos seus concidadãos quando abraçou o leproso nem dos seus irm-
ãos quando levou comida aos ladrões de Monte Casale, nem dos cidadãos
de Gúbio quando foi à procura do ―lobo‖ para o levar a viver na cidade.
Quem foi tocado pela misericórdia de Deus sabe muito bem que ela é a
única capaz de romper as barreiras dos corações mais endurecidos para re-
conduzir o homem ao seu criador. Esta é a nossa esperança!
HOMENS E MULHERES GUARDIÃES E PROFETAS DA
ESPERANÇA
Diante do mal presente no nosso tempo, nós, os franciscanos, temos de
ser necessariamente homens de esperança, pois nos nossos corações ressoa
a palavra do Ressuscitado: ―Não tenhais medo […] Eu estou convosco to-
dos os dias até ao fim do mundo‖ (Mt 28, 10.20). Como repetiu João Paulo
II: ―Cristo é a nossa esperança‖ (Ecclesia in Europa [EiE] 19), uma espe-
rança que rasga os limitados horizontes humanos e que é a única que pode
saciar a sede de felicidade do ser humano.
Firmes nesta esperança, captamos por entre as densas sombras que nos
rodeiam os numerosos sinais de renovação que nos permitem continuar a
olhar com confiança o futuro que nos espera. Juntamente com a busca do
proveito exclusivamente individual e até em prejuízo dos interesses dos
outros, cresce a consciência duma solidariedade que considera o outro não
46
apenas como alguém a quem se deve ajudar, mas como um companheiro de
caminho. Juntamente com a violência como único instrumento para fazer
respeitar o direito, cresce cada vez mais a consciência de que nunca se po-
derá alcançar a paz se não se garante ao mesmo tempo a justiça. Juntamente
com a soberba de uma humanidade que se sente dona indiscutível da natu-
reza, aumenta a sensibilidade perante o meio ambiente, o respeito por ele e
a consciência de formar parte dele. Juntamente com o uso massificado e
passivo dos meios de comunicação, aumenta o desejo de formas de ex-
pressão que dêem espaço à criatividade e à imaginação pessoal.
Portanto, a nossa tarefa deve ser a de homens e mulheres que, tendo
em Cristo uma esperança que não pode defraudar, sabem indicar aos seus
irmãos e irmãs as luzes que guiam até ao Salvador. Portanto, devemos sa-
ber ler os sinais dos tempos em diálogo contínuo com a Palavra de Deus,
pois ―a verdadeira profecia nasce de Deus, da amizade com Ele, da escuta
atenta da sua Palavra nas diversas circunstâncias da história. O profeta
sente arder no seu coração a paixão pela santidade de Deus e, depois de ter
acolhido a Palavra no diálogo da oração, proclama-a com a vida, com os
lábios e com os factos, tornando-se porta-voz de Deus contra o mal e contra
o pecado‖ (VC 84b).
Por isso não podemos descuidar a qualidade da nossa vida fraterna que
contém a força de ser profecia autêntica de um mundo renovado, sinal certo
de esperança para um futuro mais humano (cfr. VC 85), como aconteceu no
princípio do movimento franciscano e clareano quando, tendo abandonado
tudo, aqueles homens e mulheres começaram uma experiência de vida que
continua a fascinar ainda hoje com a transparência da sua mensagem evan-
gélica.
Guardar e testemunhar esta esperança é o maior serviço que podemos
prestar aos homens do nosso tempo; mas para poder fazê-lo é preciso saber
abandonar tudo cada dia para seguir Jesus pobre e crucificado. Só sendo
autenticamente livres das lógicas do mal que ameaçam a nossa sociedade,
só despojando-nos continuamente de nós mesmos para recomeçar a partir
de Cristo, só se tivermos a força de sair dos nossos conventos para ir, des-
armados, ao encontro dos nossos irmãos, seremos testemunhas credíveis do
amor que nos foi dado e, então, como nos ensina a Igreja, na nossa vida
encontrará ―novo impulso e força o anúncio do Evangelho a todo o mundo.
Com efeito, são necessárias pessoas que apresentem o rosto paterno de
Deus e o rosto materno da Igreja, que dêem a vida para que os outros ten-
ham vida e esperança‖ (VC 105b).
47
Gostaria de concluir esta intervenção com a ―confissão de esperança‖
da exortação apostólica Ecclesia in Europa, que, parece-me, alcança o an-
seio, presente no coração de cada um de nós, de que o Reino, cujo aconte-
cimento estamos a celebrar nestes dias, possa difundir-se e chegar a todos
os homens e mulheres: ―Tu, Senhor, ressuscitado e vivo, és a esperança
sempre nova da Igreja e da humanidade, tu és a única e verdadeira espe-
rança do homem e da história, tu és entre nós a ‗esperança da glória‘ (Col 1,
27) já nesta vida e também para além da morte! Em ti e contigo podemos
alcançar a verdade, a nossa existência tem um sentido, a comunhão é possí-
vel, a diversidade pode transformar-se em riqueza, a força do Reino já está
a agir na história e contribui para a edificação da cidade do homem, a cari-
dade dá valor perene aos esforços da humanidade, a dor pode tornar-se sal-
vífica, a vida vencerá a morte e a criação participará da glória dos filhos de
Deus‖ (EiE 18b).
49
O DECLÍNIO FRANCISCANO NO OCIDENTE:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE
Fr. Luís Oviedo*
—————
*
Artigo publicado na VITA MINORUM revista di spiritualità e formazione
interfrancescana, Janeiro-Fevereiro de 2000, pp. 35-60. Trad. Cadernos de Espiritualidade
Franciscana.
50
O DECLÍNIO FRANCISCANO NO OCIDENTE:
Uma proposta de análise
Não tem havido muito empenho em analisar as causas da crise actual
de crescimento que sofre a Ordem Franciscana – tal como outras ordens –
nas sociedades mais avançadas e secularizadas, nem em buscar soluções1
.
Dispomos de algumas hipóteses de explicação deste panorama desolador,
mas falta-nos uma visão suficientemente ampla, baseada em dados empí-
ricos, de molde a compreender como a grande parte dos grupos religiosos
se afundou no ambiente moderno e secular, e porque estas dificuldades
afligem de maneira particular as Ordens tradicionais, salvo alguma ex-
cepção significativa. Excluímos desde já a tese segundo a qual a seculari-
zação moderna compromete todas as iniciativas religiosas; experiências
positivas em curso, constituem um antídoto contra o derrotismo geral.
Podemo-nos socorrer de muitas perspectivas para levar a cabo o nosso
intento. A sociologia das religiões, no seu desenvolvimento mais recente,
pode-nos fornecer, melhor que qualquer outra teoria, os instrumentos de
diagnóstico e sugestões para possíveis paliativos. É certo que se trata de um
ponto de vista parcial (como é qualquer ponto de vista), mas estou conven-
cido que nos pode oferecer informações suficientes e elementos para esti-
mular uma reflexão.
Convém reconhecer que o caminho proposto suscita graves problemas,
sobretudo por causa da dificuldade que acompanha a teoria social, conside-
rada por muitos «intrinsecamente social». Não é este o lugar para debates
—————
1
O único exemplo que conheço, refere-se às ordens religiosas em geral: P. WITTBERG,
The Rise and Fall of Catholic Religious Orders: A Social Movement Perspective (State
University of New York Pr. 1994): concentra-se nos aspectos ideológicos que motivam e
mantêm um ―movimento de virtuosos‖.
51
tão complexos; permanece válido, todavia, o método sociológico ao menos
para dar o mínimo de esclarecimentos sobre alguns dos nossos problemas.
Em todo o caso estamos dispostos a assumir um risco: o trabalho tem so-
bretudo um carácter explicativo, e pode servir ainda de modelo para uma
aplicação prática, mesmo para outros casos.
As explicações propostas devem juntar-se a outras, habituais entre nós
– mais de índole ―espiritual‖ – relacionadas com a fidelidade pessoal e co-
munitária aos ideais evangélicos que professamos. Não é minha intenção
negar a validade e a capacidade de denúncia crítica que estas percepções
têm; só desejaria complementar a partir de outra perspectiva, até porque,
em especial a vida religiosa vivida com sinceridade e generosidade não
basta para analisar os graves problemas que temos pela frente. Estou con-
victo que, se queremos compreender e resolver certos problemas caracte-
rísticos da nossa forma de vida, é necessário um aprofundamento pela via
da ―reflexão‖: a boa intenção e o bom exemplo não são suficientes para
orientar a acção duma instituição da dimensão da Ordem Franciscana. De-
sejaria prevenir contra um voluntarismo que no fim dá resultados escassos,
como também contra um certo ―abandono à providência‖ que atraiçoa o
sentido cristão da Providência.
1. O QUE HÁ DE NOVO E DE ÚTIL NA SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO
Desde há muito tempo que nos habituamos a compreender o papel da
religião na sociedade no âmbito da assim chamada ―teoria da seculariza-
ção‖. Duma maneira geral reinava a convicção de que a fé religiosa e a sua
forma institucional entrou numa fase de decadência, submetida à dinâmica
da ―superação‖ e da emergência social, privada do influxo puro a nível da
consciência pessoal. Para os mais extremistas o desenvolvimento descrito
poderia levar à extinção da maior parte das formas religiosas. A única espe-
rança reservada aos crentes seria transformar, com coragem e redimensio-
nar os conteúdos considerados propriamente ―espirituais‖ e partir para ou-
tro tipo de ―prestações‖ da vida cristã: o serviço social e político, a di-
mensão ―terapêutica‖ da fé, assinalando os motivos estéticos e existenciais,
abandonando, se necessário, os dogmas e valores tradicionais.
A situação mudou nos últimos anos. No último decénio os especialis-
tas que ―observam‖ as dinâmicas e os influxos do ambiente religioso na
sociedade moderna advertem que, antes de tudo, não é verdade – como
afirmava a teoria da secularização – que, quando uma sociedade se desen-
52
volve e se moderniza, o resultado é a diminuição e o desaparecimento da
religião (o exemplo norte americano é o mais claro); em segundo lugar,
nem todos os grupos religiosos sobrevivem no novo contexto, que favorece
alguns e penaliza outros, que ficam para trás nesta espécie de competição;
isto porque a influência de outros factores na sociedade continua a pesar,
como se viu no caso do comunismo.
A sociologia das religiões, teve que recorrer a outras estratégias para
compreender o fenómeno, uma vez que a teoria da secularização tinha per-
dido a sua capacidade de explicação. Finalmente foram adoptadas a se-
guintes estratégias: o modelo económico da ―escolha racional‖ e o da ―teo-
ria da organização‖. Tanto num como noutro caso, a teoria procura com-
preender, como num contexto altamente concorrencial, há umas entidades
que prosperam e outras que vão à falência e há certas organizações que re-
sistem à erosão do tempo e outras que se dissolvem depois das primeiras
dificuldades.
No primeiro caso o instrumento conceptual mais usado na assim cha-
mada ―escolha racional‖ (em inglês: rational choice), compreende a maior
parte dos processos económicos: tanto na perspectiva da oferta como na da
procura, cada um dos actores ou a corporação tenta obter o máximo de
vantagens com o mesmo esforço. Ser ―racional‖ neste caso significa fazer a
escolha que permite melhorar a própria situação. Não só no campo econó-
mico, mas também noutros campos se provou as vantagens de utilizar este
critério de ―racionalidade‖: na política, nas relações pessoais e até nas reli-
giões, susceptíveis de ser analisadas como uma relação de oferta e procura,
numa situação de ―falso mercado‖2
.
A perspectiva que oferece a ―teoria da organização‖ é ligeiramente di-
ferente: o objectivo é apontado sobre a estratégia que favorece a sobre-
vivência e o crescimento de uma instituição no tempo, malgrado a tendên-
cia de entorpecimento (ou de perca progressiva de energia) que leva depois
à dissolução do colectivo. São seguramente factores positivos e negativos
que interferem no sucesso duma organização, não sendo fácil, neste caso,
falar de ―racionalidade organizativa‖, porque muitas vezes a sua lógica é
distinta daquela que se verifica no comportamento racional atrás descrito.
—————
2
L.A. YOUNG, Rational Choice Theory and Religion (New York – London 1997); L.R.
IANNACCONE, Introduction to the Economics of Religion, Journal of Economic Literatur 36
(1998) 1465-1496.
53
Não podemos ignorar que os ―modelos de análise‖ propostos são par-
ciais e objecto de crítica e de discussão entre os especialistas. De facto não
é difícil provar um certa diferença, por causa de orientações fortemente
egoístas, que exibe a teoria da ―escolha racional‖, uma perspectiva que
deixa sem explicação as condutas mais altruístas em favor do próximo.
Devo admitir que a aplicação deste modelo de análise à instituição re-
ligiosa deixa perplexidade e suspeita, sobretudo quando se quer equiparar
as dinâmicas que presidem à escolha no campo religioso a um cálculo de
vantagens e proveitos, reduzindo as relações entre grupos religiosos a um
―mercado‖ onde tudo concorre para conseguir o maior número de clientes.
É óbvio que o fenómeno religioso não se esgota em considerações deste
género; aqui entram sempre elementos de outra ordem: a pertença a tradiç-
ões vividas, convicções profundas e outros factores dificilmente sujeitos a
tais ―racionalizações‖3
. Muitas vezes os modelos propostos mostram-se
muito fecundos – como mais tarde se verá – e capazes de compreender o
actual panorama religioso, permitindo assim superar a teoria da seculari-
zação, os complexos e os desânimos por ela provocados.
Infelizmente os protagonistas da vida eclesial interiorizaram a ideia de
que no mundo moderno a fé religiosa estava condenada à irrelevância. O
―dogma sociológico‖ da secularização proporcionou a lógica da ―profecia
auto aplicada‖, na medida em que expoentes do clero e da actividade pasto-
ral se tornaram de modo incansável ―agentes de secularização interna‖:
quanto mais se acentuava o carácter inconsistente daqueles diagnósticos,
mais se acomodavam vários sectores da vida eclesiástica a este panorama
de crise, em vez de tentar opor-se a estas tendências que apontam para a
dissolução. O problema é que muitos davam como adquirido a perda de
interesse em relação à dimensão religiosa e quiseram encontrar o signifi-
cado do cristianismo algures (causas morais, ecológicas e culturais) na ten-
tativa disparatada de conter os danos. Hoje sabemos que uma boa parte da-
quela teoria tinha matrizes ideológicas e que não se preocupava muito em
—————
3
M. Chaves, On the racinal Choice, Journal for the Scientific Study of Religion 34 (1995)
84-104; Rationality and the Framing of Religious Choices, Journal for the Scientific Study of
Religion 35 (1996) 128-144. Pode-se ver alguma crítica na resposta da parte de L.R.
IANNACCONE, Second Thoughts. A Response to Chaves, Demerath and Ellison, Journal for
the Scientific Study of Religion 34 (1005) 113-120; e a continuação do debate com a resposta
de R. FINKE-R.STARK, Religious Choice and Competition, American Sociological Review 63
(1998) 761-766.
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  • 2. 4 Índice O ROSTO DE JESUS EM SANTA CLARA PROJECTADO NO NOSSO MUNDO Fr. David de Azevedo ofm A IRMÃ MORTE NOS ESCRITOS DE SANTA CLARA (Nos 750 anos do seu passamento) Ir. Maria V. Triviño, osc A IRMÃ MORTE NOS ESCRITOS DE SANTA CLARA (Nos 750 anos do seu passamento) Ir. Maria V. Triviño, osc SER FRANCISCANOS E FRANCISCANAS HOJE *Fr. José Rodríguez Carballo, ofm Ministro Geral O DECLÍNIO FRANCISCANO NO OCIDENTE: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE Fr. Luís Oviedo Documentos A Pobreza, Carisma Capuchinho Mensagem de João Paulo II aos Capuchinhos italianos pela ocasião do ―Capítulo das Esteiras‖
  • 3. 5 I — Estudos O ROSTO DE JESUS EM SANTA CLARA PROJECTADO NO NOSSO MUNDO Fr. David de Azevedo ofm* ————— * Conferência proferida no dia 4 de, no Mosteiro de S. Miguel das Aves, no âmbito das "Jornadas Clarianas", lá realizadas.
  • 4. 6 O ROSTO DE JESUS EM SANTA CLARA PROJECTADO NO NOSSO MUNDO Celebramos os 750 anos da morte de Santa Clara e da aprovação da sua Regra, respectivamente em 11 e 9 de Agosto de 1253. Dois aconteci- mentos dignos de memória solene para a humanidade, porque Santa Clara é figura de destaque na galeria das mulheres mais ilustres da história; e a sua Regra, como experiência do Evangelho, define uma filosofia de vida de importância decisiva para o a realização do homem como homem. Escolhemos como tema o Rosto de Jesus em Santa Clara, porque o rosto é a presença da pessoa e o relacionamento interpessoal é central na vida de Clara e indispensável para que a vida do homem seja um vida ver- dadeiramente humana. O Capítulo Geral da Ordem Franciscana celebrado em Madrid em 1973 promulgou um documento intitulado Declaração so- bre a vocação da Ordem nos Dias de Hoje. No parágrafo quinto estabelece: "No coração da vida franciscana encontra-se a experiência de fé em Deus no encontro pessoal com Jesus Cristo"1 . A afirmação vale com igual pre- cisão para a espiritualidade clariana. No coração da espiritualidade de Santa Clara está uma experiência singular de fé em Deus, no encontro pessoal com Jesus. Tudo brota desse encontro. Vamos, pois, considerar, primeiro, a centralização de Clara no rosto de Jesus; depois, seu enamoramento e amor esponsal; e, finalmente, dois traços do rosto de Jesus. I – CENTRALIZADA NO ROSTO DE JESUS Sua Santidade o Papa João Paulo II na carta apostólica No Início dum Novo Milénio, depois de recordar a celebração do ano jubilar, ao voltar-se para o futuro, para o novo milénio, apresenta como título da sua reflexão, a ————— 1 – Declaração sobre a Vocação da Ordem nos dias de Hoje, Ed. Franciscana, Brga 1973, p. 11
  • 5. 7 expressão: Um rosto a Contemplar. É um título singularmente feliz porque dum significado crucial para a vida cristã. O que é decisivo nesta não são comportamentos impessoais: a crença num determinado elenco de doutri- nas, a observância dum código de normas morais, fosse ele o mais sublime, ou a proposta duma filosofia política capaz de construir um mundo ideal; mas sim a relação do homem com Deus – que é pessoa – e a relação do homem com o homem – que pessoa é também. Só quando as relações entre os homens forem autenticamente inter-pessoais, é que o homem estará no seu "habitat" próprio. É essa a grande prioridade do novo milénio. Santa Clara está nesta corrente. A vida da irmã clarissa tem alguns tra- ços configuradores: a contemplação, a fraternidade, a igualdade, a pobreza, a clausura, o silêncio, a vida comunitária e outros, mas as irmãs não vivem para isso. Vivem para Jesus. Tirem Jesus da vida delas e que é que fica?… No seu Testamento – escrito talvez em 1247, como forma de acentuar o seu carisma em contraste com a regra proposta por Inocêncio IV – Clara, de- pois de proclamar a sublimidade da vocação clariana, afirma: "O Filho de Deus fez-se nosso caminho (cf. Jo 14-16), como nos mostrou e ensinou pela palavra e exemplo o nosso bem-aventurado pai S. Francisco, seu apaixonado imitador" (Ibd. 5). O Filho de Deus fez-se nosso caminho en- quanto centro de amor, como indicia o adjectivo " apaixonado". Francisco foi imitador, porque antes foi apaixonado. Mais à frente Clara recomenda as suas irmãs à protecção da Igreja e do Cardeal Protector, "a fim de que, por amor daquele Senhor que foi reclinado pobre no presépio, pobre viveu no mundo e nu ficou sobre o patíbulo, se dignem conduzir o pequenino re- banho que, na sua Igreja santa, o Senhor Pai gerou com a palavra e exem- plo do bem-aventurado Pai São Francisco" (TCl 45-46). Note-se a emoção e encanto com que Clara se refere "àquele Senhor que foi reclinado no pre- sépio, pobre viveu no mundo e nu ficou na patíbulo". Não a comovem a pobreza e a humildade como virtudes ascéticas, mas sim "aquele Senhor", no presépio, na vida e na Cruz. Na Regra é de novo a pessoa de Cristo que aparece no centro: "A forma e vida da Ordem das Irmãs Pobres que S. Francisco instituiu é esta: Observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade (cf Mat 19,22)" (RCl 1-2). A forma e vida das Irmãs Pobres não é outra senão con- templar Nosso Senhor Jesus Cristo e torná-lo presente, como num espelho, pela observância do santo Evangelho. Por seu lado, S. Francisco diz no seu Testamento: "E, depois que o Senhor me deu o cuidado dos irmãos, nin- guém me ensinava o que devia fazer; mas o mesmo Altíssimo me revelou que devia viver segundo a forma do Santo Evangelhos" (T 14). Francisco
  • 6. 8 saltou sobre todas as formas tradicionais de vida religiosa que lhe eram propostas (cf. LP 114), para se fixar directamente e só no Evangelho. E fê- -lo não porque considerava o Evangelho a única proposta religiosa e polí- tica capaz de renovar a Igreja e de converter a sociedade de então, mas por- que estava enamorado de Jesus e o Evangelho era para ele Jesus. Esta centralização na pessoa de Jesus é ainda mais forte nas cartas de Clara a Santa Inês de Praga. Na primeira, depois de lembrar a possibilidade que Inês teve de aceitar casamento com o Imperador, diz com encanto: "Mas a tudo isso renunciastes. Antes preferistes abraçar com todo o afecto de alma e coração a santíssima pobreza, escolhendo um esposo de lin- hagem mais nobre, o Senhor Jesus Cristo, que guardará imaculada e incó- lume a tua virgindade. (E continua em jeito de hino): Amando-O sereis casta, abraçando-O, ficareis mais pura, acolhendo-O, sereis virgem. O seu poder é mais forte, a sua generosidade, mais excelsa, o seu aspecto, mais formoso, o seu amor, mais suave e as suas graças, de maior encanto". (1CCl 6-9). Na segunda carta, advertindo Inês contra as pressões que havia contra a opção pela pobreza absoluta, encoraja-a: "Esta é aquele perfeição pela qual o Rei dos céus se unirá a ti na mansão celeste, onde reina sentado num trono de estrelas. Pois que desprezaste a glória da realeza terrena, e renun- ciaste às delícias dum casamento imperial, tornaste-te imitadora da altís- sima pobreza e em espírito de grande humildade e caridade, seguiste as pe- gadas daquele que te achou digna para esposa" (2CCl 5-7). E mais à frente: "Antes, como virgem pobre, abraça a Cristo pobre. Contempla-O despre- zado por teu amor e segue-O tornando-te desprezível por Ele neste mundo. Contempla, nobre rainha, o teu Esposo. Sendo o mais belo dos filhos dos homens (cf Sl 44,3) transformou-se, para tua salvação, no mais desprezível dos mortais" (Ibid. 17-20). O mesmo enlevo na terceira carta: "Alegra-te, tu também, em Cristo (Fl 4, 4) caríssima e não te envolva qualquer névoa de amargura, dilecta Senhora em Cristo, alegria dos anjos e coroa das irmãs. Fixa o teu olhar no espelho da eternidade, deixa a tua alma banhar-se no esplendor da glória e une o teu coração Àquele que é a encarnação da essência divina, para que,
  • 7. 9 contemplando-O, te transformes inteiramente na imagem da sua divindade. (…) Ama, repito, aquele Filho do Deus Altíssimo, nascido da Virgem, que o concebeu sem deixar de ser virgem" (3CCl 11-17). Na quarta carta, depois de felicitar Inês por ter desposado o Cordeiro de Deus, deixa o coração transbordar: "Feliz daquela a quem foi dado gozar desta íntima união, e que aderiu com todas as fibras do seu coração Àquele cuja beleza é contemplada por todos os santos do exército celeste, cujo amor nos encanta, cuja contemplação nos vivifica, cuja bondade e benignidade nos basta, A sua doçura satisfaz-nos plenamente e a sua recordação ilumina-nos com suavidade. O seu amor ressuscita os mortos, e a sua visão beatífica santifica os habitantes da Jerusalém celeste. Ele é o esplendor da eterna glória, a luz da eterna luz, o espelho sem mancha (cf Sb 7,20). (4CCl 9-14). Perdoe o leitor tão longas citações, mas pareceu-nos não dever privá-lo de saborear o encanto e poesia de Clara. Alem disso, este encanto mostra bem que a relação era de Esposo-esposa, e não qualquer função de caracter utilitarista. Terá esta centralização na Pessoa de Jesus algum sentido para hoje?… Não será preciso demonstrá-lo. A vida dos humanos na actualidade situa-se quase totalmente no campo da economia: produção, eficácia, profissiona- lismo, competição, consumo, negócios, grandes empresas, grandes fábricas, grandes superfícies comerciais, lutas laborais, jogos de bolsa, grupos finan- ceiros, etc., etc.. Jesus disse: "Já não vos chamo servos, mas amigos". Quando chegará o dia em que as relações dos homens entre si serão preva- lentemente relações de amizade?…
  • 8. 10 II – ENAMORAMENTO E AMOR ESPONSAL Tentámos contemplar a centralização de Clara na Pessoa de Jesus, mas importa projectar mais luz sobre essa relação. O cristão pode fixar-se em Jesus duma forma interesseira. Jesus é o Redentor, porque a mentalidade está dominada pelo problema do pecado. Jesus é a Vítima de Expiação, porque predomina a ideia da justiça divina. Jesus é o Mestre, porque são necessárias normas para definir os caminhos da vida. Jesus é o Modelo, porque é necessário espevitar o zelo contra as injustiças e o fogo para a li- bertação dos oprimidos. Em todos estes casos é o homem quem está no centro. Não foi essa a posição de Clara. Jesus não está em função de Clara, nem Clara em função de Jesus. As coisas passam-se em registo diferente. Simplesmente: amar. Clara é uma flor. Clara é um fruto… simplesmente porque se sente amada e ama. As clarissas não estão em função de nada. São flores, são uma primavera… simplesmente porque se sentem amadas e amam; e isso basta. Este enamoramento manifesta-se em duas linhas: na veemência do falar e nas imagens esponsais. Por dentro das palavras de Clara há um força incontível de encanto, de ternura e de paixão. Só algumas expressões "Observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo" (RCl 2); "Clara indigna serva de Cristo e plantazinha do bem-aventurado Francisco" (RCl 1,3); "depois que o altíssimo Pai celestial" (RCl 6, 1); "a altíssima po- breza que abraçámos" (RCl 6, 3); "em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e sua santíssima Mãe" (RCl 12, 11). Repare-se na frequência dos superlati- vos. No Testamento é a mesma melodia: "O Filho de Deus fez-se nosso caminho" (TCl 2); "Qual não deve ser a solicitude e empenho que devemos pôr em realizar, de alma e corpo, os mandamentos de Deus nosso Pai" (TCl 18); e, referindo-se a S. Francisco: o "nosso bem-aventurado Pai S. Fran- cisco"; "ele que, depois de Deus, era a nossa coluna, a nossa única conso- lação e nossa fortaleza" (TCl 38); "E eu Clara, indigna serva de Cristo e das Irmãs Pobres de S. Damião e plantazinha do santo Pai" (TCl 37); "Eis por- que, de joelhos em terra, prostrada de corpo e alma, recomendo à Santa Igreja romana… a fim de que por amor daquele Senhor que pobre foi recli- nado no presépio, pobre viveu no mundo e nu morreu na patíbulo" (TCl 44- -47). Mesmo quando não visa directamente a Jesus, e esta vibração de Clara é ressonância da ternura que tem por Ele. É ainda mais enternecido o seu sentir nas imagens esponsais que pas- samos a focar nas cartas. Sendo correspondência entre duas almas femini- nas, é natural que o falar de Clara assuma imagens do amor esponsal. Posto
  • 9. 11 que frequente na espiritualidade de então, por influxo de S. Bernardo, Guil- herme de S. Tierry e da escola de S. Victor, a beleza com que Clara o "canta" é bem pessoal dela. A palavra "esposa" referida a Inês aparece pelo menos dez vezes e o qualificativo de "esposo" aplicado a Jesus, quatro vezes, mas o fio das pa- lavras, linha após linha, é um sentir todo repassado de melodia esponsal, às vezes compondo verdadeiros hinos nupciais. Assim na primeira carta: Amando-O sereis casta, abarçando-O, ficareis mais pura, acolhendo-O, sereis virgem. O seu poder é mais forte. a sua generosidade, mais excelsa, o seu aspecto., mais formoso, o seu amor, mais suave e as suas graças de maior encanto. Ele vos segura em seus braços, e ornamenta de pedras preciosas o vosso peito, e enfeita de jóias inestimáveis vossas orelhas, e vos envolve de pérolas cintilantes, coroando-vos com a coroa de ouro, marcada pelo sinal da santidade (cf Ecl 45.14) (1 CCl 8-11) Na carta segunda: "Contempla nobre rainha o teu esposo. Sendo o mais belo dos filhos dos homens, transformou-se, para tua salvação, no mais desprezível dos mortais… Olha, medita e contempla e que o teu co- ração se inflame na sua imitação" (e logo, como eflúvio espontâneo): Se com Ele sofreres, com Ele reinarás: se com Ele chorares, com Ele exultarás; se com Ele morreres na cruz da tribulação, com Ele habitarás na glória dos santos, na mansão celeste, e teu nome será gravado no livro da vida e para sempre glorificado ente os homens" (Ap 3, 5). (2CCl 20-21).
  • 10. 12 Mais emocionada ainda a encontramos na última carta, já sobre o fim da sua vida, em 1253, em texto já citado acima. Juntando ao conceito de esposo à imagem de espelho, exorta: "Contempla diariamente este espelho, ó rainha e esposa de Jesus Cristo. (…) Neste espelho poderás contemplar, com a graça de Deus, como resplandece a bem-aventurada pobreza, a santa humildade e a inefável caridade. Contempla, no fundo deste espelho, a po- breza, pois está colocado no presépio e envolto em paninhos. Oh maravil- hosa humildade! Oh admirável pobreza! O rei dos anjos, o Senhor do céu e da terra reclinado num presépio! Ao centro desse espelho contempla a humildade e a santa pobreza. Quantas tribulações e sofrimentos não supor- tou para resgatar o género humano! E no fim deste espelho contempla a inefável caridade que o fez sofrer no patíbulo da cruz a morte mais infame. (…) (E, plena de anseios e profundo amor, põe na boca de Inês): Atrai-me a Ti e correrei ao odor dos teus perfumes, ó celeste Esposo. Correrei sem desfalecer, até que me introduzas na sala do festim, até que a minha cabeça repouse sobre a tua mão esquerda, e a tua direita me abrace com ternura e me beijes com o ósculo suavíssimo da tua boca. (cf. Ct 1,3. 2, 4-6; 1,l); (4CCl 15-32). Mais uma vez, alargando o pensamento, terá este aspecto afectivo al- guma importância para a vida social? O Pai Américo, numa festa de cari- dade em 1956, partindo do hino à caridade (1 Cor 13), gritava no cinema Tivoli: "Tirem a caridade do mundo e que é que fica?… Tirem a caridade do mundo e que é que fica?… Tirem a caridade do mundo e que é que fica?… Sem a caridade, nada presta… sem a caridade, nada vale… sem a caridade, nada dura…". Nós poderíamos dizer: Tirem a amizade do mundo e que é que fica?… Ou, melhor ainda: "Tirem a ternura do mundo e que é que fica?… Pode o mundo ter riquezas a deitar por fora… grandes viven- das… grandes palácios… etc., etc., etc., se dentro do mundo não há ter- nura?!… Teremos um mundo árido, duro e frio. Os mosteiros de clarissas deverão ser canteiros a emanar esse perfume indispensável ao homem.
  • 11. 13 III – JESUS POBRE E HUMILDE Além da natureza da relação com Jesus – uma paixão enamorada – é importante focar dois traços do rosto de Jesus, para termos uma ideia de como ele era para Clara. Em primeiro lugar, a pobreza. A linguagem es- ponsal de Clara prolonga-se nas referências à pobreza. Tanto nas Cartas como na Regra. No Testamento, dos seus 79 parágrafos, 56 são sobre a po- breza. Para compreender a pobreza, porém, importa realçar duas vertentes: a descida de Jesus e a não-propriedade. A descida de Jesus – Na pobreza de Jesus, juntamente com a pobreza material – que contempla com tanto encanto no Presépio, na vida pública e no Calvário – e mais importante ainda do que ela – Clara admira sobretudo a humildade, a descida do Verbo de Deus, do seu trono real até à pequenez do seio de Maria e à candura do presépio: "Se, pois, um tão grande Senhor desceu ao seio da Virgem Maria e apareceu desprezível, desamparado e pobre neste mundo, para que os homens, pobres desamparados e carencia- dos do divino alimento, nele se tornassem ricos, possuindo o Reino dos Céus, alegrai-vos e rejubilai, enchei-vos de grande prazer e de alegrias espi- rituais" (1CCl 19-21). Na carta segunda: "Contempla, nobre rainha, o teu Esposo. Sendo o mais belo dos filhos dos homens, transformou-se, para tua salvação, no mais desprezível dos mortais". (2CCl 20).. Na terceira: "Ama, repito, aquele Filho do Deus Altíssimo, nascido da Virgem, que O conce- beu sem deixar de ser virgem. Vive unida à Mãe dulcíssima que deu à luz o Filho que nem os céus puderam conter. E, todavia, ela o levou no pequeno claustro do seu ventre sagrado e o formou no seu seio de donzela" (3CCl 17-19). E na quarta: "Contempla, no fundo deste espelho, a pobreza, pois está colocado no presépio e envolto em paninhos. Oh maravilhosa humil- dade! Oh admirável pobreza! O Rei dos reis, o Senhor do céu e da terra re- clinado num presépio" (4CCl 19-22). Ao contemplar esta auto-humilhação, esta auto-pequenez de Deus, Clara está bem no centro do sentir de Francisco. É também assim que o Santo de Assis vê, antes de mais, a santa pobreza, contemplando os misté- rios da Encarnação e da Eucaristia. No início do opúsculo intitulado Avisos Espirituais ou Exortações, no início, digo, das suas Exortações, Francisco coloca, como pórtico de entrada, essa infinita descida do Verbo: "Por isso, ó filhos dos homens, até quando haveis de ser de coração duro? Porque não reconheceis a verdade e acreditais no Filho de Deus? Eis que Ele se humilha cada dia como quando baixou do seu trono real, a tomar carne no
  • 12. 14 seio da Virgem; cada dia desce do seio do Pai, sobre o altar, para as mãos do sacerdote!" (Ex 1ª 14-18). Na Carta a toda a Ordem, pedindo a ado- ração dos irmãos, principalmente dos que são ou desejam ser sacerdotes, para a Santa Eucaristia, exclama: "Que o homem todo se espante, que o mundo todo trema, que o céu exulte, quando sobre o altar, nas mãos do sa- cerdote, está Cristo, o Filho de Deus vivo! Oh! grandeza admirável, oh! condescendência assombrosa, oh! humildade sublime, oh! sublimidade humilde, que o Senhor de todo o universo, Deus e Filho de Deus, se humilde a ponto de esconder, para nossa salvação, nas aparências dum bo- cado de pão. Vede, irmãos, a humildade de Deus, e derramai diante dele os vossos corações; humilhai-vos também vós para que Ele vos exalte. Em conclusão: nada de vós mesmos retenhais para vós, a fim de que totalmente vos possua Aquele que totalmente a vós se dá" (CO 26-29). A Ir. Maria do Rosário, clarissa do mosteiro de Monte Real, em livro recente, escreve com profunda intuição e beleza feminina: "Clara pertence àquela estirpe de "águias imperiais" que, pairando nas alturas, fitam o sol. S. João começa a sua narrativa evangélica a partir da Fonte: "No princípio era o Verbo (…) e o Verbo era Deus…) Tudo começou a existir por meio dele e sem Ele nada foi criado. Nele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens (…) O Verbo era a luz verdadeira que, vindo a este mundo, a todo o homem ilumina. Estava no mundo, e o mundo foi feito por Ele, mas o mundo não o conheceu. Veio ao que era seu e os seus não o receberam (Jo 1, 1-11). Clara, como S. João, remonta ao Verbo no seio do Pai. É aí a gé- nese da sua Pobreza.: porque o Verbo de Deus desceu do seio do Pai e ani- quilou-se a si mesmo, fazendo-se homem – servo – por nosso amor. Deus atreve-se a descer dos Céus para lavar os pés aos homens… A Pobreza de um Deus não começa para Clara no Presépio ou em Nazaré, mas no ani- quilamento do Verbo. (…) Clara contempla, em abismos de vertigem, o Verbo incriado baixar ao seio duma Virgem que vive no anonimato… (E um pouco à frente, à guisa de conclusão): A Pobreza em Clara não é o "sustine et abstine" dos estoicos ou dos cínicos (…) A verdadeira pobreza de Clara está no interior, é a seiva da árvore que lhe dá a Vida Teologal. A renúncia à posse de bens (…) é apenas a casca da árvore"2 . A pobreza é, pois, uma realidade teologal. É preciso distinguir no Evangelho a superfície – que neste caso seria a pobreza material – e as funduras do Mistério que nos dão o significado teológico da mesma. ————— 2 – MARIA DO ROSÁRIO F. GASPAR, Clara – a constelação e o signo, Ed.- Paulinas, 2004, p. 316 s.
  • 13. 15 Esta descida e auto-doação do Verbo – a pobreza – nasce na essência da Santíssima Trindade – que é Amor -; e define toda a lógica de Jesus. Aos discípulos que discutiam entre si sobre qual deles era o maior, Jesus contesta: "Sabeis que os chefes das nações as governam como se fossem seus senhores e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo contrário quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro seja vosso servo. Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para ser- vir e dar a sua vida para resgatar a multidão" (Mt 20, 25-28). É a definição mais perfeita da palavra "menor" que faz parte do nome da Ordem Francis- cana, Ordem dos Frades Menores. O franciscano é alguém que sente uma alergia visceral a tudo o que seja grandeza, poder, dominação, auto- -afirmação de si mesmo. Pelo contrário, sente-se como uma fonte cujo existir é todo e só oferecer continuamente sua água cristalina. Em total gratuidade e generosidade, sem um mínimo movimento de retorno ou a mais ténue intenção de sentido contrário, voltada para si mesmo. "O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir". Esta foi a pobreza de Jesus. Giovanni Miccoli, nesta linha de pensamento, depois de recordar a Carta de Francisco a Um Ministro, conclui: "A misericórdia para com os pecadores e o amor dos inimigos vão unidos à rejeição de todo o acto de violência, de poder e de domínio sobre os outros e convidam a adoptar uma lógica que constitui uma mudança total e a antítese absoluta em re- lação à lógica que domina as relações habituais entre os homens.(O su- blinhado é nosso. Fixe-se sobretudo a expressão "antítese absoluta"). E continua: "É neste contexto de ideias, exortações e de opções que se situa o augúrio da paz – "O Senhor te dê a Paz" – que caracteriza a maneira fran- ciscana de saudar. É este contexto que lhe dá o significado profundo: não se trata só do desejo de que diminuam os conflitos e contendas. Trata-se (vol- tamos a sublinhar) da vontade de se apartar da lógica do mundo, feita de possessão, de poder e de afirmação de si mesmo, como condição para rea- lizar a paz"3 . Estas palavras – que consideramos absolutamente exactas – revelam a importância do "Rosto de Cristo", visto por Clara de Assis, para o mundo de hoje. A não-propriedade – De significado semelhante e de amplitude maior ainda é o tema da "não propriedade", o não ter nada de seu, para viver sus- ————— 3 – MICCOLI G. Francisvco de Assis – Realidad y Memoria de una Experiencia Cristiana, Ed- Aranzazu, 1994, p. 79.
  • 14. 16 penso da Divina Providência. Logo no início da Regra de Clara, tal como na de Francisco, há uma palavra que surpreende. Em vez de pobreza diz sem próprio. "A Regra e vida das Irmãs Pobres é esta: observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem pró- prio, e em castidade" (RCl 1-2). A formulação habitual seria: "vivendo em obediência, em pobreza e em castidade". Porque terá Francisco, e depois Clara, substituído pobreza por sem próprio? Porque nela está a diferença decisiva entre pobreza relativa e pobreza absoluta. Nas demais ordens reli- giosas, a ordem ou mosteiro, como colectividade, mantinha a propriedade dos seus bens: terrenos e outras fontes de rendimento para garantir o sus- tento dos seus membros. Francisco nada quer ter de seu. Nem individual nem colectivamente. Nada que se lhe apresente como uma segurança dife- rente do Pai. Foi este o cavalo de batalha de Clara durante toda a sua vida, até à aprovação da sua Regra dois dias antes de morrer. Por solicitação de Roma, o mosteiro de S. Damião aceitou inicialmente a Regra de S. Bento, mas Clara logo conseguiu de Inocêncio III, em 1216, o "privilegium pau- pertatis, que era precisamente isso: não poder ter terrenos para sustento das Irmãs. Por encargo de Honório III, o Cardeal Hugolino, entre 1219 e 1221 procurou estruturar os grupos de "mulheres religiosas" que se multiplica- vam no centro e norte da Itália; e para tanto redigiu uma regra de teor cis- terciense, na qual se impunha a clausura, a dependência directa de Roma e o direito de possuir terrenos para sustento das religiosas. Em 1228, já como papa, sob o nome de Gregório IX, quis atrair S. Damião para o seu monaquismo, mas Clara resistiu. E como o ponto de maior melindre era o possuir terrenos, o Papa renovou o "privilegium paupertatis". Em 1247 o Papa Inocêncio IV publicou uma nova regra para os mosteiros hugolinia- nos; e estendeu-a a S. Damião. Mais uma vez Clara advertiu o perigo e, in- satisfeita, começou a redigir a "sua" Regra que, não obstante as pressões do papa e do cardeal protector, acabou por ver aprovada pelo mesmo Inocên- cio IV, em 9 de Agosto de 1253, dois dias antes morrer. Deste problema aparecem indícios bem claros no Testamento e na Regra. No Testamento (1247): "Se para salvaguardar a dignidade e isolamento do mosteiro se achar conveniente em determinada altura, adquirir terrenos fora da horta, não se adquira mais do que o absolutamente necessário. E de maneira nen- huma se cultive ou se semeie este terreno, antes se deixe baldio e inculto" (TCl 54-55). E na Regra (1253): "Por isso, não recebam, por si ou por interposta pessoa, algum domínio ou propriedade, ou alguma coisa que ra- zoavelmente possa ser considerada como tal. Só podem ter aquela porção de terra que honestamente se achar necessário para decoro e isolamento do
  • 15. 17 mosteiro, a qual não poderá ser cultivada senão como horta para satisfazer as necessidades da comunidade" (RCl 12-14). Admite que haja algum ter- reno, mas não para garantir sustento das Irmãs, mas somente para salva- guardar a dignidade e isolamento do mosteiro. Porquê esta resistência? Porque Jesus dissera: "Olhai as aves do céu: não semeiam, nem ceifam., nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai do céu alimenta-as. Não valeis vós mais do que elas? (…) Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam. Pois eu vos digo: Nem Salomão em toda a sua mag- nificência, se vestiu como qualquer deles" (Mt 6, 26-29). E ainda: "As ra- posas têm tocas e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça". Clara queria existir como Jesus: existir entre- gue à Providência divina. Ser como um dom de Deus que nos faz existir como a corrente eléctrica mantém iluminada a lâmpada suspensa no tecto. Ser alimentada dia a dia pelo Pai do céu que inspira a caridade dos irmãos. Um mundo de confiança, de gratidão e de alegria. A pobreza absoluta tem ainda outro aspecto que a liga à humildade e à fraternidade. Não propriamente pela partilha de bens, como se compreende habitualmente, mas pelo respeito ante a liberdade de cada um. Copiando da Regra dos Frades Menores, Clara faz escrever no c. VIII da sua Regra: "As Irmãs nada tenham de seu, nem casa, nem lugar nem coisa alguma. Como peregrinas e estrangeiras, servindo o Senhor em pobreza e humildade, com muita confiança sejam enviadas a pedir esmola. E não devem ter vergonha porque também o Senhor por nós se fez pobre neste mundo. Esta é a ex- celência da altíssima pobreza que a vós, minhas irmãs caríssimas, vos constituiu herdeiras e rainhas do Reino dos Céus. Fez-vos pobres das coisas temporais mas enobreceu-vos de virtudes. Seja esta a herança que vos leve à terra dos vivos. Apegai-vos bem a elas, minhas queridas irmãs, e nen- huma outra coisa, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Santíssima Mãe, jamais queirais ter debaixo do céu". (RCl 8, 1-6). "Sola abdicatio dominii facit pauperem". Um pobre só é pobre quando não tem nada seu, quando abdica de ser dono das coisas. Quando Roma declarou que os bens que os frades usam são propriedade da Santa Sé, al- guns membros do clero secular e alguns mestres da Universidade de Paris acharamn que a solução não passava dum fingimento, "fictio iuris". Di- ziam: "Eu só posso usar aquilo que é meu… e daquilo que é meu faço o que eu quero e ninguém tem nada com isso". A reacção deve situar-se no seu contexto histórico. Não é mera questão de economia, mas de organi- zação social. Na mentalidade de então o distintivo da nobreza estava em ser
  • 16. 18 Senhor, ser Dom (D. António, D. Nuno, D. Sancho…) ter domínios, não depender de ninguém ser mais que os outros, dominar. Ora era precisa- mente isso provocava – e deve provocar sempre – uma alergia mortal no franciscano. O Capítulo Geral de 1967, que na renovação das Constituições Gerais pôs de lado as tradicionais Declarações Pontifícias e suprimiu tanta coisa, manteve, todavia, esta declaração aparentemente jurídica. É que se trata dum tema decisivo, tanto no que diz respeito a Deus: ter para com Ele uma gratidão total; como no que diz respeito aos homens: não ser mais que os outros. Todos iguais, nada de classes, nada de dominação… Era verda- deiramente revolucionário. Desmoronava a sociedade. Mas o Evangelho é isto. Se os homens de hoje se sentissem como as avezinhas do céu… que tudo recebem de Deus… sentissem que são verdadeiramente filhos do Pai celeste… que devem administrar os bens e talentos para a felicidade dos irmãos… que a circulação de bens – que chamamos comércio – é na rea- lidade uma inter-comunhão de amizade e solicitude… se não quisessem dominar ninguém… oprimir ninguém… ser mais que ninguém, mas, pelo contrário, procurassem zelar pela liberdade e felicidade todos… teríamos realizadas as utopias dos profetas. Um caso prático: o trabalho. S. Francisco disse: "os irmãos trabalhem fiel e devotamente (…) não por causa da co- biça do preço do trabalho, mas para dar bom exemplo e repelir a ociosi- dade". Hoje, em vez de "dar bom exemplo e repelir a ociosidade", diría- mos: para fazer a felicidade de todos, principalmente dos mais carecidos. Paradoxal! Não é o salário que importa!… Mas colaborar para a felicidade dos outros!… E S. Francisco continuava: "e quando não lhes derem o preço do trabalho, recorram "mesa do Senhor", pedindo esmola de porta em porta" (T 20-22). Pedir esmola é uma possibilidade extrema. Hoje, a "mesa do Senhor" seria a inter-comunhão de amizade e a solicitude mútua, nas- cida da alegria ver os outros felizes". Fazer do mundo uma "mesa do Sen- hor, fazer do mundo uma família de irmãos, eis um desafio, para todos nós, do Rosto de Jesus em Santa Clara.4 ————— 4 – Reflexões mais extensas sobre estas projecções da espiritualidade franciscana nos grandes temas da vida humana, pode encontrar em DAVID DE AZEVEDO, OFM, Francisco de Assis, Fé e Vida, 2ª Edição, Ed. Franciscana, Braga, 2003.
  • 17. 19 A IRMÃ MORTE NOS ESCRITOS DE SANTA CLARA (Nos 750 anos do seu passamento) Ir. Maria V. Triviño, osc* ————— * Artigo publicado nas Selecciones de Franciscanismo, nº 97, 2003.
  • 18. 20 A IRMÃ MORTE NOS ESCRITOS DE SANTA CLARA (Nos 750 anos do seu passamento) A morte é uma realidade a que ninguém consegue subtrair se. O que se disse de Moisés, que partiu deste mundo pelo caminho que todos se- guem (Dt 34,5) dir-se-á de todos os que chegámos e hão-de chegar à vida. É fácil filosofar acerca da morte. Podemos entrar em reflexões teológicas, e é esse, de facto, o objecto duma parte da dogmática que estuda os novíssimos, a escatologia. A morte é a fronteira, a porta, a passagem de um a outro estado de que só temos notícia pela revelação "Creio na ressurreição dos mortos e na vida eterna". É esta a nossa fé. Aquilo que esperamos. E quando a fé se funda- mentar na visão, e a esperança se diluir na posse, permanecerá sempre o amor. A vida eterna decide-se no juízo graças a uma iluminação que há-de permitir o conhecimento sem véus de Deus e da própria consciência. Na reflexão medieval sobre a morte fazem-se duas propostas: uma ne- gativa, que pretende mover à conversão pela consideração da brevidade da vida, da caducidade dos bens terrenos, da angústia da agonia, da corrupti- bilidade, etc…; outra positiva, que alimenta a esperança cristã na bem- -aventurança eterna, no gozo da ressurreição da carne. Destes dois aspectos se extraía um ensinamento para viver no Bem, e a serenidade para morrer em Paz. Santa Clara escutou e meditou, sem dúvida, aquilo que no seu tempo se ouvia a respeito da morte. Porém, quando sobre ela exorta e escreve, pa- rece não ter em conta os aspectos negativos. Ao acompanharmos Clara de
  • 19. 21 Assis nos 750 anos da sua morte, o percurso que vamos seguir é o da fran- ciscana humildade e simplicidade, da pobreza e obediência, a via da Beleza e da contemplação transformadora, que faz da morte um encontro desejado e jubiloso. São Francisco chamou "irmã" à morte e, exultando, acolheu-a entre louvores. Clara recebeu-a dando graças ao Pai pela esmola da vida. Para que também assim a vejamos impõe-se-nos encontrar a chave da santa po- breza, do despojamento, da humildade original. Aquilo, numa palavra, que Leclerc chama "um coração leve". Desgraçadamente, porém, "o homem moderno tem o coração pesado. Percorrendo sofregamente os caminhos do poder, o coração torna-se-lhe cada vez mais pesado. Tenhamos a coragem de reconhecer: nem temos leve o coração, nem sabemos o que isso seja". Cristo disse: "Vinde a Mim todos os que andais afadigados e sobrecarrega- dos e Eu vos aliviarei" (Mt 11, 28-30). Ele tirou de cima de nós a pesada lousa que nos oprimia na caminhada e nós apressámo-nos a carregar nova- mente com ela. Um coração leve – como o que vemos claramente em Francisco de Assis – retira toda a sua força e serenidade do relacionamento íntimo com a fonte da vida e do ser. Uma relação de carácter, que lhe permite comportar- -se tal qual a criança em presença do último segredo das coisas e encontrar a felicidade no seu Criador. Daí essa segurança última na existência que não se deixa perturbar com coisa alguma. Daí também essa feliz confiança, essa divina alegria de existir. "Obrigado, Senhor, por me terdes criado", exclamava Clara pouco antes de morrer. Esta expressão de Clara é um eco fiel do cântico de Fran- cisco. Seria inútil procurar nesse cântico o mais ténue vestígio de angústia, mesmo perante a morte. Nele só brilha o esplendor da manhã, à hora do sol nascente, quando o orvalho ainda não apresenta vestígios de qualquer pas- sagem1 . Nos seus escritos, Clara fala da morte onze vezes. É quanto nos basta para seguirmos o seu pensamento, uma vez que tais referências são bastante uniformes e espaçadas no tempo. ————— 1 LECLERC, E., Desponta o Sol em Assis, EF, Braga, 1999, p. 158
  • 20. 22 Podemos abrir dois apartados nestes seus textos: os que contemplam a morte do Filho de Deus e os que se referem ao instante da morte de Fran- cisco e de Clara. 1. JESUS MORREU POBRE E DESNUDO Chegou o momento em que, para Clara de Assis, a reflexão sobre a morte corporal se dilui na contemplação da morte do Filho de Deus. Morrer será fitar os olhos no divino amante Crucificado, obediente, desnudo, ren- dido… e com ele morrer num lance de total entrega, de obediência, de desapropriação, de amor esponsal. "E no fim deste espelho contempla a inefável caridade que O fez pade- cer no patíbulo da cruz a morte mais infame" (4CCL 23)2 . Por penosas que sejam as circunstâncias que acompanhem a agonia, nada pode ser considerado bastantemente humilhante e doloroso quando vemos o Filho de Deus morrer da morte mais infame. Sabemos que quando Frei Reinaldo, ao acompanhar Clara na sua agonia, "a quis exortar à paciên- cia, ela respondeu-lhe com toda a franqueza: ‗Querido Irmão, desde que me foi dado conhecer a graça do meu Senhor Jesus Cristo por meio do seu servo Francisco, nenhuma pena me foi molesta, nenhuma penitência me pareceu severa, nem nenhuma doença me foi difícil de suportar" (LCl 44). A graça começou a transformar Clara desde que conheceu Francisco nos alvores da remota juventude. Agora, ao chegar ao derradeiro momento, bem podiam os jograis de Francisco cantar-lhe a última estrofe do Cântico das Criaturas: "Felizes os que aceitam em paz a dor, porque chegou para eles o tempo da consolação". Já não havia para Clara pena suficientemente molesta, ou amargura bastantemente amarga que não se transformasse em doçura. Essa confissão da Senhora Pobre, providencialmente preciosa para conhecermos a sua for- taleza de ânimo e os frutos de tão porfiada contemplação do Espelho da eternidade, temos que a agradecer à solicitude loquaz de Frei Reinaldo. "Varão piedoso" era ele, mas, em vez de lhe dar consolação em transe tão ————— 2 As citações são feitas a partir das FONTES FRANCISCANAS II – SANTA CLARA DE ASSIS, ESCRITOS, BIOGRAFIAS, DOCUMENTOS, EF, Braga, 1996
  • 21. 23 difícil como fez frei Junípero, "molestava-a com palavras supérfluas" (cf. LCL 45). Jesus é o Espelho da eternidade onde Clara, nele reflectida, busca a vera efígie divina e tenta a sua semelhança com Ele. É o Espelho em que anseia transfigurar-se por inteiro, em perfeita sintonia e comunhão. Consta o Espelho de três partes ou momentos e neles se contempla o mistério de Cristo: no começo o nascimento do Senhor pobre, em Belém; no centro a vida pública; no fim a morte e ressurreição. Quando Francisco e Clara repetiam uma e mil vezes: "Tu és Humil- dade", repeliam energicamente de si mesmos a veleidade de serem alguma coisa, a fim de que a humildade do Filho de Deus pudesse encher por com- pleto todos os escaninhos de suas almas. Quando diziam: "Tu és Paciência", parecia-lhes impossível haver no mundo pena alguma que não pudessem suportar em paz. Quando diziam: "Tu és Doçura, tu és Mansidão‖ sentiam não haver doçura comparável à do olhar do Senhor. Nem nada tão amargo que não pudessem transformar imediatamente em doçura. E, como dizia São Leão Magno: "A amargura não é motivada pela maneira de actuar da justiça di- vina, mas da maldade humana. E neste sentido, é mais deplorável a atitude de quem pratica o mal do que a situação de quem tem de padecer por causa da maldade, porque ao injusto a malícia acarreta-lhe castigo, ao passo que a paciência do justo leva-o à glória. Aos pacíficos e mansos, aos que estão dispostos a tolerar toda a espécie de injustiça é-lhes prometida a posse da terra‖3 . E quando diziam: "Tu és Caridade, tu és Ternura" rendiam-se ao amor do Salvador, "em extremo" fascinados por Ele. E choravam todas as lágri- mas do mundo, movidos de compaixão, embriagados com a inefável ter- nura do Filho de Deus na sua paixão e na sua cruz. Se caminhar é ter os olhos, a mente e o coração fixos no Filho de Deus para nos tornarmos, como ele, pobres, humildes, amorosos, mansos… ————— 3 Sermão 95, 4-6; PL 54, 462-464. Ofício de Leituras do Sábado XXII, do Tempo Comum.
  • 22. 24 morrer que será ? É imitar o Esposo, tendo em pouca monta o sofrimento, é dar-lhe graças antegozando a proximidade do encontro: "Contempla, nobre rainha, o teu Esposo. Sendo o mais belo dos filhos dos homens, transformou-se, para tua salvação, no mais desprezível dos mortais. Morreu na Cruz, no meio dos maiores sofrimentos, golpeado e vezes sem conta açoitado em todo corpo. Olha, medita e contempla e que o teu coração se inflame na sua imitação " (2CCL 20-21). Quem, de si esquecido, perseverar nessa contemplação é levado ao abraço que identifica, como virgem pobre, é totalmente transfigurado após ter seguido a pobreza, a humildade, paciência, mansidão e doçura… do Filho de Deus. Ruminado então pela sua inefável caridade, quem com ele morrer com ele reinará. "Receberás a coroa da imortalidade" (5CCL). A morte, nos aspectos negativos, está vencida. Será qual irmã abrindo a porta da bem-aventurança. Júbilo, santidade, esplendor… para sempre! É esta, em toda a sua simplicidade, a argumentação de Clara a respeito da morte. Há um Espelho, Cristo pobre. Um espelho que urge imitar na vida e na morte. Em estreito abraço, com Ele se vive, se morre e se alcança a eterna bem-aventurança. Os braços para esse abraço transfigurados e glo- rificante são a humildade e a pobreza. Pobre, humilhado e desnudo morreu o Senhor no leito da cruz. Des- nudo, reclinado sobre a terra nua do aniquilamento e da cinza, morria Fran- cisco… Abrasado em inefável caridade, morre o Senhor. Abraçada a Cristo pobre, virgem pobre, em seráfico arrebatamento, morria Clara. 2. FRANCISCO DEIXA COMO HERANÇA A SANTA POBREZA, ANTES E DEPOIS DA SUA MORTE Outra série de textos se referem igualmente à morte de Francisco e de Clara, porém uma morte escandida em dois tempos: um "antes" e um "de- pois". De qualquer modo, o denominador comum é invariavelmente a santa pobreza do Filho de Deus que as irmãs, tanto presentes como futuras, de- vem abraçar.
  • 23. 25 a) O legado de Francisco "antes da sua morte " A influência de São Francisco não terminou com o seu passamento. Clara recorda e escreve que a vida é um caminho interior, uma evolução mística para se chegar ao abraço: "O Filho de Deus fez-se nosso caminho, como nos mostrou e ensinou pela palavra e exemplo o nosso bem- -aventurado Pai São Francisco, seu apaixonado imitador" (TCL 5). De re- sto, ele teve sempre um cuidado amoroso e a mais diligente solicitude no acompanhamento das irmãs pobres, quais senhoras suas, num caminhar que era o seguimento fiel das pegadas do Filho de Deus (1Pe 2,21, manso, humilde e pobre… Pouco antes da sua morte Francisco legou-lhes a Santa Pobreza em escrito firme e singelo. Tal como ele se comprometia a observar a Pobreza "até ao fim", isso mesmo pedia o fizessem as senhoras pobres. Clara re- colhe esse escrito e integra-o na redacção da Regra. É sua convicção que, tanto para as irmãs que puderam venerar as chagas do "verdadeiro amante do Filho de Deus", como para as que viriam depois, nada seria tão forte e aliciante como aquela exortação testamentária em forma de testemunho. “E para que nem nós, nem as que nos hão-de suceder nos desviásse- mos da altíssima pobreza que abraçámos, pouco antes de morrer, nova- mente nos escreveu a sua última vontade: „Eu, o pequeno irmão Francisco, quero seguir a vida e a pobreza do nosso altíssimo Senhor Jesus Cristo e da sua santíssima Mãe e perseverar nela até ao fim, rogo-vos, minhas sen- horas, e vos aconselho, que vivais sempore nesta santíssima vida e po- breza. E conservai-vos muito atentas para que de nenhum modo jamais vos afasteis dela, por ensinamentos ou conselhos, donde quer que venham” (RCI VI, 6 …). b) O legado de Francisco para "depois da sua morte" Francisco exortou as Senhoras Pobres a que, depois da sua morte… continuassem abraçadas à pobreza do Filho de Deus como forma de vida. Deixou muitos escritos que não chegaram até nós, ou chegaram em reco- lhas cujos destinatários ainda hoje ignoramos se eram irmãs ou irmãos. "Não contente em nos exortar durante a vida, com muitas palavras e exemplos, ao amor e observância da santíssima pobreza, deixou-nos tam- bém muitos escritos, para que, depois da sua morte, de modo nenhum nos afastássemos dela, a exemplo do Filho de Deus que, enquanto viveu neste mundo, nunca da santa pobreza se quis desviar" (TCI 34-35).
  • 24. 26 São estas as referências de Clara à morte de São Francisco. Visam ine- vitavelmente a imitação da santíssima vida e pobreza do Senhor e de sua bendita Mãe pobrezinha. Há ainda outra citação que transferimos para mais adiante pelo facto de coincidir com a própria exortação de Clara. 3. CLARA EXORTA À OBSERVÂNCIA DA POBREZA PARA ALÉM DA SUA MORTE Porém, após a morte de Francisco, irmãs houve que claudicaram des- viando-se da santa pobreza. Este facto foi ensejo para palavras de Clara em que nunca reflectiremos bastantemente e que denunciam bem a dor e de- cepção que lhe coube sofrer como fundadora e mãe. "Eu, Clara, indigna serva de Cristo e das irmãs pobres de São Da- mião e plantazinha do santo Pai, considerando com as outras minhas irmãs a sublimidade da nossa profissão e o mandato de tão grande Pai, e ao mesmo tempo a fragilidade das nossas irmãs – fragilidade que nós mesmas temíamos depois da morte do nosso Pai Francisco que, depois de Deus, era a nossa coluna, a nossa única consolação e fortaleza…" (TCL 37-38). Olhando para além do seu tempo, Clara exorta "a que, depois da minha morte… " Na verdade, morta ela, a influência da sua santidade e dos seus ensinamentos jamais se extinguiria. Como transparecendo luminosa- mente de um véu, o seu magistério continua a inspirar e a renovar a fideli- dade ao abraço de Cristo pobre. "Frequentemente renovamos a nossa adesão voluntária à nossa sen- hora, a santíssima pobreza, a fim de que, depois da minha morte, as irmãs, tanto as presentes como as futuras, de nenhum modo delas se apartem" (TCL 39). "E se acontecesse terem as referidas irmãs de deixar este lugar para se mudarem para outro, sintam-se mesmo assim obrigadas a guardar depois da minha morte, onde quer que se encontrem, a sobredita pobreza que a Deus prometemos e a nosso Pai Francisco" (TCL 52). As irmãs presentes e as que vierem na sucessão dos tempos… Todas as irmãs… em toda a parte…, quer se mantenham num mesmo lugar ou se transfiram para outro… Sempre e em toda a parte hão-de permanecer abra- çadas à Pobreza, a exemplo do Filho de Deus, segundo a forma do Evange- lho que a Igreja aprovou para Francisco e Clara.. Na vida e na morte:..
  • 25. 27 "Esta é a excelência da altíssima pobreza que a vós, minhas, irmãs caríssimas, vos constituiu herdeiras e rainhas do Reino dos Céus, fez-vos pobres das coisas temporais e enobreceu-vos de virtudes. Apegai-vos bem a ela, minhas queridas irmãs, e nenhuma outra coisa, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Santíssima Mãe, jamais queirais ter debaixo do céu" (RCL VIII,4-6). Abraçai-vos a Cristo pela altíssima pobreza que vos torna herdeiros de Deus como filhos, co-herdeiros com Cristo como irmãos e esposas. Re- serva para vós uma habitação nas moradas eternas e ofereceu amizade de gente de tão bom trato, como é os santos em sua glória. Clara conjura em nome daquele Jesus, ante cujo poder e soberania se dobram todos os joel- hos no céu, na terra e nos abismos… Nada há mais poderoso do que a humildade e a pobreza do Filho de Deus, conquanto não seja fácil anunciá-las a uma sociedade que aposta no bem-estar e na cultura do lazer. Nada há mais apetecível do que a mansi- dão, fortaleza no meio da insegurança propiciada pela violência. Para que apetecer outras riquezas? "O que se propõe e proclama em todo o orbe não é Cristo ostentando poder terreno, nem um Cristo opulento de riquezas terrenas, ou um Cristo resplandecente de felicidade terrena, mas um Cristo crucificado. Dele escarneceram povos soberbos e o mesmo continuam a fazer os que ainda hoje lhes pagam a herança. Porque quando se pregou a Cristo crucificado para que nele cressem uns quantos ante a irrisão dos po- vos, os coxos andavam, os mudos falavam, os cegos viam e os mortos vol- tavam à vida. Assim, finalmente, a soberba terrena pôde dar-se conta de não haver nada mais poderoso do que a humildade divina. E desse modo a salubérrima humildade humana pôde defender-se, por obra e graça da di- vina imitação"4 . ————— 4 Santo Agostinho, Carta 236-6, Madrid 1944, BAC 99-b, 398.
  • 26. 28 4. CLARA ABENÇOA. ―DEPOIS DA MINHA MORTE…‖ Já prestes a morrer, a Senhora Pobre avançava no tempo antes de sair do tempo. Mãe e fundadora, dispõe-se a deixar a sua bênção. Com essa bênção deseja repartir todo o bem alcançado em favor de todos os seus de- votos e filhas. Mais, teve em mente não apenas as que então estavam com ela como as que viriam depois. "Eu, Clara, serva de Cristo e plantazinha do nosso pai São Francisco, irmã e mãe vossa e de todas as irmãs pobres, ainda que indigna… vos abençoo durante a minha vida e depois da minha morte, quanto posso e mais do que posso, com todas as bênçãos que o Pai das misericórdiascon- cedeu ou venha a conceder aos seus filhos e filhas espirituais…" (BCL 6.11-12). Clara promete uma bênção que continuará actuante depois da sua morte. Por isso ela diz abençoar "quanto pode e mais do que pode". Na verdade, lega-nos uma bênção de tão longo alcance que ainda hoje, no sé- culo XXI, envolve todos os seus devotos e não apenas os seus filhos e fil- has. Tão é isto uma confissão de fé na vida bem-aventurada, na comunhão dos santos? Se alguma dúvida nos restasse sobre tão ardente fé, que se move no eixo que une misticamente os três estratos da Igreja, atentemos em como ela associa e compromete na mesma causa, na mesma bênção, todos os santos e santas. CONCLUSÃO Fascinada pela pobreza, mansidão e doçura do Filho de Deus na vida e na morte, Clara já não busca mais espelhos nem outros pensamentos a res- peito da irmã morte senão os de "morrer com Ele para com Ele reinar". Nem outra coisa sabe recomendar para além da fidelidade à imitação da humildade e pobreza do Filho de Deus "até ao fim". Esta a lição para a vida: "Abraçar a Cristo pobre como virgem pobre." Esta a lição para a morte: "Se com Ele morrermos com Ele reinare- mos." Se virmos as palavras de Clara à luz das que ela própria escreveu a sua irmã Inês: "É do agrado de Deus que eu parta…"; se, mais ainda, nos lem- brarmos as suas últimas palavras: "Obrigado, Senhor, por me terdes criado…‖ por terdes tratado de mim com a ternura duma mãe para com o
  • 27. 29 seu filhinho…, melhor veremos a unidade rectilínea de toda uma vida em que o passamento deste mundo é algo natural, previsto e ditoso. Ela sabe que, um dia, Deus a chamou pelo nome, sabe que foi criada com inefável amor durante toda a vida – uma vida que, segundo o nosso cômputo, terá totalizado 59 anos e oito meses – e que sempre caminhou com os olhos postos no Filho de Deus. Agora, a morte era como que o chamamento do divino Amante, ansioso por levá-la nos braços ao banquete das núpcias eternas. "É do agrado de Deus que eu me vá". O mesmo amor que a criou e a santificou vem buscá-la para lhe dar a plenitude do gozo, do amor e da doçura. Os olhos de Clara fecharam-se. Silenciou a água, emudeceu o vento, o fogo acolheu-se debaixo das cinzas, a mãe terra abriu-lhe os braços. As es- trelas correram o véu e ela desferiu voo para além do sol e da lua a fim de reinar para sempre. "Clara morreu rodeada pelas irmãs, pelos primeiros companheiros de Francisco e seus também, na morada onde sempre vivera. Morreu como uma rainha, ou antes, como a jovem esposa que recebe da rainha-mãe o dote desde sempre preparado para com ela reinar"5 . Clara ensina a arte de morrer com a serenidade e a doçura infinita de Deus. Clara ensina-nos a arte de morrer na infinita serenidade e doçura de Deus. ————— 5 Bartoli, M., Clara de Asís, Oñate 1992, Ed. Franciscana, p. 265.
  • 28.
  • 29. 31 CLARA, CO-FUNDADORA DO FRANCISCANISMO Fr. Isidro Lamelas, ofm* ————— * Palestra pronunciada a 25 de Junho de 2004, no Mosteiro de S. José, Vila das Aves
  • 30. 32 CLARA, CO-FUNDADORA DO FRANCISCANISMO ―Por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher‖. Se a sentença foi usada no passado e, em muitos casos, confirmada pelos fac- tos, ela é hoje menos aceite pela sua carga de preconceito… Porque há-de a mulher estar ―atrás‖? perguntam as mentes emancipadas dos nossos dias. Mas talvez já noutros tempos não fosse bem assim. Pelo menos não o é no caso de Clara e Francisco. Primeiro, porque Francisco não se assume como ―um grande homem‖, mas o ―menor e mais miserável dos homens‖, depois porque Clara não merece permanecer ―detrás‖ ou sob a sombra de Fran- cisco, como sucedeu em tempos passados (ou sucede ainda?). Bastará re- cordar que só no século XX os seus escritos foram recuperados e estuda- dos: como foi possível esconder uma tal luz sob o alqueire? E, no entanto, a riqueza do carisma franciscano só será plenamente abrangido se colocarmos Francisco e Clara não um atrás ou à frente do ou- tro, mas lado a lado ou no coração um do outro, pois ambos são parte e, com Deus, o todo de uma mesma e única aventura. Tal aventura nada tem a ver com as cores românticas com que o vulgo frequentemente pinta a re- lação entre os dois jovens de Assis. O movimento franciscano a que deram origem e continua vivo só se explica pelos alicerces bem mais profundos sobre os quais assenta. Sabemos que a vocação e o caminho de Clara nasceram e amadurece- ram na escuta de Francisco e na frequência da fraternidade minorítica pri- mitiva. Mas quantos outros e outras não escutaram Francisco? Porém, só Clara soube, como ninguém, ler no coração do Poverello e conhecer exac- tamente a sua vontade em relação aos irmãos menores assim como relati- vamente às Damas pobres de S. Damião. Clara é, sem dúvida, o espelho ou o reflexo mais lúcido do mundo interior de Francisco. Isso sucede porque
  • 31. 33 ela encontrou em Francisco algo que procurava, e alcançou porque bus- cava, isto é, tinha inquietudes e, por isso, encontrou o seu tesouro. Não sabemos ao certo de quem partiu a iniciativa do primeiro enco- ntro: de Francisco ou de Clara? Ou do Espírito? O que sabemos é que, paulatinamente, a relação entre Clara e Francisco é patenteada em dois mo- vimentos aparentemente contraditórios: de um lado o grande desejo de Clara de ver frequentemente Francisco; por outro lado, o progressivo dis- tanciamento físico de Francisco que evita cada vez mais encontrar-se com as suas ―Damas‖, sem, no entanto, alguma vez as abandonar (cf. 2C 204): ―Quando as virgens de Cristo, vindas de todas as partes do mundo, se lançavam numa vida de alta perfeição… foi-se o pai furtando pouco e pouco a visitá-las, não, todavia, sem redobrar de solicitude ao amá-las ainda mais no Espírito… Efectivamente… prometeu-lhes firmemente, a elas e às que viessem a professar o mesmo teor de vida pobre, o seu inde- fectível apoio e o dos irmãos. Enquanto viveu, manteve, sempre escrupulo- samente esta promessa, e, prestes a morrer, recomendou encarecidamente aos irmãos que tivessem por elas as mesmas atenções, porquanto, dizia ele, um só e mesmo espírito levou os irmãos e as senhoras pobres a deixarem o mundo” (2C 204). Por sua vez, S. Clara, no seu Testamento, afirma: ―Recomendo as min- has irmãs presentes e futuras ao sucessor do nosso bem-aventurado Pai Francisco e a toda a Ordem, para que nos ajudem a progredir no serviço de Deus e a observar cada vez melhor sobretudo a santíssima pobreza‖ (TCL 50-51). E, na sua Regra, ―Clara e suas irmãs prometem obediência ao bem- -aventurado Francisco, da mesma maneira promete obediência inviolável aos seus sucessores‖ (1,4). Em flagrante contradição com a Regra não bu- lada (12,1.3), Clara e suas irmãs assumem, ―livremente‖ (Regra 6,1) a obe- diência a Francisco e seus sucessores. Como vemos, há uma sintonia perfeita nas palavras e no comporta- mento. O ―amor espiritual‖ de que fala Francisco é muito mais real que qualquer outro amor, por que não é possessivo, não atrofia, não infantiliza, mas faz crescer ou ―progredir‖, como anseia Clara. Por isso, segura que estava que este era também o desejo de Francisco, tudo fará para que os frades continuem a exercer o ministério pastoral em S. Damião. E teve de lutar tenazmente para que entre as duas Ordens se mantivesse a relação mútua querida por ela como por Francisco: isto é, para que entre ambas se mantivesse a comunicação espiritual que germinou en- tre Francisco e Clara.
  • 32. 34 O verbo ―germinar‖ não vem ao acaso. A própria Mãe Clara se auto- -assume como ―plantazinha‖ de S. Francisco. Que significa este diminu- tivo? Dependência e subserviência? De modo nenhum. Uma planta, por pequena que seja, tem vida própria e não é a dimensão que garante a beleza das flores ou a qualidade dos frutos. ―Plantinha‖ de Francisco, porque muito próxima e alimentada da mesma seiva, mas com uma vida própria, com um vigor próprio e original. A ―pequena planta‖ não é mais que uma ―muda‖, isto é, um rebento que brota da seiva comum da planta matriz. Mas, uma vez despontado, este rebento cresce por conta própria, permane- cendo fiel à planta-mãe. Compreende-se que toda a planta necessita de um ―plantador‖, mas depois, torna-se autónoma, sem deixar de necessitar dos cuidados daquele. O plantador e o jardineiro é Francisco, mas foi Clara que cresceu e, à sua volta fez-se jardim. Ela aparece-nos, por isso, tão viva e tão pujante como Francisco. A metáfora da ―planta‖ traduz, pois, bastante adequadamente o vín- culo entre Francisco e Clara, entre a primeira e a segunda Ordem: as irmãs clarissas são franciscanas e não beneditinas; mas exprime igualmente a identidade e as possibilidades de desenvolvimento próprios de cada uma. Clara e sua Ordem são outra árvore que mergulha as suas raízes no mesmo solo que Francisco e produz, por isso, flores semelhantes e frutos próprios. Por isso, podemos e devemos afirmar que Clara é tão mãe da Fa- mília Franciscana quanto é Francisco seu pai. Os fundamentos da sua espi- ritualidade são comuns aos de Francisco (Jesus Crucificado, pobreza, con- templação, fraternidade), porém, Clara nunca copia, mas recria. Quer seguir à risca o exemplo de Francisco, porém, a sua imitação não é mimética mas criativa e marcada pela exuberância da sua experiência feminina de Deus. Clara e Francisco dificilmente seriam o que são um sem o outro, mas são irredutíveis um ao outro. Clara e Francisco iluminam-se e completam-se, portanto, mutuamente. E se na génese da vocação de Clara foi determinante o testemunho de Fran- cisco, no discernimento e na consolidação do posterior carisma franciscano é difícil avaliar de onde veio o maior contributo1 . Mas não nos preocupe- mos com tais comparações, pois não serão os pedestais por nós construídos que diferenciarão a sua equidistância do Sol Altíssimo. ————— 1 A sua figura como mãe do franciscanismo emerge sobretudo nos 27 anos que viveu após a morte de Francisco.
  • 33. 35 Um dos testemunhos do processo de canonização de S. Clara narra que, tendo certo frade da Ordem dos Frades Menores, de nome Estêvão, ficado doente, S. Francisco o enviou ao mosteiro de S. Damião, para que Clara fizesse sobre ele o sinal da cruz. Uma vez cumprido este desejo, o referido frade dormiu um pouco sobre o mesmo lugar onde Clara costu- mava rezar. Quando acordou, estava curado. Comeu qualquer coisa e re- gressou ao seu convento‖2 . Este episódio, confirmado por outras fontes, ilustra bem o clima de proximidade e colaboração que, por querer do próprio Francisco, vigorava entra as duas ordens. Francisco confia a Clara a cura de um irmão, porque está certo da ―força‖ de que Clara é dotada. Por outro lado, Clara e suas irmãs não poupam meios espirituais e materiais para ajudar este irmão en- fermo em hora de dificuldades. Depois da morte de Francisco, Clara continuou, durante os 27 anos de vida que lhe restaram, fiel ao primitivo ideal de Francisco, nomeadamente no que se refere às relações com a primeira Ordem. Não por acaso os mais íntimos confidentes de Francisco serão também os confidentes de Clara (cf. LCL 45). Tendo presente que estes primeiros anos do movimento fran- ciscano foram marcados por ventos e marés tempestuosos, Clara não se deixou ficar como espectadora alheia ao que ia sucedendo com o movi- mento religioso iniciado por Francisco. Na vida do beato Egídio conta-se que, em determinado dia, um douto frade foi enviado a pregar a S. Damião. Enquanto este falava, frei Egídio interrompeu-o, tomando a palavra em sua vez para pregar às sorores. O referido frade muito mais douto, acedeu humildemente a tal intromissão. O que levou Clara a exclamar: ―pareceu-me ter visto o próprio Francisco‖3 . Este episódio mostra, por um lado, que Clara continua a assegurar às suas irmãs a partilha do pão da palavra, recorrendo aos frades mais doutos; por outro lado, a presença de frei Egídio em S. Damião, dá a entender que era comum que a referida pregação fosse escutada juntamente pelos irmãos e as irmãs. Por outro lado, como o mesmo episódio parece mostrar, Clara, S. Damião e suas irmãs continuam a ser o garante da conservação da me- mória de Francisco e do franciscanismo. Como afirma Fr. Giacomo Bini, ―Francisco constitui o momento inspi- racional da comum vocação; Clara, na sua fidelidade, garante a continuação do primitivo projecto de vida de Francisco. Da clausura de S. Damião, ela e ————— 2 ProcC 2,15. 3 Dicta B. Aegidii, 73.
  • 34. 36 suas irmãs sustentam e animam os seguidores da forma de vida francis- cana‖4 Tomás de Celano, ao escrever em 1228, a primeira biografia de S. Francisco, já se refere a Clara como ―pedra preciosa e inabalável, ali- cerce para as outras pedras que se haviam de sobrepor‖ (1C 18,29). A força expressiva da metáfora arquitectónica reaparece num outro passo em que Celano se refere às origens do ―edifício espiritual‖ que Francisco e Clara erigiram a partir de S. Damião: ―Depois da restauração material da Igreja de S. Damião, um edifício espiritual muito mais precioso ia ser erguido pelo Pai naquele mesmo lu- gar, sob a conduta do Espírito Santo… como já anteriormente o Espírito Santo havia predito, devia ali ser fundada uma Ordem de santas virgens, as quais, como reserva de pedras vivas e trabalhadas, serviriam a seu tempo para a restauração da casa do céu” (2C 204). Francisco viu em S. Damião o símbolo e a realidade, o alicerce e o edifício a construir. E Clara é a pedra angular desse edifício que, sem ela, ficaria mais pobre e mais frágil. Na verdade, ela conferiu ao edifício fran- ciscano o traço artístico e a profundidade que distingue as obras de arte que Deus planeou. Enquanto o jovem Francisco incorreu na tentação de perma- necer em S. Damião, preso à sua tarefa de ―reconstrução‖, Clara guia-o para a novidade e as alturas de uma Igreja espiritual e interior. Ela é, na Igreja, a primeira mulher fundadora: deu origem a uma Ordem religiosa, deu-lhe uma espiritualidade e redigiu-lhe uma Regra, a primeira saída das mãos de uma mulher. Podemos, por isso, dizer que é ela a primeira a realizar e a mostrar o sentido do mandato: repara a minha Igreja. E, como continua Celano, ―um nobre edifício de pérolas preciosas emerge sobre ela‖ (1C 19). Em Clara a utopia de Francisco fez-se clarividente e realidade. Ela não é, pois, a sombra mas a luz de Francisco. Ambos são dotados de uma ener- gia e personalidade fortes, mas une-os o mesmo espírito, o mesmo ideal e radicalidade, o mesmo projecto evangélico. Dois apaixonados pela vida, e uma mesma paixão: seguir Cristo pobre e humilde; duas almas inconfundí- veis, mas uma mesma vocação: restaurar a casa de Deus. Clara é o incenso que o fogo brotado de Francisco transformou em perfume irradiante. Clara assume plenamente as consequências da sua aliança esponsal, a qual implica a total comunhão de bens. Narra a Legenda que, num mo- mento de carência maior, Clara partiu a meio o único pão que restava no ————— 4 Fr. GIACOMO BINI, Clara de Assis, um hino de louvor, II.
  • 35. 37 mosteiro, enviando uma das partes aos filhos de Francisco. Este gesto da partilha do pouco pão que resta exprime bem o vínculo de comunhão na pobreza que une ambas as ordens (LCL 15). Mas explica também o milagre da multiplicação de tantos bens que Deus opera em ambas. Por isso reagirá com surpreendente firmeza quando algo ou alguém põe em causa a comunhão espiritual e o cerne do carisma franciscano, e tudo fará para salvaguardar as boas relações com os irmãos da primeira Or- dem. Recordemos apenas um conhecido episódio: ―Uma vez, quando o papa Gregório [IX] proibiu qualquer frade de ir sem sua licença aos mosteiros das Senhoras. A piedosa madre, doendo-se porque ia ser mais raro para os Irmãos o manjar da doutrina sagrada, la- mentou: ‗Tire-nos também os outros frades, já que nos privou dos que nos davam o alimento da vida‖. E, na mesma hora, devolveu aos ministros to- dos os irmãos esmoleres‖ (LCL 37). Clara ameaça recorrer à ―greve de fome‖, caso o papa promova a separação das duas ordens. O que levou o papa a retirar imediatamente a proibição, entregando o caso ao Ministro geral. Por estas e por outras, Paul Sabatier pode retratar Clara como ―uma mulher que durante todo um quarto de século susteve uma luta de todos os dias, mantendo-se ao mesmo tempo respeitosa e inquebrantável‖. ―Nin- guém me ensinou o que devia fazer‖. A mesma firmeza de Francisco, ex- pressa nestas palavras, aparece também na atitude de Clara. Tal atitude não manifesta qualquer tipo de arrogância ou sede de protagonismo, mas a plena confiança na iniciativa do Altíssimo De facto, tudo fez para evitar as intromissões inconvenientes dos sen- hores feudais e dos bispos, e, quando lhe foi ―imposta‖ a Regra de S. Bento, Clara tudo fez para permanecer fiel ao ideal de Francisco e para ter como único privilégio viver sem privilégios (―Privilégio da Pobreza). Em contrapartida, conhecendo ―por dentro‖ e envolvendo-se total- mente no mesmo projecto evangélico de Francisco, Clara revelou sempre um particular empenho em manter e incrementar a comunhão com os irm- ãos: – Conservando e exortando à fidelidade, à memória e vontades de Francisco, explicitamente evocadas na sua Regra (cap. 6) e no seu Testa- mento (2, 3, 4-5, 7, 8-15, 17, 22, 23), assumindo para si e suas irmãs a pa- ternidade espiritual de Francisco (TCL 22); – No seu Testamento encomenda suas irmãs ao cuidado da Igreja e dos irmãos menores;
  • 36. 38 – Na sua Regra pede explicitamente quatro irmãos menores para o serviço do mosteiro: um capelão, um clérigo de boa fama, e dois irmãos leigos: Pedimos à Ordem dos Frades Menores, pelo amor de Deus e o bem-aventurado Pai S. Francisco, que nos faculte sempre esta graça até agora nunca regateada‖ (12,5). – Toda a história das duas ordens mostram como este matrimónio feliz entre ambas perdurará: desde S. António de Lisboa que cuidará das irmãs pobres de Arcella até aos nossos dias. O caminho percorrido por Clara no sentido de preservar seu carisma será árduo como o de Francisco. Passou por momentos e situações difíceis e combates que se prolongaram até à sua morte. Dificuldades que se pro- longarão ao longo dos séculos, até aos nossos dias. Tais lutas nasceram sempre, porém, de uma exigência de radicalidade e fidelidade ao Evan- gelho e a Francisco. E, por isso, cabe-nos a nós hoje e aqui procurar, sem medo de ―ir à luta‖, a mesma fidelidade, para sermos mais evangélicos e mais sal e luz do mundo. ―Clara morreu vitoriosa, não contra alguém, contra Gregório IX ou contra Inocêncio IV, ou contra a autoridade, mas vitoriosa consigo e com eles. São dois os elementos que fazem tão original o catolicismo de S. Francisco e S. Clara: a submissão em liberdade, e a liberdade na submis- são‖ (P. Sabatier). Submissão à Igreja e a Francisco, porque via em ambos a fonte da sua própria liberdade e neste último o exemplo acabado daquilo que ela mesma procurava viver de modo autónomo e responsável. Ela é, por isso, com Francisco, fundadora e mestra da nossa comum espiritualidade. Ela é fun- damental para toda a família franciscana, e para o nosso mundo. As nossas irmãs clarissas são as guardadoras deste tesouro de precioso valor para a nossa família religiosa. Com e como Clara e Francisco cabe-nos hoje a nós incrementar a co- munhão espiritual e fraterna e a permuta do ―pão espiritual‖ que nos faz crescer como franciscanos e como Igreja. Aprendamos com os nossos fun- dadores a transformar o tempo em templo e as clausuras e os conventos em viveiros de liberdade e crescimento humano, espiritual. E que Clara e Fran- cisco nos ajudem a ser fiéis ao carisma que eles plantaram e, por eles, Deus fez crescer e multiplicar-se até nós.
  • 37. 39 SER FRANCISCANOS E FRANCISCANAS HOJE *Fr. José Rodríguez Carballo, ofm Ministro Geral* ————— * Palestra dirigida à Ordem Franciscana Secular, pelo Ministro Geral, aquando da sua visita a Portugal, Março de 2004.
  • 38. 40 SER FRANCISCANOS E FRANCISCANAS HOJE Queridos Irmãos e Irmãs Alegra-me muito estar convosco. Saúdo-vos cordialmente a todos, queridos Ministros provinciais e queridos irmãos e irmãs da Família Fran- ciscana. O Senhor vos dê a sua paz! Nestes dias em que não cessam de chegar-nos notícias de combates e de morte, em que o Santo Padre, perante a violência dos poderosos das nações, convida todos a construir pontes em vez de muros, em que se eleva a voz dos povos pedindo a paz, constantemente negada, sentimo-nos cha- mados a oferecer, uma vez mais, aos irmãos e irmãs do nosso tempo a sau- dação de paz que o Senhor revelou a São Francisco. Esta saudação nos seus lábios não continha nenhuma retórica, pois comunicava aos irmãos o dom da paz que havia recebido pessoalmente de Deus e que ele mesmo vivia na sua vida. O nosso desejo é que se possa dizer o mesmo de nós, franciscanos do terceiro milénio. Com efeito, também nós, quando saudamos desejando a paz, queremos fazê-lo sobretudo como homens e mulheres que encontra- ram a verdadeira paz no encontro com o Ressuscitado e nos passos de São Francisco e de Santa Clara, e desejam dá-la aos seus irmãos; gostaríamos que todas as nossas acções e os nossos gestos se convertessem em anúncio da salvação que encontrámos, em anúncio da verdadeira paz. De facto, sa- bemos, como nos recordava João Paulo II, que ―os homens do nosso tempo, talvez nem sempre conscientemente, pedem aos crentes de hoje não apenas que nos falem de Cristo, mas de certo modo que no-lo façam ―ver‖ […]. O nosso testemunho seria por outro lado imensamente deficiente se não fôssemos os primeiros a contemplar o seu rosto‖ (Novo Millennio ineunte 16).
  • 39. 41 HOMENS E MULHERES DE CONTEMPLAÇÃO Para sermos verdadeiros anunciadores e portadores de paz é, pois, in- dispensável partir da dimensão contemplativa da nossa vida. Só mantendo- -nos numa relação vital com o Senhor teremos olhos novos para ler a histó- ria que vivemos e estar significativamente presentes nela. Assim, perante as mudanças cada vez mais rápidas da sociedade e do mundo, os nossos esfor- ços apontarão exactamente para a elaboração de novos projectos que ex- pressem o sentido da nossa presença. Mas não podemos esquecer que este sentido nos é dado na relação com Deus e que sem Ele todo o projecto será estéril. Por isso, é cada vez mais urgente o chamamento de São Francisco a todos os franciscanos e franciscanas para que, ―removido todo o impedi- mento e posto de parte todo o cuidado e solicitude, do melhor modo que possam, trabalhem por servir, amar, adorar e honrar ao Senhor Deus com um coração limpo e espírito puro‖ (1R 22, 26). O que primeiramente nos deveria caracterizar como homens e mulheres no seguimento de Cristo pelo caminho traçado por Francisco e por Clara deveria ser precisamente ter o olhar constantemente voltado para o Senhor, ou, dito com palavras de São Francisco, ―ter o Espírito do Senhor e a sua santa operação‖ (2R 10, 9). Manter este único ponto de referência significa alcançar a unidade na própria vida e, portanto, viver reconciliados consigo mesmos e com os ou- tros. É talvez o maior sinal profético que podemos oferecer hoje aos nossos irmãos. Mas para isso, temos que nos converter continuamente para que Jesus Cristo seja verdadeiramente o centro da nossa vida e da vida da nossa fraternidade. Assim, a nossa vida poderá ―converter-se em anúncio de um modo de viver alternativo ao do mundo e da cultura dominante‖, pois ―com seu estilo de vida e a busca do Absoluto [a vida consagrada] quase insinua uma terapia espiritual para os males do nosso tempo‖ (Partir de Cristo [PC] 6a). Poderemos falar de renovação da nossa vida e da nossa presença se estamos dispostos e na medida em que estivermos dispostos a acolher a Palavra e a Eucaristia ―com um coração limpo e espírito puro‖, a convertê- -las no eixo central das nossas actividades, a fazer crescer as nossas frater- nidades a partir do intercâmbio e da participação destas riquezas inesgotá- veis. Como sabemos, tudo isto requer de nós uma grande disposição para nos pormos seriamente a avaliar o tempo pessoal e comunitário que dedi- camos, tanto quantitativa como qualitativamente, à vida com Deus, pois ―é
  • 40. 42 necessário aderir cada vez mais a Cristo, centro da vida consagrada, e vol- tar a percorrer um caminho de conversão e de renovação que, como na ex- periência inicial dos Apóstolos, antes e depois da sua ressurreição, seja um recomeçar a partir de Cristo” (PC 21a). Só recomeçando a partir de Cristo a nossa vida poderá ser verdadeiramente um cântico que dá glória a Deus no alto do Céu e paz na terra aos homens que Ele ama (cfr. Lc 2, 14). HOMENS E MULHERES QUE VIVEM A FRATERNIDADE NO DIÁLOGO Vivendo neste diálogo com Cristo, Palavra de Deus vivo, abre-se ao ser humano a possibilidade de um verdadeiro diálogo com os irmãos. Efec- tivamente, na relação com a Palavra feita carne aprendemos a conhecer o amor de Deus aos seus filhos e a todas as criaturas, e, portanto, a entrar em diálogo com elas a partir desse amor e não simplesmente de nós mesmos. Nesta nova relação, que abarca todos os aspectos da pessoa e toda a reali- dade que a rodeia, o que era amargo pode tornar-se verdadeiramente em doçura de alma e corpo (cfr. T 3). Re-criados à imagem de Cristo Jesus, Ele ―que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a Deus; no entanto esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo‖ (Fl 2, 6s), também nós queremos despojar-nos de nós mesmos e ir ao enco- ntro dos homens e acolhê-los com o mesmo amor e respeito com que Cristo nos acolheu. Abraçar o outro na sua pobreza, respeitando a sua alteridade, viver com ele a experiência de sermos irmãos e irmãs significa romper as bar- reiras do egoísmo e do individualismo que, talvez hoje mais do que nunca, são a causa dos males da sociedade. Para fomentar esta mudança, temos que partir da nossa experiência quotidiana, das nossas fraternidades, pois, como ensina o Senhor ―todos conhecerão que sois meus discípulos se vos amardes uns aos outros‖ (Jo 13, 35). Por isso é indispensável comprometer- -se a que nas fraternidades se criem as condições para viver o que prome- temos e se dediquem tempos à programação e à avaliação comunitária do caminho que se está a percorrer em comum. Neste sentido, as nossas fraternidades podem chegar a ser verdadeiras escolas nas quais se aprende e se ensina a viver o despojamento de si mesmo para dar espaço à vida do irmão na nossa própria vida, do mesmo modo que a mãe está disposta a renunciar às suas próprias necessidades
  • 41. 43 para satisfazer as do filho, realizando assim a sua maternidade (cfr. 2R 6, 8- -10). A forma de vida franciscana converte-se então, para o mundo de hoje, num desafio para substituir toda a forma de domínio e de exploração do outro, cujo fim são a afirmação pessoal, pela escuta e o acolhimento que se exprimem no serviço e na participação dos bens e cujo fim é a promoção da justiça e da paz. Abrir-se ao diálogo significa não se refugiar em posições consideradas adquiridas de uma vez para sempre, mas estar abertos e disponíveis, cons- cientes de que o outro não é um inimigo de quem temos de nos defender ou a quem derrotar, mas alguém que, como nós, é portador de verdade, pois Deus manifesta-se em todo o irmão e irmã. Na escola de Francisco e de Clara de Assis, queremos aprender a escutar o outro, ―pois muitas vezes o Senhor revela à que é menor o que é mais conveniente‖ (RCL 4, 18), e a falar com ele como fez Francisco com o Sultão, que ―intensamente como- vido pelas suas palavras o escutava com grande prazer‖ (1C 57b). HOMENS E MULHERES QUE QUEREM VIVER NOS LUGARES DE FRACTURA Sem dúvida alguma, semelhante itinerário é difícil de percorrer, pois é contrário às lógicas que parecem prevalecer hoje e que, por isso, não são totalmente alheias nem sequer à nossa própria vida, à vida das nossas fra- ternidades e da nossa actividade pastoral. Numa sociedade que parece ter perdido a referência aos valores de que surgiu, vemos impor-se um mercado que, com frequência carente de regras, não faz senão aumentar as diferenças entre ricos e pobres, perseguindo como único fim o crescimento incessante dos que dominam este sistema sem se preocupar com os meios utilizados nem com as consequências que produz. O uso da força e da violência são justificados como instrumentos a que é lícito recorrer para garantir a convivência pacífica entre os povos e as pessoas. Espezinham-se os direitos dos mais pobres e dos mais débeis e sente-se a necessidade de afirmar a própria identidade negando a do outro. Renasce o mito da própria superioridade e com ele a ilusão de não estar ao serviço da verdade, mas de possuí-la. Enfim, subordina-se tudo ao engano da própria e imediata afirmação e realização. Contra esta lógica, negação de todo o diálogo, como seguidores de Francisco e de Clara que encontraram a felicidade no encontro com o outro
  • 42. 44 e não na sua negação, não queremos fechar os olhos a estas realidades de pecado, mas assumi-las e vivê-las com aqueles que as sofrem, repetindo uma vez mais que nos sentimos felizes quando convivemos com gente de baixa condição e desprezada, com os pobres e os débeis, com os enfermos e leprosos, e com os mendigos dos caminhos (cfr. 1R 9, 2). Esta é a tarefa que a Igreja confiou às comunidades de vida consagrada: ―fomentar a espi- ritualidade de comunhão, antes de mais no seu interior e também na pró- pria comunidade eclesial e para além das suas fronteiras, iniciando ou res- tabelecendo constantemente o diálogo da caridade, sobretudo onde o mundo de hoje está dilacerado pelo ódio étnico ou por loucuras homicidas‖ (Vita Consecrata [VC] 51a). Seguindo a voz do Espírito que guia os nossos passos, queremos co- meçar por nós mesmos, a partir da nossa realidade de cada dia, vivendo nela não apenas uma convivência entre pessoas diferentes pela sua idade e cultura, mas dando testemunho de que se pode viver a reconciliação acei- tando precisamente o valor de tais diferenças em vez de as eliminar. Ao mesmo tempo, desejamos privilegiar a nossa presença nos lugares onde aparecem mais dramaticamente as feridas provocadas pelo pecado do mundo e ser aí testemunhas da misericórdia e profetas da esperança. HOMENS E MULHERES TESTEMUNHAS DA ESPERANÇA Com santa Clara confessamos que no encontro com o Salvador nos foi revelado o ―Pai das misericórdias‖ (2Cor 1, 3), a quem queremos dar graças com toda a nossa vida (cfr. TCL). A experiência de que Deus se fez miseri- córdia em Jesus nos impulsiona a olhar o homem com olhos diferentes so- bretudo quando está ferido na sua dignidade. O primeiro e principal gesto de misericórdia, como nos ensina a parábola do ―Pai misericordioso‖ (cfr. Lc 15, 11-32), consiste em devolver a dignidade à pessoa. Esta é sem dú- vida a perspectiva de São Francisco na sua Carta a um Ministro, na qual concebe o exercício da autoridade como um serviço de misericórdia: ―E é desta forma que eu quero ver se amas o Senhor e a mim, seu servo e teu, se procederes assim: Que não haja no mundo nenhum irmão que por muito que tenha pecado e venha ao encontro do teu olhar a pedir misericórdia, se vá de ti sem o teu perdão. E se não vier pedir misericórdia, pergunta-lhe tu se a quer. E se, depois, mil outras vezes vier ainda à tua presença para o mesmo, ama-o mais que a mim, a fim de o trazeres ao Senhor. E que sem- pre te enchas de compaixão por esses desgraçados‖ (CM 9-11).
  • 43. 45 O dom da misericórdia consiste, portanto, no amor que atrai os homens para o Senhor. Um dom que não devemos oferecer só quando nos pedem, pelo contrário, devemos adiantar-nos a oferecê-lo a quem dele pre- cise. Neste sentido, a misericórdia é uma atitude vital, um modo de ser en- tre e com os outros, mais do que uma acção que se deva realizar em deter- minadas circunstâncias. E fomos chamados a ser testemunhas da misericórdia num mundo que tende a opor-se à misericórdia e a considerá-la supérflua. Se a lógica ven- cedora é a do domínio e do controlo da natureza, das nações e das pessoas, parece não haver espaço para a misericórdia (cfr. Dives in Misericordia 2), que seria a atitude do débil e do perdedor, a atitude de quem renuncia a im- por o seu direito sobre o outro para lhe devolver a dignidade perdida ou negada. Certamente estar com estas pessoas ou do seu lado significa decidir-se entre duas alternativas e ter a valentia de se comprometer, como fez São Francisco, que levou a todos a misericórdia de Deus Pai e não teve medo da crítica dos seus concidadãos quando abraçou o leproso nem dos seus irm- ãos quando levou comida aos ladrões de Monte Casale, nem dos cidadãos de Gúbio quando foi à procura do ―lobo‖ para o levar a viver na cidade. Quem foi tocado pela misericórdia de Deus sabe muito bem que ela é a única capaz de romper as barreiras dos corações mais endurecidos para re- conduzir o homem ao seu criador. Esta é a nossa esperança! HOMENS E MULHERES GUARDIÃES E PROFETAS DA ESPERANÇA Diante do mal presente no nosso tempo, nós, os franciscanos, temos de ser necessariamente homens de esperança, pois nos nossos corações ressoa a palavra do Ressuscitado: ―Não tenhais medo […] Eu estou convosco to- dos os dias até ao fim do mundo‖ (Mt 28, 10.20). Como repetiu João Paulo II: ―Cristo é a nossa esperança‖ (Ecclesia in Europa [EiE] 19), uma espe- rança que rasga os limitados horizontes humanos e que é a única que pode saciar a sede de felicidade do ser humano. Firmes nesta esperança, captamos por entre as densas sombras que nos rodeiam os numerosos sinais de renovação que nos permitem continuar a olhar com confiança o futuro que nos espera. Juntamente com a busca do proveito exclusivamente individual e até em prejuízo dos interesses dos outros, cresce a consciência duma solidariedade que considera o outro não
  • 44. 46 apenas como alguém a quem se deve ajudar, mas como um companheiro de caminho. Juntamente com a violência como único instrumento para fazer respeitar o direito, cresce cada vez mais a consciência de que nunca se po- derá alcançar a paz se não se garante ao mesmo tempo a justiça. Juntamente com a soberba de uma humanidade que se sente dona indiscutível da natu- reza, aumenta a sensibilidade perante o meio ambiente, o respeito por ele e a consciência de formar parte dele. Juntamente com o uso massificado e passivo dos meios de comunicação, aumenta o desejo de formas de ex- pressão que dêem espaço à criatividade e à imaginação pessoal. Portanto, a nossa tarefa deve ser a de homens e mulheres que, tendo em Cristo uma esperança que não pode defraudar, sabem indicar aos seus irmãos e irmãs as luzes que guiam até ao Salvador. Portanto, devemos sa- ber ler os sinais dos tempos em diálogo contínuo com a Palavra de Deus, pois ―a verdadeira profecia nasce de Deus, da amizade com Ele, da escuta atenta da sua Palavra nas diversas circunstâncias da história. O profeta sente arder no seu coração a paixão pela santidade de Deus e, depois de ter acolhido a Palavra no diálogo da oração, proclama-a com a vida, com os lábios e com os factos, tornando-se porta-voz de Deus contra o mal e contra o pecado‖ (VC 84b). Por isso não podemos descuidar a qualidade da nossa vida fraterna que contém a força de ser profecia autêntica de um mundo renovado, sinal certo de esperança para um futuro mais humano (cfr. VC 85), como aconteceu no princípio do movimento franciscano e clareano quando, tendo abandonado tudo, aqueles homens e mulheres começaram uma experiência de vida que continua a fascinar ainda hoje com a transparência da sua mensagem evan- gélica. Guardar e testemunhar esta esperança é o maior serviço que podemos prestar aos homens do nosso tempo; mas para poder fazê-lo é preciso saber abandonar tudo cada dia para seguir Jesus pobre e crucificado. Só sendo autenticamente livres das lógicas do mal que ameaçam a nossa sociedade, só despojando-nos continuamente de nós mesmos para recomeçar a partir de Cristo, só se tivermos a força de sair dos nossos conventos para ir, des- armados, ao encontro dos nossos irmãos, seremos testemunhas credíveis do amor que nos foi dado e, então, como nos ensina a Igreja, na nossa vida encontrará ―novo impulso e força o anúncio do Evangelho a todo o mundo. Com efeito, são necessárias pessoas que apresentem o rosto paterno de Deus e o rosto materno da Igreja, que dêem a vida para que os outros ten- ham vida e esperança‖ (VC 105b).
  • 45. 47 Gostaria de concluir esta intervenção com a ―confissão de esperança‖ da exortação apostólica Ecclesia in Europa, que, parece-me, alcança o an- seio, presente no coração de cada um de nós, de que o Reino, cujo aconte- cimento estamos a celebrar nestes dias, possa difundir-se e chegar a todos os homens e mulheres: ―Tu, Senhor, ressuscitado e vivo, és a esperança sempre nova da Igreja e da humanidade, tu és a única e verdadeira espe- rança do homem e da história, tu és entre nós a ‗esperança da glória‘ (Col 1, 27) já nesta vida e também para além da morte! Em ti e contigo podemos alcançar a verdade, a nossa existência tem um sentido, a comunhão é possí- vel, a diversidade pode transformar-se em riqueza, a força do Reino já está a agir na história e contribui para a edificação da cidade do homem, a cari- dade dá valor perene aos esforços da humanidade, a dor pode tornar-se sal- vífica, a vida vencerá a morte e a criação participará da glória dos filhos de Deus‖ (EiE 18b).
  • 46.
  • 47. 49 O DECLÍNIO FRANCISCANO NO OCIDENTE: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE Fr. Luís Oviedo* ————— * Artigo publicado na VITA MINORUM revista di spiritualità e formazione interfrancescana, Janeiro-Fevereiro de 2000, pp. 35-60. Trad. Cadernos de Espiritualidade Franciscana.
  • 48. 50 O DECLÍNIO FRANCISCANO NO OCIDENTE: Uma proposta de análise Não tem havido muito empenho em analisar as causas da crise actual de crescimento que sofre a Ordem Franciscana – tal como outras ordens – nas sociedades mais avançadas e secularizadas, nem em buscar soluções1 . Dispomos de algumas hipóteses de explicação deste panorama desolador, mas falta-nos uma visão suficientemente ampla, baseada em dados empí- ricos, de molde a compreender como a grande parte dos grupos religiosos se afundou no ambiente moderno e secular, e porque estas dificuldades afligem de maneira particular as Ordens tradicionais, salvo alguma ex- cepção significativa. Excluímos desde já a tese segundo a qual a seculari- zação moderna compromete todas as iniciativas religiosas; experiências positivas em curso, constituem um antídoto contra o derrotismo geral. Podemo-nos socorrer de muitas perspectivas para levar a cabo o nosso intento. A sociologia das religiões, no seu desenvolvimento mais recente, pode-nos fornecer, melhor que qualquer outra teoria, os instrumentos de diagnóstico e sugestões para possíveis paliativos. É certo que se trata de um ponto de vista parcial (como é qualquer ponto de vista), mas estou conven- cido que nos pode oferecer informações suficientes e elementos para esti- mular uma reflexão. Convém reconhecer que o caminho proposto suscita graves problemas, sobretudo por causa da dificuldade que acompanha a teoria social, conside- rada por muitos «intrinsecamente social». Não é este o lugar para debates ————— 1 O único exemplo que conheço, refere-se às ordens religiosas em geral: P. WITTBERG, The Rise and Fall of Catholic Religious Orders: A Social Movement Perspective (State University of New York Pr. 1994): concentra-se nos aspectos ideológicos que motivam e mantêm um ―movimento de virtuosos‖.
  • 49. 51 tão complexos; permanece válido, todavia, o método sociológico ao menos para dar o mínimo de esclarecimentos sobre alguns dos nossos problemas. Em todo o caso estamos dispostos a assumir um risco: o trabalho tem so- bretudo um carácter explicativo, e pode servir ainda de modelo para uma aplicação prática, mesmo para outros casos. As explicações propostas devem juntar-se a outras, habituais entre nós – mais de índole ―espiritual‖ – relacionadas com a fidelidade pessoal e co- munitária aos ideais evangélicos que professamos. Não é minha intenção negar a validade e a capacidade de denúncia crítica que estas percepções têm; só desejaria complementar a partir de outra perspectiva, até porque, em especial a vida religiosa vivida com sinceridade e generosidade não basta para analisar os graves problemas que temos pela frente. Estou con- victo que, se queremos compreender e resolver certos problemas caracte- rísticos da nossa forma de vida, é necessário um aprofundamento pela via da ―reflexão‖: a boa intenção e o bom exemplo não são suficientes para orientar a acção duma instituição da dimensão da Ordem Franciscana. De- sejaria prevenir contra um voluntarismo que no fim dá resultados escassos, como também contra um certo ―abandono à providência‖ que atraiçoa o sentido cristão da Providência. 1. O QUE HÁ DE NOVO E DE ÚTIL NA SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO Desde há muito tempo que nos habituamos a compreender o papel da religião na sociedade no âmbito da assim chamada ―teoria da seculariza- ção‖. Duma maneira geral reinava a convicção de que a fé religiosa e a sua forma institucional entrou numa fase de decadência, submetida à dinâmica da ―superação‖ e da emergência social, privada do influxo puro a nível da consciência pessoal. Para os mais extremistas o desenvolvimento descrito poderia levar à extinção da maior parte das formas religiosas. A única espe- rança reservada aos crentes seria transformar, com coragem e redimensio- nar os conteúdos considerados propriamente ―espirituais‖ e partir para ou- tro tipo de ―prestações‖ da vida cristã: o serviço social e político, a di- mensão ―terapêutica‖ da fé, assinalando os motivos estéticos e existenciais, abandonando, se necessário, os dogmas e valores tradicionais. A situação mudou nos últimos anos. No último decénio os especialis- tas que ―observam‖ as dinâmicas e os influxos do ambiente religioso na sociedade moderna advertem que, antes de tudo, não é verdade – como afirmava a teoria da secularização – que, quando uma sociedade se desen-
  • 50. 52 volve e se moderniza, o resultado é a diminuição e o desaparecimento da religião (o exemplo norte americano é o mais claro); em segundo lugar, nem todos os grupos religiosos sobrevivem no novo contexto, que favorece alguns e penaliza outros, que ficam para trás nesta espécie de competição; isto porque a influência de outros factores na sociedade continua a pesar, como se viu no caso do comunismo. A sociologia das religiões, teve que recorrer a outras estratégias para compreender o fenómeno, uma vez que a teoria da secularização tinha per- dido a sua capacidade de explicação. Finalmente foram adoptadas a se- guintes estratégias: o modelo económico da ―escolha racional‖ e o da ―teo- ria da organização‖. Tanto num como noutro caso, a teoria procura com- preender, como num contexto altamente concorrencial, há umas entidades que prosperam e outras que vão à falência e há certas organizações que re- sistem à erosão do tempo e outras que se dissolvem depois das primeiras dificuldades. No primeiro caso o instrumento conceptual mais usado na assim cha- mada ―escolha racional‖ (em inglês: rational choice), compreende a maior parte dos processos económicos: tanto na perspectiva da oferta como na da procura, cada um dos actores ou a corporação tenta obter o máximo de vantagens com o mesmo esforço. Ser ―racional‖ neste caso significa fazer a escolha que permite melhorar a própria situação. Não só no campo econó- mico, mas também noutros campos se provou as vantagens de utilizar este critério de ―racionalidade‖: na política, nas relações pessoais e até nas reli- giões, susceptíveis de ser analisadas como uma relação de oferta e procura, numa situação de ―falso mercado‖2 . A perspectiva que oferece a ―teoria da organização‖ é ligeiramente di- ferente: o objectivo é apontado sobre a estratégia que favorece a sobre- vivência e o crescimento de uma instituição no tempo, malgrado a tendên- cia de entorpecimento (ou de perca progressiva de energia) que leva depois à dissolução do colectivo. São seguramente factores positivos e negativos que interferem no sucesso duma organização, não sendo fácil, neste caso, falar de ―racionalidade organizativa‖, porque muitas vezes a sua lógica é distinta daquela que se verifica no comportamento racional atrás descrito. ————— 2 L.A. YOUNG, Rational Choice Theory and Religion (New York – London 1997); L.R. IANNACCONE, Introduction to the Economics of Religion, Journal of Economic Literatur 36 (1998) 1465-1496.
  • 51. 53 Não podemos ignorar que os ―modelos de análise‖ propostos são par- ciais e objecto de crítica e de discussão entre os especialistas. De facto não é difícil provar um certa diferença, por causa de orientações fortemente egoístas, que exibe a teoria da ―escolha racional‖, uma perspectiva que deixa sem explicação as condutas mais altruístas em favor do próximo. Devo admitir que a aplicação deste modelo de análise à instituição re- ligiosa deixa perplexidade e suspeita, sobretudo quando se quer equiparar as dinâmicas que presidem à escolha no campo religioso a um cálculo de vantagens e proveitos, reduzindo as relações entre grupos religiosos a um ―mercado‖ onde tudo concorre para conseguir o maior número de clientes. É óbvio que o fenómeno religioso não se esgota em considerações deste género; aqui entram sempre elementos de outra ordem: a pertença a tradiç- ões vividas, convicções profundas e outros factores dificilmente sujeitos a tais ―racionalizações‖3 . Muitas vezes os modelos propostos mostram-se muito fecundos – como mais tarde se verá – e capazes de compreender o actual panorama religioso, permitindo assim superar a teoria da seculari- zação, os complexos e os desânimos por ela provocados. Infelizmente os protagonistas da vida eclesial interiorizaram a ideia de que no mundo moderno a fé religiosa estava condenada à irrelevância. O ―dogma sociológico‖ da secularização proporcionou a lógica da ―profecia auto aplicada‖, na medida em que expoentes do clero e da actividade pasto- ral se tornaram de modo incansável ―agentes de secularização interna‖: quanto mais se acentuava o carácter inconsistente daqueles diagnósticos, mais se acomodavam vários sectores da vida eclesiástica a este panorama de crise, em vez de tentar opor-se a estas tendências que apontam para a dissolução. O problema é que muitos davam como adquirido a perda de interesse em relação à dimensão religiosa e quiseram encontrar o signifi- cado do cristianismo algures (causas morais, ecológicas e culturais) na ten- tativa disparatada de conter os danos. Hoje sabemos que uma boa parte da- quela teoria tinha matrizes ideológicas e que não se preocupava muito em ————— 3 M. Chaves, On the racinal Choice, Journal for the Scientific Study of Religion 34 (1995) 84-104; Rationality and the Framing of Religious Choices, Journal for the Scientific Study of Religion 35 (1996) 128-144. Pode-se ver alguma crítica na resposta da parte de L.R. IANNACCONE, Second Thoughts. A Response to Chaves, Demerath and Ellison, Journal for the Scientific Study of Religion 34 (1005) 113-120; e a continuação do debate com a resposta de R. FINKE-R.STARK, Religious Choice and Competition, American Sociological Review 63 (1998) 761-766.