A crise da água no século XXI, para alguns especialistas, é resultado de inúmeros problemas ambientais que são agravados por causas relacionadas à economia e ao desenvolvimento social.
De fato, estes fatores são preponderantes para o agravamento da crise hídrica atualmente vivenciada; contudo, não são os únicos. Afora esses fatores, também merecem destaque as mudanças globais com eventos hidrológicos que intensificam ainda mais o quadro crítico da falta de água.
O Brasil é dividido em 12 (doze) regiões hidrográficas. Dessas regiões, 5 (cinco) apresentaram volume médio de chuva abaixo da média histórica em 2012. O comportamento das vazões em algumas bacias hidrográficas do território nacional sofreram alterações significativas, sendo consideradas bem abaixo das médias históricas, chegando próximas aos mínimos já registrados.
Tendo em vista esse quadro, é necessário procurar formas alternativas para minimizar os potenciais riscos da escassez hídrica. Nessa perspectiva, o artigo tem por objetivo analisar o panorama normativo dos recursos hídricos no Brasil e verificar a possibilidade de utilizar água de reúso para recarregar mananciais.
Recarga de manancial com água de reúso – Uma alternativa para a conservação dos mananciais e para a escassez hídrica
1. 22 ARTIGOS Fórum de Dir. Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 14, n. 81, p. 22-29, maio/jun. 2015
Palavras-chave: Água. Reúso. Recarga de manancial. Crise
hídrica.
Sumário: 1 Introdução – 2 O que é recarga de manancial com água
de reúso e qual é a sua importância? – 3 Panorama normativo
do Sistema Nacional de Recursos Hídricos – 4 O enquadramento
dos corpos d’água à luz do CONAMA – 5 Conclusão – Referências
1 Introdução
A crise da água no século XXI, para alguns
especialistas,1
é resultado de inúmeros problemas
ambientais que são agravados por causas relacio
nadas à economia e ao desenvolvimento social.
Para Tundisi et al. (2008), a crise hídrica está
ligada a fatores como a intensa urbanização que
aumenta a demanda pela água e amplia a descar
ga de efluentes em corpos de água causando o
estresse e escassez desse recurso; a deficiência
da infraestrutura de saneamento básico em muitas
regiões que, por vezes, possui perdas de água
potável em patamares superiores a 30% da água
produzida;2
e, por fim, a problemas relacionados
à falta de articulação e de ações consistentes na
governabilidade de recursos hídricos, bem como
sustentabilidade ambiental.
De fato, os fatores mencionados são pre
ponderantes para o agravamento da crise hídrica
atualmente vivenciada; contudo, não são os únicos.
Afora esses fatores, também merecem destaque
as mudanças globais com eventos hidrológicos que
1
GLEICK (2000); TUNDISI et al. (2008).
2
O Instituto Trata Brasil, em parceria com a GO Associados, ela
borou estudo do Ranking do Saneamento com base no SNIS
2012, apontando que a média de perdas de água para os 100
maiores municípios brasileiros é de 39%. O estudo considerou
que, para fins de parâmetros de qualidade de um município com
relação ao nível de perdas, o nível ideal de perdas é de 15%.
Levando em consideração esse parâmetro, o estudo concluiu
que apenas 4 (quatro) municípios possuem perdas iguais ou
inferiores a 15%, 74 (setenta e quatro) municípios possuem
níveis de perdas até 60% e 11 (onze) municípios possuem
perdas superiores à média de qualidade. O estudo complete pode
ser visto em: <http://www.tratabrasil.org.br/datafiles/estudos/
ranking/relatorio-completo-2014.pdf>.
intensificam ainda mais o quadro crítico da falta
de água.
O Brasil é dividido em 12 (doze) regiões hidro
gráficas, a saber: (i) Amazônica; (ii) Tocantins
Araguaia; (iii) Paraguai; (iv) Paraná; (v) Uruguai; (vi)
Atlântico Sul; (vii) Atlântico Sudeste; (viii) Atlântico
Leste; (ix) Atlântico Nordeste Oriental; (x) Atlântico
Nordeste Ocidental; (xi) São Francisco; e (xii)
Parnaíba. Dessas regiões, 5 (cinco)3
apresentaram
volume médio de chuva abaixo da média histórica
em 2012.4
O comportamento das vazões em algu
mas bacias hidrográficas do território nacional sofre
ram alterações significativas, sendo consideradas
bem abaixo das médias históricas, chegando próxi
mas aos mínimos já registrados.5
Tendo em vista esse quadro, é necessário pro
curar formas alternativas para minimizar os poten
ciais riscos da escassez hídrica.
Nessa perspectiva, o presente artigo tem por
objetivo analisar o panorama normativo dos recursos
hídricos no Brasil e verificar a possibilidade de uti
lizar água de reúso para recarregar mananciais.
O artigo está divido em quatro seções. Na pri
meira procura-se delinear o conceito de recarga de
manancial com água de reúso e a sua importância
no contexto de escassez hídrica atualmente vivida
pelo país. A segunda apresenta o panorama nor
mativo do Sistema Nacional de Recursos Hídricos,
bem como a regulamentação existente sobre a
água de reúso. A terceira demonstra que a solução
proposta relaciona-se com outros instrumentos
3
Atlântico Nordeste Oriental, Atlântico Leste, Parnaíba, São
Francisco e Atlântico Nordeste Ocidental.
4
Estudo divulgado pela ANA (2013).
5
Segundo estudo divulgado pela ANA (2013), o Rio Paraíba, em
maio de 2009, atingiu o máximo já registrado no período, mas,
em 2012, depois de período de extrema seca na bacia, foram
registrados valores mensais abaixo das médias históricas; e o Rio
Uruguai, no qual as médias mensais para o período de 2009 e
2011 excederam as médias mensais anteriores, contrariamente
do que ocorreu em 2012, período que chegou bem próximo do
mínimo já registrado.
Recarga de manancial com água de reúso – Uma alternativa para a
conservação dos mananciais e para a escassez hídrica
Fernando S. Marcato
Professor do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu da FGV Direito SP no curso de “Direito da Infraestrutura”. Professor do curso de
graduação em Direito da Direito GV. Mestre em Direito Público Comparado “master recherche 2” na Universidade Panthéon-Sorbonne
(Paris I).
Andréa Costa de Vasconcelos
Graduada pela Universidade São Judas Tadeu. Aluna da Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).
Assistente acadêmica do professor Fernando S. Marcato. Advogada.
2. Fórum de Dir. Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 14, n. 81, p. 22-29, maio/jun. 2015
Recarga de manancial com água de reúso – Uma alternativa para a conservação dos mananciais e para a escassez hídrica
ARTIGOS 23
instituídos pelo Sistema Nacional de Recursos Hídri
cos. A quarta apresenta as conclusões.
2 O que é recarga de manancial com água
de reúso e qual é a sua importância?
A água de reúso é a água residuária6
derivada
do esgoto tratado em estações de tratamento de
esgoto. De acordo com a Lei Nacional de Sanea
mento Básico (LNSB),7
os efluentes gerados a
partir do tratamento dos esgotos sanitários devem
ser submetidos à disposição final ambientalmente
adequada.
Em termos práticos, os efluentes são subme
tidos a um novo sistema de tecnologia de tratamento
mais avançado em estação própria gerando a água
de reúso. A água recuperada é, então, lançada de
volta nos mananciais onde normalmente se faz a
captação para o abastecimento público. Esse lan
çamento é o que caracteriza a recarga de manancial
com água de reúso.
O surgimento da água de reúso está relacionado
ao avanço na ocupação do solo e das caracterís
ticas áridas e semiáridas de determinadas regiões,
bem como às dificuldades que algumas cidades
apresentaram para atender à demanda crescente
por água para o desenvolvimento urbano, industrial
e agrícola. Assim, ao se verificar a deficiência para
o abastecimento de água potável, percebeu-se a
necessidade de se criar alternativas e soluções
eficientes para a resolução de tal questão.
Acrescenta-se, ainda, o fenômeno da escas
sez hídrica no Brasil, que não é exclusivo das
regiões áridas e semiáridas. Conforme amplamente
divulgado nos meios de comunicação no início do
ano de 2015, os 6 (seis) principais mananciais da
Região Metropolitana de São Paulo apresentaram
níveis históricos8
de vazões insuficientes para o
abastecimento da demanda metropolitana e dos
municípios circunvizinhos. Isso não é tudo, conforme
dados demonstrados na introdução deste artigo,
5 (cinco) regiões hidrográficas do Brasil apresen
taram o mesmo problema de escassez hídrica
decorrente do baixo volume de chuva abaixo da
média histórica em 2012.
Diante desse quadro de insegurança hídrica, a
utilização da água de reúso permite por em prática a
grande diretriz adotada pelo Conselho Econômico e
6
O conceito de águas residuárias encontra-se no art. 2º da Reso
lução nº 54 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos: “I -
água residuária: esgoto, água descartada, efluentes líquidos de
edificações, indústrias, agroindústrias e agropecuária, tratados
ou não”.
7
Art. 3, inciso I, alínea “b”.
8
Em fevereiro de 2015 o Manancial Cantareira apresentou nível
hídrico de 6,9% da sua capacidade, o Manancial Alto Tietê 13,3%,
o Manancial Guarapiranga 55,2%, o Manancial Alto Cotia 34,3%,
o Manancial Rio Grande 79,9% e o Manancial Rio Claro 31,8.
Social da Organização das Nações Unidas, segundo
o qual, a não ser que haja grande disponibilidade,
as águas de melhor qualidade devem ser destina
das para usos mais nobres, de modo que as águas
que possuam qualidade inferior sejam consideradas
fontes alternativas para usos menos restritivos.
As diversas modalidades de usos de água de
reúso variam em razão do país e da sua regulari
zação legislativa. Embora existam muitas possibili
dades da utilização de água de reúso no mundo,9
10
no Brasil, para atendimento de grande variedade
de usos, todas as possibilidades de usos estão
disciplinadas no art. 3º da Resolução nº 54 do Con
selho Nacional de Recursos Hídricos, que diz:
Art. 3º O reúso direto não potável de água, para
efeito desta Resolução, abrange as seguintes mo
dalidades:
I - reúso para fins urbanos: utilização de água de
reúso para fins de irrigação paisagística, lavagem
de logradouros públicos e veículos, desobstrução
de tubulações, construção civil, edificações, com-
bate a incêndio, dentro da área urbana;
II - reúso para fins agrícolas e florestais: aplicação
de água de reúso para produção agrícola e cultivo
de florestas plantadas;
III - reúso para fins ambientais: utilização de água de
reúso para implantação de projetos de recuperação
do meio ambiente;
IV - reúso para fins industriais: utilização de água
de reúso em processos, atividades e operações in-
dustriais; e,
V - reúso na aqüicultura: utilização de água de reúso
para a criação de animais ou cultivo de vegetais
aquáticos. (grifos nossos)
De uma forma geral, na medida em que a água
de reúso é utilizada para todos os mencionados
usos considerados menos nobres pela legislação,
9
Segundo Leite (2003), em Tóquio, no Japão, a primeira notícia
que se teve de utilização de água de reúso foi em 1951, quando
uma fábrica de papel utilizou, na sua produção, o efluente
secundário de uma estação de tratamento de águas residuárias.
Desde 1960, o Japão vem implementando diversos projetos
urbanos de reúso de água usados na indústria, na dissolução de
neve e nas áreas urbanas. Na Índia, em Bombay, é muito comum
a utilização de água de reúso para complementar os serviços de
ar condicionados dos prédios que variam de 20 a 25 andares. No
Peru é comum a utilização da água de reúso para a aquicultura,
agricultura e para o tratamento em lagoas de estabilização.
10
As principais plantas de água de reúso no mundo encontram-se
em: Los Angeles, com capacidade de produção de 2,2 m3/s, cuja
aplicação é para recarga de aquifer; Las Vegas, com capacidade
de produção de 8,8 m3/s, cuja aplicação é para recarga de
manancial; Big Springs, com capacidade de produção de 0,69
m3/s, cuja aplicação é para o reúso direto no sistema público de
abastecimento; Orange Couty, com capacidade de 3,07 m3/s,
cuja finalidade é recarga de aquífero; Singapura, com capa
cidade de 2,64 m3/s, cuja finalidade é utilizar a água de reúso
diretamente na rede pública de abastecimento; Namíbia, com
capacidade de 0,61 m3/s, cujo objetivo é utilizar a água de reúso
direto no sistema público de abastecimento de água; e Austrália;
com capacidade de 2,7 m3/s, também com a finalidade de
abastecer a diretamente rede pública.
3. Fórum de Dir. Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 14, n. 81, p. 22-29, maio/jun. 201524 ARTIGOS
Fernando S. Marcato, Andréa Costa de Vasconcelos
automaticamente tem-se a substituição da captação
de água potável em mananciais aumentando, em
razão da vazão hídrica para o consumo humano.
Destaque-se, por oportuno, que no Brasil somente a
agricultura consome, atualmente, aproximadamente
72% de toda a água disponível.11
Analisando especificamente a utilização de
água de reúso com o objetivo de recarregar ma
nanciais, são diversas as externalidades positivas.
Segundo Crook et al (1992) apud Leite (2003),
essas externalidades relacionam-se ao aumento
da disponibilidade de água subterrânea, ao incre
mento das reservas hídricas, à prevenção da subsi
dência do solo,12 13
e à manutenção dos reservatórios
de água para uso futuro.
A utilização da água de reúso como solução
para a escassez hídrica não é uma prática nova,
ao contrário. Trata-se de uma solução adotada mun
dialmente há anos.14
Nesse sentido ensina Brega
Filho e Mancuso (2002):
A prática de descarregar os esgotos, tratados ou
não, em corpos de água superficiais é a solução
normalmente adotada pelas comunidades no mundo
inteiro, para o afastamento de resíduos líquidos.
Geralmente esses corpos de água servem como
fonte de abastecimento a mais de uma comuni
dade, havendo casos em que a mesma cidade lança
seus esgotos e faz uso do mesmo corpo hídrico
como manancial para potabilização. A comunidade,
a indústria ou o agricultor que coleta água, em
verdade, esta utilizando-a pela segunda, terceira ou
mais vezes.
É o clássico caso da cidade de Londres, que capta a
água dos rios Tâmisa e Lea, este último usado pela
cidade de Stevenage para afastamento de seus
esgotos, onde são lançados após tratamento.
Autores como Metcalf e Eddy (1995) apud
Santos (2000) citam que o primeiro projeto que
se teve notícia sobre a utilização de água de reúso
para fins de recarga de aquíferos (águas subter
râneas), ocorreu na cidade de Los Angeles, em
1962. Os autores informam, ainda, que após ava
liação detalhada dos efeitos sobre a saúde pública,
correspondente a um período de 20 anos, pesqui
sadores chegaram à conclusão de que as operações
11
Estudo revelado pela ANA (2012).
12
Trata-se do “movimento para baixo ou afundamento causado pela
perda de suporte subjacente” (LEITE, 2003).
13
Segundo Leite (2003), a subsidência de solos constitui problema
relevante em áreas onde ocorre excessivo bombeamento de aquí
feros. A recarga recupera as condições de suporte, melhorando a
estabilidade dos solos em áreas consideradas críticas.
14
Segundo Metcalf e Eddy (1995) apud Santos (2000), a utilização
de água de reúso, inicialmente sem tratamento e, posteriormente,
com tratamento, em fossas sépticas, teve sua origem em 1912,
no parque Golden Gate, em São Francisco, no Estado da Califórnia
(EUA), a utilização era para fins de irrigação de jardins e supri
mento de lagos ornamentais.
de recarga não produziram nenhum impacto negativo
apreciável sobre a água subterrânea da área, nem
sobre a população que a consumira. Em 1975, nos
Estados Unidos, existiam aproximadamente 536
projetos de recuperação e reutilização de efluentes.
3 Panorama normativo do Sistema
Nacional de Recursos Hídricos
Para a perfeita compreensão da Política Nacio
nal de Recursos Hídricos (PNRH), instituída pela Lei
Federal nº 9.433/97, é importante mencionar que
a Constituição Federal estabeleceu dois domínios
para os corpos d’água, quais sejam o da União e
o dos Estados. Os corpos d’água estabelecidos
sob o domínio da União (art. 20) são os rios ou
lagos que banham mais de um Estado-Membro
ou que sirvam de divisa entre essas unidades, ou
fronteira entre o território do Brasil com um país
vizinho. Os de domínio do Estado (art. 26) referem-
se às águas superficiais que nascem e deságuam
no seu território, às águas subterrâneas e as águas
fluentes, emergentes ou em depósito, ressalvadas,
nestes casos, as decorrentes da União.
A PNRH criou o Sistema Nacional de Geren
ciamento de Recursos Hídricos (SINGRH), composto
por: (i) instâncias participativas de formulação e
deliberação (Conselhos e Comitês de bacias); (ii)
instâncias de formulação de políticas governa
mentais (Secretarias de Estado e Ministério do
Meio Ambiente – MMA); e (iii) instâncias de imple
mentação e regulação (Agência Nacional das Águas
– ANA e órgãos gestores).
O Quadro 1 demonstra a matriz institucional e
a interação entre os entes.
Fonte:AgênciaNacionaldeÁguas.
QUADRO1–MatrizinstitucionaldoSINGRH
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Recarga de manancial com água de reúso – Uma alternativa para a conservação dos mananciais e para a escassez hídrica
ARTIGOS 25
Cada um dos órgãos que compõem o arcabouço
institucional da Política Nacional de Recursos Hídri
cos tem suas atividades e competências definidas
legalmente.
O Conselho Nacional de Recursos Hídricos
(CNRH) é o órgão deliberativo15
e normativo máximo
do SINGRH, dentre as suas atribuições encontram-
se a de estabelecer diretrizes para a implemen
tação da política nacional e aplicação de seus
instrumentos, conforme estabelece o art. 35, inciso
XII, da Lei Federal nº 9.433/97, bem como a de
fomentar o uso múltiplo da água.16
Os Conselhos de Recursos Hídricos dos Esta
dos e do Distrito Federal constituem-se fóruns
de discussão e deliberação para os assuntos
que envolvem bacias sob o domínio do Estado ou
do Distrito Federal, bem como representam a ins
tância estadual no Conselho Nacional de Recursos
Hídricos.
A Agência Nacional de Águas (ANA) trata-
se de autarquia em regime especial,17
funciona
como agência reguladora da utilização dos rios de
domínio da União, razão pela qual está encarregada
pela cobrança pelo uso da água desses rios e da
aplicação desses recursos e de outros destinados
ao gerenciamento dos recursos hídricos. Importante
mencionar que, em se tratando de um curso de água
cujo domínio é do Estado, essa função será exer
cida pela Agência Estadual. Por exemplo, no Estado
de São Paulo, a responsabilidade pela gestão dos
recursos é desempenhada pelo Departamento de
Águas e Energia Elétrica (DAEE).18
Os Comitês de bacias hidrográficas exercem
um papel de “parlamento das águas da bacia”,
contando com a participação dos usuários públicos
e privados, do poder municipal, da sociedade civil
organizada e dos demais níveis de governo (esta
duais e federal). Dentre as suas atribuições, des
taca-se a aprovação do Plano da Bacia.
As Agências de Água atuam como “braço
executivo” dos seus correspondentes comitês de
bacias. Estão encarregadas da elaboração e imple
mentação do Plano de Recursos Hídricos da Bacia,
gerência dos recursos oriundos da cobrança pelo
uso da água e os demais recursos destinados à
gestão, entre outras atribuições.
15
É integrado por representantes do Poder Executivo federal (MMA,
Secretaria da Presidência da República), dos Conselhos Estaduais
de Recursos Hídricos, dos Usuários e das organizações civis de
recursos hídricos, e tem por secretaria executiva a Secretaria de
Recursos Hídricos do MMA.
16
O uso múltiplo das águas caracteriza-se como um dos funda
mentos basilares da Política Nacional de Recursos Hídricos, con
forme expressa o art. 1º, inciso IV, da Lei nº 9.433/1997.
17
Criada pela Lei nº 9.984/2000, vinculada ao Ministério do Meio
Ambiente.
18
Segundo o art. 7º, dos Atos das Disposições Transitórias da
Lei nº 7.663/1991, compete ao DAEE cadastrar os usuários e
outorgar o direito de uso dos recursos hídricos, bem como aplicar
sanções.
Tendo em vista as competências dos diversos
atores que compõem o SINGRH, é possível observar
que cabe ao CNRH estabelecer as diretrizes e os
critérios gerais para regulamentar a prática de reúso
de água, uma vez que, nos termos do inciso XII do
art. 35 da Lei Federal 9.433/9719
e do inciso VI do
art. 1º do Decreto nº 4.613/2013,20
cabe ao CNRH
estabelecer as diretrizes para a implementação da
PNRH e também da água de reúso, a qual passamos
a detalhar.
3.1 A regulamentação da água de reúso
O CNRH expediu a Resolução CNRH nº 54, de
28 de novembro de 2005,21
que tem por objetivo
estabelecer as modalidades e os critérios gerais
para o reúso de água. Dentre as modalidades esta
belecidas, criou-se a possibilidade de utilização de
água de reúso para fins de recuperação ambiental,
nos termos do seu art. 3º.22
Segundo a definição dada pelo inciso III do
art. 3º da Resolução nº 54/2005 do CNRH, reúso
para fins de recuperação ambiental é a “utilização
de água de reúso para a implantação de projetos
de recuperação do meio ambiente”.
A expressão recuperação do meio ambiente
pode ser entendida como uma série de atitudes
que tem por finalidade devolver ao meio ambiente
as suas características originais, a estabilidade e
o equilíbrio dos processos atuantes naquele deter
minado ambiente degradado.23
Levando em consideração que a água de reúso
pode ser utilizada com a finalidade de devolver ao
meio ambiente as condições próximas às condições
anteriores à intervenção e dado que essa água
pode atender uma nova demanda, criada a partir
de sua disponibilidade, significa dizer que o reúso
pode ser utilizado para a recuperação hídrica dos
mananciais.
Schatzmann (2004) confirma essa interpreta
ção ao afirmar que:
19
“Art. 35. Compete ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos:
[...] XII - estabelecer diretrizes para implementação da PNSB,
aplicação de seus instrumentos [...]”.
20
“Art. 1º O Conselho Nacional de Recursos Hídricos, órgão consul
tivo e deliberativo, integrante da estrutura regimental do Ministério
do Meio Ambiente, tem por competência:
[...]VI-estabelecerdiretrizescomplementaresparaimplementação
da Política Nacional de Recursos Hídricos, aplicação de seus
instrumentos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento
de Recursos Hídricos;”
21
Ementa: “Estabelece modalidades, diretrizes e critérios gerais para
a prática de reúso não potável de água, e dá outras providências”.
22
Art. 3º O reúso direto não potável de água, para efeito desta
Resolução, abrange as seguintes modalidades:
[...] III - reúso para fins ambientais: utilização de água de reúso
para implantação de projetos de recuperação do meio ambiente;
23
Etimologicamente, o verbo recuperar vem do latim reclamation.
EstudosAmbientais,Unesp,disponívelem:<http://www.rc.unesp.
br/igce/aplicada/ead/estudos_ambientais/ea02a.html>.
5. Fórum de Dir. Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 14, n. 81, p. 22-29, maio/jun. 201526 ARTIGOS
Fernando S. Marcato, Andréa Costa de Vasconcelos
O reúso para fins ambientais inclui a restauração e
a criação de zonas alagadas para o estabelecimento
ou a conservação de habitats e refúgio de animais,
restauração de córregos e riachos. A aplicação de
água de reúso para fins ambientais, segundo Mees
(2004), considera ainda a finalidade de manuten-
ção de vazões de cursos de água, que promove a
utilização planejada de efluentes tratados, visando
a uma adequada diluição de eventuais cargas polui-
doras a eles carreadas, incluindo-se fontes difusas,
além de propiciar uma vazão mínima na estiagem.24
Ainda que a Resolução nº 54/2005 do CNRH
tenha sido muito precisa e clara ao incluir, dentro
do rol de água de reúso, a modalidade para fins
ambientais, a regulamentação não teceu maiores
detalhamentos sobre os requisitos para essa for
ma de uso, o que, a princípio, poderia passar a
impressão de que essa modalidade careceria de
regulamentação. Contudo, essa conclusão seria
precipitada.
3.2 A regulamentação do reúso para fins
ambientais
A leitura apartada da Resolução nº 54/2005
do CNRH possibilitaria concluir que não há regula
mentação específica para a adoção da água de
reúso para fins ambientais. Então, a pergunta ime
diata que deve ser formulada é a seguinte: em
ausência de disciplina pelo diploma mencionado,
a água de reúso poderia ser utilizada para fins de
recarga de manancial?
A resposta é sim. Isso porque o SNRH deve
ser interpretado conjuntamente com o Sistema
Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), que foi ins
tituído pela Lei Federal nº 6.938/81, a qual dispõe
sobre a Política Nacional do Meio Ambiente.
Essa interpretação decorre da leitura do art.
3º da Lei Federal nº 9.433/97, ou seja, da lei que
instituiu o próprio SNRH, in verbis:
Art. 3º Constituem diretrizes gerais de ação para
implementação da Política Nacional de Recursos
Hídricos: [...]
III - a integração da gestão de recursos hídricos com
a gestão ambiental; (grifos nossos)
Assim, em que pese haver dois sistemas autô
nomos, um tratando sobre a proteção do meio am
biente e o outro da gestão dos recursos hídricos,
ambos se comunicam no que tange à gestão dos
recursos dos cursos d’água, razão pela qual os
sistemas devem ser analisados de forma conjunta.
24
Cf. SCHATZMANN, Heloise Cristine. Tratamento avançado de
efluentes de frigorífico de aves e o reúso da água. Mestrado em
Engenharia Química, UFSC, 2009; e MEES, Juliana Bortoli R.
Tratamento de resíduos líquidos III. Apostila. Universidade Tecno
lógica Federal do Paraná. Medianeira - PR, s.n., 2004.
Nesse sentido, a atuação do SISNAMA se dá
mediante a articulação coordenada dos órgãos e
entidades que o constituem,25
observadas as ações
de proteção ambiental, na forma estabelecida pelo
Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA).26
As normas e padrões editados pelo CONAMA,
especialmente no que tange ao padrão de lança
mento de efluentes em corpos receptores, foram
estabelecidos na Resolução CONAMA nº 357, de 17
de março de 2005, que dispõe sobre a classifica
ção dos corpos de água e diretrizes ambientais para
o seu enquadramento, bem como estabelece as
condições e padrões de lançamento de efluentes.
Essa classificação, ainda que tenha sido esta
belecida no âmbito do SISNAMA, é incorporada pelo
SNRH, senão vejamos:
Lei Federal nº 9.433/1997
Art. 10. As classes de corpos de água serão esta-
belecidas pela legislação ambiental. (grifos nossos)
Isso significa dizer que os critérios e padrões
referentes à qualidade de todos os cursos hídricos
no Brasil devem ser estabelecidos pelo CONAMA.
Contudo, a aplicação desta Resolução e a decisão
de enquadrar determinado corpo hídrico dentro das
classes estabelecidas devem ser executadas pelo
órgão competente que faz parte do SNRH.
Nos termos do art. 44, inciso XI, alínea “a”,
da Lei Federal nº 9.433/97, compete à Agência de
Água, no âmbito da sua área de atuação, propor
ao respectivo Comitê da Bacia Hidrográfica o en
quadramento dos corpos d’água nas classes de
uso definidas na Resolução CONAMA nº 357/2005,
para, posteriormente, encaminhar ao Conselho
Nacional de Recursos Hídricos, na hipótese de o
domínio ser da União, ou ao Conselho Estadual, na
hipótese de o domínio ser estadual.
4 O enquadramento dos corpos d’água à
luz do CONAMA
Para as águas doces,27
o CONAMA criou 5
classes para classificação dos corpos hídricos,
conforme demonstra o Quadro 2:
25
Órgão Superior: O Conselho de Governo
Órgão Consultivo e Deliberativo: O Conselho Nacional do Meio
Ambiente – CONAMA
Órgão Central: O Ministério do Meio Ambiente – MMA
Órgão Executor: O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis – IBAMA
Órgãos Seccionais: os órgãos ou entidades estaduais respon
sáveis pela execução de programas, projetos e pelo controle e
fiscalização de atividades capazes de provocar a degradação
ambiental;
Órgãos Locais: os órgãos ou entidades municipais, responsáveis
pelo controle e fiscalização dessas atividades, nas suas res
pectivas jurisdições.
26
Art. 6º, Inciso II, da Lei Federal nº 6.938/81.
27
A título de informação, para as águas salobras ou salinas foram
criadas 4 categorias.
6. Fórum de Dir. Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 14, n. 81, p. 22-29, maio/jun. 2015
Recarga de manancial com água de reúso – Uma alternativa para a conservação dos mananciais e para a escassez hídrica
ARTIGOS 27
A partir da classificação definida pelo CONAMA,
são determinados os usos que podem ser feitos da
água.
Por sua vez, o Quadro 3 demonstra os usos
desejáveis para cada nível de qualidade, bem como
eventual tratamento para o seu uso, segundo a
Resolução CONAMA nº 357/2005.
QUADRO 2 – Quadro de classificação das águas segundo Resolução CONAMA nº 357/2005
Fonte: COSTA, 2011.
QUADRO 3: Enquadramento dos corpos de água segundo as categorias de uso
Fonte: ANA, 2009.
Dentre todas as classes apontadas no Quadro
2, a única que não pode ser indicada para reúso
é a classe especial, uma vez que, por sua natu
reza, está reservada ao uso primário inicial, ou
seja, “destinada ao abastecimento doméstico sem
prévia ou com simples desinfecção, bem como à
preservação do equilíbrio natural das comunidades
aquáticas”.28
28
Art. 4º [...]
I - classe especial: águas destinadas:
a) ao abastecimento para consumo humano, com desinfecção;
b) à preservação do equilíbrio natural das comunidades aquáticas;
e,
As demais classes podem receber água de
reúso, devendo, porém, esta água atender aos
padrões de qualidade estabelecidos pelo CONAMA
para lançamento dos efluentes. Em outras palavras,
o fato de a água ser de reúso não exclui a aplicação
da norma geral do CONAMA.
O art. 5º da Resolução CONAMA nº 430/
2011,29
por sua vez, determina que “os efluentes
c) à preservação dos ambientes aquáticos em unidades de
conservação de proteção integral.
29
Art. 5º Os efluentes não poderão conferir ao corpo receptor
características de qualidade em desacordo com as metas obriga
tórias progressivas, intermediárias e final, do seu enquadramento.
7. Fórum de Dir. Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 14, n. 81, p. 22-29, maio/jun. 201528 ARTIGOS
Fernando S. Marcato, Andréa Costa de Vasconcelos
não poderão conferir ao corpo de água características
em desacordo com as metas obrigatórias, interme
diárias e final, do seu enquadramento”. Contudo,
na ausência de metas intermediárias progressivas,
os padrões de qualidade devem ser os mesmos
que constam na classe em que o corpo receptor
estiver enquadrado, segundo determinação do §2º
do mencionado artigo.30
Na prática, o que se percebe é que se não
houver legislação estadual ou na federal, a depender
do domínio do curso de água, impondo metas inter
mediárias progressivas, a única condição é que a
água de reúso não descaracterize os padrões de
qualidade da água da classe na qual o corpo hídrico
está enquadrado. Mesmo que as condições reais
de qualidade do corpo hídrico sejam inferiores aos
padrões da classe em que está enquadrado, o
efluente não deve, teoricamente, descaracterizar a
classe de uso para a qual foi destinado.
Logo, é possível a utilização de água de reúso
com o objetivo de recarregar mananciais desde que
essa água não altere as condições e padrões de
qualidade de água do corpo hídrico receptor, con
forme o art. 1231
da Resolução nº 430/2011 do
CONAMA.32
É a qualidade da água receptora que
estabelecerá os níveis de tratamento recomen
dados, os critérios de segurança a serem adotados,
os custos de capital, de operação e de manutenção
associados.
5 Conclusão
Atualmente, com a escassez progressiva de
água, a recarga de mananciais com água de reúso
representa uma importante opção governamental
na busca de medidas que visam diminuir os possí
veis problemas ocasionados pela escassez hídrica.
A recarga promove o aumento da disponibilidade
hídrica e, por consequência, da segurança hídrica
da população, da recuperação das condições do
solo dos corpos de águas receptores, bem como
da manutenção dos reservatórios para o uso futuro.
Essa solução não se trata de nenhuma ino
vação. Na verdade, diversas comunidades no mundo
inteiro utilizam-se dessa técnica desde a década de
60 como forma de promover melhorias ambientais
e de condições de saúde.
30
§2º Para os parâmetros não incluídos nas metas obrigatórias e
na ausência de metas intermediárias progressivas, os padrões
de qualidade a serem obedecidos no corpo receptor são os que
constam na classe na qual o corpo receptor estiver enquadrado.
31
Art. 12. O lançamento de efluentes em corpos de água, com
exceção daqueles enquadrados na classe especial, não poderá
exceder as condições e padrões de qualidade de água estabe
lecidos para as respectivas classes, nas condições da vazão de
referência ou volume disponível, além de atender outras exigên
cias aplicáveis.
32
Esta resolução complementa e altera alguns dispositivos da
Resolução CONAMA nº 357.
Conforme apontado, não há insegurança jurí
dica no que diz respeito à adoção da água de reúso
para recarregar mananciais em razão do conjunto
de atos normativos existentes que permite afirmar
que essa solução está devidamente regulamentada
pela legislação que disciplina o Sistema Nacional
de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Meio
Ambiente.
Ainda que esses sistemas tutelem objetos
diferentes, o primeiro a gestão dos recursos hídri
cos e o segundo a proteção do meio ambiente,
eles se comunicam na medida em que a Lei nº
9.433/97 determina que a legislação ambiental
será a responsável por estabelecer os padrões refe
rentes à qualidade de todos os cursos de água no
Brasil, ou seja, será ela a responsável por definir
as classes dos corpos d’água.
Uma vez estabelecidos os padrões de quali
dade que os cursos de água devem possuir pelo
órgão ambiental competente, a única exigência a
ser observada pelo gestor público na escolha da
estudada solução para a escassez hídrica e para
a preservação dos mananciais é que a água de
reúso a ser utilizada no lançamento do manancial
receptor não pode possuir qualidade inferior à do
padrão já classificado pela autoridade ambiental.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002
da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
MARCATO, Fernando S.; VASCONCELOS, Andréa Costa de.
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