Rebeliao de classe media_precariedade de movimentos sociais
Entrevista revela futuro do Aljustrelense Elísio Estanque
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16 É um erro que os governos queiram sempre destruir
o que foi feito para trás [centro Novas Oportunidades].
Diário do Alentejo
24 fevereiro 2012
O que está bem devia ser aproveitado”.
Entrevista
Entrevista ao sociólogo aljustrelense Elísio Estanque
O futuro do Alentejo tem três pontas
O futuro do Alentejo passa pela conjugação das vertentes agrícola, turística
e patrimonial, por uma regionalização adequada e um programa desenvol-
A classe média, tal como a conhecemos nos com universidades, centros tecnológicos e
últimos anos, está a desaparecer? vimentista que combine as mais-valias da região com o sentido de inova- programas ativos de apoio ao crédito e ao au-
A classe média portuguesa está de facto em toemprego dos mais jovens e mais qualifica-
risco de empobrecimento, dado que está a ser ção. A fórmula é apresentada ao “Diário do Alentejo” por Elísio Estanque, so- dos. Mas não há políticas de crescimento sem
a principal vítima das políticas de austeri- investimento público. A austeridade não re-
dade. Na verdade, dos cortes salariais da fun- ciólogo e professor de Estudos Sociais na Universidade de Coimbra. Nascido solve o problema da economia. Antes pelo
ção pública (até 10 por cento) desde janeiro contrário, agrava-o.
de 2011 aos cortes do subsídio de Natal em em Rio de Moinhos, Aljustrel, Elísio Estanque tem estudado temas como
2011 e de férias e Natal em 2012, passando O estado social português, nascido após o
pelos aumentos do IVA e outros impostos, classes sociais e desigualdades, relações laborais, sindicalismo e movimen- 25 de Abril, foi demasiado ambicioso?
das taxas moderadoras no Serviço Nacional O Estado sempre funcionou para os portu-
de Saúde, das restrições nas deduções do IRS tos sociais. O seu último livro, A Classe Média: Ascensão e Declínio, tenta explicar gueses como uma instância que personi-
em matérias diversas, a classe média – em fica o poder. O salazarismo ajudou a pro-
especial os assalariados do setor terciário e a fragilidade da classe média portuguesa, hoje “a principal vítima das polí- jetar uma ideia algo distorcida do poder do
da administração pública –, que no caso de Estado. Afirmou-o como uma entidade cuja
Portugal adquiriu algum poder de compra à ticas de austeridade”. autoridade e cujos recursos são inabaláveis.
custa do estado social, com a expansão dos Tornou-se uma forma de “sacralização” do
sistemas públicos de educação, saúde, poder Texto Alberto Franco poder institucional. Os tiques de centrali-
local, etc., conseguindo com isso oportuni- zação e de autoritarismo têm muito que ver
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dades de um emprego estável e com um con- com isso. No pós-25 de Abril a despesa pú-
junto de direitos reconhecidos, está agora a blica disparou e em diversos períodos usou-
sofrer na pele (ao lado dos segmentos mais -se e abusou-se dos recursos públicos como
pobres e dos desempregados em geral) os fórmula decisiva para se ganharem eleições.
efeitos destas políticas restritivas, vendo-se Por outro lado, a partir dos anos 80 do sé-
assim impedida de continuar a fazer face a culo passado, a entrada de volumosos “fun-
despesas, como prestações de casa e outros dos estruturais” e ao mesmo tempo a pene-
bens que foram entretanto adquiridos com tração do Estado por poderosos interesses
recurso ao crédito. A classe média assala- privados criou um conjunto de relações pro-
riada (pelo menos boa parte dela) está “com a míscuas, permitindo que em muitos setores
corda na garganta”, endividada, sobreendivi- os recursos públicos fossem usados de forma
dada, a fazer empréstimos novos para pagar descontrolada; e isso continuou a acentuar-
os mais antigos, a recorrer à Caritas às escon- -se mesmo numa fase em que o crescimento
didas, a vivenciar a frustração da sua pobreza económico já era muito débil. Em suma, o
envergonhada. Estado e os diversos governos (com destaque
para os governos de Cavaco Silva) não se can-
Como deve o Estado acudir aos novos saram de aliciar os portugueses ao endivida-
pobres? mento, ao individualismo e ao consumismo,
A melhor forma de acudir e combater a po- requisitos que então pareciam levar a um en-
breza tem de ser estimulando o crescimento riquecimento rápido. Pura ilusão que se des-
económico e a criação de emprego. As políti- fez no ar. Tudo foi demasiado rápido. Não o
cas públicas e o RSI – Rendimento Social de verdadeiro enriquecimento, que só aconte-
Inserção constituem ferramentas que o es- ceu para uns quantos negociantes e sobre-
tado social deve continuar desenvolver; mas tudo para especuladores ligados à banca e à
uma coisa são políticas ativas de criação de economia financeira. Os “bons alunos” que
emprego e de combate à pobreza e à exclu- quisemos ser aquando da entrada na UE e
são, outra coisa é a orientação “caritativa” depois na adesão à moeda única, correspon-
que trata os mais carenciados como men- deu a uma retórica de facilitismo, enquanto a
digos e indigentes. E infelizmente é esta úl- nossa indústria, a agricultura e as pescas es-
tima mentalidade que parece estar em cres- tavam a ser devastadas. Essas opções foram
cimento. Penso que precisamos com a maior em larga medida erradas. E o modo como as
urgência de um programa de estímulo ao aplicaram foi precipitado. Não salvaguardá-
emprego jovem, ao emprego qualificado, mos devidamente o interesse nacional e os
um programa que premeie não só as empre- sucessivos governos foram incapazes de tra-
sas que apostem na inovação tecnológica e çar um verdadeiro programa de desenvolvi-
nas boas práticas – que reconheçam os direi- mento e modernização do País. Porém, im-
tos sociais mais elementares – mas também porta reconhecer os muitos progressos que
aquelas que integrem redes de cooperação ocorreram no País – que são conquistas da
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democracia – como o demonstram os indi-
cadores da educação, da ciência e da saúde,
para além da modernização geral das co-
municações, das vias de transporte e das in-
fraestruturas. O problema é que isso não se
traduziu em ganhos de competitividade na
economia.
Um dos sintomas da crise que atravessamos
é o descrédito da classe política e dos parti-
dos, especialmente dos que passaram pelo
poder. De que forma podem os governantes
recuperar o capital de confiança perdido?
Eu entendo que os partidos políticos não es-
tão a ser capazes de se abrirem à sociedade, à
juventude e de se renovarem. A prova disso é
que em cada estudo de opinião os cidadãos
(portugueses e europeus em geral) revelam a
sua perda de confiança em relação às institui-
ções democráticas e à classe política. Ainda A tradição agrícola a contribuir para mais crispação e para pôr em adequada que descentralize poderes e es-
recentemente uma sondagem revelava que risco a coesão social. timule os agentes locais. Precisamos de um
apenas 54 por cento dos portugueses consi- e o latifúndio não programa desenvolvimentista com capa-
deram que a democracia é o melhor regime se renovaram e a O que lhe parece o recente encerramento de cidade de gerar projetos e redes, orientados
político e só cerca de 10 por cento das pessoas alguns centros Novas Oportunidades? para a governança (isto é, congregando esfor-
confiam nos partidos e nos sindicatos. Isso é Reforma Agrária não Sou contra. Acho um disparate. Mesmo ad- ços diversos, de agentes públicos e privados e
muito significativo e preocupante. Penso que mitindo que há coisas a corrigir e a melhorar, dinamizando o associativismo de base local)
isso só se combate com mais transparência, teve, infelizmente, a que é preciso mais rigor e mais algum con- que saiba combinar a enorme riqueza patri-
com declaração de interesses e vigilância de- continuidade que o povo trolo, o programa Novas Oportunidades foi monial e paisagística da região alentejana
mocrática sobre quem assume cargos públi- no geral muito positivo. Ajudou à qualifica- com o sentido de inovação, que atraia inves-
cos, com recurso à democracia participativa, alentejano merecia. ção e reconhecimento das competências pro- timento e emprego para fixar a juventude e
à iniciativa dos cidadãos (mais importância fissionais de largos milhares de portugueses. estimular o crescimento económico.
às petições, mais referendos, mais orçamen- Recentemente, o grande É um erro que os governos queiram sempre
tos participativos no poder local, etc.) e tam- investimento da barragem destruir o que foi feito para trás. O que está Para preparar a sua tese de doutoramento
bém é necessário rever e alterar a lei eleitoral, bem devia ser aproveitado. trabalhou numa fábrica de calçado. Como
dando mais margem de escolha aos eleitores, de Alqueva foi uma foi essa experiência?
nomeadamente na escolha seletiva dos can- Qual o futuro de regiões de forte interiori- Eu trabalho desde os 16 anos e conclui o
didatos a deputados, como forma de comba- grande promessa, mas até dade, como é o caso do Alentejo? meu curso como trabalhador-estudante, em
ter os seguidismos e as oligarquias no seio agora está por cumprir, Portugal já é há mais de meio século uma so- Lisboa. Mas realmente nunca tinha traba-
dos partidos e das instituições. Círculos uni- ciedade dual (como lhe chamou o professor lhado numa fábrica. Essa experiência junto
nominais podem também ajudar. quer no que respeita Adérito Sedas Nunes, o fundador da socio- do operariado do calçado em São João da
logia portuguesa), com grandes desequilí- Madeira (1996), onde fiz questão de, durante
Ao mesmo tempo que criticam os políticos, à rede de regadio que brios entre o mundo rural e as principais me- três meses, cumprir todos os horários da em-
os portugueses resignam-se e aceitam os sa- era suposto promover, trópoles, entre o interior e o litoral. Ora, esse presa e onde desempenhei diversas tarefas na
crifícios por eles impostos. Não há aqui uma desequilíbrio agravou-se muito nas últimas linha de montagem, foi para uma experiência
contradição? quer no que respeita décadas sem que entretanto tivessem sido extremamente rica. O grupo operário trans-
Há muitas contradições. Desde logo, por criados e implementados projetos de desen- porta consigo uma inteligência de experiência
exemplo, a questão da “cunha” ou do “padri- ao desenvolvimento volvimento sustentável baseados em conhe- feita, que muitas vezes foi desarmante e pôs
nho”, que toda a gente condena nos políticos, turístico da região cimento inovador e com potencialidades para em causa alguns dos meus preconceitos (de
mas que muitos praticam na sua vida quoti- fixar as gerações mais jovens e mais qualifi- classe média…). Esse mergulho no mundo
diana. Há de facto uma cultura de fatalismo cadas. O Alentejo é um desses casos. A tradi- da indústria permitiu-me perceber melhor o
e resignação, mas isso também tem limites. ção agrícola e o latifúndio não se renovaram potencial e capacidade criativa das pessoas.
Quer no pós-25 de Abril de 1974, quer na 1.ª possam refletir e debater as questões sociais e a Reforma Agrária não teve, infelizmente, Entendi melhor a importância das lideranças,
República, quer mesmo nos últimos tempos, e comunitárias que dizem respeito a todos. a continuidade que o povo alentejano mere- e da falta delas. A análise do setor industrial
temos assistido a fortes manifestações de in- cia. Recentemente, o grande investimento da do calçado permitiu-me compreender como
dignação e de protesto público. Seria muito E o modelo de concertação social em vigor? barragem de Alqueva foi uma grande pro- uma atividade económica pode ser inova-
importante que se estimulasse mais o exercí- Há dificuldades de diálogo e a cultura da ne- messa, mas até agora está por cumprir, quer dora em tecnologia mas muito conservadora
cio da cidadania ativa, para começar no poder gociação também é frágil em Portugal. Cada no que respeita à rede de regadio que era su- na gestão de recursos humanos. Compreendi
local, estimulando mais o associativismo e as parte, em geral, quer ter o poder todo ou a ra- posto promover, quer no que respeita ao de- melhor o modo como se combinam a ativi-
iniciativas de base, como o cooperativismo e a zão toda do seu lado. O mundo não é a preto e senvolvimento turístico da região. E creio dade industrial e a pequena agricultura fami-
economia solidária do terceiro setor. branco. É complexo e contraditório. Ninguém que o futuro do Alentejo passará pela con- liar, o lado formal e informal na gestão das or-
tem a razão toda do seu lado. Precisamos de jugação dessas duas vertentes: agricultura e ganizações. O paternalismo e autoritarismo
O atual modelo partidário, que vem desde consensos e compromissos, mas isso requer turismo – ou talvez três, somando-lhe o pa- patronais, presentes no setor, refletem tam-
1974, permanece válido ou carece de que todas as partes façam cedências. O con- trimónio. Um turismo de qualidade mas bém a estreita ligação entre a vida na empresa
renovação? senso é isso. Senão é apenas a vontade do mais que não pode ser apenas elitista ou depen- e a comunidade: os laços pessoais, familiares
Carece de renovação, sem dúvida. Adaptação forte. E o que acontece é que muitas vezes te- dente dos campos de golfe. Deve envolver as e de vizinhança, que existem naquela região,
de estatutos, maior envolvimento dos mili- mos um simulacro de concertação. Foi o que populações e revitalizar as comunidades lo- ajudam a explicar o porquê de um setor tão
tantes de base em eleições “primárias” (na aconteceu recentemente com o campo laboral: cais, nomeadamente oferecendo-lhes cultura competitivo mas onde ainda se praticam sa-
escolha dos candidatos), mas sobretudo mais chega-se à mesa da negociação mas o essencial e promovendo a própria cultura e tradições lários extremamente baixos e abusos de po-
debate aberto, onde militantes e eleitores já está previamente decidido. Assim, estamos locais. Precisamos de uma regionalização der muito preocupantes.