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H I S T Ó R I A
E ANTOLOGIA
DA L I T E R AT U R A
P O RT U G U E S A
S

é

c

u

l

o

XVII

N.º 36

FUNDAÇÃO
CALOUSTE
GULBENKIAN
1

Serviço de Educação e Bolsas
HALP N. 36

Professores/Investigadores
Margarida Vieira Mendes
Maria Lucília Gonçalves Pires
José van den Basselaar

Agradecimentos
Biblioteca Nacional
Edições Cosmos
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Museu Calouste Gulbenkian

Ilustração Capa:
Nicolas-Bernard Lépicié
(1735-1784)
Auto-retrato (pormenor)
c.1777. Óleo sobre tela
A. 0,908 X L. 0,715 m. (N. Inv. 2386)
Lisboa: Museu Calouste Gulbenkian

Ficha Técnica
Edição da Fundação Calouste Gulbenkian
Serviço de Educação e Bolsas
Av. de Berna 45A - 1067-001 Lisboa
Autora: Isabel Allegro de Magalhães
Concepção Gráfica de António Paulo Gama
Composição, impressão e acabamento
G.C. Gráfica de Coimbra, Lda.
Tiragem de 11.000 exemplares
Distribuição gratuita
Depósito Legal n.° 206390/04
ISSN 1645-5169
Série HALP n.° 36 - Novembro 2006

2
PADRE ANTÓNIO VIEIRA
CARTAS
HISTÓRIA DO FUTURO

3
4
Clavis prophetarum / Chave dos Profetas

Índice

Caps.: I, II, III, IX (excertos) .......................... 79

História do Futuro, Livro Anteprimeiro
Caps.: III, IX, X (excertos) ............................. 00
Nota Prévia ................................................... 7

ESTUDOS BREVES: INTRODUÇÕES
“A epistolografia de Vieira”
Maria Lucília Gonçalves Pires ................. 11
“O relevo de Chaves dos Profetas”
Margarida Vieira Mendes ........................ 15
“Alguns dados sobre a História do Futuro”
José van den Basselaar ............................. 19

TEXTOS LITERÁRIOS:

Cartas (excertos)
Vol. I
Introduções. Cartas: I, IV.
Introdução. Cartas: XV, XVI, XIX, XLVII.
Introduções. Cartas: LI, LV LVII, LXI, LXII, LXIV
,
,
LXV, LXIX, LXXVII, LXXX, LXXXIII ........ 25
Vol. II
Introdução. Cartas: II, XIX, XL, LII, CXVI,
CXXIX, CXLIX, CLII, CLXXV, CLXXX,
CXC, CXCIV ............................................... 57
Vol. III
Cartas: II, XXXVII, XLI, XLIII, LXI, LXVI,
LXXIII, LXXV, CVIII, CXV, CXVI, CXXII,
CXXXIV, CXXXVIII, CXLI, CXLIV, CLIV,
CLVIII.
Introdução. Cartas: CLXXX, CXCI, CCIII,
CCXXX ........................................................ 66

5
6
– A Chave dos Profetas (Clavis prophetarum) trata
de matérias diversas e, enquanto “tratado”, faz a
par e passo a apresentação de argumentos sobre
cada tópico para a seguir os refutar ou confirmar, deles extraindo sempre algumas conclusões
quanto ao ponto contemplado. Este texto, tal
como claramente o mostrou Margarida Vieira
Mendes na sua apresentação da edição que tencionava elaborar deste texto, não é (como em
tempos foi considerada) a última obra de Vieira:
“O autor escreveu o texto em Roma, onde permaneceu entre 1669 e 1675”.
De tal modo são variados os assuntos que, conforme sugeriu também Margarida Vieira Mendes,
quase se poderia considerar estarmos presente
um conjunto de “pequenos tratados independentes”. De entre os temas, lembremos como
exemplo os seguintes: os lugares e os tempos em
que o Reino foi anunciado, de que maneiras e a
quem se dirigia esse anúncio, a pregação universal do reino de Deus, a questão de uma lei natural e a de a ignorância dos “bárbaros criados nas
selvas” poder funcionar como inocência diante
de Deus, as atitudes de rejeição, por parte dos
Judeus, relativamente a S. Paulo e o modo como
S. Paulo reagiu a essas atitudes judaicas, etc.
Deste tratado temos aqui excertos de alguns dos
capítulos, e apenas do Livro III, já que foi por
ele que se começou a edição crítica da obra (e
até hoje é o único publicado).

Nota Prévia
Este penúltimo número (36) da Antologia dedica-se a algumas das Obras do Padre António
Vieira:
* Dois Tratados – a Chave dos Profetas, em três
livros, escritos em latim, e a História do Futuro;
* Epistolografia: numerosíssimas Cartas (publicadas agora em três volumes), escritas durante
quase todas as décadas da vida do Autor, a partir
dos vários locais onde viveu, com diversíssimos
destinatários que são, em geral, figuras de relevo
da política, da aristocracia, da Igreja, em Portugal
e na Europa do seu tempo.
– Do amplo conjunto das Cartas, um total de
quase mil, figuram aqui naturalmente apenas
algumas, e de quase todas apenas excertos, por
vezes brevíssimos. Foram escolhidas de quase
todos os períodos em que é possível dividir a
vida, a intervenção e a escrita de Vieira. Desse
modo, é possível o leitor dar-se conta da diversidade de níveis de intervenção que envolveu e
ocupou a vida do Autor, bem como da quantidade de relações e amizades que manteve e dos
obstáculos que a sua visão e coragem provocaram nas autoridades da época (tanto da Igreja
como da política, o que se torna particularmente grave perante a Inquisição).
Esta edição das Cartas apresenta, entre os agrupamentos temporais e espaciais em que se organiza a Correspondência, pequenas introduções
que situam o contexto histórico e biográfico em
que as cartas foram escritas. Daí que nesta Antologia essas pequenas notas infor mativas e
comentativas, ou excertos delas, tenham sido incluídas e mantidas, tal como acontece nesta
edição, no início de cada novo período.

– Quanto à História do Futuro: o plano gigante
que Vieira elaborou para esta obra não chegou a
poder ser cumprido. Dele nos fica apenas um
livro, destinado a preceder os conteúdos dessa
História. Aliás, o próprio título geral, atribuído
ao tratado a escrever, mostra a ambição do plano
gizado:
História do Futuro, Esperanças de Portugal e Quinto Império do Mundo. Livro Anteprimeiro. Prolegómeno a toda a
História do Futuro em que se declara o fim e se provam os
fundamentos dela. Primeira Parte. Matéria, Verdade e Utilidades da História do Futuro.

7
Aquilo que Vieira deixou pronto é afinal um
livro preliminar, curiosamente chamado Livro
Anteprimeiro, em que expõe os objectivos a que a
obra iria obedecer e os argumentos que a tornariam útil e significativa.
Deste livro, figuram neste volume também só
excertos de alguns dos capítulos que dão conta
das intenções do conjunto da obra e sua fundamentação.
Os textos, como é já usual nestes Boletins, são
precedidos por breves Introduções críticas que
funcionam como abertura a um melhor entendimento das obras do seu conjunto.
A Bibliografia, longa e mesmo assim sumária –
atendendo ao volume de obras críticas existentes sobre o autor –, diz respeito a estes dois
últimos volumes da Antologia, ambos sobre Vieira
– pelo que o próximo número (37) não incluirá
qualquer bibliografia, a não ser a que diz respeito
aos textos seleccionados: os Sermões.
Para simplificação da leitura, foram retiradas dos
textos quase todas as notas.
Lisboa, Julho, 2006
ISABEL ALLEGRO

DE

MAGALHÃES

8
I N T RO D U Ç Õ E S
ESTUDOS BREVES

9
10
A epistolografia
de Vieira

escritas por um homem que em boa parte fez a
história do seu tempo (como escreve em carta
ao conde da Ericeira de 18/8/88, «a parte [da
história] que pertence ao Brasil, vi-a com os
olhos, e a outra parte das embaixadas passou-me
pelas mãos»); um homem apaixonado pelas
questões da res publica, pelos meandros da diplomacia, pelas intervenções nas esferas do poder
deliberativo. Da sua intervenção directa em negócios do Estado fala, em jeito de balanço, na célebre carta ao conde da Ericeira (Baía, 23/5/89),
refutando com acrimónia o juízo pouco elogioso
que de tal actividade aquele autor formula na
sua História de Portugal Restaurado. E aí recorda as
suas bem sucedidas diligências para obter o
dinheiro necessário à defesa do reino em momento desesperado, a proposta de transferir para
o Brasil a produção de especiarias da Índia para
as fazer chegar aos mercados europeus a preço
mais competitivo, e, sobretudo, o que ao longo
dos anos sempre considerou a coroa de glória da
sua actuação política – a criação, em 1649, da
companhia do comércio do Brasil – lamentando
sempre que o seu plano não tivesse tido plena
realização, pois nunca se chegou a criar a companhia do comércio do Oriente que reiteradamente propusera. Se é certo que as cartas de
Vieira nos dão a imagem de um homem apaixonado por várias causas, política (no seu sentido
etimológico) é talvez a palavra que unifica os
diversos objectos da sua paixão. O apaixonado
empenhamento de Vieira nas questões políticas,
expresso na acção e na escrita, unifica no seu
pensamento o pendor pragmático e a utopia
messiânica, ilumina as diversas facetas da sua
vida. De tal modo que uma semana antes de
morrer, com noventa anos, cego e quase completamente surdo, ainda dita cartas em que manifesta
a sua preocupação pelas consequências políticas
da morte do rei de Espanha e tece considerações sobre o preço do açúcar, denunciando a

(excerto)
MARIA LUCÍLIA GONÇALVES PIRES *

[...]
2. As cartas como documento histórico
As cartas de Vieira têm sido lidas principalmente
como documento histórico, o que é perfeitamente justificado pela riqueza de informações
que contêm acerca da vida do autor e da sua
época. Antes de mais, informações que permitem traçar com bastante minúcia o seu percurso
biográfico, pelo que a valiosa História de António
Vieira, de Lúcio de Azevedo, tem as cartas como
principal fonte de informação. São documento
precioso e imprescindível para a história da
Companhia de Jesus em Portugal no século
XVII e, sobretudo, da missionação do Brasil
(veja-se o aproveitamento de textos das cartas
nas obras de historiadores da Companhia como
Francisco Rodrigues e Serafim Leite). Do mesmo
modo António José Saraiva baseia essencialmente
no texto das cartas o seu trabalho intitulado «O
Padre António Vieira e a liberdade dos índios»,
trabalho em que analisa de forma sistemática o
desenrolar do que foi um dos grandes combates
da vida de Vieira.
Mas também para a história política do nosso
século XVII abundam os materiais nestas cartas
* In Vieira Escritor. Org. Margarida Vieira Mendes, M.ª Lucília
G. Pires, J. Costa Miranda. Lisboa: Cosmos, 1997, p. 24-29.

11
injustiça de uma política económica que explora
despudoradamente os recursos do Brasil.
A epistolografia de um espírito assim atento aos
acontecimentos políticos, que participou em
muitos deles, que se correspondeu ao longo da
sua longa vida com as figuras mais relevantes da
cena nacional, bem como da sua Companhia e
mesmo da cena internacional, é obviamente um
documento histórico de valor inapreciável.

Em primeiro lugar, consideremos a utilização do
discurso narrativo. Ele torna-se evidente sobretudo nas cartas dirigidas aos seus superiores com
o objectivo de lhes dar a conhecer os principais
sucessos da vida da Companhia nos lugares em
que se encontrava. Trata-se de um tipo de literatura abundantemente cultivada pelos membros
da Companhia de Jesus que não se limitavam a
mera finalidade informativa; aliás, algumas das
observações de Vieira permitem-nos apreender
outras funções consignadas a estas cartas: a apologia da Companhia e da sua obra, a edificação
espiritual dos seus leitores, e também o estímulo
a que alguns desses leitores se deixassem contagiar pelo entusiasmo apostólico de que elas
eram testemunho.
Estas cartas narrativas de Vieira, analisadas como
processo de construção de um auto-retrato,
apresentam o autor, não apenas como simples
narrador, mas como protagonista da acção narrada: como sujeito de um agir, quase sempre
triunfante, mas também como sujeito de um
falar, dominando pela palavra situações difíceis
ou conflituosas. A técnica retórica da argumentação persuasiva, tão engenhosamente explorada
nos seus textos parenéticos, prolonga-se e repercute-se, de forma aparentemente mais natural,
mas não menos eficaz, no texto das suas cartas.
Recordo o passo da carta ao Provincial do Brasil
(22/5/1653) em que relata o efeito do seu violento «Sermão das tentações» (1.ª Dominga da
Quaresma de 1653) com que procurou resolver
o magno problema da liberdade dos índios.
Escreve Vieira, depois de ter resumido as linhas
essenciais da argumentação desenvolvida nesse
sermão: «Nas cores que o auditório mudava
bem via eu claramente os afectos que, por meio
destas palavras, Deus obrava nos corações de
muitos, os quais logo de ali saíram persuadidos a
se querer salvar e a aplicar os meios que para
isso fossem necessários a qualquer custo. Na
mesma tarde, antes que a memória se perdesse

3. As cartas como auto-retrato
Mas a perspectiva de leitura que me parece mais
sedutora consiste em encarar as cartas como
construção de um auto-retrato, procurando analisar os processos mobilizados nessa construção e
a imagem multifacetada deles resultante.
Verney, um autor que ninguém pode considerar
suspeito de particular simpatia por Vieira, tendo
em conta as críticas impiedosas que formula
contra os seus escritos em geral e os seus sermões em particular, escreve a concluir as suas
apreciações: «Vejo nas suas cartas retratado um
ânimo grande, um desinteresse nobre, uma viva
paixão pelos aumentos do seu reino e ardente
desejo de se sacrificar por ele (...) Se eu vivesse
no seu tempo, seria o seu maior amigo». É, afinal, esta personalidade que nas cartas se revela o
único aspecto que atrai a simpatia de Verney.
Sabemos como o género epistolar se presta
particularmente a esta revelação do sujeito que
escreve, dada a ausência de normas rígidas a
codificarem as formas de expressão neste tipo de
discurso. Mas sabemos também como a imagem
que do autor se revela num texto, mesmo naqueles que, pelas suas características genológicas,
mais se prestariam a uma comunicação directa e
imediata, constitui uma construção resultante de
um conjunto de processos literários mobilizados
pelo autor. Analisemos, pois, alguns desses processos.

12
ou alguma conferência secreta a confundisse,
deu o capitão-mor princípio a uma junta (...)
Pediram-me então quisesse tornar a propor o
que de manhã dissera, e aprovado por todos,
nemine discrepante, chegou-se aos meios de execução».
Aqui temos a imagem do orador e do homem
de acção: do homem que triunfa no plano da
acção pela força da sua palavra veemente e iluminada.
Mas nem sempre os relatos nas cartas de Vieira
nos dão dele esta imagem triunfante. São mesmo muito numerosas aquelas em que dá de si
uma imagem enfraquecida: a sua frágil saúde
afectada pelos frios de Coimbra ou de Roma; a
doença que o debilita e o leva a «cuspir sangue»
quando, sob custódia da Inquisição, é obrigado a
escrever em breve tempo a sua defesa (carta a
Diogo Velho, 21/9/1665). Mas nunca estas imagens de fraqueza diminuem a força do seu
discurso: um discurso que é a expressão da autoridade que emana da sua clarividência, da sua
capacidade de ver e de entender: os factos, os
homens, os sinais. Esta clarividência de que se
apresenta dotado é a base, tanto dos seus conselhos políticos, com a marca da autoridade do
saber, como das suas previsões messiânicas, voz
de profeta capaz de ler o que está evidente
apenas àqueles que tenham olhos de ver.
Este sujeito que se apresenta como protagonista,
quase sempre triunfante, das acções que narra;
este conselheiro e comentador dotado de autoridade; este visionário capaz de decifrar os sinais
dos tempos e de entender os textos que ensinam
a decifrá-los, é também um espírito dotado de
uma sensibilidade que se exprime frequentemente por meio de uma linguagem profundamente emotiva. Umas vezes deparamos com
uma emotividade que se manifesta de forma
directa, impressionante de intensidade. E as
emoções que assim se exprimem tanto pode ser
o seu acrisolado amor pela pátria, como a raiva

pela cegueira e incompetência dos seus dirigentes, como a dor pela marginalização de que se
sente vítima.
O dolorido amor por uma pátria que se vê na
decadência devido à insensatez de quem a
governa exprime-se sobretudo em cartas escritas
de Roma (1669-75) ao seu amigo Duarte
Ribeiro de Macedo, com quem partilha preocupações e ideias políticas. Em algumas dessas cartas
este amor é referenciado como loucura, como
doença capaz de o levar à morte: «Já se me
acabou a paciência, e tenho tão pouco coração e
tão pouco juízo, que também me há-de acabar a
vida este indiscreto amor de uma pátria que tão
pouco o merece», escreve em 19/7/72. O remédio seria esquecer esta pátria ingrata. Por isso
aconselha ao amigo: «Se V S.ª quer melhorar dos
seus achaques, busque algum meio de não cuidar em Portugal, porque só este remédio podem
ter os que o amam, e isto é o em que eu ando
cuidando há muitos dias» (7/2/1673). Mas é-lhe
impossível pôr este remédio em prática, o que
lhe provoca mesmo um problema de natureza
religiosa: tendo, durante os dias de exercícios
espirituais ordenados pela Companhia, analisado
a sua consciência para descobrir o seu principal
defeito, revela: «achei que era o afecto português
e imoderado amor e zelo da pátria, e contra este
tão forte inimigo me tinha armado (...). Mas
ainda que o tenho muitas vezes convencido, não
acabo de o ver vencido» (17/10/73). Daí a sua
confissão desesperada: «Confesso a V. S.ª que,
depois de ter nascido em Portugal, a maior felicidade fora ou não chegar a uso de razão ou tê-lo
perdido» (7/11/73).
A linguagem da emoção assume por vezes um
tom sarcástico, uma ironia cortante, sobretudo
quando se trata de julgar os responsáveis pela
dramática situação da pátria. Recordando a
supremacia da França nos mares do Oriente
para onde acabara de mandar uma forte armada,
comenta: «E nós cuidamos que, com ter duas

13
gôndolas em que passar a Salvaterra, somos reis
de aquém e de além mar»; um sarcasmo que
chega mesmo a parodiar a primeira das bem-aventuranças: «A nossa pobreza de espírito nos
poderá segurar o reino do céu, mas não sei se o
da terra» (7/2/1673).
As cartas escritas nestes anos da estadia em
Roma, gozando de protecção e prestígio e liberto
das forças que em Portugal o ameaçavam, são
aquelas em que os seus sentimentos se exprimem de forma mais livre e veemente, sobretudo
as que dirige a Duarte Ribeiro de Macedo,
encarregado de negócios em Paris, embora por
vezes recorra prudentemente ao uso de linguagem cifrada. Mas em anos anteriores e em circunstâncias muito diferentes, a intensidade da
emoção encontra formas de expressão não menos
impressionantes na sua dramática contenção.
Recorde-se a carta escrita ao príncipe D.
Teodósio ao partir para as missões do Maranhão,
em Dezembro de 1652. O relato minucioso,
quase hora a hora, de passos, gestos, diligências,
comunica a ansiedade com que espera uma
palavra do rei que o impeça de partir, até ao
desespero da decepção final: «As velas se largaram e eu fiquei dentro [da caravela] e fora de
mim». Uma carta que, à superfície do texto, é a
construção da imagem do vassalo fiel preocupado apenas com a salvaguarda da sua obediência à
vontade do rei; mas, na sua minúcia narrativa,
diz essencialmente a angústia de quem vê cortarem-se, de forma abrupta e inesperada, os laços
que o ligavam a um estilo de vida que o seduzia.
É uma carta que nos dá também a imagem de
um daqueles momentos de viragem frequentes
na vida e na alma de Vieira: o homem de corte,
desesperado por se ver afastado dela, dá lugar,
neste mesmo texto, ao missionár io já
embrenhado na preocupação com a salvação das
almas dos gentios.
Neste auto-retrato que as cartas constróem surgem também pinceladas que desenham o Vieira

escritor. Sobretudo o autor de Sermões, a cuja
preparação dedica os últimos vinte anos da sua
vida, embora manifestando frequentemente a
sua contrariedade perante essa tarefa que atribui
ao dever de obediência aos superiores. Já em
1652, em carta ao provincial do Brasil, refere a
hipótese dessa publicação para arranjar dinheiro
para as missões do Maranhão: «Quando não haja
outras [receitas], resolver-me-ei a imprimir os
borrões de meus papelinhos que, segundo o
mundo se tem enganado com eles, cuida o
Padre Procurador Geral que poderá tirar da impressão com que sustentar mais [missionários]
dos que agora vão» (14/11/52). E em 1658, em
plena actividade missionária, conta a um sacerdote amigo: «Ordenou-me o Padre Provincial e
o Padre Visitador que alimpasse os meus papéis
em ordem à impressão, para com os rendimentos dela ajudar a sustentar a missão». Mas só vinte
anos mais tarde se dedicará sistematicamente a
essa tarefa, publicando o primeiro volume dos
seus Sermões em 1679. E o autor, que insistentemente refere a dificuldade de recuperar esses
textos pronunciados noutros tempos, não deixa
de ir fornecendo informações acerca do desenrolar dessa tarefa e mesmo do seu desagrado
perante edições não autorizadas ou traduções
imperfeitas.
Quanto à elaboração da História do Futuro, vão
surgindo breves observações em cartas escritas
nos anos difíceis de 1663-65,e todas exprimem
a urgência de concluir essa obra anunciadora da
plenitude dos tempos antes que chegue a realização, que julga iminente, desse futuro de que se
apresenta como cronista.
Mais tarde, quando já em Roma, é da elaboração da Clavis Prophetarum que fala, com um mal
disfarçado orgulho de autor: «Tenho em grande
altura um livro latino intitulado o Quinto Império, ou Império consumado de Cristo, que vem
a ser a Clavis Prophetarum, e ninguém o lê sem
admiração e sem o julgar por importantíssimo à

14
O relevo
de Chave
dos Profetas

inteligência das escrituras proféticas» (22/10/
/1672). A escrita desta obra, que foi obrigado a
ir intercalando com a preparação dos sermões,
foi interrompida pela sua morte. Seis dias antes
de morrer, a 12/7/97, ainda ditava uma carta em
latim (a última que conhecemos) em que informava o Superior Geral do andamento dessa obra
em que trabalhava há tantos anos. Uma obra que
ficou incompleta, a testemunhar a permanência
desse sonho messiânico que iluminou toda a sua
vida.

(excerto)
MARGARIDA VIEIRA MENDES *

A Chave dos Profetas
[...]
Entremos então nos problemas editoriais da
Clavis. Primeiramente questões de método. Não
cabe na metodologia da crítica genética por se
tratar de um caso de mobilidade na transmissão
de um texto, mais do que propriamente na criação
ou produção textual; na falta de qualquer autógrafo ou idiógrafo, o que temos é a presença de
refundições, de testemunhos textuais. E digo-vos
já que os testemunhos que até agora conheço
são doze. Vi-os todos (de visu), excepto dois que
estão no México. É possível que haja mais manuscritos, mas não serão necessários. Porquê?
Porque já estudei e decifrei as famílias, o códice
optimus e os dois que servirão para ajudar a
reconstituir o texto, o mais próximo possível do
que terá sido o original. Lembro que os locais
onde se encontram os manuscritos são: Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, Biblioteca da Ajuda,
Roma (em três arquivos), Loyola – os sítios por
onde andei, em Roma com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian – e México. Na fase

* In Vieira Escritor, p. 33, 34, 36-39.

15
em que nos encontramos, só lidamos com dois
testemunhos, pois não temos dinheiro para
mandar vir um terceiro de Roma de que ainda
necessitamos.
A Clavis, ou De regno Christi in terris consummato
(que certamente será o último título escolhido
por Vieira), insere-se dentro do campo de problemas que a crítica textual enfrenta na edição
de borrões, das obras manuscritas não acabadas,
capelas imperfeitas, embora não exclusivamente.
Começamos a descobrir, com a tradução do
último tratado, que é mais literária do que terá
pensado Barbosa Machado na Biblioteca Lusitana,
onde a classifica no género da exegese ou
comentário (que aliás não deixa de ser). Mais
adiante reflectirei sobre a questão do género,
que é do maior interesse e beleza emocionante.
A história da feitura da Clavis anda mal contada
e empolgada, e Vieira foi responsável, pois sempre
anunciou obras espectaculares que só tinham
título ou fachada, ou fragmentos, ou plano, e
sobretudo intenção, muita intenção, de intervir
no estado das coisas do tempo. História do Futuro
e Apologia, por exemplo, que são discursos incompletos, mas de acção e circunstância, e agora,
por efeito perverso da edição, são lidos como
livros inteiriços e não como obras dotadas de
intencionalidade mas fragmentárias.
É contra tal que a nossa edição se vai edificar.
De facto, Clavis, redigida em Roma, não é coisa
de cinquenta anos, nem trinta, como dizia
Vieira. Só em Roma quis ver as suas proposições, proposições anteriormente condenadas
pela Inquisição portuguesa, aprovadas pelo Papa,
e para tal redige rapidamente uma obra. Mais
uma vez, intenção e circunstância. Como conseguiu um Breve que o isentava da Inquisição,
resolveu regressar. Terá havido problemas e discussões por causa de uma parte da Clavis que
trata da conversão dos judeus, que foi um combate romano do padre António Vieira, como é
sabido. A questão da restituição dos ritos judaicos

com outra simbologia tornou-se controversa na
corte papal, mas não posso agora tratar disso.
Passemos à questão da incompletude da obra.
Existe uma descrição do original feita pelo
Padre Casnedi em 1714, que aponta as lacunas,
imperfeições, falta de capítulos, nos Livros II e
III, estando apenas o Livro I bem acabado, com
doze capítulos. [...]
Sobre a minha leitura, queria deixar apenas quatro observações ou comentários:
1) Várias vezes o jesuíta alude ao fim do século,
como hoje diríamos. Neste tratado, que agora
começo a conhecer, expõe um grande número
de questões sobre a pregação universal do evangelho, dado que, segundo a doutrina escatológica
cristã, ela é uma das condições para a consumação do reino de Cristo. Apercebemo-nos logo
do problema e drama de Vieira: a constatação da
impossibilidade dessa pregação universal e da
consequente salvação das almas dos gentios ou
índios, e de muitas outras. O calafrio vieiriano
era decerto menos metafísico que o de Pascal,
mas não menos visceral. Vieira tem a noção das
dimensões intangíveis do mundo e a consciência
derrotada das vastíssimas partes dele onde o
Evangelho ainda não chegou (África interior,
América interior, a dita «terra austral» – região
oriental em que se encontram as dez tribos perdidas). Ao mesmo tempo, o jesuíta manifesta
algum desânimo como missionário do mundo
novo, um desânimo bem contrário à euforia
épica do Livro Anteprimeiro da História do Futuro.
Parece que as amadas visões poéticas de Isaías
começam a fazer outro sentido para Vieira, que
adiante vou explicar. Pela primeira vez, vai
apontar as dificuldades derivadas da chamada
invencível ignorância de Deus e da irracionalidade que existe nos bárbaros. Não já como um
desafio divino, como uma prova heróica, como
uma necessidade política, mas sim como uma
barreira tragicamente intransponível. É que

16
Vieira está a falar da salvação das almas e não
dos corpos.
2) O que me parece mais importante e muito
belo é que, na sua busca do sentido anagógico,
ele vai preferir sempre textos de profetas e apóstolos – os fundadores, os primeiros: salmos de
David, Isaías sobretudo, e S. Paulo. E insiste sempre no sentido literal (estou a situar-me, obviamente, no método hermenêutico dos quatro
sentidos). Se usa os exegetas, comentadores e teólogos como Suárez, é para os refutar e condenar
como obscurecedores, lançadores de confusão e
encobridores do verdadeiro sentido dos profetas.
Os que só fazem atrasar o conhecimento. A
grande base de sustentação ou quadro passional
do pensamento de Vieira é a tomada à letra da
beleza imagética da citação profética. Estabelece
sempre a sua aliança com a acção do tempo e
esclarecimento do futuro. Tudo o mais é antigo
e não se realizou. Só a crença, a fé nas imagens
deleitosas de Isaías, sobretudo as da abundância,
pode, segundo Vieira neste tratado, declarar a
realidade vindoura. Junta assim os arquétipos
fundadores, que são de natureza literária e simbólica, com a realidade final da salvação e do fim
dos tempos.
3) Outro fundamento sólido usado pelo autor é
a experiência vivida pelo próprio jesuíta, em que
muito insiste. Parece-me o reverso do célebre
Sermão do Espírito Santo e da imagem optimista
da conhecida e genesíaca estátua do índio-pedra
onde a arte apostólica corrige a natureza. As
razões desse sermão eram pragmáticas ou
perlocutórias, como se sabe, questão de incutir
ânimo aos missionários.
Agora, pelo contrário, argumenta a favor de uma
intervenção providencial e maravilhosa do sagrado, cujos desígnios paradoxais se propõe
ousadamente descobrir, dada a impotência dos
meios humanos. Vieira parece desistir de levar à
prática o preceito jesuítico e discreto de Baltazar
Gracián em forma de quiasmo e que espelha

bem as relações difíceis entre o céu e a terra.
Cito, embora seja bem conhecido: procurem-se
os meios humanos como se não houvesse divinos,
e os divinos como se não houvesse humanos.
Neste derradeiro tratado da Clavis, escrito na
Baía, era Vieira a sós consigo, com os textos que
mais leu, os dos profetas e salmos, os mais poéticos, de que se apropriou e alucinou (o que não
significa loucura, por favor, mas conhecimento e
sentido). Nunca como aí insistiu tanto no recurso
probatório à sua experiência pessoal. Veja-se
como remata a defesa da ignorância invencível
de Deus e da lei natural: «Eu, que durante catorze
anos completos tenho convivido com estas gentes, pela minha parte confesso que, se porventura
anuísse a tal forma de pensar, duvidaria tanto da
minha sanidade mental quanto, por experiência,
estou certo da ignorância insuperável de muitos
desses bárbaros».
E ao discordar dos teólogos romanos e dos falsos
e pretensiosos saberes dos europeus, Vieira conclui: «É inevitável, ó mais ilustres dos teólogos,
que sintais que entre os vossos raciocínios e os
nossos olhos há um grande abismo, e talvez maior
por causa do próprio oceano que se estende
entre nós».
É desta tensão e do seu pessoal desconsolo que
Vieira cria um paralelo pungente entre os fundadores apóstolos, dos quais traça um retrato
como de super-homens – representados pelas
metáforas aéreas de nuvens e pombas e beneficiários da graça do pentecostes, numa idade de
ouro –, e os pregadores missionários jesuítas
(que também eram chamados apóstolos), metidos na crueza da história, nos limites do espaço
e do tempo, sem a luz das línguas, humanos
bichos da terra deixados ao abandono e fronteiras da sua condição, com uma dura empresa
divina – o descobrimento e conquista dos índios,
conquista espiritual, manifestação dos planos
divinos para o futuro do mundo e para o quarto
continente. E Deus teimava em não ajudar.

17
Vai ser diferente o assunto que Vieira expõe no
capítulo IV, sobre a salvação dos que não ouviram nem entendem a palavra divina. Enquanto
nos Sermões Vieira refere essa dificuldade, mas
para encontrar soluções, na Clavis mostra-se
bem mais pessoal e pessimista, optando pela
doutrina do pecado filosófico e da ausência de
pecado mortal e, por conseguinte, de culpa e de
penas eternas, nos que têm uma ignorância
insuperável, quer da lei natural, quer de Deus.
Não vou explicar aqui a controvérsia teológica
do pecado filosófico, que ocorreu entre Arnaud,
o jansenista, e alguns jesuítas, doutrina que o
papa Alexandre VIII condenou em 1690. Lembro
apenas que este facto prejudicou a publicação da
Clavis no começo do século XVIII.
4) Noto ainda que mais importante é descobrirmos as fontes semânticas, e mesmo lexicais e
imagéticas, da representação que Vieira tem dos
índios e que expõe de maneira muito literária
ou visionária em alguns sermões. O seu retrato
do índio não o fez directamente, por observação,
mas pelos livros. Apercebemo-nos da visão
diferida ou mediada e classificada que ele tem
do índio, ou das duas classes de índios, baseada
nas leituras de representantes da corrente biblista
de que falou Marcel Bataillon, como Acosta,
Solórzano Pereira, Frei Pedro mártir, Bózio, e
também portugueses do século anterior, como
Manuel da Nóbrega e Pêro de Magalhães
Gândavo. Assim descreve Vieira os índios: «Sendo
completamente obtusos devido à extrema rudeza
de inteligência, sem quem os ensine e conduza
não podem penetrar no conhecimento de Deus
invisível. E devido à extrema corrupção de costumes e à depravação, abundando e prevalecendo
os vícios que sufocam todos os preceitos naturais, a própria lei, toda ela, é submersa, extinta e
sepultada. Mas uma vez que esta matéria não se
aprende estudando e discorrendo, conhecendo-se
pela prática e pela experiência, como que apalpada com as mãos e observada com os olhos,

comecemos pela ignorância de Deus e ouçamos
as testemunhas.
«Seja o primeiro o Padre José Acosta (...): A raça
dos índios, diz ele, ainda que uns sejam superiores a outros, toda ela é destituída de toda a inocência, toda ela é sórdida, toda servil, de um
carácter o mais obtuso possível, de costumes
desleais, ingratos, cedendo apenas ao medo e aos
maus tratos, mal tendo o sentido da honra e
pudor quase nenhum. O seu carácter não é apenas servil, mas também, de certo modo, bruto,
de tal modo que se julga ser mais fácil domesticar feras do que refrear a sua temeridade ou
levantá-los do seu torpor, tão rudes como são
para aprender e duros e teimosos para ceder.
Finalmente, como gado irracional naturalmente
aptos para caça e para presa, vivem em perpétua
corrupção. Não respeitando nem as leis do matrimónio nem as da natureza, usam da sensualidade
em vez da razão. Até aqui o primeiro oráculo, o
de um eclesiástico.
«O segundo oráculo (...), o Senhor D. João
Solórzano Pereira (...), diz: Formam a terceira e
última classe de bárbaros, de entre outras inúmeras tribos e regiões, aqueles que habitam nas
florestas e são semelhantes às feras, que dificilmente têm algo de sentimento humano, sem lei,
sem rei, sem contrato, sem um magistrado certo
e sem estado, mudando continuamente de lugar,
ou tendo habitações fixas que mais imitam covis
de feras ou currais de gado. Aqui pertencem
todos aqueles que os nossos chamam Caribes,
que nada mais praticam do que a sanguinolência, são cruéis para com todos os estrangeiros e
alimentam-se de carne humana (...). Esta é a
opinião de Solórzano, um pouco diversa no estilo,
mas pelo assunto e pela experiência uma testemunha inteiramente igual à primeira».
E Vieira prossegue: «Na verdade, na perspectiva
de Deus, maior mal é negá-lo do que
desconhecê-lo, e todavia ele permite que haja
ateus; maior mal é atribuir divindade a pedaços

18
Alguns dados
sobre a História
do Futuro

de madeira e de pedra do que ignorá-lo, e todavia permite que haja idólatras; maior mal é a
ignorância superável de Deus, ou com culpa, do
que a insuperável e inocente. Por que motivo,
pois, Deus não há-de permitir antes a ignorância
que não ofende a sua majestade, porque a desconhece, do que a ignorância que a ofende?».
E conclui: «Eu, que durante catorze anos completos tenho convivido com estas gentes, pela
minha parte confesso que, se porventura anuísse
a tal forma de pensar, duvidaria tanto da minha
sanidade mental quanto por experiência estou
certo da ignorância insuperável de muitos». [...]

(excerto)
JOSÉ VAN DEN BASSELAAR *

Sobre a História do Futuro
[...] António Vieira, que, por duas vezes, se esforçou por dar uma exposição sistemática da sua
grande tese, não conseguiu terminar nem a História do Futuro nem a Clavis Prophetarum. Sem
dúvida, explica-se o estado inacabado dos dois
tratados por certas circunstâncias externas, tais
como doenças, achaques de velhice, cargos
impreteríveis, etc. Mas a explicação cabal parece-me que reside na própria índole do autor.
Vieira necessitava de uma forte pressão externa
para poder se dar com assiduidade a um trabalho
de largo fôlego. Sentindo uma certa coacção, era
capaz de levar a cabo uma tarefa imposta; não a
sentindo presente, deixava-se facilmente distrair
do seu assunto, sempre propenso a tomar atalhos
floridos e pitorescos, em vez de seguir a estrada
régia; além disso, era homem extremamente
activo, que não suportava por muito tempo a
atmosfera bolorenta de uma biblioteca. A vida lá
fora era tão cativante e arrebatadora! No fundo,
Vieira não tinha nem a paciência nem a disciplina de um erudito.
* “Introdução”. Livro Anteprimeiro da História do Futuro. Nova
leitura, introd. e notas de J. van den Basselaar. Lisboa: BN,
1983, p. 11-12.

19
II
UM PLANO PRETENSIOSO

havia algumas que gozavam a simpatia da Igreja,
mas outras eram consideradas como duvidosas e
até suspeitas. Convinha, pois, classificar as profecias e descobrir-lhes o verdadeiro sentido; importava ainda definir em que reside o espírito
profético e examinar se Deus, por vezes, o concede também a pessoas não universalmente
reconhecidas como santas e até a pecadores
(Bandarra!). Igualmente cumpria demonstrar
que o Reino de Portugal, desde a sua fundação
nos campos de Ourique, fora sempre um tema
predilecto dos profetas bíblicos e outros videntes: o profeta Isaías refere-se tantas vezes aos descobrimentos portugueses que, segundo Vieira,
pode ser contado entre os cronistas de Portugal.
Assim foi-lhe nascendo a ideia de escrever o
Livro Anteprimeiro, obra essencialmente lusocêntrica, na qual o jesuíta empregou o melhor das
suas forças durante os primeiros meses de 1665.
O Livro Anteprimeiro devia ser o amplo vestíbulo
da História do Futuro propriamente dita. Mas
também o vestíbulo não chegou a ser acabado.
Quanto saibamos, tudo o que dele nos resta
limita-se aos seus doze capítulos iniciais que,
pela maior parte, remontam ao “retalho da peça”
que, como já vimos, Vieira mandou para Lisboa
na Primavera de 1665. No apenso 8.º ao já referido processo inquisitorial se encontram ainda
dois trechos mais ou menos elaborados, que
deviam integrar-se no capítulo XII, mas não
sem terem sido submetidos a diversos retoques.
A obra, tal como era planeada, devia ser muito
volumosa. No capítulo VIII, Vieira refere-se, por
três vezes (pp. 80, 83 e 84 da presente edição),
ao “capítulo sessenta”, no qual promete falar
sobre o espírito profético do Bandarra. Provavelmente, o tal capítulo nunca existiu senão no
intento do autor. Mas as referências provam que
ele, ao fazê-las, tencionava tratar de inúmeros
assuntos antes de entrar na exposição sistemática
das trovas do sapateiro de Trancoso. Esta exposição devia, sem dúvida, constituir o ponto culmi-

O projecto ideado era vasto e pretensioso. Possuímos ainda o plano da História do Futuro, pelo
qual sabemos que a obra se devia compor de
sete livros, que deviam abordar (e resolver!) 59
questões, cada uma com os seus corolários indispensáveis. No parágrafo inicial do capítulo III
do Livro Anteprimeiro, o leitor poderá encontrar o
argumento de cada um dos sete livros. Parece
que só uma parte relativamente pequena chegou
a ser executada do vasto projecto; uma parte
muito menor ainda chegou aos nossos dias. José
Lúcio de Azevedo achou, em dois apensos ao
processo inquisitorial de Vieira, alguma matéria
mais ou menos elaborada e concluída da História
do Futuro, editando-a em 1918. A matéria
publicada, repartida por dez capítulos (alguns
dos quais representam lacunas consideráveis),
devia fazer parte dos dois primeiros livros e tratam apenas de três questões das 59 planeadas.
Calculando a extensão da obra inteira na dos
fragmentos conservados e publicados, julgamos
não desacertar muito quando dizemos que a
História do Futuro, quando acabada, devia ter cerca
de 2000 páginas. Uma empresa enorme, mesmo
para quem tivesse a pena corrente de um
António Vieira!
Mas o autor não parou ali. Ao elaborar os diversos capítulos da História do Futuro, foi sentindo a
conveniência de a fazer preceder de um livro
introdutório, em que pudesse dar, entre muitas
outras coisas, uma exposição sistemática do espírito profético e do verdadeiro método de explicar as profecias. O edifício que pretendia erguer
fundamentava-se todo em profecias: profecias
canónicas e não canónicas. As profecias canónicas
eram indubitavelmente verdadeiras e infalíveis,
mas nem sempre era verdadeiro e infalível o
sentido que lhes atribuíam os antigos expositores da Bíblia. Entre as profecias não canónicas

20
nante do Livro Anteprimeiro, o qual, fazendo-se
um cálculo muito por alto, poderia chegar a ter
umas mil páginas. A ambição de Vieira não recuava diante de vastos projectos. Mas uma coisa é
concebê-los, outra executá-los.
Aliás, os sete manuscritos, que nos transmitem o
texto completo ou incompleto dos doze capítulos, trazem a indicação (omitida por todas as
edições impressas): Primeira Parte, indicação
insofismável de que a ela se havia de seguir, pelo
menos, mais uma parte, se não fossem duas, três
ou quatro.
Os manuscritos transmitem-nos também os
títulos e subtítulos da obra. De acordo com o
gosto barroco da época, eles são pomposos: [...]

21
22
TEXTOS LITERÁRIOS

23
24
Padre
António Vieira*

mais breve; o português, evidentemente depois
concertado na linguagem, mais copioso de notícias.
O escrito, nesta forma, e como tem sido publicado na
imprensa, difere igualmente na data, 30 de Setembro de 1626, porventura a do primitivo rascunho,
vertido a latim, e a que mais tarde o autor aditou
reminiscências e poliu a linguagem. A narrativa,
além do valor histórico, tem o que deriva de nos
fornecer a primeira parte um capítulo de autobiografia, embora sem referência pessoal; pois, nos factos
mencionados, em alguns foi António Vieira figurante,
ao mesmo tempo que observador.

Cartas
Vol. I
(excertos)
ÂNUA DA PROVÍNCIA DO BRASIL
(1626)

CARTA I
Ao geral da Companhia de Jesus
1626 – Setembro 30

O Padre António Vieira nasceu em Lisboa, de família modesta, a 6 de Fevereiro de 1608. Com 6 anos
de idade foi com seus pais residir na Baía. Aos 15
entrou como noviço no Colégio dos Jesuítas, que
já frequentava como aluno diligente e de grandes
promessas. No ano seguinte, de 1624, foi tomada a
cidade pelos Holandeses, sob o comando do almirante Jacob Willekens. Com o grosso da população
em fuga para o interior foram os Jesuítas, e com
eles António Vieira, permanecendo numa povoação
de índios, que os padres dirigiam, até à retirada do
invasor, passados doze meses.
Tanto se havia distinguido o noviço, durante esse
tempo, pela agudeza do entendimento e saber
adquirido, e tais provas dera de exímio latinista, que
a ele os superiores encarregaram de redigir a Carta
Annua, circunstanciado relatório que, pela regra,
todas as províncias da Companhia hão-de mandar
ao geral.
Desta carta existem nos arquivos da Sociedade, em
Roma, dois exemplares, ambos autógrafos e assinados por António Vieira, um com a data de 21 de
Novembro, outro de 1 de Dezembro de 1626. Pelo
Padre. Francisco Rodrigues, jesuíta, que ultimamente as examinou, sabemos ser o texto latino

Pax Christi
[...]

COLÉGIO DA BAÍA
[...]
Abre esta costa do Brasil, em treze graus da parte
do sul, uma boca ou barra de três léguas, a qual,
alargando-se proporcionalmente para dentro, faz
uma baía tão formosa, larga e capaz que, por ser
tal, deu o nome à cidade, chamada, por
antonomásia, Baía. Começa da parte direita em
uma ponta, a qual, por razão de uma igreja e
fortaleza dedicada a Santo António, tem o nome
do mesmo santo; e, correndo em meia lua espaço
de duas léguas, se remata em uma língua de
terra, a que deu o nome de Nossa Senhora de
Monserrate uma ermida consagrada à mesma
Senhora. No meio desta enseada, com igual distância de ponta a ponta, está situada a cidade, no
alto de um monte, íngreme e alcantilado pela
parte do mar, mas por cima chão e espaçoso;
rodeiam-na por terra três montes de igual altura,

* António Vieira. Cartas. Coord. e anot. por J. Lúcio de
Azevedo. Vols. I, II e III. Lisboa: INCM, 1997 (reimp. de
1970).

25
por onde estende seus arrabaldes, dos quais o
que fica ao sul tem por remate o Mosteiro de S.
Bento, e no que lhe responde ao norte, está
situado o de Nossa Senhora do Carmo; o terceiro
está ao leste e menos povoado. É a praia da
cidade em baixo estreita, e defendem-na três
fortes, dois em terra e um no mar, avantajado
aos mais por razão do sítio e fortaleza.
Alguns dias antes da chegada dos inimigos, estando no coro em oração dois dos nossos padres,
viu um deles a Cristo Senhor Nosso, com uma
espada desembainhada contra a cidade da Baía,
como quem a ameaçava. Ao outro dia apareceu
o mesmo Senhor com três lanças, com que parecia atirava para o corpo da igreja. Bem entenderam os que isto viram que prognosticava algum
castigo grande; mas de qual houvesse de ser estavam incertos, quando, em dia da Aparição de S.
Miguel, que foi a 8 de Maio de 1624, apareceram de fora, na costa, sobre esta Baía, 24 velas
holandesas de alto bordo, com algumas lanchas
de gávea, as quais fizeram crer aos cidadãos, costumados a viver em paz, o que lhes não persuadiram de todo os avisos que dois anos antes
mandara Sua Majestade, nem a nau capitaina
desta mesma armada, que quase todo o mês
passado tinha andado na barra, e roubado um
navio que de Angola vinha carregado com
negros para o serviço e maneio desta capitania.
Mandou logo o Sr. Governador Diogo de Mendonça Furtado dar rebate; ajuntou-se a gente,
que foram pouco mais ou menos três mil homens,
e, armados, cada um como pôde, se repartiram
em companhias, deram cargos e assinaram estâncias. [...]
Tanto que emparelhou com a cidade a almiranta, a salvou sem bala, e despediu um batel
com bandeira de paz. Mas à salva, e à embaixada
antes de a ouvirem, responderam os nossos com
pelouros, o que vendo os inimigos, se puseram
todos a ponto de guerra. Viraram logo as naus
enfiadas sobre a terra, e, por onde iam passando,

descarregavam os costados na cidade, forte e navios que estavam abicados na praia, o que continuaram segunda e terceira vez, até que, depois
do meio-dia, puseram todos a proa em terra, e as
três dianteiras em determinação de abalroarem a
fortaleza, mas, impedidas dos baixos, lançaram
ferro, e em árvores secas, como se foram todas
de fogo e ferro, começaram a desfazer tanto nele
que parecia pelejava nelas o inferno. E foi tal a
tempestade de fogo e ferro, tal o estrondo e
confusão, que a muitos, principalmente aos pouco
experimentados, causou perturbação e espanto,
porque, por uma parte os muitos relâmpagos fuzilando feriam os olhos, e com a nuvem espessa
do fumo não havia quem se visse; por outra, o
contínuo trovão da artilharia tolhia o uso das
línguas e orelhas, e tudo junto, de mistura com
as trombetas e mais instrumentos bélicos, era
terror a muitos e confusão a todos.
Respondiam-lhe da terra o forte e as nossas
naus, ainda que desigualmente, por ser a artilharia pouca, e andar já quente com o avantajado
emprego.
Mas, enquanto nos ocupávamos em defender a
praia, duas ou três naus holandesas, que ficavam
na retaguarda, despejaram na ponta que dissemos,
de Santo António, muita gente, e dizem seriam
quinhentos para seiscentos soldados. Vendo isto
duas bandeiras nossas, que lá estavam em guarda,
não aguardaram que chegassem, antes, não se
atrevendo a resistir, voltaram para a cidade, esquecidos daquele nome português que ainda em
nossos tempos fez tremer e fugir exércitos inteiros; e, posto que um padre nosso os animava que
tornassem, adiantando-se com ânimo de verdadeiros portugueses e verdadeiros soldados de
Cristo, até chegar cara a cara com os inimigos,
armados só da confiança em Deus, contudo
estavam tão frios do medo que não foi parte
para os apertar o fervor e espírito do padre.
Entretanto não cessava a bateria, antes cada vez
se acendia mais. [...]

26
Não ficaram aquém nesta empresa os índios
frecheiros das nossas aldeias; antes eram a principal parte do nosso exército, e que mais horror
metia aos inimigos, porque, quando estes saíam
e andavam pelos caminhos mais armados e
ordenados em suas companhias, estando o sol
claro e o céu sereno, viam subitamente sobre si
uma nuvem chovendo frechas, que os trespassavam, e, como lhes faltava o ânimo do outro
Espartano (que disse pelejaria mais a seu gosto
quando as setas do Persa fossem tão espessas que,
cobrindo o sol, lhe fizessem sombra), não se
atreviam a resistir, porque, enquanto eles preparavam um tiro de arcabuz ou mosquete, já
tinham no corpo despedidas do arco duas
frechas, sem outro remédio senão o que davam
os pés, virando as costas; mas nem este lhe valia,
porque, se eles corriam, as frechas voavam e,
descendo como aves de rapina, faziam boa presa;
e ainda que não matavam algumas vezes de todo,
todavia, como muitas eram ervadas, ia o veneno
lavrando por dentro até certo termo, em que
lhes dava o último da vida.
Entre estes índios se avantajavam uns na destreza
do atirar, outros no ânimo de acometer, mas em
geral se experimentou em todos os desta capitania grande ódio aos contrários e maior fidelidade
aos nossos, porque, sendo assim que muitos negros
de Guiné, e ainda alguns brancos, se meteram
com os holandeses, nenhum índio houve que
travasse amizade com eles, o que foi muito particular e especial mercê de Deus, e indústria
também dos nossos padres, os quais sempre, e
agora mais que nunca e com mais eficácia, os
instruíam na fé, intimando-lhes o amor que
deviam ter a Cristo, e lealdade a Sua Majestade;
grande bem espiritual e não menor temporal
para os moradores deste Brasil, porque sem índios
não podem viver, nem conservar-se, como todos
confessam.
Tornemos aos inimigos, os quais, enquanto presos
e encerrados na cidade, não estavam ociosos,

porque, entendendo que havíamos de ser socorridos com a armada de Portugal, todo o seu cuidado era fortificar-se quanto mais podiam contra
ela. Para reforçar os muros da cidade e das suas
portas, que estavam fracos, levantaram uns montes
de terra, tão altos que mais pareciam criados
com poder da natureza que levantados à força
de braços, e a mesma terra que tiravam abria
uma cova, tão profunda quanto era a altura dos
baluartes. Fizeram sobressair por cima umas pontas
de paus, tão agudas e unidas sobre si que dificultavam notavelmente a subida se alguém a intentasse. Pelas quebradas dos três montes, que dissemos cingiam a cidade, represaram as correntes
de algumas fontes, e fizeram um tanque, tão largo
e alto quanto bastou para impedir a passagem a
qualquer força ordinária. Levantaram o forte da
praia que estava imperfeito. Por toda a cidade
em roda assentaram artilharia nos portos e postos mais importantes. E, porque lhes não faltasse
coisa alguma, com que pudessem impedir-nos a
entrada na cidade, semearam ao redor dela, e
dentro, nas bocas das ruas, uns estrepes de ferro,
feitos por tal arte que, de qualquer parte que
caíam, assentavam três pontas no chão ficando
outra para cima, e estes em tal distância uns dos
outros que, caminhando, ainda em boa paz, não
bastava qualquer tento para assentar o pé em
salvo, e, errando o passo, ficava um homem preso
e enredado sem remédio.
À vista destas prevenções crescia muito, em todos
os nossos, o desejo de ver já o socorro que esperavam. Nas aldeias, onde estávamos os da Companhia, além das orações e penitências que se
acrescentavam, todas as sextas-feiras e sábados se
fazia uma procissão com ladainhas cantadas,
pedindo misericórdia a Deus, até que o mesmo
Senhor, no dia da Redenção do Mundo, nos
quis mostrar a nossa, antecipando-nos as aleluias
com a primeira vista da nossa armada, a qual, dia
de Páscoa da Ressurreição, primeiro de Abril de
1625, amanheceu toda dentro na baía, posta em

27
ala, para que as velas inimigas que no porto estavam não pudessem sair, nem escapar.
Vinham todas juntas as armadas, a de Espanha, a
de Portugal, a Real de Castela, a do Estreito e a
capitania, de Nápoles, com outros galeões e
navios; por todas eram sessenta velas, pouco mais
ou menos. Por generalíssimo de todas estas armadas vinha o Sr. D. Fradique de Toledo, general
da Real de Castela, e bem afamado pelos anos
que há é general, e pelas vitórias que houve
ainda contra os mesmos holandeses; esta armada
foi a mais poderosa que até agora passou a linha,
e nela pudera vir a pessoa real, conforme a
fidalguia que de Portugal vinha.
Começou a desembarcar a gente em terra sem
resistência, porque os nossos de cá tinham tudo
por seu, até à cidade, que, a não ser assim, havia
de custar as vidas de muitos o desembarcar. Mas
esta facilidade e segurança foi causa da desgraça
que direi.
Os que vinham da armada, vendo que eram
tantos mil, e que quatro homens tinham em
tanto aperto o Holandês, fizeram pouco caso
dele, não advertindo que o inimigo quanto mais
desprezado mais ousado, e assim se começaram a
alojar nas casas de S. Bento, desarmados e como
quem estava em sua casa, descansando do trabalho que tiveram em andar uma légua de caminho até àquele posto.
Vendo os da cidade o inimigo, botaram uma
manga de duzentos ou trezentos arcabuzeiros,
que de repente os acometeram, estando descuidados de tal ousadia; saiu logo cada um com as
armas que a pressa lhe ofereceu, e investiram os
mais com piques. Os inimigos, disparando os
arcabuzes, se iam retirando para a porta da cidade,
e os nossos seguindo-os; mas, tanto que os descobriu a artilharia da porta, recolhendo-se em
salvo os holandeses, deram fogo a umas peças
que, espalhando um chuveiro de balas, pregos e
ferro miúdo, fizeram grande estrago em muitos
soldados e alguns fidalgos castelhanos de muita

importância e valor na guerra. Entre estes, o
mais ilustre foi um espanhol, mestre de campo,
chamado D. Pedro Osório, o qual, fazendo uma
confissão geral com um dos nossos padres, foi
tão venturoso que, sendo absolto, foi imediatamente morto no mesmo conflito. Parece que
Deus o quis salvar, em lhe trazer o padre naquela
ocasião, sendo que o chamavam para outra parte
e ele se escusou, com intento de concluir aquela
confissão.
Desembarcados que foram todos, dividiram-se,
juntamente com os soldados da terra, nos três
montes, onde se recolheram uns em algumas
casas que havia, outros em barracas de palha.
Aqui trabalharam todos, e foram levantando
trincheiras de terra e fachina, servindo na obra,
além da soldadesca ordinária, os melhores do
campo; entre estes se assinalaram muitos fidalgos
portugueses, que na armada vinham, particularmente os que vinham por soldados ordinários,
que então resplandecia mais neles a nobreza
quando, carregados com os feixes de rama ou
cestos de terra, andavam servindo entre os plebeus pela glória e honra de seu Deus e rei. Verdadeiramente que nos alegrámos, e todos nos
enternecemos, de ver os condes e senhores titulares feitos mariolas nesta empresa gloriosa,
como se foram daquele primeiro Portugal o
velho. Não nomeio aqui a todos, dando a cada
um os grandes louvores que merece, porque
nem posso, nem também pertence ao meu intento, além de que cada um deles merece por si
só uma relação inteira.
Esta alegria nos aguava o muito dano que os
inimigos nos faziam, não cessando todo o dia e
toda a noite de jogar a artilharia, com a qual
faziam pontaria aos nossos, por andarem muito
amontoados e em montes altos e descobertos.
Sobretudo, nos magoou a morte do morgado
Martim Afonso de Oliveira, fidalgo tão ilustre,
esforçado, conhecido, benquisto; tratou-o tão
mal uma bala que, em espaço de dois ou três

28
dias, concluiu a vida. Mas consolou-nos que recebeu todos os Sacramentos, e morreu verdadeiro
cristão, como sempre foi.
No mesmo tempo quase, botou o inimigo uma
noite duas naus abrasadas em fogo, para que,
levadas da maré, dessem pelas nossas e, ateando-se
em uma, fosse o fogo saltando às outras e desbaratasse a todas; mas, como estavam prevenidas e
preparadas, escaparam largando velas, amarras e
âncoras, ainda que com grande perigo das mais
vizinhas, das quais livrou Deus uma ou duas milagrosamente.
Por esta ocasião temeram os nossos que, desesperados os holandeses de se poderem defender,
intentassem acolher-se nas suas naus, porque,
ainda que as nossas tinham bem tomada a barra,
com facilidade, particularmente na revolta da
noite, podia escapar alguma. Pelo que, chegando
mais as nossas às inimigas, e ajudadas também da
nossa artilharia de terra, desaparelharam a umas
mastros e enxárcias e meteram no fundo outras,
por maneira que todas ficaram mancas para navegar.
Impossibilitada ao inimigo esta fugida, estavam
já as trincheiras e plataformas levantadas. Plantaram nelas a artilharia, e aos 16 pouco mais ou
menos da chegada, que foram outros tantos de
Abril, começou a bateria formada e mui furiosa
a varejar de todas as partes a cidade, derrubando
grande parte do muro e muitas casas, que com
sua ruína davam a morte a muitos; porque,
quantas pedras se batiam e caíam, tantas balas se
despediam, as quais não eram de menos efeito
que as de ferro, se acertavam. Respondiam-lhe
os de dentro com animosa continuação, assestando umas peças com pontaria contra os combatentes e atirando com outras a montão, que,
como era muita a gente, não matavam menos
que as primeiras, nem lhes desacordava os ânimos a destruição de seus anteparos e baluartes,
porque punham tanta diligência em os refazer
que, quanto anoitecia derrubado com a bateria

de dia, tanto amanhecia ao seguinte reedificado
com o trabalho da noite, e não só renovavam o
caído, mas faziam novas e mais grossas trincheiras
por dentro, que atravessavam as ruas, abocando
nelas peças para fora. Mas em tudo trabalhavam
debalde, porque a nossa artilharia eram meios
canhões, mui reforçados, que com muita facilidade quebravam e arrasavam tudo, e a seu ímpeto
não havia força que resistisse, nem reparo que
parasse.
Prosseguindo sem descansar o combate, à sombra
da artilharia se iam os nossos chegando com
trincheiras, para serviço das quais faziam primeiro
cavas na terra, por onde pudessem caminhar sem
o inimigo dar fé deles, porque o mesmo era
serem vistos dos olhos que pescados dos
pelouros. Por momentos se viam cada vez mais
apertados, porém maior aperto era o em que os
punha a destreza dos nossos bombardeiros, que,
embocando umas balas pela sua artilharia deles e
outras pelas ruas, com as primeiras descavalgavam as peças, matando os que as governavam,
com as segundas levavam quanto havia diante,
exercitando grande mortandade e carniçaria
cruel.
Passados doze ou treze dias de bateria, vendo o
Holandês por terra toda a sua artilharia, e os
mais dos artilheiros mortos, em quem principalmente confiava, e que estavam já quase abarbadas as nossas trincheiras com as suas, considerando como o resistir lhe custava tanto e rendia
tão pouco, e que, se quisesse sustentar o cerco, se
arriscava a serem metidos à espada e acabarem
miseravelmente todos, houveram por bem render-se e vir a concertos. Pelo que, depois de
várias propostas e réplicas de parte a parte, se
assentou que entregariam a cidade com todo o
recheio e os rebeldes, e que em suas pessoas e
no que sobre si tivessem se não buliria; e que
para tornarem às suas terras lhe dariam embarcação, algumas armas e mantimentos, pagando
eles holandeses tudo pelo seu justo preço.

29
Mazarino. Depois, desempenhada a sua incumbência, deixou Paris em 2 de Abril, domingo de
Páscoa, de caminho a Ruão, onde tinha de receber
dos judeus portugueses, lá estabelecidos, créditos
bancários para Amsterdão. De Ruão viajou para
Calais, e dali embarcado a Roterdão, chegando a
Haia em 18 de Abril.
Na Holanda ficou três meses, sem que o propósito
da jornada fosse realizado. Em Agosto achava-se
novamente em Lisboa.
A última carta deste período corresponde à chegada
do padre à capital flamenga. Da sequência dos
acontecimentos não temos informação por Vieira,
e as cartas que no-la haviam de dar podem ter-se
por definitivamente sumidas.

PRIMEIRA MISSÃO DIPLOMÁTICA
PARIS E HAIA
(FEVEREIRO A JULHO DE 1646)
Tendo-se distinguido como orador sagrado da
Baía, o Padre António Vieira veio em 1641 à metrópole, onde logo captou a admiração pública, por
sua eloquência no púlpito, e o favor de D. João IV,
pelo modo como apreciava os negócios do Estado.
Em 1646 a situado destes era grave. Na Europa
falhavam os recursos para a guerra com Castela; na
América a revolta dos colonos, em Pernambuco,
contra o domínio holandês, infundia receios de
que as Províncias Unidas, dando por quebrada a
trégua ajustada em 1641, rompessem por sua vez
em declarada beligerância. Para o congraçamento
com este possível contendor, e para a resistência ao
outro, efectivo, contava D. João IV com o socorro
da França. Desde a proclamação da monarquia
nova, em Portugal, prosseguiam as negociações
para uma liga entre as duas coroas contra a
Espanha, inimigo comum; mas continuamente os
ministros franceses, Richelieu primeiro e depois
Mazarino, pródigos de promessas, iludiam as esperanças afagadas em Lisboa.
Nesta época D. João IV, desanimado sobre os
negócios do Brasil, cuidava de concertar-se com a
Companhia Ocidental holandesa, resgatando por
dinheiro Pernambuco, transacção que excluía a
eventualidade de guerra formal com a República;
e para esse fim pretendia a intervenção da França.
No intuito de reforçar a tentativa, e estimular o
zelo dos embaixadores, deliberou mandar a Paris e
Haia um emissário, e escolheu o Padre Vieira, pelo
que fiava de suas aptidões em política e como
entendido nas coisas do Brasil.
O jesuíta saiu de Lisboa por mar em 1 de Fevereiro,
e chegou a 20 a Paris, onde não encontrou o
embaixador, conde da Vidigueira, que dali havia
partido a embarcar em Nantes, de regresso a Portugal. Em posse da embaixada achava-se o secretário António Moniz de Carvalho, com o título de
residente. Com ele o Padre Vieira visitou a

CARTA IV
Ao marquês de Nisa
1646 – Março 11
O certo é, senhor, que, como as coisas de França
se entendem diferentemente em Portugal, assim
das de Portugal não pode haver cabais notícias
em França, e ainda no mesmo Portugal receio
que as ache V. Ex.a com dificuldade, porque a
gente daquele país, que V. Ex.a muito bem
conhece, poucas vezes julga das coisas com os
olhos livres de paixão. Grande mercê faz Deus a
Portugal em levar lá a V. Ex.a; mas entendo que a
não tem feito menor a V. Ex.a em ter a V. Ex.a
tantos anos fora de Portugal. Do que V. Ex.a me
diz na sua carta entendo eu que V. Ex.a está no
conhecimento desta verdade; mas as experiências
de mais perto ainda hão-de confirmar mais a V.
Ex.a nela. Esta é a razão por que se obra menos
do que convém, e do que se pudera, e não têm
tanta culpa as causas primeiras como o mundo
lhes imputa; porque com instrumentos contrários
só Deus pode obrar, e quando o faz é milagrosa
e não naturalmente. Deus nos mude as condi-

30
ções, que, enquanto formos portugueses, não sei
se faremos coisa digna de tão honrado nome.
Muito estimo que haja sempre sido da opinião
de V. Ex.a a paz com Holanda, a qual está nos
termos que V. Ex.a vê, porque a alguns valentões
de Portugal lhes pareceu que eram poucos para
inimigos os castelhanos. Eu estava numa cama
sangrado dezasseis vezes, quando do Brasil me
vieram as primeiras notícias do que se queria
intentar; e, porque o impedimento me não permitia falar com S. M., e dizer-lhe pessoalmente
o que entendia naquela matéria, como quem
tantos anos havia estado no Brasil e sabia o que
lá se pode, pedi a um prelado muito confidente
de S. M. lhe quisesse representar de minha parte
o perigo e dificuldade desta empresa, e que o
segurasse que era impossível render-se a principal força, por mais que os de lá, enganados do
desejo da liberdade, o prometessem; e acrescentava que, ainda quando o Brasil se nos desse de
graça, era matéria digna de muita ponderação
ver se nos convinha aceitá-lo com os encargos
da guerra com a Holanda, em tempo que tão
embaraçados nos tem a de Castela; porque são
homens os Holandeses com quem não só
vizinhamos no Brasil, senão na Índia, na China,
no Japão, em Angola, e em todas as partes da
terra e do mar onde o seu poder é o maior do
Mundo. Estas e outras razões propus àquele prelado, que não sei se as representou a S. M.; só sei
que por nosso mal fui profeta, e queira Deus
que aqui parem os meus temores.
O que V. Ex.a diz de se haver de propor o tratado da paz absolutamente para que, descendo-se
aos meios da conveniência, se ponha em prática
o da compra, é matéria que não tem dúvida pela
aceitação e conveniência do mesmo contrato,
que, oferecido da nossa parte em primeiro lugar,
fica de muito desigual condição; mas não me
conformo facilmente com os que querem que a
proposição da paz com Holanda, e da mediação
de França, haja de nascer dos mesmos Holande-

ses; porque, se havemos de esperar que eles
dêem o primeiro movimento a este negócio,
nunca se começará; porque a eles está-lhes muito
melhor a guerra que a paz, e nós não estamos
em tempo de a dilatar, porque na dilação crescerão os empenhos, e com eles a dificuldade da
convencia. [SIC] [...]
Criado de V. Ex.a
António Vieira

CARTA XV
A Pedro Vieira da Silva
1647 – Dezembro 30
Senhor meu. – Escrevo esta já de Holanda, e,
ainda que se aumenta a distância e a ausência,
posso afirmar com toda a verdade a V. M.cê que
não se diminuem, antes crescem cada vez mais
as saudades. Lembro-me daquelas horas solitárias
dessa secretaria, em que o coração de V. M.cê e o
meu, como tão conformes no zelo e no desejo,
se costumavam entristecer ou consolar juntamente; e de uma e outra cousa oferecem cada
dia os tempos novas causas, mas sem aquele alívio que até por carta me falta há cinco meses.
Pelo assento que tomou o Conselho de Estado,
sobre os agradecimentos que se mandaram ao
embaixador Francisco de Sousa, julguei quanto
lá se estimará a conclusão desta paz. Nas primeiras cartas, que escrevi de Paris, quase a segurei,
pelas que me mostrou o marquês de Nisa; nas
segundas a comecei a duvidar, pelo que fui experimentando; e agora tenho por quase certo
que se não concluirá, por mais que digam os
que vão, e escrevam os que ficam, ainda que a
paz entre Castela e Holanda se publique, que é
o termo que lhe assinam os ministros de França
e nossos. O sucesso da Baía, senhor, é o que para
sempre nos há-de concertar ou desconcertar

31
com esta gente; e até vir recado dele poderão
entreter-nos com conferências, mas não hão-de
concluir o tratado.
Sobre o modo da guerra que se deve fazer,
escrevo o que me ditou o zelo, e o desejo de
que acertemos em negócio tão grande e tão
arriscado. V. M.cê risque e emende o que lhe
parecer menos acertado, mas peço-lhe muito
seja de voto que vençamos antes em seis meses
do que arriscarmos tudo num dia. Concertemos
a armada, estorvemos os mantimentos ao inimigo; e eu seguro o cunctando restituit rem.
Manuel de Sequeira leva uma via deste papel, e
o Padre José Pontilier, meu companheiro, outra;
encomendo-o muito a V. M., e porque nesta
mesma ocasião tenho cansado a V. M.cê, com
oito cartas de diferentes matérias para S. M., e
algumas muito largas, não quero dilatar mais
esta, e acabo com pedir a Nosso Senhor muito
bons princípios de ano de 48, em que Deus nos
faça ver as felicidades que as profecias nele parece
nos prometem. – Haia, 30 de Dezembro de
1647.
Depois de escrita esta, houve conferência ontem, 3 de Janeiro, na forma que V. M.cê lá verá.
As esperanças da paz antes se adiantaram que
diminuíram: muitas graças devemos a Deus, que
peleja e negoceia por nós. A armada tem arribado duas vezes, perdeu já alguns navios, vai-lhe
morrendo gente, e os ventos, cada vez mais contrários e tempestuosos: e já se persuadem alguns
destes fiéis cristãos, e seus predicadores, que não
quer Deus que vão ao Brasil, com que estão
mais brandos os que furiosamente queriam a
guerra, mas ainda pedem como quem a não
teme. Agora era o tempo de negociar, mas,
como o dinheiro e os créditos estão na mão do
Marquês, e se gastam três semanas com ir e vir o
correio, perdem-se ocasiões que às vezes consistem num momento. Eu não aprovo nem condeno; mas, ou S. M. não fie as embaixadas de quem
não fia o dinheiro ou fie o dinheiro de quem fia

as embaixadas. - O maior e mais verdadeiro servidor de V. M.cê
António Vieira

CARTA XVI
Ao marquês de Nisa
1648 - Janeiro 6
Já não fazia conta de poder escrever neste correio a V. Ex.a, pela muita ocupação destes dias
em escrever a Portugal, que foi necessário fazê-lo
com mais largueza, dando-lhe conta desta armada, e discorrendo com as notícias do Brasil, sobre
o modo da guerra que lá se deve fazer, que, se
não for muito particular, pode correr risco a
nossa armada, e, após ela, tudo. Se puder, mandarei a V. Ex.a a cópia de um papel, para que, com a
aprovação de V. Ex.a, tenha esperanças de que
em Portugal se aceite, e no Brasil se execute.
Leva-o o Padre Pontilier, que, sobre hoje nos
aguar a solenidade dos Reis com os sentimentos
de sua despedida, agora se fica para outra ocasião, porque, como o bom vento aqui é tão raro,
os pilotos não esperam por ninguém. Várias perdas se referem de navios e gente do inimigo,
particularmente morta de bexigas, que depois
que o reverendo Padre Francisco as lisonjeou
tanto em El-Rei de França, puseram-se da parte
de El-Rei de Portugal. Houve conferência, em
que antes alcançámos que perdemos esperanças.
Veio Zelanda, que nunca tinha vindo, e agora é
o tempo de a comprarmos, se ela se quiser vender, com que a principal dificuldade ficará
vencida.
Mr. de la Thuillerie me chama demasiadamente
confiado, porque me vê rijo em condescender
com petições demasiadas destes senhores; bem
sabe V. Ex.a que ninguém mais que eu deseja a
paz, mas há-de ser como convém. Sinto que não

32
haja partido a fragata de Ruão, porque de cá não
foi nem pode ir aviso até agora, nem poderá ir
senão como mesmo vento que levar a armada, e
importava muito que chegara quando menos
um mês antes. Também me pesa que o negócio
das de S. Maló não tivesse efeito até agora. Espero que S. M. o aprove, e entendo que, com aviso
seu e sem ele, lhe fará V. Ex.a mui particular
serviço nesta negociação.
Tomei tão pouco papel, porque cuidei que me
não desse lugar a tantas regras o Sr. Embaixador,
com quem imos esta tarde a cear com Mr. de la
Thuillerie, que nos convidou.
Deus nos tenha as cabeças de sua mão, e a V. Ex.a
dê muito bons Reis, e, se for bom, um basta.
Pelos meus peço me tenha V. Ex.a em sua graça.
Haia, 6 de Janeiro de 648. – Criado de V. Ex.a

porque o socorro, qualquer que seja em respeito
de França, nunca pode ser mui considerável; mas
o temor de nos podermos concertar com
Castela é de tanta consideração que não importa
menos que a firmeza ou ruína de França. E,
como esta dependência é tão grande e tão conhecida, se nos apressarmos a pedir a liga, e mostrarmos grande desejo dela, conceder-no-la-ão os
Franceses com partidos sempre a seu favor; mas,
se dissimularmos um pouco, e dermos tempo a
que a França discorra sobre o nosso silêncio, não
há dúvida que nos há-de rogar com a liga e que
a há-de fazer como nós quisermos.
Este discurso é evidente em toda a parte, e nestas
onde eu agora ando muito mais que em Paris,
porque lá não vemos mais que as grandezas de
França, e aqui vêem-se as suas dependências, os
seus receios, as suas contemporizações e as suas
rogativas. E, finalmente, boa experiência tem V.
Ex.a de quanto mais obra com esta gente o
medo que a obrigação. Solicitou V. Ex.a muito
acertadamente o primeiro socorro de França e o
segundo, a fim que estas demonstrações obrigassem aos Franceses, e lhes dessem novo motivo
para nos concederem o que queríamos; e o que
alcançámos com isto foram desenganos, em lugar
de agradecimentos. E bastou só que depois se
lhes desse a entender que alguma diferente resolução era possível para mudarem logo de estilo
em todas as partes e para prometerem os novos
socorros que tão obstinadamente negavam.
Assim que, senhor, continuando a forma em que
V. Ex.a com tanto acerto tem respondido, me
parece que, quando os ministros de França tornarem a falar nos socorros, se lhes deve responder que Portugal assistirá àquela coroa, até ao
tempo da paz ou trégua, com número de oito
navios, a qual condição não começará a ter seu
efeito senão depois de feita a paz entre Portugal
e Holanda, pois se entende que, formada a de
Castela, se concluirá também esta. Porém que,
em caso que esta paz se não efectue, ou pelo

António Vieira

CARTA XIX
Ao marquês de Nisa
1648 - Janeiro 27
[...]
Suponho mais, como é ainda mais evidente, que
de todos os aliados de França nenhum lhe importa mais que Portugal, por seu maior poder,
por fazer a guerra a Castela dentro nas entranhas, pela diversão de Holanda nas conquistas, e
principalmente porque, se Portugal fizesse paz
com Castela, que é o mais fácil meio de a fazer
também com Holanda, no mesmo dia ficava
França arruinada; porque contra Castela, Portugal, Holanda e o Império unidos, não há em
toda a Europa resistência no mar nem na terra, e
tudo isto conhecem muito bem os Franceses.
Donde se segue que este temor há-de obrigar
mais a França a fazer a liga que nenhum outro
interesse de socorros que lhe possamos prometer:

33
tempo que durar a guerra, Portugal de nenhum
modo pode assistir a França com socorro algum
de dinheiro, nem navios, mais que com as diversões de Castela e Holanda, cuja importância é
tão grande que não deixará França de nos conceder a liga e procurar ter-nos seguros com ela.
E quando, contudo, os ministros franceses insistam, com se lhes mostrar a impossibilidade tão
notória em que estamos e com lhes dizermos
que não nos queremos obrigar ao que depois
não podemos cumprir, parece que é toda a satisfação que lhes devemos dar; e, se os deixarmos
que cuidem nela, eles tomarão melhor conselho.
Até domingo se espera que se firme a paz, e,
excluída França uma vez dela, será coisa mui
necessária à utilidade e autoridade que esses
monsieurs sejam também requerentes e que conheçam a diferença dos tempos, como já V. Ex.a
vai experimentando nas audiências e recados do
Cardeal. Deixe-se V. Ex.a tratar alguns dias com
mimo, ainda que a nau da Rochela espere mais
um pouco por melhores ventos, que eu confio
em Deus que os que correm nos hão-de ser tão
favoráveis nessa terra como nestes mares. V. Ex.a
está hoje com o mesmo jogo com que entrou
em França o monteiro-mor, e porventura avantajado, e já me tem contentíssimo a esperança
com que fico de que agora nos há V. Ex.a de
ganhar o que então perdemos.
Criado de V. Ex.a

tão em outro tempo do que foram pedidas, que
não podem deixar de variar muito, assim nas
propostas de V. Ex.a como nas respostas do Cardeal, pois o estado presente das cousas é tão
diverso do passado; mas a providência divina nos
dá bastantes seguros de que haverá disposto, e
disporá tudo, como mais convenha ao bem e
conservação do Reino que tanto ama.
Não me dê V. Ex.a ainda recados para Lisboa,
porque não estão ainda os negócios nesse estado,
e sendo que o pouco que eu faço, ou posso
fazer neles, era bastante razão para me não terem
em Holanda, onde vim pelo que V. Ex.a sabe,
tenho, contudo, junto a S. M. amigos que, com
pretexto de seu serviço, querem que esteja eu
longe, como se o não fora mais a minha província, onde só me desejo. Não são isto só suspeitas,
porque tive carta em que mo avisa assim pessoa
que o sabe, para que V. Ex.a se não espante dos
ofícios que V. Ex.a experimenta nos nossos cortesãos, quando até contra um religioso, que lhes
não pode tirar nada, se armam. Mas vamos a
negócio de que agora darei a V. Ex.a a conta que
da outra vez não pude, por estar tão doente,
como V. Ex.a sabe, quando se fez a proposta.
Dois inconvenientes acha V. Ex.a no açúcar que
se ofereceu aos Holandeses: primeiro a quantidade, que ainda depois cresceu mais e chegou a
dez mil caixas pagas em dez anos; segundo, o
modo com que se ofereceu, que foi debaixo do
título de terceira parte dos dízimos que S. M.
recebe no Brasil.
Quanto à quantidade do açúcar, bem tomáramos nós que os Holandeses se contentaram com
menos; e bem vemos que a nossa necessidade
pedia que antes eles nos dessem fazenda que nós
a eles. Mas, se passarmos a outras considerações,
acharemos que não é demasiado este preço, se
com ele comprarmos a paz e remirmos a nossa
vexação.
Primeiramente os Holandeses nos pedem satisfação das perdas e danos que tiveram no Brasil,

António Vieira

CARTA XLVII
Ao marquês de Nisa
1648 – Agosto 24
Ex.mo Sr. – Dou a V. Ex.a o parabém de haverem
chegado as ordens de S. M., podendo também
dar o pêsame de haverem chegado tão tarde, e

34
as quais verdadeiramente foram grandíssimas,
porque os levantados queimaram capitanias inteiras, e nelas muitos engenhos; e os que ficaram
em pé nas outras não os hão-de receber senão
mui danificados e diminuídos. A mesma diminuição, e muito maior, hão-de ter nos escravos e
nos gados, de que depende todo o sustento e
lavoura daquelas terras. Ajuntaram-se a isto as
despesas de muitos socorros particulares e de
duas grandes armadas, a de Sigismundo, que
custou melhor de trinta e três tonéis de ouro, e
a de Wit Wites, que custou quarenta e sete, que
fazem da nossa moeda a soma de quatro milhões
de cruzados. E em satisfação de tudo isto, e dos
frutos e interesses que deixaram de lograr em
perto de quatro anos, mais é na cobiça dos Holandeses o contentarem-se com dez mil caixas de
açúcar que na nossa necessidade o darmos-lhas.
Bem vejo que também eles nos deram muitas
perdas, mas a isto respondem que as suas são de
boa guerra, porque foram provocados, e as nossas
não, porque fomos os agressores. E ainda mal,
porque isto se pode tão mal encobrir ou negar,
quando os principais soldados que hoje defendem Pernambuco são todos vassalos de El-Rei,
mandados da Baía, donde também vieram os
quatro governadores, de cinco que governam
aquela guerra, e ultimamente um mestre de
campo general mandado de Lisboa.
O que os Holandeses queriam e pediam por
esta satisfação, como V. Ex.a viu na sua proposta,
era a reparação dos engenhos com todos os escravos e cobres, dez mil bois de carro, dez mil
vacas, cinco mil ovelhas, cinco mil cavalos, dois
milhões de florins em dinheiro e quarenta mil
caixas de açúcar pagas em vinte anos; e não será
pequeno milagre, contratando com holandeses,
que tudo isto se venha a reduzir só a dez mil
caixas em prazo de dez anos, e a metade delas
de açúcar mascavado, e no Brasil.
Também se deve considerar que lhes vimos a
dar menos agora do que antes se lhe tinha pro-

metido; porque se lhe tinha prometido que, por
alguns anos, lhes pagaria El-Rei, no Brasil,
quinhentos soldados, cujos soldos, e os de seus
oficiais, é certo que montam tanto cada ano
quanto podem valer no Brasil mil caixas daquele
açúcar. Assim mais se lhe tinha prometido que as
perdas e danos que pediam se pusessem em
juízo de árbitros; e sendo tão manifesta a
presunção, ou a prova, de a trégua se haver quebrado por nossa parte, julgue V. Ex.a se compramos barato o livrarmo-nos só deste pleito.
Ultimamente o que se dá em açúcar é muito
menos dinheiro do que as ordens de S. M. permitem se ofereça. Porque a estimação do açúcar
não se há-de fazer pelo que hoje vale em Lisboa, senão pelo que há-de valer no Brasil depois
de feitas as pazes com os Holandeses. E sabemos
os que temos experiência do Brasil quão grande
abatimento hão-de ter os açúcares. Muitas vezes
vi lá vender o branco a cruzado, e a pataca, e
algumas vezes a muito menos. A Gaspar Dias
Ferreira, que é mercador de muitos anos do
Brasil, mandou o Sr. Embaixador perguntar que
preço lhe parecia que teriam os açúcares nos
primeiros dez anos depois das pazes: e respondeu que, uns anos por outros, feita a conta por
mascavados e brancos, não haviam de chegar a
seis tostões por arroba. Segundo este preço,
montam as sobreditas dez mil caixas trezentos
mil cruzados, que é a metade do dinheiro que S.
M. é servido se possa oferecer, porque quinhentos mil cruzados pagos hoje em Holanda são
mais de seiscentos da nossa moeda.
Afora isto, dava poder S. M. para se oferecer a
fortaleza do Porto, sustentando o presídio à custa de S. M., que é outra boa partida que por esta
via se poupa, tão considerável para a fazenda
como para o crédito.
Não é menos digno de considerar que o dinheiro que S. M. manda oferecer diz que se pagará
logo; e foi grande o serviço que se fez a S. M.
em estender o pagamento a prazos de dez anos,

35
assim pela maior facilidade, como pelo menor
valor do que se há-de pagar. Porque só com os
interesses daquele dinheiro, a razão de juros, se
pode pagar o açúcar, e no cabo de dez anos ficar
o capital em ser. E, sobretudo, pagarmos aos Holandeses em dez anos é termos todo este tempo
em nossa mão um penhor e caução sua, para
melhor nos guardarem o que nos prometerem.
Finalmente, muito mais nos tomaram os Holandeses nos mares do Brasil, nestes seis meses, do
que nós lhes prometemos em todos os dez anos.
Façamos conta que lhes damos cada ano dois
navios de açúcar, para que nos deixem livres os
demais, e as nossas naus da Índia, e o nosso
comércio da China e o de todo o Mundo, enfim
todos os bens da paz que com isto lhes comprarmos. [...]
Haia, 24 de Agosto 648.

Para o êxito da empresa, havia de descobrir o
Padre o projecto, como seu, aos jesuítas castelhanos,
sondar por meio deles o embaixador, e, achando
fácil o caminho, dar os primeiros toques à negociação. Ao mesmo tempo, e para coagir o Gabinete de
Madrid a entendimento, devia ele secretamente
estimular os propósitos de nova rebelião em Nápoles, contra o domínio espanhol, fazendo constar aos
conjurados que o Governo Português ajudaria ao
movimento e facultando-lhes dinheiro por um
intermediário.
Mal lhe ia saindo a aventura, porque, aos primeiros
rumores da proposta, o embaixador, duque del
Infantado, o forçou a deixar precipitadamente
Roma, com ameaça de morte, no caso de não
abandonar logo a cidade e a Itália, cominação que
pelo geral da Companhia lhe foi transmitida.
Durante o tempo que esteve em Roma, não
descurou Vieira de procurar providências em favor
dos cristãos-novos, seus protegidos de sempre; mas
disso só temos notícia mais tarde. A ausência de
Lisboa foi de quase seis meses. Partiu do Tejo, com
destino a Lionne, a 8 de Janeiro de 1650, e regressou
em Junho, data não conhecida. Na ida arribou a
Barcelona, que dominavam os Franceses. De lá
temos carta sua para o Secretário de Estado. Outra
carta de Roma, aonde chegou a 16 de Fevereiro,
escrita em Maio, para o Príncipe, incitando-o a
tomar as armas, quando em Lisboa se temia um
assalto da armada inglesa; mais outra carta, do mês
seguinte, para o Rei, com as correntes novidades
políticas: eis tudo quanto se tem até agora colhido
desse período. Da negociação tentada veio a saber-se, muitos anos depois, pelo sermão, na Baía, em
acção de graças por ocasião do nascimento do infante D. António, filho de D. Pedro II. O acto do
duque del Infantado, que motivou a retirada, ou
melhor a fuga, de Roma, é conhecido pelo rol dos
serviços, alegados por Vieira num memorial a favor
de Gonçalo Ravasco, seu sobrinho.
A última carta da presente série devia ter precedido poucos dias a saída de Roma.

António Vieira

PRIMEIRA JORNADA A ROMA
(FEVEREIRO A JUNHO DE 1650)
Não logrando obter a segurança do trono pela
aliança francesa, tentou D. João IV alcançá-la directamente do adversário, e para tal fim propor em
Castela o matrimónio recusado por Mazarino e
Ana de Áustria. Mais uma vez foi o Padre Vieira o
emissário escolhido, agora, porém, sem credenciais,
e incumbido de urdir na sombra um ajustamento
que teria levantado protestos, sabido em Portugal.
Nada menos que reunir de novo as coroas da
Península, pelo consórcio do príncipe D. Teodósio
com a infanta D. Maria Teresa, filha então única de
Filipe IV. Como satisfação ao patriotismo português,
punha-se a condição de ficar sendo Lisboa a capital
da monarquia unida, quando juntos os dois Estados,
por morte dos soberanos reinantes, em herança
comum dos noivos.

36
amem só por amar e S. M. não deve esperar
finezas, senão contentar-se muito de que se
queiram vender aqueles que lhe for necessário
comprar. A pólvora, as balas, os canhões, são
comprados, e bem se vê o ímpeto com que servem, e o estrago que fazem nos inimigos; e mais
natural é em muitos homens o interesse que
nestes instrumentos a mesma natureza. Os que
menos satisfeitos estiverem de S. M., esses chegue V. A. mais a si, que importará pouco que no
afecto se dividam as vontades, contanto que no
efeito S. M. e V. A. as achem obedientes e unidas.
Faça-se V. A. amar, e nesta só palavra digo a V. A.
mais do que pudera em largos discursos. [...]
Perdoe V. A. ao meu amor este e os outros atrevimentos desta carta.

CARTA LI
Ao príncipe D. Teodósio
1650 – Maio 23
Senhor. – Meu Príncipe e meu senhor da minha
alma. – [...]
Ah Senhor! Que falta pode ser que faça a V. A.
nesta ocasião este fidelíssimo criado, e quão
poucos considero a V. A. com a resolução e valor
e experiência que é necessário para saberem
aconselhar a V. A. o que mais lhe convém em tão
apertados casos! Mas, já que na presença não
posso, aconselhe a V. A. a minha alma, que toda
mando a V. A. neste papel, e com toda ela lhe
digo que, tanto que chegar esta nova, V. A. logo
sem esperar outro preceito se ponha de curto, o
mais bizarro que puder ser, e se saia a cavalo por
Lisboa, sem mais aparato nem companhia que a
que voluntariamente seguir V. A., mostrando-se
no semblante muito alegre e muito desassustado,
e chegando a ver e reconhecer com os olhos
todas as partes em que se trabalhar; informando-se
dos desígnios e mandando e ordenando o que
melhor a V. A. parecer, que sempre será o mais
acertado; mandando repartir algum dinheiro entre os soldados e trabalhadores, e, se V. A. por sua
mão o fizesse, levando para isso quantidade de
dobrões, este seria o meu voto; e que V. A. se
humane conhecendo os homens e chamando-os
por seu nome, e falando não só aos grandes e
medianos, senão ainda aos mais ordinários: porque desta maneira se conquistam e se conformam os corações dos vassalos, os quais, se V. A.
tiver da sua parte, nenhum poder de fora será
bastante a entrar em Portugal, sendo pelo contrário muito fácil ainda qualquer outra maior
empresa a quem tivesse o domínio dos corações.
S. M. tem nesta parte uma vantagem muito
conhecida, que é estar de posse e poder dar,
quando Castela só pode prometer. Como há
poucos Antónios Vieiras, há também poucos que

António Vieira

TEMPOS DE MISSIONÁRIO
(JUNHO DE 1651 A JUNHO DE 1661)
Desgostoso pela oposição dos émulos na Corte,
magoado da hostilidade de alguns padres, dos mais
influentes, dentro da Companhia, e provavelmente
obedecendo a imposições agenciadas por estes,
António Vieira decidiu pôr ponto à intromissão na
política e consagrar-se inteiramente aos deveres de
religioso. Ainda em 1652, rejeitou o convite do
conde de Penaguião para o acompanhar na embaixada a Inglaterra. Após uma primeira missão de
ensaio a Torres Vedras, das com que era uso estimular o fervor devoto das populações, preparou-se o
político desenganado para outras de maior esforço
e sacrifício, e escolheu para local de sua operosidade Maranhão e o Pará, onde, por acidentes vários,
não havia então ninguém da Companhia de Jesus.
Com o ardor próprio do seu temperamento, e utilizando o favor do rei, dispôs António Vieira as
coisas da missão, elegeu os companheiros, tomou o
cargo de superior, e se achava pronto a partir em
Setembro de 1652. Parece, porém, que à última

37
Nisto, em Maio de 1661, levanta-se o povo no
Maranhão para expulsar os jesuítas. Vieira, em
caminho para lá, tem de voltar a trás. As cartas
XCII e XCIII são escritas quando ele, ao ter notícia da sedição, se refugia no Pará. Mas aí se repete
o movimento, e o Padre é conduzido em custódia
ao Maranhão, e, como os demais religiosos da Companhia, embarcado para Portugal, aportando a
Lisboa em Novembro. Depois nunca mais tornou
aos lugares que tinham sido, nove anos quase, teatro
de seus labores.

hora lhe esfriou o entusiasmo de apóstolo; e, muito
a propósito, uma ordem régia levada a bordo o
forçou a desembarcar, seguindo os companheiros
viagem sem ele.
É crível que o recuo não fosse do agrado dos
confrades, empenhados em afastá-lo de Lisboa, e o
superior da missão teve definitivamente de partir
em Novembro, não sem esperar, até sair a barra, a
repetição do chamado, que dois meses antes o fizera
retroceder. Tudo isto consta das cartas dirigidas ao
príncipe D. Teodósio em termos queixosos e o
confirmam as confidências em que descobre o seu
estado de alma a dois padres amigos.
Não tardou ele, contudo, a dominar as saudades da
vida das cortes. Arribando a Cabo Verde, já sentia
despertar de novo o zelo pela difusão da fé. Ao
Maranhão chega a 16 de Janeiro de 1653, e logo as
obrigações de sacerdote e missionário lhe absorvem a actividade e o pensamento. As cartas ao seu
provincial, as que vão ao Conselho Ultramarino,
com o rótulo de serem para o rei, descrevem os
trabalhos e privações suportados, as resistências
vencidas, o esforço enorme que custava iniciar na
civilização o selvagem, e preparar o terreno para
que ela mais tarde prevalecesse, em territórios
vastíssimos, desconhecidos e muitas vezes de perigoso acesso.
Em Junho de 1654, tendo pregado no Maranhão o
sermão famoso de Santo António, o missionário
ausentou-se, para ir à Corte requerer providências
novas, em proveito da sua obra. Mas, demorado no
mar pelo tempo, e aprisionado a segunda vez por
corsários, que o foram largar nos Açores, só em
Novembro chegou a Lisboa, e em Abril do ano
seguinte regressou à missão.
Daí por diante, os seis anos que nela permaneceu
passou-os, na mor parte, em viagens pelo estuário
do Amazonas, e rio a cima até onde as povoações
de índios, introduzidos no cristianismo, pediam a
sua inspecção; ou ao longo da costa, indo e vindo,
entre Maranhão e Pará, e, por duas vezes, mais
longe, buscando de uma delas a Baía, jornada a que
renunciou em caminho, da outra, a serra de
Ibiapaba.

CARTA LV
Ao padre provincial do Brasil
1652 – Novembro 14
Pax Christi
[...]
Acrescem mais os cinquenta mil réis do meu
ordenado, com que nos remediaremos dois; e,
como a renda se nos há-de pagar na Baía e Rio
de Janeiro, tomando-a os dois colégios em si, e
mandando-nos açúcares da sua lavra, com que
nos façam esmola dos melhoramentos da sua
liberdade, empregando-se tudo aqui nos géneros
mais necessários ao Maranhão, sempre virá a
chegar lá muito acrescentado.
Bem vejo que os riscos do mar são grandes, mas
alguma cousa hão-de deixar a Deus os que dedicam tudo a Ele. No Maranhão, como de lá nos
avisam, também temos ainda alguns escravos e
criação de vacas, de que se poderão ajudar os
daquela casa; e, se nas outras e nas missões se
fizer o fruto que se espera, logo S. M., como
tem prometido, acrescentará mais renda, e não
faltarão pessoas particulares e devotas que nos
ajudem com suas esmolas. E, quando não haja
outras, resolver-me-ei a imprimir os borrões de
meus papelinhos, que, segundo o mundo se tem
enganado com eles, cuida o Padre Procurador-Geral que poderá tirar da impressão com que

38
sustentar mais dos que agora vão: assim que, por
falta de sustentação não deixe V. Rev.a de mandar o número dos sujeitos que S. M. pede; e
nesta confiança, como digo, resolvemos que de
cá fossem logo os doze.
Disposta assim a missão, e tomado no navio o
mais largo e cómodo lugar que pode ser (o qual
também deu El-Rei), em 22 de Setembro começou a partir a frota, e os nossos missionários
se foram embarcar todos: e eu dos últimos, com
o Padre Francisco Ribeiro, como que nos íamos
despedir deles ao navio. [...]
O Padre Manuel de Lima leva comissão do Santo Ofício para o que naquele Estado se oferecer
tocante a este tribunal; e também no Conselho
Ultramarino lhe quiseram encarregar o ofício de
pai dos cristãos, que agora se cria de novo no
Maranhão, à imitação da Índia, para que os índios
recorram a ele como a seu conservador, contra
todas as vexações que lhes fizerem os Portugueses; mas, como o exercício deste cargo é de mui
dificultosa execução e mui odiosa, não nos pareceu que convinha que a levássemos, principalmente quando imos fundar de novo, para o que
nos é tão necessária a benevolência dos povos; e
também porque, sendo o nosso principal intento
abrir novas conversões pelo sertão e rio a cima,
não serviria esse ofício mais que de embaraço e
impedimento a outros maiores serviços de Deus.
[...]
A Província do Brasil foi principalmente fundada para a redução e conversão dos gentios, e, não
havendo nela hoje outra missão senão esta, justo
é que não faltem sujeitos para ela e que estes
sejam tais que a Província sinta muito perdê-los,
como acontecia a S. Francisco de Borja, porque
nunca melhor ganhados, nem mais bem empregados; que Deus, a quem se dão, dará outros por
eles, e quando a Província de Portugal, a quem
toca menos, não repara em se privar dos sujeitos
de maiores esperanças para os dar ao Maranhão,
maior obrigação corre à do Brasil em não faltar

com os que só nele se podem achar, que são os
línguas. [...]
Também se todos os línguas não forem padres, e
houver algum irmão estudante eminente nela,
venha embora, que no Maranhão terá estudos e
ordens, como os demais que lá vão; que tudo
há-de facilitar e compor o tempo, e com os
primeiros bispos que tiver Portugal o há-de ter
também aquele novo Estado, e, se a conversão
for por diante, não só um, senão muitos; e,
quando totalmente o não haja, faremos o que
fazem hoje os do Brasil, que todo o outro inconveniente é menor que começar uma conversão
sem homens muito práticos na língua principalmente entre gente que mede por ela o respeito.
[...]
14 de Novembro de 1652. – De V. Rev.a filho
em o Senhor.
António Vieira

CARTA LVII
Ao Padre André Fernandes
1652 - Dezembro 25 [De Cabo Verde]
Pax Christi
[...]
É o caso que nesta ilha de Santiago, cabeça de
Cabo Verde, há mais de sessenta mil almas, e nas
outras ilhas, que são oito ou dez, outras tantas, e
todas elas estão em extrema necessidade espiritual; porque não há religiosos de nenhuma religião que as cultivem, e os párocos são mui poucos e mui pouco zelosos, sendo o natural da
gente o mais disposto que há, entre todas as
nações das novas conquistas, para se imprimir
neles tudo o que lhes ensinarem. São todos pretos, mas somente neste acidente se distinguem
dos europeus. Têm grande juízo e habilidade e
toda a política que cabe em gente sem fé e sem

39
muitas riquezas, que vem a ser o que ensina a
Natureza.
Há aqui clérigos e cónegos tão negros como
azeviche, mas tão compostos, tão autorizados,
tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e
bem morigerados, que podem fazer invejas aos
que lá vemos nas nossas catedrais. Enfim, a disposição da gente é qual se pode desejar, e o
número, infinito: porque, além das cento e vinte
mil almas que há nestas ilhas, a costa que lhe
corresponde em Guiné e pertence a este mesmo
bispado, e só dista daqui jornada de quatro ou
cinco dias, é de mais de quatrocentas léguas de
comprido, nas quais se conta a gente, não por
milhares, senão por milhões de gentios. Os que
ali vivem ainda ficam aquém da verdade, por
mais que pareça encarecimento: porque a gente
é sem número, toda da mesma índole e disposição dos das ilhas, porque vivem todos os que as
habitam sem idolatria, nem ritos gentílicos, que
façam dificultosa a conversão, antes com grande
desejo, em todos os que têm mais comércio
com os Portugueses, de receberem nossa santa fé
e se baptizarem, como com efeito têm feito
muitos; mas, por falta de quem os catequize e
ensine, não se vêem entre eles mais rastos de
cristandade que algumas cruzes nas suas povoações, e os nomes dos santos, e os sobrenomes de
Barreira, o qual se conserva por grande honra
entre os principais delas, por reverência e memória do Padre Baltasar Barreira, que foi aquele
grande missionário da Serra Leoa, que, sendo
tanto para imitar, não teve nenhum que o seguisse, nem levasse adiante o que ele começou.
E assim estão indo ao Inferno todas as horas
infinidade de almas de adultos e deixando de ir
ao Céu infinitas de inocentes, todas por falta de
doutrina e baptismo, sendo obrigados a prover
de ministros evangélicos todas estas costas e
conquistas os príncipes de um reino em que
tanta parte de vassalos são eclesiásticos e se ocupam nos bandos e ambições, que tão esquecidos

os trazem de suas almas e das alheias; mas tudo
nasce dos mesmos princípios.
Padre da minha alma, este é o estado desta
gentilidade e desta cristandade; porque os das
ilhas, ainda que todos baptizados, por falta de
cultura vivem quase como os da terra firme.
Afirmo a V. Rev.ma que, chegando aqui e vendo
e informando-me deste desamparo, e experimentando nas confissões destes dias o grande
que há nas almas dos portugueses que por estas
partes vivem, assim a mim como aos companheiros nos vieram grandes impulsos de não
passarmos mais adiante, e aplicarmos as nossas
foices a esta tão vasta e tão disposta messe; e sem
dúvida o fizéramos, se a metade da missão não
tivera ido no outro navio, e sem pessoa que a
levasse a cargo. E, com eu ser tão apaixonado
pelo Maranhão, confesso a V. Rev.ma que não
posso deixar de conhecer quantas vantagens esta
missão faz àquela; porque está muito mais perto
de Portugal, muito mais junta, muito mais disposta, e de gente sem nenhuma comparação
muito mais capaz e ainda muito mais numerosa;
em que nestas ilhas não têm necessidade de se
lhes aprender a língua, porque todos a seu modo
falam a portuguesa, e apenas se pode em nenhuma nação considerar necessidade mais extrema.
Eu me arranco daqui com grande inveja e dor, e
parece que se me está dizendo nesta parte da
África o que na oposta se disse: Facta fugis,
facienda petis. Mas, como os fados me levam ao
Maranhão, já que eu não posso lograr este bem,
contento-me com testar dele, e o inculcar e deixar a quem mais amo, que são os meus padres
do Alentejo, de cujo espírito, que eu conheço
melhor que outros, espero que hão-de abraçar
esta empresa com tanto afecto e resolução que
as dificuldades, que nela se representam, sejam
os principais motivos de a quererem por sua. [...]
Cabo Verde, 25 de Dezembro de 1652. – Humilde
servo, e que muito ama a V. Rev.ma
António Vieira

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Cartas de Vieira revelam um homem apaixonado pela política

  • 1. H I S T Ó R I A E ANTOLOGIA DA L I T E R AT U R A P O RT U G U E S A S é c u l o XVII N.º 36 FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN 1 Serviço de Educação e Bolsas
  • 2. HALP N. 36 Professores/Investigadores Margarida Vieira Mendes Maria Lucília Gonçalves Pires José van den Basselaar Agradecimentos Biblioteca Nacional Edições Cosmos Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Museu Calouste Gulbenkian Ilustração Capa: Nicolas-Bernard Lépicié (1735-1784) Auto-retrato (pormenor) c.1777. Óleo sobre tela A. 0,908 X L. 0,715 m. (N. Inv. 2386) Lisboa: Museu Calouste Gulbenkian Ficha Técnica Edição da Fundação Calouste Gulbenkian Serviço de Educação e Bolsas Av. de Berna 45A - 1067-001 Lisboa Autora: Isabel Allegro de Magalhães Concepção Gráfica de António Paulo Gama Composição, impressão e acabamento G.C. Gráfica de Coimbra, Lda. Tiragem de 11.000 exemplares Distribuição gratuita Depósito Legal n.° 206390/04 ISSN 1645-5169 Série HALP n.° 36 - Novembro 2006 2
  • 4. 4
  • 5. Clavis prophetarum / Chave dos Profetas Índice Caps.: I, II, III, IX (excertos) .......................... 79 História do Futuro, Livro Anteprimeiro Caps.: III, IX, X (excertos) ............................. 00 Nota Prévia ................................................... 7 ESTUDOS BREVES: INTRODUÇÕES “A epistolografia de Vieira” Maria Lucília Gonçalves Pires ................. 11 “O relevo de Chaves dos Profetas” Margarida Vieira Mendes ........................ 15 “Alguns dados sobre a História do Futuro” José van den Basselaar ............................. 19 TEXTOS LITERÁRIOS: Cartas (excertos) Vol. I Introduções. Cartas: I, IV. Introdução. Cartas: XV, XVI, XIX, XLVII. Introduções. Cartas: LI, LV LVII, LXI, LXII, LXIV , , LXV, LXIX, LXXVII, LXXX, LXXXIII ........ 25 Vol. II Introdução. Cartas: II, XIX, XL, LII, CXVI, CXXIX, CXLIX, CLII, CLXXV, CLXXX, CXC, CXCIV ............................................... 57 Vol. III Cartas: II, XXXVII, XLI, XLIII, LXI, LXVI, LXXIII, LXXV, CVIII, CXV, CXVI, CXXII, CXXXIV, CXXXVIII, CXLI, CXLIV, CLIV, CLVIII. Introdução. Cartas: CLXXX, CXCI, CCIII, CCXXX ........................................................ 66 5
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  • 7. – A Chave dos Profetas (Clavis prophetarum) trata de matérias diversas e, enquanto “tratado”, faz a par e passo a apresentação de argumentos sobre cada tópico para a seguir os refutar ou confirmar, deles extraindo sempre algumas conclusões quanto ao ponto contemplado. Este texto, tal como claramente o mostrou Margarida Vieira Mendes na sua apresentação da edição que tencionava elaborar deste texto, não é (como em tempos foi considerada) a última obra de Vieira: “O autor escreveu o texto em Roma, onde permaneceu entre 1669 e 1675”. De tal modo são variados os assuntos que, conforme sugeriu também Margarida Vieira Mendes, quase se poderia considerar estarmos presente um conjunto de “pequenos tratados independentes”. De entre os temas, lembremos como exemplo os seguintes: os lugares e os tempos em que o Reino foi anunciado, de que maneiras e a quem se dirigia esse anúncio, a pregação universal do reino de Deus, a questão de uma lei natural e a de a ignorância dos “bárbaros criados nas selvas” poder funcionar como inocência diante de Deus, as atitudes de rejeição, por parte dos Judeus, relativamente a S. Paulo e o modo como S. Paulo reagiu a essas atitudes judaicas, etc. Deste tratado temos aqui excertos de alguns dos capítulos, e apenas do Livro III, já que foi por ele que se começou a edição crítica da obra (e até hoje é o único publicado). Nota Prévia Este penúltimo número (36) da Antologia dedica-se a algumas das Obras do Padre António Vieira: * Dois Tratados – a Chave dos Profetas, em três livros, escritos em latim, e a História do Futuro; * Epistolografia: numerosíssimas Cartas (publicadas agora em três volumes), escritas durante quase todas as décadas da vida do Autor, a partir dos vários locais onde viveu, com diversíssimos destinatários que são, em geral, figuras de relevo da política, da aristocracia, da Igreja, em Portugal e na Europa do seu tempo. – Do amplo conjunto das Cartas, um total de quase mil, figuram aqui naturalmente apenas algumas, e de quase todas apenas excertos, por vezes brevíssimos. Foram escolhidas de quase todos os períodos em que é possível dividir a vida, a intervenção e a escrita de Vieira. Desse modo, é possível o leitor dar-se conta da diversidade de níveis de intervenção que envolveu e ocupou a vida do Autor, bem como da quantidade de relações e amizades que manteve e dos obstáculos que a sua visão e coragem provocaram nas autoridades da época (tanto da Igreja como da política, o que se torna particularmente grave perante a Inquisição). Esta edição das Cartas apresenta, entre os agrupamentos temporais e espaciais em que se organiza a Correspondência, pequenas introduções que situam o contexto histórico e biográfico em que as cartas foram escritas. Daí que nesta Antologia essas pequenas notas infor mativas e comentativas, ou excertos delas, tenham sido incluídas e mantidas, tal como acontece nesta edição, no início de cada novo período. – Quanto à História do Futuro: o plano gigante que Vieira elaborou para esta obra não chegou a poder ser cumprido. Dele nos fica apenas um livro, destinado a preceder os conteúdos dessa História. Aliás, o próprio título geral, atribuído ao tratado a escrever, mostra a ambição do plano gizado: História do Futuro, Esperanças de Portugal e Quinto Império do Mundo. Livro Anteprimeiro. Prolegómeno a toda a História do Futuro em que se declara o fim e se provam os fundamentos dela. Primeira Parte. Matéria, Verdade e Utilidades da História do Futuro. 7
  • 8. Aquilo que Vieira deixou pronto é afinal um livro preliminar, curiosamente chamado Livro Anteprimeiro, em que expõe os objectivos a que a obra iria obedecer e os argumentos que a tornariam útil e significativa. Deste livro, figuram neste volume também só excertos de alguns dos capítulos que dão conta das intenções do conjunto da obra e sua fundamentação. Os textos, como é já usual nestes Boletins, são precedidos por breves Introduções críticas que funcionam como abertura a um melhor entendimento das obras do seu conjunto. A Bibliografia, longa e mesmo assim sumária – atendendo ao volume de obras críticas existentes sobre o autor –, diz respeito a estes dois últimos volumes da Antologia, ambos sobre Vieira – pelo que o próximo número (37) não incluirá qualquer bibliografia, a não ser a que diz respeito aos textos seleccionados: os Sermões. Para simplificação da leitura, foram retiradas dos textos quase todas as notas. Lisboa, Julho, 2006 ISABEL ALLEGRO DE MAGALHÃES 8
  • 9. I N T RO D U Ç Õ E S ESTUDOS BREVES 9
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  • 11. A epistolografia de Vieira escritas por um homem que em boa parte fez a história do seu tempo (como escreve em carta ao conde da Ericeira de 18/8/88, «a parte [da história] que pertence ao Brasil, vi-a com os olhos, e a outra parte das embaixadas passou-me pelas mãos»); um homem apaixonado pelas questões da res publica, pelos meandros da diplomacia, pelas intervenções nas esferas do poder deliberativo. Da sua intervenção directa em negócios do Estado fala, em jeito de balanço, na célebre carta ao conde da Ericeira (Baía, 23/5/89), refutando com acrimónia o juízo pouco elogioso que de tal actividade aquele autor formula na sua História de Portugal Restaurado. E aí recorda as suas bem sucedidas diligências para obter o dinheiro necessário à defesa do reino em momento desesperado, a proposta de transferir para o Brasil a produção de especiarias da Índia para as fazer chegar aos mercados europeus a preço mais competitivo, e, sobretudo, o que ao longo dos anos sempre considerou a coroa de glória da sua actuação política – a criação, em 1649, da companhia do comércio do Brasil – lamentando sempre que o seu plano não tivesse tido plena realização, pois nunca se chegou a criar a companhia do comércio do Oriente que reiteradamente propusera. Se é certo que as cartas de Vieira nos dão a imagem de um homem apaixonado por várias causas, política (no seu sentido etimológico) é talvez a palavra que unifica os diversos objectos da sua paixão. O apaixonado empenhamento de Vieira nas questões políticas, expresso na acção e na escrita, unifica no seu pensamento o pendor pragmático e a utopia messiânica, ilumina as diversas facetas da sua vida. De tal modo que uma semana antes de morrer, com noventa anos, cego e quase completamente surdo, ainda dita cartas em que manifesta a sua preocupação pelas consequências políticas da morte do rei de Espanha e tece considerações sobre o preço do açúcar, denunciando a (excerto) MARIA LUCÍLIA GONÇALVES PIRES * [...] 2. As cartas como documento histórico As cartas de Vieira têm sido lidas principalmente como documento histórico, o que é perfeitamente justificado pela riqueza de informações que contêm acerca da vida do autor e da sua época. Antes de mais, informações que permitem traçar com bastante minúcia o seu percurso biográfico, pelo que a valiosa História de António Vieira, de Lúcio de Azevedo, tem as cartas como principal fonte de informação. São documento precioso e imprescindível para a história da Companhia de Jesus em Portugal no século XVII e, sobretudo, da missionação do Brasil (veja-se o aproveitamento de textos das cartas nas obras de historiadores da Companhia como Francisco Rodrigues e Serafim Leite). Do mesmo modo António José Saraiva baseia essencialmente no texto das cartas o seu trabalho intitulado «O Padre António Vieira e a liberdade dos índios», trabalho em que analisa de forma sistemática o desenrolar do que foi um dos grandes combates da vida de Vieira. Mas também para a história política do nosso século XVII abundam os materiais nestas cartas * In Vieira Escritor. Org. Margarida Vieira Mendes, M.ª Lucília G. Pires, J. Costa Miranda. Lisboa: Cosmos, 1997, p. 24-29. 11
  • 12. injustiça de uma política económica que explora despudoradamente os recursos do Brasil. A epistolografia de um espírito assim atento aos acontecimentos políticos, que participou em muitos deles, que se correspondeu ao longo da sua longa vida com as figuras mais relevantes da cena nacional, bem como da sua Companhia e mesmo da cena internacional, é obviamente um documento histórico de valor inapreciável. Em primeiro lugar, consideremos a utilização do discurso narrativo. Ele torna-se evidente sobretudo nas cartas dirigidas aos seus superiores com o objectivo de lhes dar a conhecer os principais sucessos da vida da Companhia nos lugares em que se encontrava. Trata-se de um tipo de literatura abundantemente cultivada pelos membros da Companhia de Jesus que não se limitavam a mera finalidade informativa; aliás, algumas das observações de Vieira permitem-nos apreender outras funções consignadas a estas cartas: a apologia da Companhia e da sua obra, a edificação espiritual dos seus leitores, e também o estímulo a que alguns desses leitores se deixassem contagiar pelo entusiasmo apostólico de que elas eram testemunho. Estas cartas narrativas de Vieira, analisadas como processo de construção de um auto-retrato, apresentam o autor, não apenas como simples narrador, mas como protagonista da acção narrada: como sujeito de um agir, quase sempre triunfante, mas também como sujeito de um falar, dominando pela palavra situações difíceis ou conflituosas. A técnica retórica da argumentação persuasiva, tão engenhosamente explorada nos seus textos parenéticos, prolonga-se e repercute-se, de forma aparentemente mais natural, mas não menos eficaz, no texto das suas cartas. Recordo o passo da carta ao Provincial do Brasil (22/5/1653) em que relata o efeito do seu violento «Sermão das tentações» (1.ª Dominga da Quaresma de 1653) com que procurou resolver o magno problema da liberdade dos índios. Escreve Vieira, depois de ter resumido as linhas essenciais da argumentação desenvolvida nesse sermão: «Nas cores que o auditório mudava bem via eu claramente os afectos que, por meio destas palavras, Deus obrava nos corações de muitos, os quais logo de ali saíram persuadidos a se querer salvar e a aplicar os meios que para isso fossem necessários a qualquer custo. Na mesma tarde, antes que a memória se perdesse 3. As cartas como auto-retrato Mas a perspectiva de leitura que me parece mais sedutora consiste em encarar as cartas como construção de um auto-retrato, procurando analisar os processos mobilizados nessa construção e a imagem multifacetada deles resultante. Verney, um autor que ninguém pode considerar suspeito de particular simpatia por Vieira, tendo em conta as críticas impiedosas que formula contra os seus escritos em geral e os seus sermões em particular, escreve a concluir as suas apreciações: «Vejo nas suas cartas retratado um ânimo grande, um desinteresse nobre, uma viva paixão pelos aumentos do seu reino e ardente desejo de se sacrificar por ele (...) Se eu vivesse no seu tempo, seria o seu maior amigo». É, afinal, esta personalidade que nas cartas se revela o único aspecto que atrai a simpatia de Verney. Sabemos como o género epistolar se presta particularmente a esta revelação do sujeito que escreve, dada a ausência de normas rígidas a codificarem as formas de expressão neste tipo de discurso. Mas sabemos também como a imagem que do autor se revela num texto, mesmo naqueles que, pelas suas características genológicas, mais se prestariam a uma comunicação directa e imediata, constitui uma construção resultante de um conjunto de processos literários mobilizados pelo autor. Analisemos, pois, alguns desses processos. 12
  • 13. ou alguma conferência secreta a confundisse, deu o capitão-mor princípio a uma junta (...) Pediram-me então quisesse tornar a propor o que de manhã dissera, e aprovado por todos, nemine discrepante, chegou-se aos meios de execução». Aqui temos a imagem do orador e do homem de acção: do homem que triunfa no plano da acção pela força da sua palavra veemente e iluminada. Mas nem sempre os relatos nas cartas de Vieira nos dão dele esta imagem triunfante. São mesmo muito numerosas aquelas em que dá de si uma imagem enfraquecida: a sua frágil saúde afectada pelos frios de Coimbra ou de Roma; a doença que o debilita e o leva a «cuspir sangue» quando, sob custódia da Inquisição, é obrigado a escrever em breve tempo a sua defesa (carta a Diogo Velho, 21/9/1665). Mas nunca estas imagens de fraqueza diminuem a força do seu discurso: um discurso que é a expressão da autoridade que emana da sua clarividência, da sua capacidade de ver e de entender: os factos, os homens, os sinais. Esta clarividência de que se apresenta dotado é a base, tanto dos seus conselhos políticos, com a marca da autoridade do saber, como das suas previsões messiânicas, voz de profeta capaz de ler o que está evidente apenas àqueles que tenham olhos de ver. Este sujeito que se apresenta como protagonista, quase sempre triunfante, das acções que narra; este conselheiro e comentador dotado de autoridade; este visionário capaz de decifrar os sinais dos tempos e de entender os textos que ensinam a decifrá-los, é também um espírito dotado de uma sensibilidade que se exprime frequentemente por meio de uma linguagem profundamente emotiva. Umas vezes deparamos com uma emotividade que se manifesta de forma directa, impressionante de intensidade. E as emoções que assim se exprimem tanto pode ser o seu acrisolado amor pela pátria, como a raiva pela cegueira e incompetência dos seus dirigentes, como a dor pela marginalização de que se sente vítima. O dolorido amor por uma pátria que se vê na decadência devido à insensatez de quem a governa exprime-se sobretudo em cartas escritas de Roma (1669-75) ao seu amigo Duarte Ribeiro de Macedo, com quem partilha preocupações e ideias políticas. Em algumas dessas cartas este amor é referenciado como loucura, como doença capaz de o levar à morte: «Já se me acabou a paciência, e tenho tão pouco coração e tão pouco juízo, que também me há-de acabar a vida este indiscreto amor de uma pátria que tão pouco o merece», escreve em 19/7/72. O remédio seria esquecer esta pátria ingrata. Por isso aconselha ao amigo: «Se V S.ª quer melhorar dos seus achaques, busque algum meio de não cuidar em Portugal, porque só este remédio podem ter os que o amam, e isto é o em que eu ando cuidando há muitos dias» (7/2/1673). Mas é-lhe impossível pôr este remédio em prática, o que lhe provoca mesmo um problema de natureza religiosa: tendo, durante os dias de exercícios espirituais ordenados pela Companhia, analisado a sua consciência para descobrir o seu principal defeito, revela: «achei que era o afecto português e imoderado amor e zelo da pátria, e contra este tão forte inimigo me tinha armado (...). Mas ainda que o tenho muitas vezes convencido, não acabo de o ver vencido» (17/10/73). Daí a sua confissão desesperada: «Confesso a V. S.ª que, depois de ter nascido em Portugal, a maior felicidade fora ou não chegar a uso de razão ou tê-lo perdido» (7/11/73). A linguagem da emoção assume por vezes um tom sarcástico, uma ironia cortante, sobretudo quando se trata de julgar os responsáveis pela dramática situação da pátria. Recordando a supremacia da França nos mares do Oriente para onde acabara de mandar uma forte armada, comenta: «E nós cuidamos que, com ter duas 13
  • 14. gôndolas em que passar a Salvaterra, somos reis de aquém e de além mar»; um sarcasmo que chega mesmo a parodiar a primeira das bem-aventuranças: «A nossa pobreza de espírito nos poderá segurar o reino do céu, mas não sei se o da terra» (7/2/1673). As cartas escritas nestes anos da estadia em Roma, gozando de protecção e prestígio e liberto das forças que em Portugal o ameaçavam, são aquelas em que os seus sentimentos se exprimem de forma mais livre e veemente, sobretudo as que dirige a Duarte Ribeiro de Macedo, encarregado de negócios em Paris, embora por vezes recorra prudentemente ao uso de linguagem cifrada. Mas em anos anteriores e em circunstâncias muito diferentes, a intensidade da emoção encontra formas de expressão não menos impressionantes na sua dramática contenção. Recorde-se a carta escrita ao príncipe D. Teodósio ao partir para as missões do Maranhão, em Dezembro de 1652. O relato minucioso, quase hora a hora, de passos, gestos, diligências, comunica a ansiedade com que espera uma palavra do rei que o impeça de partir, até ao desespero da decepção final: «As velas se largaram e eu fiquei dentro [da caravela] e fora de mim». Uma carta que, à superfície do texto, é a construção da imagem do vassalo fiel preocupado apenas com a salvaguarda da sua obediência à vontade do rei; mas, na sua minúcia narrativa, diz essencialmente a angústia de quem vê cortarem-se, de forma abrupta e inesperada, os laços que o ligavam a um estilo de vida que o seduzia. É uma carta que nos dá também a imagem de um daqueles momentos de viragem frequentes na vida e na alma de Vieira: o homem de corte, desesperado por se ver afastado dela, dá lugar, neste mesmo texto, ao missionár io já embrenhado na preocupação com a salvação das almas dos gentios. Neste auto-retrato que as cartas constróem surgem também pinceladas que desenham o Vieira escritor. Sobretudo o autor de Sermões, a cuja preparação dedica os últimos vinte anos da sua vida, embora manifestando frequentemente a sua contrariedade perante essa tarefa que atribui ao dever de obediência aos superiores. Já em 1652, em carta ao provincial do Brasil, refere a hipótese dessa publicação para arranjar dinheiro para as missões do Maranhão: «Quando não haja outras [receitas], resolver-me-ei a imprimir os borrões de meus papelinhos que, segundo o mundo se tem enganado com eles, cuida o Padre Procurador Geral que poderá tirar da impressão com que sustentar mais [missionários] dos que agora vão» (14/11/52). E em 1658, em plena actividade missionária, conta a um sacerdote amigo: «Ordenou-me o Padre Provincial e o Padre Visitador que alimpasse os meus papéis em ordem à impressão, para com os rendimentos dela ajudar a sustentar a missão». Mas só vinte anos mais tarde se dedicará sistematicamente a essa tarefa, publicando o primeiro volume dos seus Sermões em 1679. E o autor, que insistentemente refere a dificuldade de recuperar esses textos pronunciados noutros tempos, não deixa de ir fornecendo informações acerca do desenrolar dessa tarefa e mesmo do seu desagrado perante edições não autorizadas ou traduções imperfeitas. Quanto à elaboração da História do Futuro, vão surgindo breves observações em cartas escritas nos anos difíceis de 1663-65,e todas exprimem a urgência de concluir essa obra anunciadora da plenitude dos tempos antes que chegue a realização, que julga iminente, desse futuro de que se apresenta como cronista. Mais tarde, quando já em Roma, é da elaboração da Clavis Prophetarum que fala, com um mal disfarçado orgulho de autor: «Tenho em grande altura um livro latino intitulado o Quinto Império, ou Império consumado de Cristo, que vem a ser a Clavis Prophetarum, e ninguém o lê sem admiração e sem o julgar por importantíssimo à 14
  • 15. O relevo de Chave dos Profetas inteligência das escrituras proféticas» (22/10/ /1672). A escrita desta obra, que foi obrigado a ir intercalando com a preparação dos sermões, foi interrompida pela sua morte. Seis dias antes de morrer, a 12/7/97, ainda ditava uma carta em latim (a última que conhecemos) em que informava o Superior Geral do andamento dessa obra em que trabalhava há tantos anos. Uma obra que ficou incompleta, a testemunhar a permanência desse sonho messiânico que iluminou toda a sua vida. (excerto) MARGARIDA VIEIRA MENDES * A Chave dos Profetas [...] Entremos então nos problemas editoriais da Clavis. Primeiramente questões de método. Não cabe na metodologia da crítica genética por se tratar de um caso de mobilidade na transmissão de um texto, mais do que propriamente na criação ou produção textual; na falta de qualquer autógrafo ou idiógrafo, o que temos é a presença de refundições, de testemunhos textuais. E digo-vos já que os testemunhos que até agora conheço são doze. Vi-os todos (de visu), excepto dois que estão no México. É possível que haja mais manuscritos, mas não serão necessários. Porquê? Porque já estudei e decifrei as famílias, o códice optimus e os dois que servirão para ajudar a reconstituir o texto, o mais próximo possível do que terá sido o original. Lembro que os locais onde se encontram os manuscritos são: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Biblioteca da Ajuda, Roma (em três arquivos), Loyola – os sítios por onde andei, em Roma com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian – e México. Na fase * In Vieira Escritor, p. 33, 34, 36-39. 15
  • 16. em que nos encontramos, só lidamos com dois testemunhos, pois não temos dinheiro para mandar vir um terceiro de Roma de que ainda necessitamos. A Clavis, ou De regno Christi in terris consummato (que certamente será o último título escolhido por Vieira), insere-se dentro do campo de problemas que a crítica textual enfrenta na edição de borrões, das obras manuscritas não acabadas, capelas imperfeitas, embora não exclusivamente. Começamos a descobrir, com a tradução do último tratado, que é mais literária do que terá pensado Barbosa Machado na Biblioteca Lusitana, onde a classifica no género da exegese ou comentário (que aliás não deixa de ser). Mais adiante reflectirei sobre a questão do género, que é do maior interesse e beleza emocionante. A história da feitura da Clavis anda mal contada e empolgada, e Vieira foi responsável, pois sempre anunciou obras espectaculares que só tinham título ou fachada, ou fragmentos, ou plano, e sobretudo intenção, muita intenção, de intervir no estado das coisas do tempo. História do Futuro e Apologia, por exemplo, que são discursos incompletos, mas de acção e circunstância, e agora, por efeito perverso da edição, são lidos como livros inteiriços e não como obras dotadas de intencionalidade mas fragmentárias. É contra tal que a nossa edição se vai edificar. De facto, Clavis, redigida em Roma, não é coisa de cinquenta anos, nem trinta, como dizia Vieira. Só em Roma quis ver as suas proposições, proposições anteriormente condenadas pela Inquisição portuguesa, aprovadas pelo Papa, e para tal redige rapidamente uma obra. Mais uma vez, intenção e circunstância. Como conseguiu um Breve que o isentava da Inquisição, resolveu regressar. Terá havido problemas e discussões por causa de uma parte da Clavis que trata da conversão dos judeus, que foi um combate romano do padre António Vieira, como é sabido. A questão da restituição dos ritos judaicos com outra simbologia tornou-se controversa na corte papal, mas não posso agora tratar disso. Passemos à questão da incompletude da obra. Existe uma descrição do original feita pelo Padre Casnedi em 1714, que aponta as lacunas, imperfeições, falta de capítulos, nos Livros II e III, estando apenas o Livro I bem acabado, com doze capítulos. [...] Sobre a minha leitura, queria deixar apenas quatro observações ou comentários: 1) Várias vezes o jesuíta alude ao fim do século, como hoje diríamos. Neste tratado, que agora começo a conhecer, expõe um grande número de questões sobre a pregação universal do evangelho, dado que, segundo a doutrina escatológica cristã, ela é uma das condições para a consumação do reino de Cristo. Apercebemo-nos logo do problema e drama de Vieira: a constatação da impossibilidade dessa pregação universal e da consequente salvação das almas dos gentios ou índios, e de muitas outras. O calafrio vieiriano era decerto menos metafísico que o de Pascal, mas não menos visceral. Vieira tem a noção das dimensões intangíveis do mundo e a consciência derrotada das vastíssimas partes dele onde o Evangelho ainda não chegou (África interior, América interior, a dita «terra austral» – região oriental em que se encontram as dez tribos perdidas). Ao mesmo tempo, o jesuíta manifesta algum desânimo como missionário do mundo novo, um desânimo bem contrário à euforia épica do Livro Anteprimeiro da História do Futuro. Parece que as amadas visões poéticas de Isaías começam a fazer outro sentido para Vieira, que adiante vou explicar. Pela primeira vez, vai apontar as dificuldades derivadas da chamada invencível ignorância de Deus e da irracionalidade que existe nos bárbaros. Não já como um desafio divino, como uma prova heróica, como uma necessidade política, mas sim como uma barreira tragicamente intransponível. É que 16
  • 17. Vieira está a falar da salvação das almas e não dos corpos. 2) O que me parece mais importante e muito belo é que, na sua busca do sentido anagógico, ele vai preferir sempre textos de profetas e apóstolos – os fundadores, os primeiros: salmos de David, Isaías sobretudo, e S. Paulo. E insiste sempre no sentido literal (estou a situar-me, obviamente, no método hermenêutico dos quatro sentidos). Se usa os exegetas, comentadores e teólogos como Suárez, é para os refutar e condenar como obscurecedores, lançadores de confusão e encobridores do verdadeiro sentido dos profetas. Os que só fazem atrasar o conhecimento. A grande base de sustentação ou quadro passional do pensamento de Vieira é a tomada à letra da beleza imagética da citação profética. Estabelece sempre a sua aliança com a acção do tempo e esclarecimento do futuro. Tudo o mais é antigo e não se realizou. Só a crença, a fé nas imagens deleitosas de Isaías, sobretudo as da abundância, pode, segundo Vieira neste tratado, declarar a realidade vindoura. Junta assim os arquétipos fundadores, que são de natureza literária e simbólica, com a realidade final da salvação e do fim dos tempos. 3) Outro fundamento sólido usado pelo autor é a experiência vivida pelo próprio jesuíta, em que muito insiste. Parece-me o reverso do célebre Sermão do Espírito Santo e da imagem optimista da conhecida e genesíaca estátua do índio-pedra onde a arte apostólica corrige a natureza. As razões desse sermão eram pragmáticas ou perlocutórias, como se sabe, questão de incutir ânimo aos missionários. Agora, pelo contrário, argumenta a favor de uma intervenção providencial e maravilhosa do sagrado, cujos desígnios paradoxais se propõe ousadamente descobrir, dada a impotência dos meios humanos. Vieira parece desistir de levar à prática o preceito jesuítico e discreto de Baltazar Gracián em forma de quiasmo e que espelha bem as relações difíceis entre o céu e a terra. Cito, embora seja bem conhecido: procurem-se os meios humanos como se não houvesse divinos, e os divinos como se não houvesse humanos. Neste derradeiro tratado da Clavis, escrito na Baía, era Vieira a sós consigo, com os textos que mais leu, os dos profetas e salmos, os mais poéticos, de que se apropriou e alucinou (o que não significa loucura, por favor, mas conhecimento e sentido). Nunca como aí insistiu tanto no recurso probatório à sua experiência pessoal. Veja-se como remata a defesa da ignorância invencível de Deus e da lei natural: «Eu, que durante catorze anos completos tenho convivido com estas gentes, pela minha parte confesso que, se porventura anuísse a tal forma de pensar, duvidaria tanto da minha sanidade mental quanto, por experiência, estou certo da ignorância insuperável de muitos desses bárbaros». E ao discordar dos teólogos romanos e dos falsos e pretensiosos saberes dos europeus, Vieira conclui: «É inevitável, ó mais ilustres dos teólogos, que sintais que entre os vossos raciocínios e os nossos olhos há um grande abismo, e talvez maior por causa do próprio oceano que se estende entre nós». É desta tensão e do seu pessoal desconsolo que Vieira cria um paralelo pungente entre os fundadores apóstolos, dos quais traça um retrato como de super-homens – representados pelas metáforas aéreas de nuvens e pombas e beneficiários da graça do pentecostes, numa idade de ouro –, e os pregadores missionários jesuítas (que também eram chamados apóstolos), metidos na crueza da história, nos limites do espaço e do tempo, sem a luz das línguas, humanos bichos da terra deixados ao abandono e fronteiras da sua condição, com uma dura empresa divina – o descobrimento e conquista dos índios, conquista espiritual, manifestação dos planos divinos para o futuro do mundo e para o quarto continente. E Deus teimava em não ajudar. 17
  • 18. Vai ser diferente o assunto que Vieira expõe no capítulo IV, sobre a salvação dos que não ouviram nem entendem a palavra divina. Enquanto nos Sermões Vieira refere essa dificuldade, mas para encontrar soluções, na Clavis mostra-se bem mais pessoal e pessimista, optando pela doutrina do pecado filosófico e da ausência de pecado mortal e, por conseguinte, de culpa e de penas eternas, nos que têm uma ignorância insuperável, quer da lei natural, quer de Deus. Não vou explicar aqui a controvérsia teológica do pecado filosófico, que ocorreu entre Arnaud, o jansenista, e alguns jesuítas, doutrina que o papa Alexandre VIII condenou em 1690. Lembro apenas que este facto prejudicou a publicação da Clavis no começo do século XVIII. 4) Noto ainda que mais importante é descobrirmos as fontes semânticas, e mesmo lexicais e imagéticas, da representação que Vieira tem dos índios e que expõe de maneira muito literária ou visionária em alguns sermões. O seu retrato do índio não o fez directamente, por observação, mas pelos livros. Apercebemo-nos da visão diferida ou mediada e classificada que ele tem do índio, ou das duas classes de índios, baseada nas leituras de representantes da corrente biblista de que falou Marcel Bataillon, como Acosta, Solórzano Pereira, Frei Pedro mártir, Bózio, e também portugueses do século anterior, como Manuel da Nóbrega e Pêro de Magalhães Gândavo. Assim descreve Vieira os índios: «Sendo completamente obtusos devido à extrema rudeza de inteligência, sem quem os ensine e conduza não podem penetrar no conhecimento de Deus invisível. E devido à extrema corrupção de costumes e à depravação, abundando e prevalecendo os vícios que sufocam todos os preceitos naturais, a própria lei, toda ela, é submersa, extinta e sepultada. Mas uma vez que esta matéria não se aprende estudando e discorrendo, conhecendo-se pela prática e pela experiência, como que apalpada com as mãos e observada com os olhos, comecemos pela ignorância de Deus e ouçamos as testemunhas. «Seja o primeiro o Padre José Acosta (...): A raça dos índios, diz ele, ainda que uns sejam superiores a outros, toda ela é destituída de toda a inocência, toda ela é sórdida, toda servil, de um carácter o mais obtuso possível, de costumes desleais, ingratos, cedendo apenas ao medo e aos maus tratos, mal tendo o sentido da honra e pudor quase nenhum. O seu carácter não é apenas servil, mas também, de certo modo, bruto, de tal modo que se julga ser mais fácil domesticar feras do que refrear a sua temeridade ou levantá-los do seu torpor, tão rudes como são para aprender e duros e teimosos para ceder. Finalmente, como gado irracional naturalmente aptos para caça e para presa, vivem em perpétua corrupção. Não respeitando nem as leis do matrimónio nem as da natureza, usam da sensualidade em vez da razão. Até aqui o primeiro oráculo, o de um eclesiástico. «O segundo oráculo (...), o Senhor D. João Solórzano Pereira (...), diz: Formam a terceira e última classe de bárbaros, de entre outras inúmeras tribos e regiões, aqueles que habitam nas florestas e são semelhantes às feras, que dificilmente têm algo de sentimento humano, sem lei, sem rei, sem contrato, sem um magistrado certo e sem estado, mudando continuamente de lugar, ou tendo habitações fixas que mais imitam covis de feras ou currais de gado. Aqui pertencem todos aqueles que os nossos chamam Caribes, que nada mais praticam do que a sanguinolência, são cruéis para com todos os estrangeiros e alimentam-se de carne humana (...). Esta é a opinião de Solórzano, um pouco diversa no estilo, mas pelo assunto e pela experiência uma testemunha inteiramente igual à primeira». E Vieira prossegue: «Na verdade, na perspectiva de Deus, maior mal é negá-lo do que desconhecê-lo, e todavia ele permite que haja ateus; maior mal é atribuir divindade a pedaços 18
  • 19. Alguns dados sobre a História do Futuro de madeira e de pedra do que ignorá-lo, e todavia permite que haja idólatras; maior mal é a ignorância superável de Deus, ou com culpa, do que a insuperável e inocente. Por que motivo, pois, Deus não há-de permitir antes a ignorância que não ofende a sua majestade, porque a desconhece, do que a ignorância que a ofende?». E conclui: «Eu, que durante catorze anos completos tenho convivido com estas gentes, pela minha parte confesso que, se porventura anuísse a tal forma de pensar, duvidaria tanto da minha sanidade mental quanto por experiência estou certo da ignorância insuperável de muitos». [...] (excerto) JOSÉ VAN DEN BASSELAAR * Sobre a História do Futuro [...] António Vieira, que, por duas vezes, se esforçou por dar uma exposição sistemática da sua grande tese, não conseguiu terminar nem a História do Futuro nem a Clavis Prophetarum. Sem dúvida, explica-se o estado inacabado dos dois tratados por certas circunstâncias externas, tais como doenças, achaques de velhice, cargos impreteríveis, etc. Mas a explicação cabal parece-me que reside na própria índole do autor. Vieira necessitava de uma forte pressão externa para poder se dar com assiduidade a um trabalho de largo fôlego. Sentindo uma certa coacção, era capaz de levar a cabo uma tarefa imposta; não a sentindo presente, deixava-se facilmente distrair do seu assunto, sempre propenso a tomar atalhos floridos e pitorescos, em vez de seguir a estrada régia; além disso, era homem extremamente activo, que não suportava por muito tempo a atmosfera bolorenta de uma biblioteca. A vida lá fora era tão cativante e arrebatadora! No fundo, Vieira não tinha nem a paciência nem a disciplina de um erudito. * “Introdução”. Livro Anteprimeiro da História do Futuro. Nova leitura, introd. e notas de J. van den Basselaar. Lisboa: BN, 1983, p. 11-12. 19
  • 20. II UM PLANO PRETENSIOSO havia algumas que gozavam a simpatia da Igreja, mas outras eram consideradas como duvidosas e até suspeitas. Convinha, pois, classificar as profecias e descobrir-lhes o verdadeiro sentido; importava ainda definir em que reside o espírito profético e examinar se Deus, por vezes, o concede também a pessoas não universalmente reconhecidas como santas e até a pecadores (Bandarra!). Igualmente cumpria demonstrar que o Reino de Portugal, desde a sua fundação nos campos de Ourique, fora sempre um tema predilecto dos profetas bíblicos e outros videntes: o profeta Isaías refere-se tantas vezes aos descobrimentos portugueses que, segundo Vieira, pode ser contado entre os cronistas de Portugal. Assim foi-lhe nascendo a ideia de escrever o Livro Anteprimeiro, obra essencialmente lusocêntrica, na qual o jesuíta empregou o melhor das suas forças durante os primeiros meses de 1665. O Livro Anteprimeiro devia ser o amplo vestíbulo da História do Futuro propriamente dita. Mas também o vestíbulo não chegou a ser acabado. Quanto saibamos, tudo o que dele nos resta limita-se aos seus doze capítulos iniciais que, pela maior parte, remontam ao “retalho da peça” que, como já vimos, Vieira mandou para Lisboa na Primavera de 1665. No apenso 8.º ao já referido processo inquisitorial se encontram ainda dois trechos mais ou menos elaborados, que deviam integrar-se no capítulo XII, mas não sem terem sido submetidos a diversos retoques. A obra, tal como era planeada, devia ser muito volumosa. No capítulo VIII, Vieira refere-se, por três vezes (pp. 80, 83 e 84 da presente edição), ao “capítulo sessenta”, no qual promete falar sobre o espírito profético do Bandarra. Provavelmente, o tal capítulo nunca existiu senão no intento do autor. Mas as referências provam que ele, ao fazê-las, tencionava tratar de inúmeros assuntos antes de entrar na exposição sistemática das trovas do sapateiro de Trancoso. Esta exposição devia, sem dúvida, constituir o ponto culmi- O projecto ideado era vasto e pretensioso. Possuímos ainda o plano da História do Futuro, pelo qual sabemos que a obra se devia compor de sete livros, que deviam abordar (e resolver!) 59 questões, cada uma com os seus corolários indispensáveis. No parágrafo inicial do capítulo III do Livro Anteprimeiro, o leitor poderá encontrar o argumento de cada um dos sete livros. Parece que só uma parte relativamente pequena chegou a ser executada do vasto projecto; uma parte muito menor ainda chegou aos nossos dias. José Lúcio de Azevedo achou, em dois apensos ao processo inquisitorial de Vieira, alguma matéria mais ou menos elaborada e concluída da História do Futuro, editando-a em 1918. A matéria publicada, repartida por dez capítulos (alguns dos quais representam lacunas consideráveis), devia fazer parte dos dois primeiros livros e tratam apenas de três questões das 59 planeadas. Calculando a extensão da obra inteira na dos fragmentos conservados e publicados, julgamos não desacertar muito quando dizemos que a História do Futuro, quando acabada, devia ter cerca de 2000 páginas. Uma empresa enorme, mesmo para quem tivesse a pena corrente de um António Vieira! Mas o autor não parou ali. Ao elaborar os diversos capítulos da História do Futuro, foi sentindo a conveniência de a fazer preceder de um livro introdutório, em que pudesse dar, entre muitas outras coisas, uma exposição sistemática do espírito profético e do verdadeiro método de explicar as profecias. O edifício que pretendia erguer fundamentava-se todo em profecias: profecias canónicas e não canónicas. As profecias canónicas eram indubitavelmente verdadeiras e infalíveis, mas nem sempre era verdadeiro e infalível o sentido que lhes atribuíam os antigos expositores da Bíblia. Entre as profecias não canónicas 20
  • 21. nante do Livro Anteprimeiro, o qual, fazendo-se um cálculo muito por alto, poderia chegar a ter umas mil páginas. A ambição de Vieira não recuava diante de vastos projectos. Mas uma coisa é concebê-los, outra executá-los. Aliás, os sete manuscritos, que nos transmitem o texto completo ou incompleto dos doze capítulos, trazem a indicação (omitida por todas as edições impressas): Primeira Parte, indicação insofismável de que a ela se havia de seguir, pelo menos, mais uma parte, se não fossem duas, três ou quatro. Os manuscritos transmitem-nos também os títulos e subtítulos da obra. De acordo com o gosto barroco da época, eles são pomposos: [...] 21
  • 22. 22
  • 24. 24
  • 25. Padre António Vieira* mais breve; o português, evidentemente depois concertado na linguagem, mais copioso de notícias. O escrito, nesta forma, e como tem sido publicado na imprensa, difere igualmente na data, 30 de Setembro de 1626, porventura a do primitivo rascunho, vertido a latim, e a que mais tarde o autor aditou reminiscências e poliu a linguagem. A narrativa, além do valor histórico, tem o que deriva de nos fornecer a primeira parte um capítulo de autobiografia, embora sem referência pessoal; pois, nos factos mencionados, em alguns foi António Vieira figurante, ao mesmo tempo que observador. Cartas Vol. I (excertos) ÂNUA DA PROVÍNCIA DO BRASIL (1626) CARTA I Ao geral da Companhia de Jesus 1626 – Setembro 30 O Padre António Vieira nasceu em Lisboa, de família modesta, a 6 de Fevereiro de 1608. Com 6 anos de idade foi com seus pais residir na Baía. Aos 15 entrou como noviço no Colégio dos Jesuítas, que já frequentava como aluno diligente e de grandes promessas. No ano seguinte, de 1624, foi tomada a cidade pelos Holandeses, sob o comando do almirante Jacob Willekens. Com o grosso da população em fuga para o interior foram os Jesuítas, e com eles António Vieira, permanecendo numa povoação de índios, que os padres dirigiam, até à retirada do invasor, passados doze meses. Tanto se havia distinguido o noviço, durante esse tempo, pela agudeza do entendimento e saber adquirido, e tais provas dera de exímio latinista, que a ele os superiores encarregaram de redigir a Carta Annua, circunstanciado relatório que, pela regra, todas as províncias da Companhia hão-de mandar ao geral. Desta carta existem nos arquivos da Sociedade, em Roma, dois exemplares, ambos autógrafos e assinados por António Vieira, um com a data de 21 de Novembro, outro de 1 de Dezembro de 1626. Pelo Padre. Francisco Rodrigues, jesuíta, que ultimamente as examinou, sabemos ser o texto latino Pax Christi [...] COLÉGIO DA BAÍA [...] Abre esta costa do Brasil, em treze graus da parte do sul, uma boca ou barra de três léguas, a qual, alargando-se proporcionalmente para dentro, faz uma baía tão formosa, larga e capaz que, por ser tal, deu o nome à cidade, chamada, por antonomásia, Baía. Começa da parte direita em uma ponta, a qual, por razão de uma igreja e fortaleza dedicada a Santo António, tem o nome do mesmo santo; e, correndo em meia lua espaço de duas léguas, se remata em uma língua de terra, a que deu o nome de Nossa Senhora de Monserrate uma ermida consagrada à mesma Senhora. No meio desta enseada, com igual distância de ponta a ponta, está situada a cidade, no alto de um monte, íngreme e alcantilado pela parte do mar, mas por cima chão e espaçoso; rodeiam-na por terra três montes de igual altura, * António Vieira. Cartas. Coord. e anot. por J. Lúcio de Azevedo. Vols. I, II e III. Lisboa: INCM, 1997 (reimp. de 1970). 25
  • 26. por onde estende seus arrabaldes, dos quais o que fica ao sul tem por remate o Mosteiro de S. Bento, e no que lhe responde ao norte, está situado o de Nossa Senhora do Carmo; o terceiro está ao leste e menos povoado. É a praia da cidade em baixo estreita, e defendem-na três fortes, dois em terra e um no mar, avantajado aos mais por razão do sítio e fortaleza. Alguns dias antes da chegada dos inimigos, estando no coro em oração dois dos nossos padres, viu um deles a Cristo Senhor Nosso, com uma espada desembainhada contra a cidade da Baía, como quem a ameaçava. Ao outro dia apareceu o mesmo Senhor com três lanças, com que parecia atirava para o corpo da igreja. Bem entenderam os que isto viram que prognosticava algum castigo grande; mas de qual houvesse de ser estavam incertos, quando, em dia da Aparição de S. Miguel, que foi a 8 de Maio de 1624, apareceram de fora, na costa, sobre esta Baía, 24 velas holandesas de alto bordo, com algumas lanchas de gávea, as quais fizeram crer aos cidadãos, costumados a viver em paz, o que lhes não persuadiram de todo os avisos que dois anos antes mandara Sua Majestade, nem a nau capitaina desta mesma armada, que quase todo o mês passado tinha andado na barra, e roubado um navio que de Angola vinha carregado com negros para o serviço e maneio desta capitania. Mandou logo o Sr. Governador Diogo de Mendonça Furtado dar rebate; ajuntou-se a gente, que foram pouco mais ou menos três mil homens, e, armados, cada um como pôde, se repartiram em companhias, deram cargos e assinaram estâncias. [...] Tanto que emparelhou com a cidade a almiranta, a salvou sem bala, e despediu um batel com bandeira de paz. Mas à salva, e à embaixada antes de a ouvirem, responderam os nossos com pelouros, o que vendo os inimigos, se puseram todos a ponto de guerra. Viraram logo as naus enfiadas sobre a terra, e, por onde iam passando, descarregavam os costados na cidade, forte e navios que estavam abicados na praia, o que continuaram segunda e terceira vez, até que, depois do meio-dia, puseram todos a proa em terra, e as três dianteiras em determinação de abalroarem a fortaleza, mas, impedidas dos baixos, lançaram ferro, e em árvores secas, como se foram todas de fogo e ferro, começaram a desfazer tanto nele que parecia pelejava nelas o inferno. E foi tal a tempestade de fogo e ferro, tal o estrondo e confusão, que a muitos, principalmente aos pouco experimentados, causou perturbação e espanto, porque, por uma parte os muitos relâmpagos fuzilando feriam os olhos, e com a nuvem espessa do fumo não havia quem se visse; por outra, o contínuo trovão da artilharia tolhia o uso das línguas e orelhas, e tudo junto, de mistura com as trombetas e mais instrumentos bélicos, era terror a muitos e confusão a todos. Respondiam-lhe da terra o forte e as nossas naus, ainda que desigualmente, por ser a artilharia pouca, e andar já quente com o avantajado emprego. Mas, enquanto nos ocupávamos em defender a praia, duas ou três naus holandesas, que ficavam na retaguarda, despejaram na ponta que dissemos, de Santo António, muita gente, e dizem seriam quinhentos para seiscentos soldados. Vendo isto duas bandeiras nossas, que lá estavam em guarda, não aguardaram que chegassem, antes, não se atrevendo a resistir, voltaram para a cidade, esquecidos daquele nome português que ainda em nossos tempos fez tremer e fugir exércitos inteiros; e, posto que um padre nosso os animava que tornassem, adiantando-se com ânimo de verdadeiros portugueses e verdadeiros soldados de Cristo, até chegar cara a cara com os inimigos, armados só da confiança em Deus, contudo estavam tão frios do medo que não foi parte para os apertar o fervor e espírito do padre. Entretanto não cessava a bateria, antes cada vez se acendia mais. [...] 26
  • 27. Não ficaram aquém nesta empresa os índios frecheiros das nossas aldeias; antes eram a principal parte do nosso exército, e que mais horror metia aos inimigos, porque, quando estes saíam e andavam pelos caminhos mais armados e ordenados em suas companhias, estando o sol claro e o céu sereno, viam subitamente sobre si uma nuvem chovendo frechas, que os trespassavam, e, como lhes faltava o ânimo do outro Espartano (que disse pelejaria mais a seu gosto quando as setas do Persa fossem tão espessas que, cobrindo o sol, lhe fizessem sombra), não se atreviam a resistir, porque, enquanto eles preparavam um tiro de arcabuz ou mosquete, já tinham no corpo despedidas do arco duas frechas, sem outro remédio senão o que davam os pés, virando as costas; mas nem este lhe valia, porque, se eles corriam, as frechas voavam e, descendo como aves de rapina, faziam boa presa; e ainda que não matavam algumas vezes de todo, todavia, como muitas eram ervadas, ia o veneno lavrando por dentro até certo termo, em que lhes dava o último da vida. Entre estes índios se avantajavam uns na destreza do atirar, outros no ânimo de acometer, mas em geral se experimentou em todos os desta capitania grande ódio aos contrários e maior fidelidade aos nossos, porque, sendo assim que muitos negros de Guiné, e ainda alguns brancos, se meteram com os holandeses, nenhum índio houve que travasse amizade com eles, o que foi muito particular e especial mercê de Deus, e indústria também dos nossos padres, os quais sempre, e agora mais que nunca e com mais eficácia, os instruíam na fé, intimando-lhes o amor que deviam ter a Cristo, e lealdade a Sua Majestade; grande bem espiritual e não menor temporal para os moradores deste Brasil, porque sem índios não podem viver, nem conservar-se, como todos confessam. Tornemos aos inimigos, os quais, enquanto presos e encerrados na cidade, não estavam ociosos, porque, entendendo que havíamos de ser socorridos com a armada de Portugal, todo o seu cuidado era fortificar-se quanto mais podiam contra ela. Para reforçar os muros da cidade e das suas portas, que estavam fracos, levantaram uns montes de terra, tão altos que mais pareciam criados com poder da natureza que levantados à força de braços, e a mesma terra que tiravam abria uma cova, tão profunda quanto era a altura dos baluartes. Fizeram sobressair por cima umas pontas de paus, tão agudas e unidas sobre si que dificultavam notavelmente a subida se alguém a intentasse. Pelas quebradas dos três montes, que dissemos cingiam a cidade, represaram as correntes de algumas fontes, e fizeram um tanque, tão largo e alto quanto bastou para impedir a passagem a qualquer força ordinária. Levantaram o forte da praia que estava imperfeito. Por toda a cidade em roda assentaram artilharia nos portos e postos mais importantes. E, porque lhes não faltasse coisa alguma, com que pudessem impedir-nos a entrada na cidade, semearam ao redor dela, e dentro, nas bocas das ruas, uns estrepes de ferro, feitos por tal arte que, de qualquer parte que caíam, assentavam três pontas no chão ficando outra para cima, e estes em tal distância uns dos outros que, caminhando, ainda em boa paz, não bastava qualquer tento para assentar o pé em salvo, e, errando o passo, ficava um homem preso e enredado sem remédio. À vista destas prevenções crescia muito, em todos os nossos, o desejo de ver já o socorro que esperavam. Nas aldeias, onde estávamos os da Companhia, além das orações e penitências que se acrescentavam, todas as sextas-feiras e sábados se fazia uma procissão com ladainhas cantadas, pedindo misericórdia a Deus, até que o mesmo Senhor, no dia da Redenção do Mundo, nos quis mostrar a nossa, antecipando-nos as aleluias com a primeira vista da nossa armada, a qual, dia de Páscoa da Ressurreição, primeiro de Abril de 1625, amanheceu toda dentro na baía, posta em 27
  • 28. ala, para que as velas inimigas que no porto estavam não pudessem sair, nem escapar. Vinham todas juntas as armadas, a de Espanha, a de Portugal, a Real de Castela, a do Estreito e a capitania, de Nápoles, com outros galeões e navios; por todas eram sessenta velas, pouco mais ou menos. Por generalíssimo de todas estas armadas vinha o Sr. D. Fradique de Toledo, general da Real de Castela, e bem afamado pelos anos que há é general, e pelas vitórias que houve ainda contra os mesmos holandeses; esta armada foi a mais poderosa que até agora passou a linha, e nela pudera vir a pessoa real, conforme a fidalguia que de Portugal vinha. Começou a desembarcar a gente em terra sem resistência, porque os nossos de cá tinham tudo por seu, até à cidade, que, a não ser assim, havia de custar as vidas de muitos o desembarcar. Mas esta facilidade e segurança foi causa da desgraça que direi. Os que vinham da armada, vendo que eram tantos mil, e que quatro homens tinham em tanto aperto o Holandês, fizeram pouco caso dele, não advertindo que o inimigo quanto mais desprezado mais ousado, e assim se começaram a alojar nas casas de S. Bento, desarmados e como quem estava em sua casa, descansando do trabalho que tiveram em andar uma légua de caminho até àquele posto. Vendo os da cidade o inimigo, botaram uma manga de duzentos ou trezentos arcabuzeiros, que de repente os acometeram, estando descuidados de tal ousadia; saiu logo cada um com as armas que a pressa lhe ofereceu, e investiram os mais com piques. Os inimigos, disparando os arcabuzes, se iam retirando para a porta da cidade, e os nossos seguindo-os; mas, tanto que os descobriu a artilharia da porta, recolhendo-se em salvo os holandeses, deram fogo a umas peças que, espalhando um chuveiro de balas, pregos e ferro miúdo, fizeram grande estrago em muitos soldados e alguns fidalgos castelhanos de muita importância e valor na guerra. Entre estes, o mais ilustre foi um espanhol, mestre de campo, chamado D. Pedro Osório, o qual, fazendo uma confissão geral com um dos nossos padres, foi tão venturoso que, sendo absolto, foi imediatamente morto no mesmo conflito. Parece que Deus o quis salvar, em lhe trazer o padre naquela ocasião, sendo que o chamavam para outra parte e ele se escusou, com intento de concluir aquela confissão. Desembarcados que foram todos, dividiram-se, juntamente com os soldados da terra, nos três montes, onde se recolheram uns em algumas casas que havia, outros em barracas de palha. Aqui trabalharam todos, e foram levantando trincheiras de terra e fachina, servindo na obra, além da soldadesca ordinária, os melhores do campo; entre estes se assinalaram muitos fidalgos portugueses, que na armada vinham, particularmente os que vinham por soldados ordinários, que então resplandecia mais neles a nobreza quando, carregados com os feixes de rama ou cestos de terra, andavam servindo entre os plebeus pela glória e honra de seu Deus e rei. Verdadeiramente que nos alegrámos, e todos nos enternecemos, de ver os condes e senhores titulares feitos mariolas nesta empresa gloriosa, como se foram daquele primeiro Portugal o velho. Não nomeio aqui a todos, dando a cada um os grandes louvores que merece, porque nem posso, nem também pertence ao meu intento, além de que cada um deles merece por si só uma relação inteira. Esta alegria nos aguava o muito dano que os inimigos nos faziam, não cessando todo o dia e toda a noite de jogar a artilharia, com a qual faziam pontaria aos nossos, por andarem muito amontoados e em montes altos e descobertos. Sobretudo, nos magoou a morte do morgado Martim Afonso de Oliveira, fidalgo tão ilustre, esforçado, conhecido, benquisto; tratou-o tão mal uma bala que, em espaço de dois ou três 28
  • 29. dias, concluiu a vida. Mas consolou-nos que recebeu todos os Sacramentos, e morreu verdadeiro cristão, como sempre foi. No mesmo tempo quase, botou o inimigo uma noite duas naus abrasadas em fogo, para que, levadas da maré, dessem pelas nossas e, ateando-se em uma, fosse o fogo saltando às outras e desbaratasse a todas; mas, como estavam prevenidas e preparadas, escaparam largando velas, amarras e âncoras, ainda que com grande perigo das mais vizinhas, das quais livrou Deus uma ou duas milagrosamente. Por esta ocasião temeram os nossos que, desesperados os holandeses de se poderem defender, intentassem acolher-se nas suas naus, porque, ainda que as nossas tinham bem tomada a barra, com facilidade, particularmente na revolta da noite, podia escapar alguma. Pelo que, chegando mais as nossas às inimigas, e ajudadas também da nossa artilharia de terra, desaparelharam a umas mastros e enxárcias e meteram no fundo outras, por maneira que todas ficaram mancas para navegar. Impossibilitada ao inimigo esta fugida, estavam já as trincheiras e plataformas levantadas. Plantaram nelas a artilharia, e aos 16 pouco mais ou menos da chegada, que foram outros tantos de Abril, começou a bateria formada e mui furiosa a varejar de todas as partes a cidade, derrubando grande parte do muro e muitas casas, que com sua ruína davam a morte a muitos; porque, quantas pedras se batiam e caíam, tantas balas se despediam, as quais não eram de menos efeito que as de ferro, se acertavam. Respondiam-lhe os de dentro com animosa continuação, assestando umas peças com pontaria contra os combatentes e atirando com outras a montão, que, como era muita a gente, não matavam menos que as primeiras, nem lhes desacordava os ânimos a destruição de seus anteparos e baluartes, porque punham tanta diligência em os refazer que, quanto anoitecia derrubado com a bateria de dia, tanto amanhecia ao seguinte reedificado com o trabalho da noite, e não só renovavam o caído, mas faziam novas e mais grossas trincheiras por dentro, que atravessavam as ruas, abocando nelas peças para fora. Mas em tudo trabalhavam debalde, porque a nossa artilharia eram meios canhões, mui reforçados, que com muita facilidade quebravam e arrasavam tudo, e a seu ímpeto não havia força que resistisse, nem reparo que parasse. Prosseguindo sem descansar o combate, à sombra da artilharia se iam os nossos chegando com trincheiras, para serviço das quais faziam primeiro cavas na terra, por onde pudessem caminhar sem o inimigo dar fé deles, porque o mesmo era serem vistos dos olhos que pescados dos pelouros. Por momentos se viam cada vez mais apertados, porém maior aperto era o em que os punha a destreza dos nossos bombardeiros, que, embocando umas balas pela sua artilharia deles e outras pelas ruas, com as primeiras descavalgavam as peças, matando os que as governavam, com as segundas levavam quanto havia diante, exercitando grande mortandade e carniçaria cruel. Passados doze ou treze dias de bateria, vendo o Holandês por terra toda a sua artilharia, e os mais dos artilheiros mortos, em quem principalmente confiava, e que estavam já quase abarbadas as nossas trincheiras com as suas, considerando como o resistir lhe custava tanto e rendia tão pouco, e que, se quisesse sustentar o cerco, se arriscava a serem metidos à espada e acabarem miseravelmente todos, houveram por bem render-se e vir a concertos. Pelo que, depois de várias propostas e réplicas de parte a parte, se assentou que entregariam a cidade com todo o recheio e os rebeldes, e que em suas pessoas e no que sobre si tivessem se não buliria; e que para tornarem às suas terras lhe dariam embarcação, algumas armas e mantimentos, pagando eles holandeses tudo pelo seu justo preço. 29
  • 30. Mazarino. Depois, desempenhada a sua incumbência, deixou Paris em 2 de Abril, domingo de Páscoa, de caminho a Ruão, onde tinha de receber dos judeus portugueses, lá estabelecidos, créditos bancários para Amsterdão. De Ruão viajou para Calais, e dali embarcado a Roterdão, chegando a Haia em 18 de Abril. Na Holanda ficou três meses, sem que o propósito da jornada fosse realizado. Em Agosto achava-se novamente em Lisboa. A última carta deste período corresponde à chegada do padre à capital flamenga. Da sequência dos acontecimentos não temos informação por Vieira, e as cartas que no-la haviam de dar podem ter-se por definitivamente sumidas. PRIMEIRA MISSÃO DIPLOMÁTICA PARIS E HAIA (FEVEREIRO A JULHO DE 1646) Tendo-se distinguido como orador sagrado da Baía, o Padre António Vieira veio em 1641 à metrópole, onde logo captou a admiração pública, por sua eloquência no púlpito, e o favor de D. João IV, pelo modo como apreciava os negócios do Estado. Em 1646 a situado destes era grave. Na Europa falhavam os recursos para a guerra com Castela; na América a revolta dos colonos, em Pernambuco, contra o domínio holandês, infundia receios de que as Províncias Unidas, dando por quebrada a trégua ajustada em 1641, rompessem por sua vez em declarada beligerância. Para o congraçamento com este possível contendor, e para a resistência ao outro, efectivo, contava D. João IV com o socorro da França. Desde a proclamação da monarquia nova, em Portugal, prosseguiam as negociações para uma liga entre as duas coroas contra a Espanha, inimigo comum; mas continuamente os ministros franceses, Richelieu primeiro e depois Mazarino, pródigos de promessas, iludiam as esperanças afagadas em Lisboa. Nesta época D. João IV, desanimado sobre os negócios do Brasil, cuidava de concertar-se com a Companhia Ocidental holandesa, resgatando por dinheiro Pernambuco, transacção que excluía a eventualidade de guerra formal com a República; e para esse fim pretendia a intervenção da França. No intuito de reforçar a tentativa, e estimular o zelo dos embaixadores, deliberou mandar a Paris e Haia um emissário, e escolheu o Padre Vieira, pelo que fiava de suas aptidões em política e como entendido nas coisas do Brasil. O jesuíta saiu de Lisboa por mar em 1 de Fevereiro, e chegou a 20 a Paris, onde não encontrou o embaixador, conde da Vidigueira, que dali havia partido a embarcar em Nantes, de regresso a Portugal. Em posse da embaixada achava-se o secretário António Moniz de Carvalho, com o título de residente. Com ele o Padre Vieira visitou a CARTA IV Ao marquês de Nisa 1646 – Março 11 O certo é, senhor, que, como as coisas de França se entendem diferentemente em Portugal, assim das de Portugal não pode haver cabais notícias em França, e ainda no mesmo Portugal receio que as ache V. Ex.a com dificuldade, porque a gente daquele país, que V. Ex.a muito bem conhece, poucas vezes julga das coisas com os olhos livres de paixão. Grande mercê faz Deus a Portugal em levar lá a V. Ex.a; mas entendo que a não tem feito menor a V. Ex.a em ter a V. Ex.a tantos anos fora de Portugal. Do que V. Ex.a me diz na sua carta entendo eu que V. Ex.a está no conhecimento desta verdade; mas as experiências de mais perto ainda hão-de confirmar mais a V. Ex.a nela. Esta é a razão por que se obra menos do que convém, e do que se pudera, e não têm tanta culpa as causas primeiras como o mundo lhes imputa; porque com instrumentos contrários só Deus pode obrar, e quando o faz é milagrosa e não naturalmente. Deus nos mude as condi- 30
  • 31. ções, que, enquanto formos portugueses, não sei se faremos coisa digna de tão honrado nome. Muito estimo que haja sempre sido da opinião de V. Ex.a a paz com Holanda, a qual está nos termos que V. Ex.a vê, porque a alguns valentões de Portugal lhes pareceu que eram poucos para inimigos os castelhanos. Eu estava numa cama sangrado dezasseis vezes, quando do Brasil me vieram as primeiras notícias do que se queria intentar; e, porque o impedimento me não permitia falar com S. M., e dizer-lhe pessoalmente o que entendia naquela matéria, como quem tantos anos havia estado no Brasil e sabia o que lá se pode, pedi a um prelado muito confidente de S. M. lhe quisesse representar de minha parte o perigo e dificuldade desta empresa, e que o segurasse que era impossível render-se a principal força, por mais que os de lá, enganados do desejo da liberdade, o prometessem; e acrescentava que, ainda quando o Brasil se nos desse de graça, era matéria digna de muita ponderação ver se nos convinha aceitá-lo com os encargos da guerra com a Holanda, em tempo que tão embaraçados nos tem a de Castela; porque são homens os Holandeses com quem não só vizinhamos no Brasil, senão na Índia, na China, no Japão, em Angola, e em todas as partes da terra e do mar onde o seu poder é o maior do Mundo. Estas e outras razões propus àquele prelado, que não sei se as representou a S. M.; só sei que por nosso mal fui profeta, e queira Deus que aqui parem os meus temores. O que V. Ex.a diz de se haver de propor o tratado da paz absolutamente para que, descendo-se aos meios da conveniência, se ponha em prática o da compra, é matéria que não tem dúvida pela aceitação e conveniência do mesmo contrato, que, oferecido da nossa parte em primeiro lugar, fica de muito desigual condição; mas não me conformo facilmente com os que querem que a proposição da paz com Holanda, e da mediação de França, haja de nascer dos mesmos Holande- ses; porque, se havemos de esperar que eles dêem o primeiro movimento a este negócio, nunca se começará; porque a eles está-lhes muito melhor a guerra que a paz, e nós não estamos em tempo de a dilatar, porque na dilação crescerão os empenhos, e com eles a dificuldade da convencia. [SIC] [...] Criado de V. Ex.a António Vieira CARTA XV A Pedro Vieira da Silva 1647 – Dezembro 30 Senhor meu. – Escrevo esta já de Holanda, e, ainda que se aumenta a distância e a ausência, posso afirmar com toda a verdade a V. M.cê que não se diminuem, antes crescem cada vez mais as saudades. Lembro-me daquelas horas solitárias dessa secretaria, em que o coração de V. M.cê e o meu, como tão conformes no zelo e no desejo, se costumavam entristecer ou consolar juntamente; e de uma e outra cousa oferecem cada dia os tempos novas causas, mas sem aquele alívio que até por carta me falta há cinco meses. Pelo assento que tomou o Conselho de Estado, sobre os agradecimentos que se mandaram ao embaixador Francisco de Sousa, julguei quanto lá se estimará a conclusão desta paz. Nas primeiras cartas, que escrevi de Paris, quase a segurei, pelas que me mostrou o marquês de Nisa; nas segundas a comecei a duvidar, pelo que fui experimentando; e agora tenho por quase certo que se não concluirá, por mais que digam os que vão, e escrevam os que ficam, ainda que a paz entre Castela e Holanda se publique, que é o termo que lhe assinam os ministros de França e nossos. O sucesso da Baía, senhor, é o que para sempre nos há-de concertar ou desconcertar 31
  • 32. com esta gente; e até vir recado dele poderão entreter-nos com conferências, mas não hão-de concluir o tratado. Sobre o modo da guerra que se deve fazer, escrevo o que me ditou o zelo, e o desejo de que acertemos em negócio tão grande e tão arriscado. V. M.cê risque e emende o que lhe parecer menos acertado, mas peço-lhe muito seja de voto que vençamos antes em seis meses do que arriscarmos tudo num dia. Concertemos a armada, estorvemos os mantimentos ao inimigo; e eu seguro o cunctando restituit rem. Manuel de Sequeira leva uma via deste papel, e o Padre José Pontilier, meu companheiro, outra; encomendo-o muito a V. M., e porque nesta mesma ocasião tenho cansado a V. M.cê, com oito cartas de diferentes matérias para S. M., e algumas muito largas, não quero dilatar mais esta, e acabo com pedir a Nosso Senhor muito bons princípios de ano de 48, em que Deus nos faça ver as felicidades que as profecias nele parece nos prometem. – Haia, 30 de Dezembro de 1647. Depois de escrita esta, houve conferência ontem, 3 de Janeiro, na forma que V. M.cê lá verá. As esperanças da paz antes se adiantaram que diminuíram: muitas graças devemos a Deus, que peleja e negoceia por nós. A armada tem arribado duas vezes, perdeu já alguns navios, vai-lhe morrendo gente, e os ventos, cada vez mais contrários e tempestuosos: e já se persuadem alguns destes fiéis cristãos, e seus predicadores, que não quer Deus que vão ao Brasil, com que estão mais brandos os que furiosamente queriam a guerra, mas ainda pedem como quem a não teme. Agora era o tempo de negociar, mas, como o dinheiro e os créditos estão na mão do Marquês, e se gastam três semanas com ir e vir o correio, perdem-se ocasiões que às vezes consistem num momento. Eu não aprovo nem condeno; mas, ou S. M. não fie as embaixadas de quem não fia o dinheiro ou fie o dinheiro de quem fia as embaixadas. - O maior e mais verdadeiro servidor de V. M.cê António Vieira CARTA XVI Ao marquês de Nisa 1648 - Janeiro 6 Já não fazia conta de poder escrever neste correio a V. Ex.a, pela muita ocupação destes dias em escrever a Portugal, que foi necessário fazê-lo com mais largueza, dando-lhe conta desta armada, e discorrendo com as notícias do Brasil, sobre o modo da guerra que lá se deve fazer, que, se não for muito particular, pode correr risco a nossa armada, e, após ela, tudo. Se puder, mandarei a V. Ex.a a cópia de um papel, para que, com a aprovação de V. Ex.a, tenha esperanças de que em Portugal se aceite, e no Brasil se execute. Leva-o o Padre Pontilier, que, sobre hoje nos aguar a solenidade dos Reis com os sentimentos de sua despedida, agora se fica para outra ocasião, porque, como o bom vento aqui é tão raro, os pilotos não esperam por ninguém. Várias perdas se referem de navios e gente do inimigo, particularmente morta de bexigas, que depois que o reverendo Padre Francisco as lisonjeou tanto em El-Rei de França, puseram-se da parte de El-Rei de Portugal. Houve conferência, em que antes alcançámos que perdemos esperanças. Veio Zelanda, que nunca tinha vindo, e agora é o tempo de a comprarmos, se ela se quiser vender, com que a principal dificuldade ficará vencida. Mr. de la Thuillerie me chama demasiadamente confiado, porque me vê rijo em condescender com petições demasiadas destes senhores; bem sabe V. Ex.a que ninguém mais que eu deseja a paz, mas há-de ser como convém. Sinto que não 32
  • 33. haja partido a fragata de Ruão, porque de cá não foi nem pode ir aviso até agora, nem poderá ir senão como mesmo vento que levar a armada, e importava muito que chegara quando menos um mês antes. Também me pesa que o negócio das de S. Maló não tivesse efeito até agora. Espero que S. M. o aprove, e entendo que, com aviso seu e sem ele, lhe fará V. Ex.a mui particular serviço nesta negociação. Tomei tão pouco papel, porque cuidei que me não desse lugar a tantas regras o Sr. Embaixador, com quem imos esta tarde a cear com Mr. de la Thuillerie, que nos convidou. Deus nos tenha as cabeças de sua mão, e a V. Ex.a dê muito bons Reis, e, se for bom, um basta. Pelos meus peço me tenha V. Ex.a em sua graça. Haia, 6 de Janeiro de 648. – Criado de V. Ex.a porque o socorro, qualquer que seja em respeito de França, nunca pode ser mui considerável; mas o temor de nos podermos concertar com Castela é de tanta consideração que não importa menos que a firmeza ou ruína de França. E, como esta dependência é tão grande e tão conhecida, se nos apressarmos a pedir a liga, e mostrarmos grande desejo dela, conceder-no-la-ão os Franceses com partidos sempre a seu favor; mas, se dissimularmos um pouco, e dermos tempo a que a França discorra sobre o nosso silêncio, não há dúvida que nos há-de rogar com a liga e que a há-de fazer como nós quisermos. Este discurso é evidente em toda a parte, e nestas onde eu agora ando muito mais que em Paris, porque lá não vemos mais que as grandezas de França, e aqui vêem-se as suas dependências, os seus receios, as suas contemporizações e as suas rogativas. E, finalmente, boa experiência tem V. Ex.a de quanto mais obra com esta gente o medo que a obrigação. Solicitou V. Ex.a muito acertadamente o primeiro socorro de França e o segundo, a fim que estas demonstrações obrigassem aos Franceses, e lhes dessem novo motivo para nos concederem o que queríamos; e o que alcançámos com isto foram desenganos, em lugar de agradecimentos. E bastou só que depois se lhes desse a entender que alguma diferente resolução era possível para mudarem logo de estilo em todas as partes e para prometerem os novos socorros que tão obstinadamente negavam. Assim que, senhor, continuando a forma em que V. Ex.a com tanto acerto tem respondido, me parece que, quando os ministros de França tornarem a falar nos socorros, se lhes deve responder que Portugal assistirá àquela coroa, até ao tempo da paz ou trégua, com número de oito navios, a qual condição não começará a ter seu efeito senão depois de feita a paz entre Portugal e Holanda, pois se entende que, formada a de Castela, se concluirá também esta. Porém que, em caso que esta paz se não efectue, ou pelo António Vieira CARTA XIX Ao marquês de Nisa 1648 - Janeiro 27 [...] Suponho mais, como é ainda mais evidente, que de todos os aliados de França nenhum lhe importa mais que Portugal, por seu maior poder, por fazer a guerra a Castela dentro nas entranhas, pela diversão de Holanda nas conquistas, e principalmente porque, se Portugal fizesse paz com Castela, que é o mais fácil meio de a fazer também com Holanda, no mesmo dia ficava França arruinada; porque contra Castela, Portugal, Holanda e o Império unidos, não há em toda a Europa resistência no mar nem na terra, e tudo isto conhecem muito bem os Franceses. Donde se segue que este temor há-de obrigar mais a França a fazer a liga que nenhum outro interesse de socorros que lhe possamos prometer: 33
  • 34. tempo que durar a guerra, Portugal de nenhum modo pode assistir a França com socorro algum de dinheiro, nem navios, mais que com as diversões de Castela e Holanda, cuja importância é tão grande que não deixará França de nos conceder a liga e procurar ter-nos seguros com ela. E quando, contudo, os ministros franceses insistam, com se lhes mostrar a impossibilidade tão notória em que estamos e com lhes dizermos que não nos queremos obrigar ao que depois não podemos cumprir, parece que é toda a satisfação que lhes devemos dar; e, se os deixarmos que cuidem nela, eles tomarão melhor conselho. Até domingo se espera que se firme a paz, e, excluída França uma vez dela, será coisa mui necessária à utilidade e autoridade que esses monsieurs sejam também requerentes e que conheçam a diferença dos tempos, como já V. Ex.a vai experimentando nas audiências e recados do Cardeal. Deixe-se V. Ex.a tratar alguns dias com mimo, ainda que a nau da Rochela espere mais um pouco por melhores ventos, que eu confio em Deus que os que correm nos hão-de ser tão favoráveis nessa terra como nestes mares. V. Ex.a está hoje com o mesmo jogo com que entrou em França o monteiro-mor, e porventura avantajado, e já me tem contentíssimo a esperança com que fico de que agora nos há V. Ex.a de ganhar o que então perdemos. Criado de V. Ex.a tão em outro tempo do que foram pedidas, que não podem deixar de variar muito, assim nas propostas de V. Ex.a como nas respostas do Cardeal, pois o estado presente das cousas é tão diverso do passado; mas a providência divina nos dá bastantes seguros de que haverá disposto, e disporá tudo, como mais convenha ao bem e conservação do Reino que tanto ama. Não me dê V. Ex.a ainda recados para Lisboa, porque não estão ainda os negócios nesse estado, e sendo que o pouco que eu faço, ou posso fazer neles, era bastante razão para me não terem em Holanda, onde vim pelo que V. Ex.a sabe, tenho, contudo, junto a S. M. amigos que, com pretexto de seu serviço, querem que esteja eu longe, como se o não fora mais a minha província, onde só me desejo. Não são isto só suspeitas, porque tive carta em que mo avisa assim pessoa que o sabe, para que V. Ex.a se não espante dos ofícios que V. Ex.a experimenta nos nossos cortesãos, quando até contra um religioso, que lhes não pode tirar nada, se armam. Mas vamos a negócio de que agora darei a V. Ex.a a conta que da outra vez não pude, por estar tão doente, como V. Ex.a sabe, quando se fez a proposta. Dois inconvenientes acha V. Ex.a no açúcar que se ofereceu aos Holandeses: primeiro a quantidade, que ainda depois cresceu mais e chegou a dez mil caixas pagas em dez anos; segundo, o modo com que se ofereceu, que foi debaixo do título de terceira parte dos dízimos que S. M. recebe no Brasil. Quanto à quantidade do açúcar, bem tomáramos nós que os Holandeses se contentaram com menos; e bem vemos que a nossa necessidade pedia que antes eles nos dessem fazenda que nós a eles. Mas, se passarmos a outras considerações, acharemos que não é demasiado este preço, se com ele comprarmos a paz e remirmos a nossa vexação. Primeiramente os Holandeses nos pedem satisfação das perdas e danos que tiveram no Brasil, António Vieira CARTA XLVII Ao marquês de Nisa 1648 – Agosto 24 Ex.mo Sr. – Dou a V. Ex.a o parabém de haverem chegado as ordens de S. M., podendo também dar o pêsame de haverem chegado tão tarde, e 34
  • 35. as quais verdadeiramente foram grandíssimas, porque os levantados queimaram capitanias inteiras, e nelas muitos engenhos; e os que ficaram em pé nas outras não os hão-de receber senão mui danificados e diminuídos. A mesma diminuição, e muito maior, hão-de ter nos escravos e nos gados, de que depende todo o sustento e lavoura daquelas terras. Ajuntaram-se a isto as despesas de muitos socorros particulares e de duas grandes armadas, a de Sigismundo, que custou melhor de trinta e três tonéis de ouro, e a de Wit Wites, que custou quarenta e sete, que fazem da nossa moeda a soma de quatro milhões de cruzados. E em satisfação de tudo isto, e dos frutos e interesses que deixaram de lograr em perto de quatro anos, mais é na cobiça dos Holandeses o contentarem-se com dez mil caixas de açúcar que na nossa necessidade o darmos-lhas. Bem vejo que também eles nos deram muitas perdas, mas a isto respondem que as suas são de boa guerra, porque foram provocados, e as nossas não, porque fomos os agressores. E ainda mal, porque isto se pode tão mal encobrir ou negar, quando os principais soldados que hoje defendem Pernambuco são todos vassalos de El-Rei, mandados da Baía, donde também vieram os quatro governadores, de cinco que governam aquela guerra, e ultimamente um mestre de campo general mandado de Lisboa. O que os Holandeses queriam e pediam por esta satisfação, como V. Ex.a viu na sua proposta, era a reparação dos engenhos com todos os escravos e cobres, dez mil bois de carro, dez mil vacas, cinco mil ovelhas, cinco mil cavalos, dois milhões de florins em dinheiro e quarenta mil caixas de açúcar pagas em vinte anos; e não será pequeno milagre, contratando com holandeses, que tudo isto se venha a reduzir só a dez mil caixas em prazo de dez anos, e a metade delas de açúcar mascavado, e no Brasil. Também se deve considerar que lhes vimos a dar menos agora do que antes se lhe tinha pro- metido; porque se lhe tinha prometido que, por alguns anos, lhes pagaria El-Rei, no Brasil, quinhentos soldados, cujos soldos, e os de seus oficiais, é certo que montam tanto cada ano quanto podem valer no Brasil mil caixas daquele açúcar. Assim mais se lhe tinha prometido que as perdas e danos que pediam se pusessem em juízo de árbitros; e sendo tão manifesta a presunção, ou a prova, de a trégua se haver quebrado por nossa parte, julgue V. Ex.a se compramos barato o livrarmo-nos só deste pleito. Ultimamente o que se dá em açúcar é muito menos dinheiro do que as ordens de S. M. permitem se ofereça. Porque a estimação do açúcar não se há-de fazer pelo que hoje vale em Lisboa, senão pelo que há-de valer no Brasil depois de feitas as pazes com os Holandeses. E sabemos os que temos experiência do Brasil quão grande abatimento hão-de ter os açúcares. Muitas vezes vi lá vender o branco a cruzado, e a pataca, e algumas vezes a muito menos. A Gaspar Dias Ferreira, que é mercador de muitos anos do Brasil, mandou o Sr. Embaixador perguntar que preço lhe parecia que teriam os açúcares nos primeiros dez anos depois das pazes: e respondeu que, uns anos por outros, feita a conta por mascavados e brancos, não haviam de chegar a seis tostões por arroba. Segundo este preço, montam as sobreditas dez mil caixas trezentos mil cruzados, que é a metade do dinheiro que S. M. é servido se possa oferecer, porque quinhentos mil cruzados pagos hoje em Holanda são mais de seiscentos da nossa moeda. Afora isto, dava poder S. M. para se oferecer a fortaleza do Porto, sustentando o presídio à custa de S. M., que é outra boa partida que por esta via se poupa, tão considerável para a fazenda como para o crédito. Não é menos digno de considerar que o dinheiro que S. M. manda oferecer diz que se pagará logo; e foi grande o serviço que se fez a S. M. em estender o pagamento a prazos de dez anos, 35
  • 36. assim pela maior facilidade, como pelo menor valor do que se há-de pagar. Porque só com os interesses daquele dinheiro, a razão de juros, se pode pagar o açúcar, e no cabo de dez anos ficar o capital em ser. E, sobretudo, pagarmos aos Holandeses em dez anos é termos todo este tempo em nossa mão um penhor e caução sua, para melhor nos guardarem o que nos prometerem. Finalmente, muito mais nos tomaram os Holandeses nos mares do Brasil, nestes seis meses, do que nós lhes prometemos em todos os dez anos. Façamos conta que lhes damos cada ano dois navios de açúcar, para que nos deixem livres os demais, e as nossas naus da Índia, e o nosso comércio da China e o de todo o Mundo, enfim todos os bens da paz que com isto lhes comprarmos. [...] Haia, 24 de Agosto 648. Para o êxito da empresa, havia de descobrir o Padre o projecto, como seu, aos jesuítas castelhanos, sondar por meio deles o embaixador, e, achando fácil o caminho, dar os primeiros toques à negociação. Ao mesmo tempo, e para coagir o Gabinete de Madrid a entendimento, devia ele secretamente estimular os propósitos de nova rebelião em Nápoles, contra o domínio espanhol, fazendo constar aos conjurados que o Governo Português ajudaria ao movimento e facultando-lhes dinheiro por um intermediário. Mal lhe ia saindo a aventura, porque, aos primeiros rumores da proposta, o embaixador, duque del Infantado, o forçou a deixar precipitadamente Roma, com ameaça de morte, no caso de não abandonar logo a cidade e a Itália, cominação que pelo geral da Companhia lhe foi transmitida. Durante o tempo que esteve em Roma, não descurou Vieira de procurar providências em favor dos cristãos-novos, seus protegidos de sempre; mas disso só temos notícia mais tarde. A ausência de Lisboa foi de quase seis meses. Partiu do Tejo, com destino a Lionne, a 8 de Janeiro de 1650, e regressou em Junho, data não conhecida. Na ida arribou a Barcelona, que dominavam os Franceses. De lá temos carta sua para o Secretário de Estado. Outra carta de Roma, aonde chegou a 16 de Fevereiro, escrita em Maio, para o Príncipe, incitando-o a tomar as armas, quando em Lisboa se temia um assalto da armada inglesa; mais outra carta, do mês seguinte, para o Rei, com as correntes novidades políticas: eis tudo quanto se tem até agora colhido desse período. Da negociação tentada veio a saber-se, muitos anos depois, pelo sermão, na Baía, em acção de graças por ocasião do nascimento do infante D. António, filho de D. Pedro II. O acto do duque del Infantado, que motivou a retirada, ou melhor a fuga, de Roma, é conhecido pelo rol dos serviços, alegados por Vieira num memorial a favor de Gonçalo Ravasco, seu sobrinho. A última carta da presente série devia ter precedido poucos dias a saída de Roma. António Vieira PRIMEIRA JORNADA A ROMA (FEVEREIRO A JUNHO DE 1650) Não logrando obter a segurança do trono pela aliança francesa, tentou D. João IV alcançá-la directamente do adversário, e para tal fim propor em Castela o matrimónio recusado por Mazarino e Ana de Áustria. Mais uma vez foi o Padre Vieira o emissário escolhido, agora, porém, sem credenciais, e incumbido de urdir na sombra um ajustamento que teria levantado protestos, sabido em Portugal. Nada menos que reunir de novo as coroas da Península, pelo consórcio do príncipe D. Teodósio com a infanta D. Maria Teresa, filha então única de Filipe IV. Como satisfação ao patriotismo português, punha-se a condição de ficar sendo Lisboa a capital da monarquia unida, quando juntos os dois Estados, por morte dos soberanos reinantes, em herança comum dos noivos. 36
  • 37. amem só por amar e S. M. não deve esperar finezas, senão contentar-se muito de que se queiram vender aqueles que lhe for necessário comprar. A pólvora, as balas, os canhões, são comprados, e bem se vê o ímpeto com que servem, e o estrago que fazem nos inimigos; e mais natural é em muitos homens o interesse que nestes instrumentos a mesma natureza. Os que menos satisfeitos estiverem de S. M., esses chegue V. A. mais a si, que importará pouco que no afecto se dividam as vontades, contanto que no efeito S. M. e V. A. as achem obedientes e unidas. Faça-se V. A. amar, e nesta só palavra digo a V. A. mais do que pudera em largos discursos. [...] Perdoe V. A. ao meu amor este e os outros atrevimentos desta carta. CARTA LI Ao príncipe D. Teodósio 1650 – Maio 23 Senhor. – Meu Príncipe e meu senhor da minha alma. – [...] Ah Senhor! Que falta pode ser que faça a V. A. nesta ocasião este fidelíssimo criado, e quão poucos considero a V. A. com a resolução e valor e experiência que é necessário para saberem aconselhar a V. A. o que mais lhe convém em tão apertados casos! Mas, já que na presença não posso, aconselhe a V. A. a minha alma, que toda mando a V. A. neste papel, e com toda ela lhe digo que, tanto que chegar esta nova, V. A. logo sem esperar outro preceito se ponha de curto, o mais bizarro que puder ser, e se saia a cavalo por Lisboa, sem mais aparato nem companhia que a que voluntariamente seguir V. A., mostrando-se no semblante muito alegre e muito desassustado, e chegando a ver e reconhecer com os olhos todas as partes em que se trabalhar; informando-se dos desígnios e mandando e ordenando o que melhor a V. A. parecer, que sempre será o mais acertado; mandando repartir algum dinheiro entre os soldados e trabalhadores, e, se V. A. por sua mão o fizesse, levando para isso quantidade de dobrões, este seria o meu voto; e que V. A. se humane conhecendo os homens e chamando-os por seu nome, e falando não só aos grandes e medianos, senão ainda aos mais ordinários: porque desta maneira se conquistam e se conformam os corações dos vassalos, os quais, se V. A. tiver da sua parte, nenhum poder de fora será bastante a entrar em Portugal, sendo pelo contrário muito fácil ainda qualquer outra maior empresa a quem tivesse o domínio dos corações. S. M. tem nesta parte uma vantagem muito conhecida, que é estar de posse e poder dar, quando Castela só pode prometer. Como há poucos Antónios Vieiras, há também poucos que António Vieira TEMPOS DE MISSIONÁRIO (JUNHO DE 1651 A JUNHO DE 1661) Desgostoso pela oposição dos émulos na Corte, magoado da hostilidade de alguns padres, dos mais influentes, dentro da Companhia, e provavelmente obedecendo a imposições agenciadas por estes, António Vieira decidiu pôr ponto à intromissão na política e consagrar-se inteiramente aos deveres de religioso. Ainda em 1652, rejeitou o convite do conde de Penaguião para o acompanhar na embaixada a Inglaterra. Após uma primeira missão de ensaio a Torres Vedras, das com que era uso estimular o fervor devoto das populações, preparou-se o político desenganado para outras de maior esforço e sacrifício, e escolheu para local de sua operosidade Maranhão e o Pará, onde, por acidentes vários, não havia então ninguém da Companhia de Jesus. Com o ardor próprio do seu temperamento, e utilizando o favor do rei, dispôs António Vieira as coisas da missão, elegeu os companheiros, tomou o cargo de superior, e se achava pronto a partir em Setembro de 1652. Parece, porém, que à última 37
  • 38. Nisto, em Maio de 1661, levanta-se o povo no Maranhão para expulsar os jesuítas. Vieira, em caminho para lá, tem de voltar a trás. As cartas XCII e XCIII são escritas quando ele, ao ter notícia da sedição, se refugia no Pará. Mas aí se repete o movimento, e o Padre é conduzido em custódia ao Maranhão, e, como os demais religiosos da Companhia, embarcado para Portugal, aportando a Lisboa em Novembro. Depois nunca mais tornou aos lugares que tinham sido, nove anos quase, teatro de seus labores. hora lhe esfriou o entusiasmo de apóstolo; e, muito a propósito, uma ordem régia levada a bordo o forçou a desembarcar, seguindo os companheiros viagem sem ele. É crível que o recuo não fosse do agrado dos confrades, empenhados em afastá-lo de Lisboa, e o superior da missão teve definitivamente de partir em Novembro, não sem esperar, até sair a barra, a repetição do chamado, que dois meses antes o fizera retroceder. Tudo isto consta das cartas dirigidas ao príncipe D. Teodósio em termos queixosos e o confirmam as confidências em que descobre o seu estado de alma a dois padres amigos. Não tardou ele, contudo, a dominar as saudades da vida das cortes. Arribando a Cabo Verde, já sentia despertar de novo o zelo pela difusão da fé. Ao Maranhão chega a 16 de Janeiro de 1653, e logo as obrigações de sacerdote e missionário lhe absorvem a actividade e o pensamento. As cartas ao seu provincial, as que vão ao Conselho Ultramarino, com o rótulo de serem para o rei, descrevem os trabalhos e privações suportados, as resistências vencidas, o esforço enorme que custava iniciar na civilização o selvagem, e preparar o terreno para que ela mais tarde prevalecesse, em territórios vastíssimos, desconhecidos e muitas vezes de perigoso acesso. Em Junho de 1654, tendo pregado no Maranhão o sermão famoso de Santo António, o missionário ausentou-se, para ir à Corte requerer providências novas, em proveito da sua obra. Mas, demorado no mar pelo tempo, e aprisionado a segunda vez por corsários, que o foram largar nos Açores, só em Novembro chegou a Lisboa, e em Abril do ano seguinte regressou à missão. Daí por diante, os seis anos que nela permaneceu passou-os, na mor parte, em viagens pelo estuário do Amazonas, e rio a cima até onde as povoações de índios, introduzidos no cristianismo, pediam a sua inspecção; ou ao longo da costa, indo e vindo, entre Maranhão e Pará, e, por duas vezes, mais longe, buscando de uma delas a Baía, jornada a que renunciou em caminho, da outra, a serra de Ibiapaba. CARTA LV Ao padre provincial do Brasil 1652 – Novembro 14 Pax Christi [...] Acrescem mais os cinquenta mil réis do meu ordenado, com que nos remediaremos dois; e, como a renda se nos há-de pagar na Baía e Rio de Janeiro, tomando-a os dois colégios em si, e mandando-nos açúcares da sua lavra, com que nos façam esmola dos melhoramentos da sua liberdade, empregando-se tudo aqui nos géneros mais necessários ao Maranhão, sempre virá a chegar lá muito acrescentado. Bem vejo que os riscos do mar são grandes, mas alguma cousa hão-de deixar a Deus os que dedicam tudo a Ele. No Maranhão, como de lá nos avisam, também temos ainda alguns escravos e criação de vacas, de que se poderão ajudar os daquela casa; e, se nas outras e nas missões se fizer o fruto que se espera, logo S. M., como tem prometido, acrescentará mais renda, e não faltarão pessoas particulares e devotas que nos ajudem com suas esmolas. E, quando não haja outras, resolver-me-ei a imprimir os borrões de meus papelinhos, que, segundo o mundo se tem enganado com eles, cuida o Padre Procurador-Geral que poderá tirar da impressão com que 38
  • 39. sustentar mais dos que agora vão: assim que, por falta de sustentação não deixe V. Rev.a de mandar o número dos sujeitos que S. M. pede; e nesta confiança, como digo, resolvemos que de cá fossem logo os doze. Disposta assim a missão, e tomado no navio o mais largo e cómodo lugar que pode ser (o qual também deu El-Rei), em 22 de Setembro começou a partir a frota, e os nossos missionários se foram embarcar todos: e eu dos últimos, com o Padre Francisco Ribeiro, como que nos íamos despedir deles ao navio. [...] O Padre Manuel de Lima leva comissão do Santo Ofício para o que naquele Estado se oferecer tocante a este tribunal; e também no Conselho Ultramarino lhe quiseram encarregar o ofício de pai dos cristãos, que agora se cria de novo no Maranhão, à imitação da Índia, para que os índios recorram a ele como a seu conservador, contra todas as vexações que lhes fizerem os Portugueses; mas, como o exercício deste cargo é de mui dificultosa execução e mui odiosa, não nos pareceu que convinha que a levássemos, principalmente quando imos fundar de novo, para o que nos é tão necessária a benevolência dos povos; e também porque, sendo o nosso principal intento abrir novas conversões pelo sertão e rio a cima, não serviria esse ofício mais que de embaraço e impedimento a outros maiores serviços de Deus. [...] A Província do Brasil foi principalmente fundada para a redução e conversão dos gentios, e, não havendo nela hoje outra missão senão esta, justo é que não faltem sujeitos para ela e que estes sejam tais que a Província sinta muito perdê-los, como acontecia a S. Francisco de Borja, porque nunca melhor ganhados, nem mais bem empregados; que Deus, a quem se dão, dará outros por eles, e quando a Província de Portugal, a quem toca menos, não repara em se privar dos sujeitos de maiores esperanças para os dar ao Maranhão, maior obrigação corre à do Brasil em não faltar com os que só nele se podem achar, que são os línguas. [...] Também se todos os línguas não forem padres, e houver algum irmão estudante eminente nela, venha embora, que no Maranhão terá estudos e ordens, como os demais que lá vão; que tudo há-de facilitar e compor o tempo, e com os primeiros bispos que tiver Portugal o há-de ter também aquele novo Estado, e, se a conversão for por diante, não só um, senão muitos; e, quando totalmente o não haja, faremos o que fazem hoje os do Brasil, que todo o outro inconveniente é menor que começar uma conversão sem homens muito práticos na língua principalmente entre gente que mede por ela o respeito. [...] 14 de Novembro de 1652. – De V. Rev.a filho em o Senhor. António Vieira CARTA LVII Ao Padre André Fernandes 1652 - Dezembro 25 [De Cabo Verde] Pax Christi [...] É o caso que nesta ilha de Santiago, cabeça de Cabo Verde, há mais de sessenta mil almas, e nas outras ilhas, que são oito ou dez, outras tantas, e todas elas estão em extrema necessidade espiritual; porque não há religiosos de nenhuma religião que as cultivem, e os párocos são mui poucos e mui pouco zelosos, sendo o natural da gente o mais disposto que há, entre todas as nações das novas conquistas, para se imprimir neles tudo o que lhes ensinarem. São todos pretos, mas somente neste acidente se distinguem dos europeus. Têm grande juízo e habilidade e toda a política que cabe em gente sem fé e sem 39
  • 40. muitas riquezas, que vem a ser o que ensina a Natureza. Há aqui clérigos e cónegos tão negros como azeviche, mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer invejas aos que lá vemos nas nossas catedrais. Enfim, a disposição da gente é qual se pode desejar, e o número, infinito: porque, além das cento e vinte mil almas que há nestas ilhas, a costa que lhe corresponde em Guiné e pertence a este mesmo bispado, e só dista daqui jornada de quatro ou cinco dias, é de mais de quatrocentas léguas de comprido, nas quais se conta a gente, não por milhares, senão por milhões de gentios. Os que ali vivem ainda ficam aquém da verdade, por mais que pareça encarecimento: porque a gente é sem número, toda da mesma índole e disposição dos das ilhas, porque vivem todos os que as habitam sem idolatria, nem ritos gentílicos, que façam dificultosa a conversão, antes com grande desejo, em todos os que têm mais comércio com os Portugueses, de receberem nossa santa fé e se baptizarem, como com efeito têm feito muitos; mas, por falta de quem os catequize e ensine, não se vêem entre eles mais rastos de cristandade que algumas cruzes nas suas povoações, e os nomes dos santos, e os sobrenomes de Barreira, o qual se conserva por grande honra entre os principais delas, por reverência e memória do Padre Baltasar Barreira, que foi aquele grande missionário da Serra Leoa, que, sendo tanto para imitar, não teve nenhum que o seguisse, nem levasse adiante o que ele começou. E assim estão indo ao Inferno todas as horas infinidade de almas de adultos e deixando de ir ao Céu infinitas de inocentes, todas por falta de doutrina e baptismo, sendo obrigados a prover de ministros evangélicos todas estas costas e conquistas os príncipes de um reino em que tanta parte de vassalos são eclesiásticos e se ocupam nos bandos e ambições, que tão esquecidos os trazem de suas almas e das alheias; mas tudo nasce dos mesmos princípios. Padre da minha alma, este é o estado desta gentilidade e desta cristandade; porque os das ilhas, ainda que todos baptizados, por falta de cultura vivem quase como os da terra firme. Afirmo a V. Rev.ma que, chegando aqui e vendo e informando-me deste desamparo, e experimentando nas confissões destes dias o grande que há nas almas dos portugueses que por estas partes vivem, assim a mim como aos companheiros nos vieram grandes impulsos de não passarmos mais adiante, e aplicarmos as nossas foices a esta tão vasta e tão disposta messe; e sem dúvida o fizéramos, se a metade da missão não tivera ido no outro navio, e sem pessoa que a levasse a cargo. E, com eu ser tão apaixonado pelo Maranhão, confesso a V. Rev.ma que não posso deixar de conhecer quantas vantagens esta missão faz àquela; porque está muito mais perto de Portugal, muito mais junta, muito mais disposta, e de gente sem nenhuma comparação muito mais capaz e ainda muito mais numerosa; em que nestas ilhas não têm necessidade de se lhes aprender a língua, porque todos a seu modo falam a portuguesa, e apenas se pode em nenhuma nação considerar necessidade mais extrema. Eu me arranco daqui com grande inveja e dor, e parece que se me está dizendo nesta parte da África o que na oposta se disse: Facta fugis, facienda petis. Mas, como os fados me levam ao Maranhão, já que eu não posso lograr este bem, contento-me com testar dele, e o inculcar e deixar a quem mais amo, que são os meus padres do Alentejo, de cujo espírito, que eu conheço melhor que outros, espero que hão-de abraçar esta empresa com tanto afecto e resolução que as dificuldades, que nela se representam, sejam os principais motivos de a quererem por sua. [...] Cabo Verde, 25 de Dezembro de 1652. – Humilde servo, e que muito ama a V. Rev.ma António Vieira 40