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HISTÓRIA DO CEARÁ
HISTÓRIA DO CEARÁ
AULAS
01 e 02
⊗ Início da ocupação
⊗ As tentativas de conquistas
⊗ O fundador do Ceará
O INÍCIO DA OCUPAÇÃO
O nome Ceará, que passou do rio à
capitania, em 1799, à província em 1822, ao
Estado, em 1889, é de origem incerta, sendo
freqüentemente escrito no Século XVII com s.,
Seará, Siará, Syará e depois Ciará e Ceará.
Manuel Aires do Casal apresenta como palavra
do idioma indígena Ciará, ‘Canto da Jandaia’.
Conforme o romancista José de Alencar, deriva
do Tupi Cemo, ‘cantar forte’, de Ara, ‘pequeno
periquito’. Outra hipótese considera-se como
provindo de suiçara, ‘abundância de caça’.
Para o historiador João Brígido, Ceará seria
uma deturpação do Tupi Ciri-Ará, significando
Ciri, no idioma Guarani, ‘andar para trás’, e
Ará, ‘branco’, ‘alvacento’, ou seja ‘caranguejo
branco’.] A idéia de uma variação de Saara
(deserto africano) como procedência dessa
expressão, é também levantada, porém
fantasiosa.
1.1 AS TENTATIVAS DE
CONQUISTAS
Nos 30 anos posteriores a chegada de
Pedro Alvares Cabral, no chamado período
Pré - Colonial (1500-1530), o Brasil ficou
praticamente esquecido por Portugal. Explica-
se isso pelo fato de os lusitanos estarem,
sobremaneira, voltados para o comércio e o
lucro das famosas especiarias orientais, e pela
ausência de riquezas minerais no litoral
brasileiro. Não obstante, como exceção a esse
quadro de abandono, verificou-se a exploração
do Pau-Brasil, que se estendia por uma faixa
litorânea entre o Rio Grande do Norte e o Rio
de Janeiro.
O Pau-Brasil, porém, oferecia lucros
pequenos se comparados àqueles ganhos com
as especiarias, além de que sua exploração
não fixava o colono na terra, pois finda a
madeira numa área, iam os europeus à outra.
Foi apenas a partir de 1530 que Portugal
decidiu, definitivamente, colonizar o país. A
Coroa portuguesa almejava, assim, não só
evitar perder a posse do Brasil para outros
povos (ingleses, franceses, holandeses), que
assediavam a colônia, mas também tomar esta
economicamente viável, uma vez que o
comércio das especiarias estava em crise
naquele momento histórico. Acontece que o
Brasil ocupado do século XVI não passava de
pequena porção de terra compreendida entre o
litoral de Pernambuco e o Rio de Janeiro, na
qual se encontrava a principal atividade
econômica desenvolvida pelos lusitanos na
colônia: o cultivo da cana-de-açúcar.
155
HISTÓRIA DO CEARÁ
Logo se conclui que, no século XVI,
ficou o Ceará praticamente esquecido pela
Coroa portuguesa. E por qual razão isso
ocorreu? Autores apontam razões como as
correntes aéreas e marítimas - que dificultavam
o acesso à costa cearense -, a oposição dos
índios à presença do invasor português, a
aridez do clima e até a presença constante de
estrangeiros na região, impedindo a chegada
dos portugueses. O motivo principal, contudo,
foi a falta de grandes atrativos econômicos. O
Ceará não dispunha de ouro ou prata, não
servia para o plantio em larga escala de cana-
de-açúcar, não tinha especiarias e suas
riquezas (âmbar, algodão nativo, sal, pau-
violeta, macacos e papagaios) não
despertavam, com intensidade, a cobiça da
metrópole, uma nação mercantilista, voltada
essencialmente para o lucro e para o acúmulo
de metais preciosos.
A maior prova do abandono cearense,
no primeiro século da ocupação lusa,
aconteceu ao criar-se o sistema de capitanias
hereditárias em 1534. O donatário do “Siará
Grande”, 2 Antônio Cardoso de Barros, nunca
se interessou pela concessão destas terras
onde jamais pôs os pés, embora tivesse
ocupado o cargo de provedor-mor da Bahia no
governo-geral de Tomé de Sousa. Cardoso de
Barros, inclusive, faleceu em 1556, ao lado do
primeiro bispo do Brasil, dom Fero Fernandes
Sardinha, devorado pelo índios. Caetés, após
um naufrágio na costa de Alagoas.
É inegável, por outro lado, que muitos
aventureiros estiveram no Ceará nesse
período, praticando escambo com os índios,
trocando machados, foices, tesouras, tecidos,
quinquilharias etc., por produtos nativos. Um
desses aventureiros esteve em terras
cearenses antes mesmo de Cabral ter
“descoberto” o Brasil na Bahia em abril de
1500. Foi o espanhol Vicente Yanez Pimon,
experiente navegador e antigo companheiro de
Cristóvão Colombo na viagem à América em
1492. Pinzon visitou o Ceará em fevereiro de
1500, provavelmente no Mucuripe, em
Fortaleza, e na Ponta Grossa no município de
Aracati. Esse fato, inclusive, na visão de alguns
historiadores, teria feito do Ceará o
“verdadeiro” local do “descobrimento” do Brasil.
Seria apenas no século XVII que o
governo luso espanhol (estávamos na época
da União Ibérica) iniciaria a ocupação do litoral
setentrional do Brasil e, em particular, do
cearense. Tal ocupação fez-se por razões
estratégico-militares; ocupar-se-ia o Ceará
para proteger o território contra a ação de
estrangeiros, sobretudo de franceses, que
chegando a fundar uma colônia na região (a
denominada França Equinocial, no Maranhão)
ameaçando as posses ibéricas, bem como
para estabelecer um ponto de apoio logístico
para a conquista do litoral norte da colônia,
ainda não ocupado produtivamente.
Dessa forma, em 1603, houve a primeira
tentativa oficial de ocupação do Ceará, com o
açoriano Pelo Coelho de Sousa. Este obteve
de Diogo Botelho - 8 Governador-Geral do
Brasil - a patente de capitão-mor e o direito de
organizar uma bandeira na pretensão de
156
HISTÓRIA DO CEARÁ
explorar o rio Jaguaribe, combater os piratas
estrangeiros, descobrir minas e “oferecer” paz
aos índios.
Partindo da Paraíba, à frente de 200
índios “mansos” (Vá submissos ao
conquistador) e de 65 soldados (entre os quais
o jovem Martim Soares Moreno), Fero Coelho
atingiu pelo litoral a serra de lbiapaba, onde
travou combate contra os índios tabajaras e
alguns franceses, então aliados.
Derrotando os adversários, Pero Coelho
tentou seguir para o Maranhão, mas só atingiu
o rio Parnaíba (Piauí) pois seus homens,
cansados, maltrapilhos e famintos recusaram-
se a prosseguir a viagem.
De retomo ao litoral, o capitão-mar
fundou, às margens do rio Ceará, o forte de
São Tiago e o povoado de Nova Lisboa,
chamando a área de Nova Lusitãnia. Ficou ali
pouco tempo. Os índios, ressentidos com o
comportamento brutal dos “civilizados”
europeus, passaram a atacar o Fortim. Pero,
então, retirou-se para o rio Jaguaribe, cons-
truindo nas margens deste o forte de São
Lourenço.
Contudo, a pesada seca de 1605 a 1607
(a primeira registrada pela historiografia local)
e os persistentes ataques indígenas levaram
Pero Coelho a deixar o Siará em dolorosa
caminhada, na qual pereceram de fome e sede
alguns soldados e seu filho mais velho.
Dirigindo-se ao forte dos Reis Magos no
Rio Grande do Norte e depois Paraíba e
Europa, Pero Coelho faleceu em Lisboa, pobre,
após tentar cobrar de Portugal os pagamentos
pelos serviços prestados nas terras cearenses.
Fracassava, assim, a tentativa pioneira de
ocupação do “Siará Grande”.
Outra tentativa de ocupação ocorreu em
1607, com os padres jesuítas Francisco Pinto e
Luís Figueiras, que pretendiam catequizar os
silvícolas locais - isto interessava às
autoridades . metropolitanas, na medida
que “ameaçava” os nativos e indispunha estes
com os estrangeiros e piratas que abordavam
a região. Partindo de Pemambuco em janeiro
daquele ano, os inacianos dirigiram-se de
barco para a foz do rio Jaguaribe,
acompanhados de 60 índios já “catequizados”.
Desembarcando no Jaguaribe, seguiram
pelo litoral, a pé, rumo a Ibiapaba. Muitos dos
nativos desta serra, aterrorizados com as
brutalidades praticadas por Pero Coelho,
haviam migrado para o.
Maranhão; mesmo assim, os religiosos
iniciaram. o trabalho catequético, até que, em
janeiro de 1608, foram atacados pelos índios
Tacarijus. Francisco Pinto acabou trucidado
pelos nativos, enquanto Luiz Figueiras
conseguiu fugir, dirigindo-se para ribeira do rio
Ceará e, depois, para o Rio Grande do Norte.
Posterionnente relatou sua empreitada em
Relação do Maranhão, o primeiro texto escrito
sobre o Ceará.
Figueiras, todavia, não foi muito feliz no
relacionamento com os nativos brasileiros.
Anos depois, em 1643, vítima de um naufrágio
na Ilha de Marajó, foi morto e devorado pelos
índios Aruãs.
157
HISTÓRIA DO CEARÁ
1.2 MARTINS SOARES MORENO: O
“FUNDADOR DO CEARÁ”.
Na visão dos historiadores tradicionais,
Martim Soares Moreno constitui-se o grande
conquistador do Ceará.
Martim Soares Moreno nasceu em
Santiago do Cacém, Portugal, em 1585 ou
1586, vindo para o Brasil como soldado do
Governador-Geral Diogo Botelho. Em 1603,
como visto, acompanhou Pero Coelho na
fracassada bandeira deste, fazendo, não
obstante, amizade com os índios locais (em
particular, com o chefe potiguar Jacaúna),
aprendendo os dialetos dos aborígenes e
familiarizando-se
com costumes nativos.
O ano de 1609 encontraria-o como
tenente c do forte dos Reis Magos, no Rio
Grande, fazendo incursões pelo litoral
cearense, combatendo traficantes. Em fins de
1611, acompanhado de um padre e de seis
soldados, regressou ao Ceara para efetivar a
posse a capitania, fundando na barra do rio
Ceará, com ajuda dos índios de Jacaúna, um
pequeno forte - o de São Sebastião. Segundo
o próprio Moreno, ali chegou a degolar mais de
duzentos piratas franceses e holandeses,
tomando-lhes três navios.
Em 1613, Moreno foi convocado para
combater a França Equinocial, no Maranhão,
ao lado de Jerônimo de Albuquerque, que já
havia se destacado na conquista do Rio
Grande. Ficou o forte de São Sebastião
entregue ao comando de Estevão de Campos.
Pretendendo estabelecer uma base de
operações, Albuquerque construiu em
Jericoacoara um fortim - o de Nossa Senhora
do Rosário -, enviando Moreno para averiguar
as posições francesas no Maranhão. O barco
do conquistador cearense, porem foi destruído
sendo levado por fortes ventos para a ilha de
São Domingos no Caribe. Dali, Moreno seguiu
para Sevilha, Espanha, de onde, em 1614,
remeteu às autoridades coloniais os informes
colhidos nas terras maranhenses.
Nesse meio tempo, Jerãnimo de
Albuquerque, deixando o forte de Jericoacoara
nas mãos de quarenta soldados, regressou a
Pernambuco, enquanto os homens do forte de
São Sebastião enfrentavam e derrotavam mais
de duzentos franceses comandados por Du
Pratz, que tentavam conquistar aquela posição
do rio Siará.
Martim Soares Moreno retomou ao
Brasil em 1615 e, novamente, foi combater os
franceses no Maranhão. Adoecendo, procurou
voltar para o Ceará, contudo, mais uma vez,
um forte temporal levou sua embarcação para
São Domingos, de onde seguiu para a
Espanha. No meio do percurso, seu navio foi
interceptado por corsários da França; mutilado
de uma mão e muito ferido, Soares Moreno
acabou preso e conduzido à Europa, passando
cerca de 10 meses nas prisões francesas.
Condenado à pena capital, só não foi morto
devido à interferência do embaixador espanhol,
Duque de Montelion. Liberto, Moreno escreveu
a Relação do Ceará, outro importante
documento sobre a terra cearense.
158
HISTÓRIA DO CEARÁ
Em Portugal, no ano de 1619, a Coroa
conferiu-lhe o título de capitão-mor do Ceará
por 10 anos, o ordenado anual de 400
cruzados e a posse de 2 léguas de terras
cearenses. Retomando ao “Siará” em 1621,
encontrou o forte de São Sebastião quase
destruído.
Remodelou o que foi possível, tentando
desenvolver a economia local, incentivando a
pecuária e o cultivo de cana-de-açúcar. Nos
anos seguintes, tornaram-se constantes os
seus apelos às autoridades lusas no sentido de
obter ajuda para viabilizar a colonização. Tudo
inocuamente. Em 1631 terminando seu prazo
como capitão mor e cansado da falta de
recursos e da pouca atenção da Metrópole,
retirou-se definitivamente do Ceará (o
comando do forte ficou com seu sobrinho,
Domingos da Veiga). Foi para Pemambuco -
combater os holandeses, que então ocupavam
o Nordeste do Brasil- e depois, em 1648, já
velho, para Portugal. Não se sabe quando
faleceu, mas o certo é que não mais retomou
ao Ceará.
Mesmo assim, Martim Soares Moreno é
tido pela maioria dos historiadores como”
fundador” do Ceará, sendo até mesmo
lembrado na obra Iracema de José de Alencar
como o guerreiro branco Martim.
Mas seria mesmo Soares Moreno o
fundador do Ceará?! Pode-se contemplar uma
só pessoa com tal título? Será que Moreno,
parafraseando Bertold Brecht, não teve alguém
que o ajudou a erguer os fortes, a navegar, a
cozer os alimentos?! Como conceder a uma
pessoa a premissa de fundador de uma terra já
anteriormente habitada pelos índios?! Admitir
isso seria negar os povos, as sociedades, as
culturas aqui existentes. Preferimos vê-Io como
o conquistador maior, o plantador da semente
invasora européia, do genocídio dos nativos.
1.3 – A PRESENÇA HOLANDESA NO
CEARÁ.
Os holandeses invadiram e ocuparam o
Nordeste brasileiro duas vezes: na Bahia, entre
1624 e 1625, e em Pernambuco, no período de
1630 a 1654. Seus objetivos, formulados pela
Companhia das Índias Orientais eram de
controlar a região produtora de cana-de-açúcar
e, evidentemente, conseguir outras riquezas.
Assim, após serem expulsos da Bahia,
conquistaram Pernambuco, estendendo seu
domínio para outras capitanias como Alagoas,
Paraíba, Rio Grande do Norte e o Ceará.
A ocupação do Ceará deu-se, ao que
parece, não apenas para explorar riquezas,
mas também para servir de apoio à
manutenção de Pernambuco, o grande centro
produtor da cana-de-açúcar no período
colonial.
159
HISTÓRIA DO CEARÁ
Em 1637, no mês de outubro, 126
homens, comandados por George Gartsman,
desembarcaram no Mucuripe, dirigindo-se para
o forte do rio Siará na companhia de diversos
índios, agora já em plena animosidade com o
branco português. O fortim de São Sebastião,
ocupado por 33 soldados sob as ordens de
Bartolomeu Brito, logo caiu ante a força dos
atacantes flamengos. Estava, portanto,
temporariamente desfeito o império luso no
Ceará.
No Fortim conquistado pelos
holandeses, ficaram 45 homem liderado por
Hendrick Van Ham, enquanto Gartsman
conduzia os portugueses prisioneiros para o
‘Rio Grande do Norte. Posteriormente, o
comando do Fone passou para Gedeon Morris
de Jonge, que logo constatou a existência de
poucos atrativos econômicos na terra, senão
sal, âmbar e pau-violeta.
Com o tempo, observando os índios que
as práticas dos holandeses não se diferiam do
tratamento brutal a eles aplicados pelos
lusitanos, revoltaram-se e, em 1644, invadiram
e destruíram o fone de São Sebastião,
trucidando todos os flamengos. A terra voltava
para seus autênticos donos, os nativos.
Mas o branco holandês veio novamente
ao Ceará em abril de 1649, agora sob o mando
de Matias Beck. Este, na colina Marajaitiba, às
margens do rio Pajeú, ergueu o fone de
Schoonenborch, homenagem ao então
Governa-dor do Brasil-Holandês. Ao tempo em
que penna-neceu no Ceará, o comandante
holandês escreveu o que seria o ter-ceifo
documento da historiografla local, o Diário de
Matins Beck.
Após inúteis buscas de minas de prata
em ltarema e na serra da Ibiapaba, e com a
expulsão dos holandeses de Pernambuco em
1654, Beck retir-ou-se do Ceará em maio do
mesmo ano. Em conse-qüência, os
portugueses, através do capitão-mar Álvaro de
Azevedo Barreto, retomaram a colonização,
mudando o nome de forte de Schoonemborch
para Fortaleza de Nossa Senhora da
Assunção, em tomo da qual depois se
desenvolveria a cidade de Fortaleza.
Desligado do Estado do Maranhão,4ao
qual estivera sujeito desde 1621, o Ceará, a
panir de 1656, passou a subordinar-se a
Pemambuco, situação mantida por 143 anos,
até 1799, quando se tomou capitania
autônoma.
Mesmo depois efetivado o domínio luso,
continuou o Ceará seu acanhado
desenvolvimento em volta do pequeno forte [u.]
O retardamento do progresso da capitania não
se deveu apenas à incapacidade administrativa
dos capitães-mores, às desavenças entre as
autoridades e à pobreza financeira das
Cdmaras e dos Cofres Reais. Deveu-se, muito
mais, às condições 1ft ortkm geral a que
estava sujeito Pernambuco, a capitania 1ft
quem dependeu política e economicamente, de
1656 a 1799. O pequeno número de
povoadores presos ao litoral não se animava a
investir contra o sertão dominado pelo silvícola
agressivo e indomável, sempre pronto a repelir
o invasor à flecha e tacape, em defesa de sua
160
HISTÓRIA DO CEARÁ
gleba; a bicharada lwstil e a ecologia
desconhecida aterrorizavam o lwmem branco,
prendendo-o cada vez mais à orla marítima.
A ocupação do interior cearense,
contudo, aconteceria a partir (mais ou menos)
do último quartel do século XVII, com a
penetração e o desenvolvimento da pecuária
nos sertões nordestinos.
HISTÓRIA DO CEARÁ
AULAS
03 e 04
⊗ A Economia cearense na
colonia
⊗
2.1 – AONDE O BOI VAI, O HOMEM
VAI ATRÁS...
No capítulo anterior vimos que o
“ingresso” do Ceará na história do Brasil deu-
se tardiamente, apenas no século XVII, com o
levantamento de construções militares no
litoral. Mas, conquistado o Norte, até o
Amazonas, expulsos franceses e holandeses,
o Ceará, incorporado à administração de
Pernambuco, seguirá, até o final do século,
entregue à sua própria sorte, sediando apenas
uma pequena guarnição militar cuja tarefa
consistia em provar simbolicamente o domínio
português [...]
Tal quadro mudaria mais ou menos a
partir do último quartel do século XVII e, com
maior intensidade, no início do século seguinte,
quando verificou-se, de forma definitiva, a
ocupação interior cearense, o que se deu em
função da pecuária - daí a razão de afinar-se
que o interior foi ocupado economicamente
antes do litoral.
Conforme relata a historiográfica
brasileira, a pecuária constituía-se, no período
colonial, de atividade econômica secundária e
complementar da cana-de-açúcar, cujo cultivo
se dava’ sobretudo no litoral, na zona da mata
nordestina. Tinha o boi a função de fornecer
carnes, força de tração e transporte para a
região produtora de açúcar. Com o tempo,
porém, o gado passou a ser conduzido para o
interior do Nordeste, possibilitando, assim, a
ocupação deste.
E por que o boi e o homem foram para
os sertões? Por motivos como a crise político –
econômica lusa, agravada com a União
Ibérica, que fez diversos portugueses
emigrarem para o Brasil, em direção ao interior
nordestino, uma vez que não existia terras no
litoral para todos; e o aumento do número de
reses e a necessidade de mais áreas na wna
da mata para o cultivo da cana.
Não se pode dissociar este fato [o
povoamento interiorano] da expedição de uma
carta, por D. Pedro II de Portugal em 1701, na
qual proibia a criação de gado a menos de 10
léguas da costa, a fim de que se respeItassem
as terras litorâneas, para o plantio da cana-de-
161
HISTÓRIA DO CEARÁ
açúcar. Com esta medida legal, o Rei
oficializou a política de interiorizar a pecuária.
A penetração e ocupação do sertão
nordestino - e por extensão, do interior do
Ceará - aconteceu, conforme esquema
clássico de Capistrano de Abreu, a partir de
duas rotas de povoamento: a do Sertão de
Fora, dominada por Pernambucanos, vindo
pelo litoral, saindo de Pernambuco em direção
ao Maranhão, e a do Sertão de Dentro,
controlada por baianos, vindos pelo interior,
abrangendo a região que vai do médio São
Francisco ao Rio Parnaíba (PI).
Nesse processo de colonização, o
grande perdedor foi o índio, exterminado
impiedosamente diante do avanço branco,
quando não, escravizado. Com efeito, fez-se
instantânea a reação do nativo, como na
chamada “Guerra dos Bárbaros”, quando por
mais de 30 anos (entre o último quartel do
século XVII e a segunda década do século
XVIII), os verdadeiros donos das terras
resistiram e lutaram contra a presença do
europeu invasor, até serem implacavelmente
derrotados, chacinados e disseminados. Não
dava para vencer a superioridade bélica do
conquistador “civilizado”.
A terra era conseguida gratuitamente,
bastando serem requisitadas sesmarias às
autoridades coloniais. O governo português,
dessa maneira, estimulava a ocupação dos
sertões, uma vez que estaria não só
garantindo seu domínio sobre terras há tanto
possuídas e não ocupadas, mas também o
entesouramento, com a cobrança de impostos
sobre o gado, o couro, «carne e tudo mais que
pudesse ser gerado com a ocupação produtiva
da Região por conseguinte, mediante à
profusão de terras concedidas pela coroa,
grandes latifúndios se formaram, mercê do
sistema das sesmarias. As datas variavam de
tamanho, havendo-as de 5, 10 e 20 léguas em
quadra, que podiam ser concedidas a alguém
beneficiado com outras precedentemente. Só
em 1753 foi proibida a concessão de
sesmarias a quem houvesse recebido outras
anteriores [...]
No Ceará, as primeiras doações de
sesmarias para a pecuária datam, conforme
Raimundo Girão, do período entre 1678 e
1782, nas imediações do Rio Jaguaribe, no
sentido de Aracati para o Sul. Aliás, a
colonização fez-se, sobretudo, margeando os
rios, em particular aqueles com maior volume
d’água, que serviam de caminhos naturais para
a penetração.
Nos 30 anos iniciais do século XVIII,
grandes áreas estavam ocupadas
produtivamente, havendo uma grande
concentração ao longo do Jaguaribe e de seus
afluentes maiores - Salgado, Banabuiú e
Quixeramobim, uma menor junto ao Acaraú e
outra, mais reduzida, ao longo do Coreaú.
Uma extensa área, compreendida entre os dois
maiores rios, parcialmente fechada ao Sul pelo
Quixeramobim, teve uma ocupação incipiente.
De difícil acesso pelo interior, esta área sofreu
uma ocupação rarefeita em relação às demais
e só iria figurar na história econômica do Ceará
no período de expansão da agricultura, entre
162
HISTÓRIA DO CEARÁ
fins do século XVIII e começo do seguinte.
O gado adaptou-se bem à caatinga;
para expansão pecuarista, contribuíram fatores
como as vastas extensões, as abundantes
pastagens, o caráter salino do solo, a própria
facilidade na aquisição das sesmarias, a
exigência de pouco capital para o
estabelecimento das fazendas, além do fato de
que, o gado, na hora da comercialização,
dispensava as despesas com transporte, pois
consistia num produto que se auto transportava
- daí a afirmação segundo a qual o boi era
mercadoria, transporte e frete.
Para a montagem da fazenda bastava a
compra de algumas reses e a construção de
uma casa simples, geralmente feita de taipa e
coberta de palha, vez que a mão-de-obra
básica - os vaqueiros - além de numericamente
reduzida, era paga não com dinheiro, mas com
cabeças de gado, no sistema de “quartiação”,
ou seja, de cada quatro bezerros nascidos
anualmente, um pertencia ao vaqueiro.
Os vaqueiros, vestindo roupa de couro e
montados em cavalos escolhidos, pastoravam
o gado. Símbolo mais fiel do Nordeste, era
merecedor de respeito e admiração, em razão
da superioridade que lhe conferia o
conhecimento da terra, do rebanho, dos
métodos de criação etc. Poderia, com o tempo,
devido ao sistema “quartiáção”, tomar-se dono
de fazenda.
O pastoreio, com relativa liberdade no
trabalho facilitou o uso dos índios
“domesticados” (já submissos aos
dominadores) pouco se empregou a mão-de-
obra negra escrava. Esta era utilizada
principalmente no labor doméstico das
fazendas. Havia certa incompatibilidade da
escravidão com a pecuária, devido a grande
mobilidade espacial da atividade, que permitia
ao cativo fácil fuga.
De mais a mais, não se pode relegar ao
esquecimento a falta de recursos para a
compra do africano e a pouca necessidade de
mão-de-obra nas fazendas.
Os vaqueiros eram os responsáveis
diretos pelas coisas da fazenda, vez que os
proprietários dos latifúndios quase sempre
residiam nas áreas litorâneas, onde eram
também cultivadores de cana-de-açúcar. Os
que viam para o sertão, contudo, instalavam-se
em casas enormes, baixas, sóbrias, com.
cobertura de telha em duas águas e de vastos
alpendres - habitações erguidas para atender
as exigência de segurança dos antigos donos
de engenhos embora não apresentassem
grande conforto ou requinte.
Ao lado daquelas fazendas, além do
curral para ordenhar do gado, construía-se a
casa de farinha, para beneficiar a mandioca e
fabricar a farinha, produto este que, ao lado da
cama, representava a base alimentar da
população rural; a engenlwca (se o ten’eno se
prestava ao cultivo da cana) para produção do
mel e da rapadura; teares, onde se
confeccionavam redes de dormir e tecidos
grosseiros de algodão [...].
Ao Jongo do latifúndio, ficavam as
miseráveis habitações dos outros moradores
da fazenda: mulatos, mestiços, índios
163
HISTÓRIA DO CEARÁ
“mansos”, pretos forros, brancos, muitos dos
quais fugitivos da justiça ou de vinganças
pessoais. Próximos a esses casebres -
normalmente de taipa, de chão batido, com
tetos baixos e de palha - encontravam-se
pequenos roçados de subsistência,
trabalhados por mulheres e crianças (os
homens estavam no pastoreio), que cultivavam
milho, feijão, mandioca e até um pouco de
algodão para fiação doméstica. Dificilmente
se .adquiriam produtos fora da fazenda,
aqueles, portanto, tinham caráter auto-
suficiente.
A fazenda era a unidade econômico-
social do a Sertão. Ali, os proprietários - pode-
se dizer, os primeiros coronéis - impunham a
todos seu mando, dizendo quem deveria viver
ou morrer; explorando os camponeses,
tomando-os verdadeiros semi-servos e utili-
zando-os como jagunços em seus grupos
armados.
Com o passar do tempo, crescia,
continuamente, o número de fazendas,
aumentando, em conseqüência, a produção
bovina.
Como exemplo, basta verificar que o
Capitão Félix da Cunha Linhares, morador na
Ribeira do Acaraú, no testamento que deixou
[u.] datado do Sítio Muritiapuá em 7 de
setembro de 1723, declarava-se dono de seis
fazendas, nas quais havia de 8.000 cabeças
de bovinos, 150 éguas e 50 cavalos.
No espólio do Capitão Vitoriano Correia
Vieira, de Quixeramobim, inventariado em
1740, figuram 1.150 vacas, 220 bois, 200
boiotes, 160 novilhas, 310 garrotes, 320
garrotas, 150 bezerros e 150 bezerras, no total
de 2.260 cabeças.
Essa quantidade vultosa opunha-se a
diminuta população da capitania. Para se ter
idéia, há indícios de que a população cearense
em 1775 não passava de 34 mil habitantes.
Conclui-se, logo, que a produção de carne
excedia a demanda da escassa população,
cujo poder aquisitivo era ainda menor.
Assim, a princípio, o problema foi
solucionado com a venda do gado, vivo, para
outras áreas, sobretudo para a região
açucareira pernambucana e, em menor grau,
para a Bahia e para a área mineradora.
As boiadas a serem comercializadas
seguiam sertão afora, guiada pelos tangerinos,
seguindo as veredas e caminhos sertanejos: A
‘estrada geral do Jaguaribe’, cortando a
capitania de Norte a Sul, na banda ocidental
colocava em comunicação as áreas de
produção ao longo do rio com o médio São
Francisco a ‘estrada das boiadas’ interligava a
região central Quixeramobim, Boa Viagem,
Sobral - com o Piaui, e os caminhos que
partiam da banda oriental – Camucim e
Acaraú, cruzavam as anteriores, deixando ao
largo a zona que abrigava os povoados de
Fortaleza e Aquiraz”.
Visando satisfazer às próprias
necessidades e às do gado, além do auxílio na
defesa mútua, muitos tangerinos acordavam
locais para encontrarem-se, notadamente nas
proximidades dos rios e nos cruzamentos dos
caminhos. Esses pousos dos tangedores de
164
HISTÓRIA DO CEARÁ
gado, em breve, transformaram-se em ranchos
e depois, em povoados, hoje importantes
cidades cearenses, como os casos de Icó e
Quixeramobim.
A comercialização do gado, embora
lentamente, possibilitou as primeiras mudanças
na economia de subsistência da capitania, vez
que o boi, além de atender ao consumo da
população cearense, tinha o excedente
vendido em outros mercados, tomando real a
aquisição de produtos importados do exterior
ou mesmo de outras regiões da colônia.
A venda dos rebanhos para outras
capitanias, porém, revelou-se não muito
lucrativa. Nas longas caminhadas, o gado
emagrecia, a ponto de ficar imprestável para o
abate, forçando os proprietários a vendê-Io por
baixíssimos preços. Ademais, havia prejuízos
decorrentes de assaltos, de ataques de
animais selvagens, de perdas e,
principalmente, dos altos impostos; situação
ainda pior era a das reses do litoral, portadoras
de cascos menos resistentes às longas
distâncias.
Por tais razões, foi que a partir da
segunda década do século XVIII, os
fazendeiros do litoral passaram a vender sua
matéria-prima já industrialmente preparada,
reduzida a carne a mantas conservadas pelo
sal e capazes de resistir, sem deterioração, a
longas viagens. Surgiram assim as fábricas de
beneficiamento de carne, as chamadas
oficinas, charqueadas ou feitorias, situadas,
sobremaneira, no estuário dos grandes rios,
onde produziam o charque (igualmente
conhecido por jabá ou carne do Ceará), que,
pelo resto do século XVIII, se constituiu o
principal e quase exclusivo elemento do
comércio da capitania.
2.2 PRAZERES DA CARNE SECA
Diversas causas facilitavam o fabrico do
charque no litoral: os ventos constantes e a
baixa umidade relativa do ar favoreciam a
secagem do produto, a existência de sal em
abundância e o grande rebanho da capitania
também contribuíram. Além disso, a técnica,
aprendida dos índios, não exigia profundos
conhecimentos e nem muito capital, visto
serem rudimentares as instalações das
oficinas, reduzidas a galpões cobertos de
palha, [A] varais para estender a carne
desdobrada, salgada, e [A] algum tacho de
ferro para a extração de parca gordura dos
ossos por meio de fervura em água [...] a
courama era estaqueada, seca ao sol; o sebo,
simplesmente lavado, posto ao tempo em
varas e depois secado, em formas de
madeiras cúbicas, produzindo pães de peso
variável. A ossamenta era amontoada e
queimada e esta cinza tirada pàra aterros, ou
servia, empilhada, para fazer mangueiras e
cercas. Todas as outras partes do boi não
tinham valor comercial e eram atiradas fora.
O charque contribuiu para modificar um
pouco a face econômica e social do Ceará.
Com ele ocorreu uma divisão de trabalho na
ca-pitania entre fazendas de criação, oficinas
165
HISTÓRIA DO CEARÁ
de salgas e pontos de comercialização as
boiadas do sertão - como vimos no início -
conduzidas para as feiras de Pernambuco e
Bahia, passaram a ser deslocadas, então, para
o litoral, fazendo com que esta porção territorial
e o Sertão interpenetrassem-se
comercialmente, e possibilitando o surgimento
de um mercado interno. O charque também fez
aparecer núcleos urbanos importantes como
Aracati, Acaraú, Camocim, Granja e Sobral,
bem como diversificou a produção, pois agora,
afora a carne, poderiam ser comercializados
couros e peles, que até a época da salga
inexistiam como mercadoria, dado o
insignificante volume de animais abatidos nos
limites da capitania.
No período colonial, desenvolveu-se no
Nordeste, consoante Capistrano de Abreu,
uma civilização do couro, visto que este
produto foi largamente utilizado tal confecção
de diversos artefatos e utensílios, marcando de
forma profunda a vida dos camponeses.
De couro era a porta das cabanas, o
rude leito aplicado ao chão duro, e, mais tarde,
a cama para os partos; de couro todas as
cordas, a borracha para carregar água, o mocó
ou alforje para levar comida, a maca para
guardar a roupa, a mochila para milhar cavalo,
a apeia para prendê-lo em viagens, as bainhas
de faca, as broacas e os surrões, a roupa de
entrar no mato, os burguês para os curtumes
ou para apurar sal; para os açudes, o material
de aterro era levado em couros puxados por
juntas de bois, que calcavam a terra com seu
peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz.
Também de couro era a mobília
(cadeiras de encosto, tamboretes), as cadeiras
baixas de estar à almofada de bilros, os baús-
guarda-roupa, arabescados de pregaria
dourada.
Inclusive, a produção do couro em
cabelo, solas e atanados, a princípio destinada
ao mercado interno, no final do século XVIII
passou também a ser exportada para a
Europa, para embalar rolos de fumo e para
produzir calçados, arreios, selas de montaria
etc. Embora não se saiba qual a participação
cearense nessas transações (na condição de
capitania subalterna, o comércio externo
cearense era feito através do porto de Recife
ou por contrabando), o certo é que o couro
chegou a estar em terceiro lugar no valor
estimado das exportações brasileiras.
As oficinas de charque instalaram-se
inicialmente na região de maior produção, na
foz do Rio Jaguaribe, para sernos precisos, no
pequeno arraial de São José do Porto dos
Barcos, hoje cidade de Aracati. Dali, as
charqueadas estenderam-se ao Oeste, insta-
lando-se nos rios Acaraú e Coreaú, estendo-se
posteriormente para o rio Parnaíba, no Piauí,
bem como para Leste, para os rios Açu e
Mossoró, no Rio Grande do Norte. Desses rios,
o charque era levado em sumacas
(embarcações para aproximadamente 80 mil
quilos de carne seca) e em outros tipos de
barcos para as capitanias da colônia; em
particular, para Pernambuco, Bahia e Rio de
166
HISTÓRIA DO CEARÁ
Janeiro, onde serviria de alimento para os
pobres e escravos.
A citada Aracaju, de certa forma próxima
a Recife e a Salvador, não obstante seu porto
de pouca profundidade, prosperou bastante
nessa etapa, torna-se, a partIr e mais ou
menos do ano 1750, principal núcleo urbano do
Ceará - isso em conseqüência não só das
charqueadas, mais principalmente da função
de entreposto comercial que desempenhava.
As boiadas transitavam pelas margens do rio
Jaguaribe em direção às oficinas de Aracati,
que por sua vez faziam sair os produtos
importados (artigos de luxo, manufaturas,
ferramentas e até materiais de construção)
para abastecer as fazendas interioranas.
O progresso de Aracati, o pulmão da
economia cearense, fez as autoridades
portuguesas elevá-Ia à categoria de vila em
1748, com a denominação de vila Santa Cruz
de Aracati. A Coroa lusa pretendia, assim, o
controle sobre a produção e a comercialização
captaçao e tantos - o que fez, a principio,
diminuir as atividades comerciais aracatienses.
Os comerciantes, para escapar das garras do
fisco lusitano, passaram a recorrer ao
contrabando ou a outros portos de embarque,
como os situados na ribeira dos rios Acaraú e
Pamaíba. Isso, porém, logo foi superado,
ganhando a elite da vila destaque na vida
econômica, política e social da capitania,
sendo Aracati inclusive, cogitada, para sediar a
administração do Ceará, fato nunca ocorrido.
Como foi dito, do Jaguaribe as oficinas
de charque propagaram-se para o rio Acaraú.
As primeiras fábricas, aí, foram levantadas no
modesto ‘Porto dos Barcos’, afastado cerca de
5 km da barra do rio, onde, no lugar
denominaM ‘Outra Banda’, se instalaram
outras, [unda-mento do povoado que se
adensou com o nome de Oficina, hoje cidade
do Acaraú.21 A liderança das charqueadas na
região norte da capitania,22 no entanto, ficou a
cargo de Sobral, situada na margem esquerda
do rio Acaraú.
Para o Porto do Acaraú, vindo de
SobraL durante a safra, rnmavam as boiadas,
os carros de bois cheios de cames, de couro e
sola; dali transportados em sumacas, para os
principais portos da colônia, principalmente
Pemambuco. Os barcos que levavam os
produws paswris voltavam trazendo as
grandes novidades em pratarias, porcelanas,
cristais, móveis de jacarandá e outros objetos
raros, entre eles materiais de construção.B
Isso contribuiu para o afonnoseamento de
Sobral, elevada à condição de vila em 1773 e
ainda hoje conhecida como Princesa da
Região Norte.
Submissa a Recife desde 1701 e grande
fornecedora de bois de corte à zona açucareira
pernambucana, a capitania do Rio Grande do
Norte também passou a produzir charque,
fundando feitorias nos rios Açu e Mossoró. Em
conseqüência, os fazendeiros potiguares
começaram a levar seu gado para o litoral,
provocando o desabastecimento de I carne
fresca em Recife e proximidades. Na segunda
metade do século XVIII, era diminuta a venda
de rebanhos do Ceará para Pernambuco
167
HISTÓRIA DO CEARÁ
(embora continuasse, em particular, os bovinos
da região dos lnhamuns) porque os sertanejos
preferiam a comercialização em forma de
carne salgada - mais lucrativa.
Atento a seus interesses, Pernambuco
na pretensão de reabastecer a população com
carne e manter a arrecadação tributária (afinal,
menos boiadas indo para as terras
pernambucanas era menos impostos pagos)
em 1788 baixou resolução proibindo às
charqueadas nos rios Açu e Mossoró. Isso, de
ceno modo, ajudou a produção de carne
salgada cearense, pois afastava a
concorrência none-rio grandense, embora
passasse agora a ser alvo de maior
fiscalização e controle dos negócios por pane
das autoridades coloniais - uma vez que
praticamente iria suprir o consumo
pernambucano.
As oficinas de charque entraram em
decadência a partir da última década do século
XVIII. A historiografia tradicional cita como
causa para tal fenômeno as calamitosas secas
de 1777-1778 e de 1790-1793, que teriam
reduzido drasticamente os rebanhos
nordestinos, tanto que a liderança nacional na
produção de carne seca passou para o Rio
Grande do Sul. Não se pode esquecer,
contudo, uma outra causa dessa ruína: o fato
de, a partir do último quartel do citado século, o
sertanejo ter passado a dedicar maior atenção
a uma atividade agrícola que marcaria
profundamente a economia cearense: a
cotonicultura, isto é, o cultivo do algodão,
produto então bastante procurado no mercado
internacional, sobretudo para abastecer as
fábricas têxteis da Inglaterra, que vivia sua
revolução industrial.
No decorrer do século XIX, os rebanhos
bovinos recuperaram-se, mas as charqueadas
jamais voltaram a possuir a importância de
antes. A cotonicultura tornou-se nossa principal
atividade econômica.
2.3 - DOCE ALGODÃO
O algodão já era cultivado pelos índios
antes da chegada do português invasor. Com
da economia de subsistência em todo o Brasil,
como matéria-prima para fabricação doméstica
de tecidos para os mais pobres e
especialmente para os escravos; aliás, os fios
e rolos de algodão chegaram a ser usados
como moeda nas capitanias mais atrasadas,
como no Maranhão, Piauí i’no próptio Ceará -
eram os Nimbós, abandonados ipenas no início
do Século XIX.
Todavia, a partir do último quartel do
século XVIII, aconteceu um extraordinário
aumento do plantio de algodão na colônia -
isso em conseqüência das exigências do
mercado externo, que requeria o produto para
atender a demanda das indústrias têxteis,
sobretudo as da Inglaterra, palco maior da
revolução industrial.
A guerra de independência dos Estados
Unidos (1774-83) - então o grande produtor
mundial de algodão e principal fornecedor
dessa matéria-prima para a Inglaterra, sua
metrópole - também contribui para a expansão
168
HISTÓRIA DO CEARÁ
da cotonicultura brasileira. Esta tinha como
destacadas áreas de produção o Maranhão, o
Ceará e Pernambuco, e menor grau a Bahia e
a Paraíba.
Com o algodão rompeu-se o
exclusivismo pastoril no Ceará. A base da
economia passa a ser assenta.do. na
agricultura, com a pequena disponibilidade de
capital atraída para o financiamento da referida
lavoura de exportação.
O clima pouco úmido e a regularidade
das chuvas favoreciam a expansão do
algodão. A cotonicultura, ao contrário da
pecuária e da cana-de-açúcar, foi praticada
não apenas em latifúndios, mas também em
médias e pequenas propriedades, onde
trabalhavam além dos fazendeiros, os
moradores, rendeiros e parceiros, espécies de
semi-servos modernos.
A mão-de-obra algodoeiro seria
basicamente a mesma antes usada na
pecuária, sendo pouco empregado o negro
africano; o ciclo vegetativo do algodão tornava
desvantajoso o emprego do escravo africano,
que ficava ocioso grande parte do tempo, além
de que a facilidade da colheita possibilitava o
emprego de mulheres e crianças.
Não se pense, entretanto, que o
crescimento da lavoura algodoeiro excluiu a
atividade pecuarista pelo contrário,
acomodaram-se uma a outra para criar os
fundamentos de um complexo sócio
econômico que iria se consolidar no decorrer
do século XIX, dando origem ao denominado
binômio gado-algodão. Os grandes núcleos de
produção algodoeiro no Ceará eram os distritos
de Fortaleza e de Aracati, e as serras de
Baturité, Uruburetama, Meruoca, Pereiro e
Aratanha.
Algumas vilas interioranas, como !có -
surgida como pólo de comércio pecuarista,
encaminhando os rebanhos para Bahia e
Pernambuco - tornaram-se pólos de comércio
de algodão. O grande centro coleror do
produto, não obstante, seria Fortaleza que, as-
sim, começou a surgir como iminente centro
econômico e político do Ceará, situação
consolidada na segunda metade do século
XIX; [u.] o algodão encontra rw porto de
Fortaleza o ponto natural de exportaçãD [...]
em detrimento dD porto de Aracati, a montante
da foz do Jaguaribe é de acesso merws fácil a
barcos de maior tonelagem. Com o posterior
emprego de navios a vapor,
2.4 OUTRAS ATIVIDADES
Desenvolveram-se no Ceará colonial,
além das tradicionais lavouras de subsistência
(milho, arroz, feijão, mandioca etc.), outras
atividades econômicas como a mineração e a
cana-de-açúcar.
A exploração de minérios na capitania
praticamente não obteve nenhum êxito. Após o
insucesso aos holandeses em encontrar
riquezas em nosso subsolo no século XVII, as
ações nesse sentido restringiram-se a rápidas
pesquisas e remessas de amostras para
169
HISTÓRIA DO CEARÁ
exame em Recife e Lisboa. Registram os
historiadores tentativas mal sucedidas de
encontrar minas de prata na serra dos Cocos e
Ibiapaba (Ubajara) , no ano de 1744, e no Vale
do Cariri, entre 1756 e 1758, quando inclusive
se fundou a Companhia do Ouro das Minas de
São José dos Cariris, logo falida Quanto à
cana-de-açúcar, sabe-se que Martins
Soares Moreno tentou estimular seu
cultivo no litoral, no início da colonização,
fracassando, sobretudo, devido à
impropriedade do solo. O plantio da cana em
terras cearenses aconteceu com maior ênfase
no vale do Cariri, onde, em modestos
engenhos de madeira, se fabricavam açúcar de
má qualidade, melaço (mel) e rapadura, uma
das alegrias do sertanejo.
HISTÓRIA DO CEARÁ
AULAS
05 e 06
⊗ Os índios cearenses
OS ÍNDIOS CEARENSE
Quem me dera ao menos uma vez,
Ter de volta todo o ouro que entreguei
A quem conseguiu me convencer.
Que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não
tinha
Quem me dera ao menos uma vez
Esquecer que acreditei que era por
brincadeira
Que se cortava sempre um pano-de-chão
De linho nobre pura seda [...]
(Índios - Legião Urbana)
Quando Pedro Álvares Cabral chegou
ao Brasil, este era habitado por cerca de 4
milhões de indivíduos chamados erroneamente
de “índios”. O primeiro contato do branco
europeu com o nativo foi amistoso; é só
lembrar o escambo (troca de produtos).
Contudo, na medida que avançavam as
atividades colonizadoras, essa relação tomou-
se homicida. Ao índio restaram poucas opções;
a escravidão, a morte, a expulsão de suas
terras ou ainda uma heróica e infrutífera
resistência. Dessa forma, começou o genocídio
indígena.
Milhões foram mortos em nome do
capitalismo, do comércio, do lucro, da fé. E o
pior de tudo, tentou-se justificar esse
holocausto propagando a idéia que o índio era
“selvagem, pagão, inferior, indisciplinado, sujo,
preguiçoso e que precisava adaptar-se à
missão progressista e cristã do branco civi-
lizado”. Tais argumentos são apenas
desculpas para amparar a destruição física e
cultural (etnocídio) do silvícola, o roubo de
suas riquezas, a violência sexual, a
170
HISTÓRIA DO CEARÁ
destribalização.
Desses 4 milhões de índios do ano de
1500, restam hoje pouco mais de 150 mil,
dispersos pelo país, sujeitos à extrema miséria,
a doenças, à exploração de grileiros, de
garimpeiros, de multinacionais, perdendo a
própria cultura e identidade - discriminados,
sem assistência do governo, sem nada...
Tomou-se rotineira nos livros de história
a idéia de “descobrimento do Brasil”. Refere-se
ela à chegada dos portugueses a terras até
então desconhecidas. Contudo, em 1500 esse
país foi descoberto somente para o branco
europeu, visto que já era habitado por milhões
de índios. Tal ano marca, por certo, o início da
invasão, da conquista e da exploração da terra
“brasilis”.
A origem do homem americano é
confusa. Não se sabe, com certeza, de onde
ele veio. A teoria mais aceita diz haver ele
migrado da Ásia há 12 mil anos, pelo estreito
de Bering, noroeste da América do Norte. Isso,
porém, parece entrar em choque com as
afirmações da arqueóloga da USp, Niéde
Guidon, que haveria encontrado, no município
de São Raimundo Nonato (PI), vestígios
confinnando a presença humana no Brasil há
cerca de 40 mil anos. A questão continua em
aberto, esperando maiores revelações por
parte dos estudiosos da área.
Se difícil é compreender a procedência
dos silvícolas, mais limitado é o estudo dessas
sociedades, já que estas não apresentavam
uma homogeneidade. Os índios do Brasil não
formavam uma única sociedade; verificam-se
diferenças quanto a sua organização sócio-
cultural. Às vezes, os grupos eram rivais uns
dos outros.
3.2 OS DONOS DA TERRA
Não se sabe ao certo quantos índios
habitavam o “Siará” antes da chegada do
português invas: Martim Soares Moreno
estimou em 150 mil os nativos e em 22 as
aldeias destes, mas tais números não são
conbáveis, pois o “fundador do Ceará” pouco
explorou os sertões. Não há unanimidade na
historiografla local quanto aos nomes,
classificação e localização dos aborígenes. De
certo modo, é compreensível, vez que as
ações de expulsão e extermínio destes nativos
foram feitas quase sem registros ou
documentação.
Não obstante tais imprecisões, conforme
às línguas faladas pelos nativos, o historiador
Carlos Studart Filh028 aglutinou-os em 5
grupos, a saber: os Tupis, çariris, Tremembés,
Tarairius e Jês.
Os Tupis cearenses compunham-se
basicamente de duas grandes nações, a dos
1àbajaras (parentes dos Tupiniquins) e a dos
Potiguares (próximos dos Tupinambás) ,
inimigas radicais.
Os Tabajaras, que provavelmente
vieram da Bahia, habitavam a serra da
Ibiapaba. Guerreiros valorosos, segundo
alguns, antropófagos, chegaram a dominar
171
HISTÓRIA DO CEARÁ
outras tribos (como a dos Tucurijus) ,
oferecendo feroz resistência à penetração do
conquistador (foram eles que, em aliança com
traficantes franceses, combateram Pero
Coelho em 1603). Aliás, os nativos daquela
região, notadamente os próprios Tabajaras, ao
entrarem em contato com as artimanhas dos
brancos, decidiram formar uma confederação
para enfrentá-los e criar uma área livre da
influência invasora.
Ora, isso era incompatível com o projeto
colonialista de Portugal. Assim, a partir de
1654, com a retomada da capitania cearense
pelos lusos, passaram estes a trabalhar para o
afastamento dos silvícolas de tal propósito.
Entre 1656 e 1690, foram enviadas diversas
expedições militares e, sobretudo, jesuítas
(entre os quais o famoso Padre Antônio Vieira),
a partir do Maranhão, a fim de dissuadir os
nativos. Fracassaram todos eles, pelo menos
até 1695, quando os religiosos conseguiram se
estabelecer na Serra e fundar o aldeamento de
Nossa Senhora da Assunção de Thiapaba
(depois vila Visçosa Real e atualmente cidade
de Visçosa do Ceará).
Os aldeamentos eram espécies de
aldeias artificiais, militarizadas, tendo como
chefe Um missionário que usava de todos as
maneiras para catequizar e “domesticar” os
índios. wgo, pode-se verificar que catequização
e colonização estavam estreitamente ligadas.
O gentio, convertido ao catolicismo, era
um ínq.io aculturado, desnorteado, confuso,
muitas vezes expulso da própria ten;a e
estrutura social, e, por tal razão, menos
incapaz de resistir ao branco conquistador,
mais fácil de ser escr(iVizado ou de ser usado
como verdadeiro semi-servonos latifúndios que
surgiam, bem como de servir de soldado em.
guerras contra os aborígenes ainda “indóceis”.
Os Potiguares, originários do Rio
Grande do Norte, de onde foram expulsos
pelos colonizadores, localizavam-se
principalmente no Baixo Jaguaribe e em alguns
pontos ao longo do litoral. Também
combateram a bandeira de Pero Coelho
(embora alguns do grupo, já “mansos”, tenham
servido como flecheiros na expedição deste
conquistador e na dos jesuítas Pinto e
Figueiras). Foram vítimas de inúmeras
violências e mortes, até que se submeteram ao
branco” cristão e civilizado”. Inclusive, um de
seus líderes, chamado Jacaúna, foi importante
aliado de Soares Moreno, ajudando bastante
no combate a outros indígenas (ainda “não-
dominados”) e até a piratas estrangeiros.
Com a morte de Jacaúna e a saída de
Moreno do Ceará, as relações entre Potiguares
e Perós (portugueses) deterioraram-se. Os
índios acabaram ajudando os holandeses a
apossarem-se do forte de São Sebasrião em
1637. Contudo, como os métodos mesquinhos
dos flamengos não se diferenciavam das prá-
ticas dos lusitanos, os mesmos Potiguares, no
ano de 1644, tomaram o Forte e trucidaram os
ocupantes.
Em 1649, graças a presentes e dádivas
oferecidas por Matias Beck, os Potiguares,
172
HISTÓRIA DO CEARÁ
mais uma vez, aliaram-se aos holandeses e
com estes viveram em relativa harmonia até
1654. Neste ano, com a expulsão dos
flamengos, a maior parte desses nativos,
temendo o revanchismo português, abandonou
o litoral e refugiou-se na Ibiapaba. Aqueles que
ficaram na porção litorânea, acabaram jogados
nos aldeamentos de São Sebastião de Paupina
(hoje Messejana), Bom Jesus da Aldeia de
Parangaba (depois vila Nova Arronches e, na
atualidade, novamente Parangaba) e Nossa
Senhora dos Prazeres de Caucaia
(posteriormente, Vila Nova de Soure e hoje,
mais uma vez, Caucaia).
Do grupo Cariri ou Quiriri, que ocupava
áreas dispersas entre os rios São Francisco
(BA) e Parnaíba (PI), poderíamos citar as
nações dos Inhamuns (habitantes dos sertões
de igual nome e aldeados por frades carmelitas
em São Mateus, hoje Jucás), dos Cariús
(localizados sobretudo na serra do Pereira e
nas terras compreendidas entre os rios Cariús
e Bastões, foram “amansados” na missão do
Miranda, atual Crato), dos Cariris propriamente
dito (uns dos que, vivendo no extremo sul da
capitania, reagiram intensamente à invasão
branca; foram catequizados em Missão Velha,
em Missão Nova - hoje São José dos Cariris -
em Caucaia, em Salamanca - atual Barbalha -
e no Miranda - Crato) e dos Caratéus ou
Crateús (que se localizavam na bacia superior
do rio Poti).
O grupo dos índios Tramenbés ocupava
uma faixa litorânea que ia da baía de São
Jorge, no Maranhão às margens do rio Curo.
Constituiu-se outro povo que também ofereceu
muita resistência aos dominadores europeus.
Acabaram aldeados pelos jesuítas na Missão
de Nossa Senhora da Conceição de Almofala,
hoje município de Itarema, após várias
expedições brancas para exterminá-Ios. Alguns
índios desse grupo foram ainda catequizados
em Soure, Caucaia.
Dentre as nações que compunham o
grupo 1àrairiu, destacaram-se os Janduins
(habitantes originais do Rio Grande do Norte,
da Paraíba e de Pernambuco, mas que
incursionavam amiúde pelas terras do Baixo
Jaguaribe) , osCanindés e os JenipaVos
habitantes das margens dos rios Banabuiú,
Quixeramobim e cabeceiras dos Cariús. Os
Canindés, aliás, seriam Janduins cearenses
que receberam denominação a parte em
memória de um de seus chefes, o qual, em
1692, em um fato inédito para ahistória do
Brasil, firmou um acordo de paz com o próprio
rei de Portugal, D. Pedro II. Os nativos
respeitaram o tratado; os lusos, não, e aqueles
índios foram sangrentamente submetidos e
jogados à catequese no aldeamento de Monte-
Mor-Novo (Baturité),
Outros Tarairius eram os Baiacus,
também chamados de Paiacus ou ainda de
Pacajus; nas crônicas coloniais, tinham-nos por
índios “rebeldes e problemáticos”. Sofreram
violento processo de extermínio, e os
sobreviventes acabaram “civilizados” nos
aldeamentos de Monte-Mar-Velho (depois
denominado Guarani e hoje, Pacajus) e de
Messejana.
173
HISTÓRIA DO CEARÁ
Igualmente Tarairius eram os Arariús
(que habitavam a serra da Meruoca e a bacia
do Acaraú) , os Quixelôs (confinados na
Missão Velha, atual 19uatu, mas que, por
resistência, foram transferidos para Monte-Mar-
Novo, Baturité) e os Tacarijus ou Tucurijus
(situados na chapada da serra da Ibiapaba,
sendo responsáveis pelo trucidamento do
jesuíta Francisco Pinto em 1607).
Do grupo Jê, ao que parece, nas terras
do Ceará, apenas habitavam os Aruás em área
próxima ao rio Jaguaribe.
Ainda conforme Carlos Studart, além
dos 5 grupos citados, haveria um sexto, sem
denominação própria, que conteria
exatamente as tribos de fílíação lingüística
dtí,Vidosa.
Nele estariam, entre outros, os
Acongwiçus eosÂcriús, amboshabitaJltes da
ri:bceirado Acaraú . ceamansados no
aldeamento de Nossa Senhora da Assunção
de lbiapaba (Visçosa); os Anapurus .
(encontradospa serra Grande), os ApUjarés
habitantes dos setões de Canindé) , os
Calabaças (que viviam na margem esquerda
do rio Salgado, onde hoje está.a cidade de
tavras) , osIcós (situados . entre o Salgado e o
rio do Peixe (PB) ,foram aldeados pa missão
dePorto A_eg),”e,.Rio Grande do . Norte), os
Icozinhos situados namestp. área dosse
pa),”entes Icós e catequizados em Mitanda,
Crato), os Jaguaribaras (espalhados entre a
margem esquerda do Ghoró e a serra de
Baturité), os Jucás ou Iucás (ocupavam as
margens do riacho com igual denominação,
nos sertões de lnhamus) e os Anacés
(habitantes da área Compreendida entre
olitonHe a serra detJrupuretama).
3.3 A GUERRA DOS “BÁRBAROS”
Pelo exposto, já é possível concluir que
o mundo indígena findou-se com o avanço das
fazendas de gado do branco colonizador (que
assassinava o gentio, agredia-o, violentava-o
sexualmente, usurpava as terras deste) e com
a própria ação dos missionários católicos, os
quais, na pretensão de catequizar o nativo,
acabaram por destruir-lhe a cultura e o modo
de viver.
O índio, dessa forma, foi aculturado,
destribalizado, escravizado e, quando não,
exterminado. Todavia, é preciso deixar bem
claro que os silvícolas JAMAIS aceitaram
passivamente a dominação do homem branco;
reagiram de modo heróico contra essa
circunstância. Tal reação veio de diversas
maneiras, como, por exemplo, escapando dos
aldeamentos, fugindo do cativeiro e, sobretudo,
armando-se para lutar abertamente contra o
invasor, atacando-lhes as vilas e as fazendas,
trucidando-o; o europeu, em contrapartida,
fazia a “guerra justa”, enchendo os senões de
sangue e cadáveres.
Um dos grandes exemplos da
resistência indígena no Brasil deu-se com a
chamada “Guerra dos Bárbaros”, na qual
nativos do Rio Grande do Norte e
principalmente do Ceará, e alguns de
174
HISTÓRIA DO CEARÁ
Pemambuco, Piauí e Pamaíba se uniram em
uma confederação para enfrentar o
conquistador branco. Tal guerra durou mais de
30 anos, indo do último quartel do século XVII
à segunda década do século seguinte,
terminando com milhares de índios mortos,
escravizados e, outras vezes, jogados em
aldeamentos ante a superioridade militar do
inimigo. Iniciou-se o confronto por volta de
1686, no Rio Grande do Norte. Os índios
Janduins, habitantes das regiões de Açu,
Mossoró e Apodi, no meio de tanto terror e
opressão, rebelaram-se contra o domínio
lusitano, matando, saqueando, destruindo
tudo que pertencesse a seus algozes. Nos
anos seguintes, a revolta propagouse pelo vale
cearense do Jaguaribe, alcançando os mais
distantes sertões e chegando aos limites das
capitanias do Piauí, Pernambuco e Paraíba. As
nações dos Baiacus, !cós, Anacés, Quixelôs,
Jaguaribaras, Acriús, Arariús, Canindés,
Jenipapos, Tremembés, Crateús e outras
acompanharam os Janduins e, esquecendo
seus passados de conflitos internos, lançaram-
se, feroz e bravamente, à luta.
Em face da situação, o Governador-
Geral do Brasil, Frei Manuel da Ressurreição,
no ano de 1688, decidiu requisitar bandeirantes
de São Paulo e de São Vicente para pôr fim à
revolta. Assim, Domingo Jorge Velho, antes
chamado para massacrar os negros em
Palmares, marchou ao Rio Grande do Norte,
mesma capitania para onde se dirigiu, após
meses de viagem, o terço do mestre-de-campo
Matias Cardoso. Este deu início a animalesca
campanha de extennínio do gentio, enviando
em seu lugar o tenente João Amaro Maciel
Parente célebre por atrocidades praticadas
contra nativos de outras regiões do Brasil- para
combater no vale do Jaguaribe, auxiliando
como podia as milícias locais.
Era comum nesse período os
colonizadores, para combater a resistência
indígena, utilizar em expedições militares
fossem estas milícias compostas por eles
próprios, fossem terços comandados por um
mestre-de-campo, homens experientes em
combate a rebeliões. (O mais famoso mestre -
de campo foi Domingo Jorge Velho,
responsável pela destruição do Quilombo de
Palmares.)
Em tais expedições, além dos brancos e
mestiços, participavam também índios
“domesticados” retirados de aldeamentos ou
prisioneiros de guerra, bem como criminosos e
degredados, que poderiam receber o perdão
por seus crimes. As companhias de terço,
quase sempre, eram solicitadas ao poder da
capitania pelos colonos, e seus oficiais
recebiam toda espécie de privilégios, como a
concessão de sesmarias ou o direito de
escravizar os índios.
A presença dos bandeirantes vicentinos,
contudo, não acabou com a guerra. As táticas
de guerrilha dos nativos desorientavam e
assustavam os paulistas. Acordos de paz
eram, na mesma intensidade, assinados e
desfeitos (como o realizado entre Canindé e o
175
HISTÓRIA DO CEARÁ
rei luso D. Pedro lI). Os comandantes
portugueses eram mortos e substituídos.
Solicitavam-se mais e mais
reforços.
A Matias Cardoso, na chefia do terço,
sucedeu o mestre-de-campo Femão Carrilho,
que em 1691 conseguiu impor pesada derrota
aos Baiacus, escravizando vários deles e
obrigando-os a lutar ao lado dos fazendeiros
contra outras nações que ainda guerreavam.
Em 1694, os Baiacus libertaram-se do
jugo branco e voltaram à confederação
indígena, praticamente aniquilando os colonos
moradores dos rios Jaguaribe e Banabuiú e
interrompendo as comunicações com
Pemambuco. Foram, porém, novamente
batidos, e, enquanto alguns deles eram
escravizados ou uniam-se a outras nações
para continuar a guerra, outros eram enviados
para a catequese no aldeamento de Nossa
Senhora da Madre de Deus.
Mesmo assim, as atividades bélicas
persistiram, tanto que se fez necessário pedir
mais reforços de São Paulo, agora sob o
comando do mestre -de-campo Manuel Alves
de Morais Navarro. Este, não se sabe bem por
qual razão em 1699, cometeu grande
atrocidade e covardia contra os nativos: reuniu
os Baiacus aldeados, prometendo-lhes ricos
despojos e, enquanto estavam desannados,
dançando pintados festivamente, ordenou um
repentino ataque com anuas de fogo. Os índios
foram atingidos à traição, sem piedade; mais
de 500 pereceram. Esse crime hediondo
levantou protestos de inúmeros religiosos e
autoridades da Colônia. N avarro, em
conseqüência, foi preso e submetido em
Pernambuco a um processo que não resultou
em nada.
No ano de 1706, o Governo Real
autorizou o fornecimento de anuas a todos os
brancos moradores da capitania cearense,
para a proteção dos bens e para a autodefesa.
Em 1713, os Baiacus, reorganizados e em
conjunto com os Anacés, ]aguaribaras, Acriús,
Arariús, Canindés, ]enipapos e ,Tremembés,
atacaram Aquiraz, então sede da capitania;
isso após as autoridades descumprirem um
acordo de paz existentes. Cerca de 200
pessoas morreram defendendo a vila,
enquanto os demais moradores fugiram
desesperadamente, sob flechas, lanças e
tacapes indígenas, buscando a proteção dos
canhões da fortaleza de Nossa Senhora da
Assunção, na foz do rio Pajeú.
Com certo fundamento se pretende que
a fuga do povo de Aquirás e terras vizinhas
para a Fortaleza de N. S. d’Assunção deu
lugar, uma vez conjurado o perigo, a um
aumento considerável do pequeno núcleo
demográfico ali existente sob a proteção de
suas armas e, já então, conhecido por aldeia
do forte. Criou assim, o predomínio desta
povoação sobre a rival, a então Vila de
Aquirás.
Aquiraz só não foi completamente
destruída devido à ação dos homens do
coronel João de Barros Braga. Este, grande
176
HISTÓRIA DO CEARÁ
senhor de terras do Jaguaribe, liderava a
milícia local, o regimento da cavalaria do
Jaguaribe (chamada nos antigos textos de
“Cavalaria do Certam”), a qual composta
basicamente por mestiços e índios “mansos”,
todos vestidos de couro como os vaqueiros, e
especialistas em matar e provocardor,
percorreu, nos anos seguintes, os vales do
Jaguaribe e Cariri e até os confins do Piauí,
varrendo e eliminado os nativos em “nome da
civilização”.
Barros, aliás, ao “salvar” Aquiraz,
recebeu do governo o direito de fazer “guerra
justa” contra os Anacés, podendo matá-Ias e
escravizar quantos quisesse. Para se ter idéia
de como tal guerra foi conduzida, basta
assinalar que em pouco tempo o Coronel do
regimento da cavalaria aprisionou cerca de 400
gentios (fora os mortos em combate), dos
quais executou a sangue frio 95 - os que lhe
pareciam mais ferozes -, vendendo o resto
como escravos. Essa guerra de extermínio,
levada a cabo pela “Cavalaria do Certam”,
marcou o início da derrocada dos aborígines.
No final da década de 20, estavam quase
todos batidos, chacinados, escravizados ou, às
vezes, condenados à aculturação nos
aldeamentos. Ficou, assim, registrado para a
história o lamentável genocídio e etnocídio dos
quais foram vítimas. João de Barros Braga, em
compensação pelos “heróicos” assassinatos
que liderara, foi nomeado em 1731
governadores da capitania do Rio Grande do
Norte, deixando o cargo, contudo, três anos
depois, ironicamente por ter ordenado o
fuzilamento de um índio sem processo legal.
3.4 MONTES E FEITOSAS
Sem função econômica definida, muitas
vezes os índios já “domesticados” acabavam
na dependência (semi-servidão) de grandes
fazendeiros. Estes, dotados de enorme
autonomia perante as autoridades
governamentais, chegavam mesmo a controlar
tribos inteiras, envolvendo-as nas disputas
particulares. Com base nesse raciocínio
compreende-se a participação de muitos
gentios no famoso conflito entre as famílias
Montes e Feitosas que abalou o sul cearense
no primeiro quartel século XVIlI.
A família Feitosa originaria de Alagoas,
chegou ao Ceará por volta de 1707. Quando
Lourenço Alves Feitosa e o irmão Francisco
Alves Feitosa conseguiram algumas sesmaria
longo do rio Jucá. Posteriormente, expandiram
as posses para áreas próximas ao rio
Juguaribe e ao Iço, tornando-se poderosos
senhores de terras. Os Montes por sua vez
naturais de Sergipe vieram para a capitania.
Cearense antes dos Feitosa, em 1682 situando
em sesmaria da sona de Iço e igualmente
obtendo bastante influencia econômica. No
inicio do século XVIII, ao que parece esta
família era liderada pelo coronel Francisco do
Monte Silva.
A princípio, tais famílias até se uniram
para combater os indígenas que então se
revoltaram contra a presença do homem
branco, mas essa cooperação depois se
177
HISTÓRIA DO CEARÁ
transformou numa sanguinária rixa. Não se
sabe com precisão o porquê da inimizade.
Alguns autores falam em questões de honra
pessoal (segundo a tradição, Francisco Feitosa
teria se casado com uma viúva irmã de onde,
intrigando-se com este); outros, alegam ter
motivo da guerra uma disputa por terras.
Quaisquer que fossem as causas do confronto,
nas décadas de 1710 e 1720 as famílias
envolveram-se em grandes hostilidades, que
se fizeram repercutir ainda nos anos
subseqüentes. Suas práticas rotineiras de
emboscadas, saques, combates abertos,
incêndios, assassinatos de índios e vaqueiros
levaram pânico e terror para a porção sul da
capitania, mostrando quão frágil eram os
sistemas jurídico e governamental vigentes.
Tinha-se ali um verdadeiro “império dos
coronéis”, onde a arma e a força prevaleciam.
As coisas agravaram-se quando o
primeiro ouvidor do Ceará (ou seja, o agente
governamental responsável pela aplicação da
justiça), José Mendes Machado, envolveu-se
escandalosamente na guerra, tomando partido
pelos Feitosas e tentando acobertar as ações
criminosas destes. Conforme a historiografia
tradicional, esse magistrado não era, no dizer
popular, “flor que se cheire”; mostrando-se
ávido, violento, venal e pouco escrupuloso,
ganhou a sugestiva alcunha de “tubarão”,
incompatibilizando-se com o capitão-mor da
capitania e com a Câmara Municipal de
Aquiraz.
Em 1724, em uma de suas viagens de
correição pelo sul da capitania, Mendes
Machado firmou aliança com os irmãos
Francisco e Lourenço Feitosa, autorizando-os,
ao lado do coronel João Ferreira da Fonseca
(um latifundiário da região do rio Jaguaribe) e
de alguns índios Jucás, a capturarem
Francisco Monte, que então se encontrava na
região do Cariri Novo, mais tarde chamada
Crato.
O patriarca dos Montes não foi pego,
mas os Feitosas aproveitaram a oportunidade
para saquear as fazendas do inimigo,
seqüestrar negros, mulheres e assassinar
quem tentasse resistir. No início de 1725, o
“Tubarão” e os Feitosas realizaram nova
investida contra a família de lcó, saqueando,
matando e roubando amuLS que as pessoas
possuíam para ckfender aos índios.
Novamente as mulheres não foram poupados.
O ouro e as roupas que possuíam eram
tirados, e eram insultadas com palavrões e
ações; os saqueadores colocando suas mãos
abaixo das saias das mulheres de modo
escandaloso’, atiravam nelas quando tentavam
fugir.
Os Montes, diante dessas mortíferas
investidas dos Feitosas, resolveram levar a
guerra aos domínios destes; reuniram seus
jagunços e partiram para os lnhamuns. Ao
passarem pelo aldeamento de São Mateus,
obtiveram a adesão dos índios lnhamuns,
inimigos fidagais dos aborígines Jucás, que
então serviam de capangas aos Feitosas. A
gente de lcó estava preparada para triturar o
adversário.
Os Feitosas, no entanto, avisados da
178
HISTÓRIA DO CEARÁ
aproximação dos Montes, também aglutinaram
as forças (entre as quais diversos índios Jucás
Jenipapos e Cariús) e ficaram à espreita,
emboscando os pretensos atacantes no lugar
denominado Bom Sucessos e fazendo-os fugir
em desespero. Motivados com a vitória e
sedentos de vingança, dias depois o exército
dos Feitosas marchou para São Mateus, onde,
surpreendendo os lnhamuns na hora de uma
misa, acabaram por massacrá-Ias em um ato
de extrema covardia.
Combates seguintes sucederam-se e
ganharam repercussão, levando o capitão-mor
da capitania, Manuel Francês, a tomar
providências. O responsável pelos destinos do
Ceará, em meados de 1725, ordenou os dois
coronéis a largarem as anuas, sob ameaça de
pena de morte e confisco de bens. Até ali,
estimavam-se em mais de 400 os mortos,
Francês determinou ainda que “tubarão”
regressasse imediatamente a Aquiraz (este,
contudo, temendo ser preso, preferiu
abandonar o cargo de ouvidar e fugir para a
Bahia). Só assim a guerra teve diminuída a
intensidade, embora, vez ou outra,
acontecessem confrontos eventuais com
muitas vítimas.
Instalou-se um processo para apurar as
responsabilidades do ocorrido (para custear as
despesas de tal processo, aliás, foram
confiscadas seis léguas de terra de Lourenço
Feitosa), não tendo resultado efetivo. Os
latifundiários ficaram impunes, como se nada
tivesse acontecido. Os únicos, ao nosso ver,
que sofreram alguma punição, foram os índios
envolvidos no confronto, obrigados a deixar o
Ceará (para não mais serem usados pelos
coronéis). Os Montes, segundo registram os
antigos historiadores, saíram da contenda
empobrecidos e dizimados, enquanto os
Feitosas continuaram fortes e a exercer seu
poder nos anos seguintes.
O processo de colonização do Ceará,
como de todo o Brasil, apresentou um grande
perdedor: o índio, vítima de uma insana
destruição física e cultural. Os nativos,
sobreviventes à “ação civilizadora e cristã” do
branco, acabaram marginalizados pela
sociedade, ‘passando a ser denominados de
caboclos como se simplesmente tivessem
desaparecidos por completo ou miscigenados
com outros grupos étnicos - vindo daí o falso
mito de que o Ceará era “um estado onde não
havia índios”.
Mas eles não desapareceram! Eles
existem! Hoje, seus descendentes, como os
Tremembés (em Almofala -ltarema), os
Genipapos e Canindés (em Lagoa da
Encantada - Aquiraz), os Paiacus (em Aquiraz
e Pacajus), os Pitagarys (em Maranguape), os
Tabajaras (em Viçosa) e os Tapebas (estes
originários do convívio entre Cariris, Potiguares
e Tremembés em Caucaia) lutam pelo
reconhecimento e preservação de sua
identidade e patrimônio cultural, além de
exigirem, com toda razão, a demarcação I de
terras historicamente a eles pertencentes.
Cinco séculos após a invasão portuguesa, a
resistência indígena continua.
179
HISTÓRIA DO CEARÁ
HISTÓRIA DO CEARÁ
AULAS
07 e 08
⊗ Catequese e aldeamento
“A história dos povos indígenas que
povoaram nosso solo pátrio contém as mais
preciosas lições. O índio não é um ‘selvagem’;
ele não é um ser inferior; é, antes, uma criatura
humana de riquezas espirituais e culturais a
nós desconhecidas, porque, no decurso dos
séculos, não soubemos olhá-lo a não ser com
olhos de adversário. Índio não é aquele que
deve morrer; é aquele que deve viver. Há toda
uma dívida a ser resgatada por nós cristãos no
século XX.”32 (o. Aloísio Lorscheider, ex-
arcebispo de Fortaleza)
4.1 FÉ, REI E ESPADA
A Igreja católica e Portugal estiveram
intimamente ligadas no processo de
colonização do Brasil, ainda que, em alguns
momentos, entrassem em conflito. No período
colonial, a Igreja dividia-se em cleros secular e
regular. O primeiro (bispos, padres, vigários)
cuidava das paróquias, das vilas e estava
encarregado de ministrar sacramentos, tais
como: confissão, batismo, casamento e
eucaristia à generalidade dos habitantes, uma
vez que todos eram obrigados a ser católico.
O clero regular constituía-se aquele das
ordens religiosas, como os jesuítas,
franciscanos, carmelitas e beneditinos, que se
responsabilizavam pela educação e pela
catequese dos índios e colonos. Dessas
ordens, destacou-se mais no Brasil a
Companhia de Jesus, dos padres jesuítas.
Essa companhia foi fundada em 1540, por
Inácio de Loyola, na chamada contra-refoma,
movimento da Igreja católica que visava a
combater por todos os meios os protestantes.
Os padres dessa ordem foram os principais
responsáveis pela introdução do cristianismo
na América.
Grandes proprietários de terra, os
jesuítas recusavam-se a pagar impostos,
entrando em choque com o fisco luso. Por
serem contra a escravidão dos silvícolas,
também se conflitaram com os colonos,
embora fossem grandes exploradores do
trabalho indígena. Para eles, o Novo Mundo
era o paraíso terrestre, habitado por índios
inocentes, de alma pura, mas que, com sua
ignorância e costumes “bárbaros”, estavam no
caminho do Satanás. Para evitar tal fim,
bastava-lhes a conversão ao cristianismo. De
modo contrário, os jesuítas e a Igreja apoiaram
a escravidão do negro.
4.2 A “MISSÃO”
A atuação das ordens religiosas esteve
voltada, sobretudo, para a cristianização dos
silvícolas. A princípio, tentaram catequizá-los
de forma pacífica, atraindo-os com danças,
180
HISTÓRIA DO CEARÁ
cantos, presentes e longas pregações. Isso,
contudo, não apresentou resultados positivos.
Os índios preferiam ouvir seus antigos líderes
espirituais, os Pajés, mantendo, assim, suas
estruturas sócio-culturais, para “irritação” dos
catequistas, que as tinham como obras
demoníacas, fanáticas e supersticiosas.
Em pouco tempo, os evangelizadores
concluíram que a catequização só se tornaria
eficaz caso as lideranças indígenas fossem
afastadas; e a solução para tal feito foi adotar o
método dos aldeamentos.
Os aldeamentos, também chamados de
missões, constituíam-se espécies de aldeias
artificiais, militarizadas, para onde os silvícolas
eram conduzidos no intuito de serem
doutrinados e convertidos – muitas vezes a
força - ao catolicismo. Tinham tais
aldeamentos, teoricamente, o comando
absoluto de um missionário, mas, na prática,
estavam sob a influência das autoridades
coloniais. Formadas a partir da concessão pelo
governo de uma légua quadrada de terra aos
gentios, que se visava a catequizar, esse
método foi inicialmente aplicado na Bahia em
1556, propagando-se depois para outras
regiões do Brasil, como o Ceará.
O catolicismo, se comparado à religião
politeísta dos aborígines, é recente no Ceará.
Chegou com o desenvolvimento da
colonização, com os criadores de gado muito
religiosos. Para sua expansão, contudo, foi
fundamental o trabalho de ordens religiosas
tais quais as dos jesuítas. Após o fracasso da
expedição dos padres Francisco Pinto e Luís
Figueiras, os membros da Companhia de
Jesus voltaram às terras cearenses na
segunda metade do século XVII, com o
objetivo prático de “amansar” os índios da
região da Ibiapaba, em particular, os
Tabajaras, que se opunham radicalmente à
penetração do homem branco. Como se viu no
capítulo anterior, após fracassadas tentativas,
os missionários atingiram suas pretensões, ao
fundar em 1695 o aldeamento de Nossa
Senhora da Assunção da Ibiapaba, atual
Viçosa do Ceará.
Ainda no século XVII e, principalmente,
no seguinte, os jesuítas fundaram outras
missões, também hoje cidades destacadas
como as de Parangaba (depois chamadas de
Arronches e, novamente, Parangaba), Caucaia
(em seguida denominada Vila Nova de Soure
e, mais uma vez, Caucaia), Paiacu (depois
Monte Mor Velho, Guarani e, na atualidade,
Pacajus), Paupina (atual Messejana), Monte
Mar Novo (hoje Baturité), Telha (Iguatu),
Miranda (Crato) e Aracati Mirim (Almofala).
A fundação de aldeamentos interessava
ao governo português, pois era esse método a
chave para um povoamento branco menos
obstacu/arizado, quer dizer, o índio “civili_ado”
era um nativo que deixava de opor-se,
intransigentemente, ao avançar dos colonos
em suas terras.
Além disso, o nativo evangelizado podia
servir como mão de obra semi- servil, ou
mesmo escrava, em diversos tipos de
trabalhos, além de atuar como soldado nas
guerras contra os aborígenes ainda
181
HISTÓRIA DO CEARÁ
“selvagens” - daí porque freqüentemente os
aldeamentos funcionavam cama bases
militares, onde se preparava a guerra contra
tais índios bravios (como os nativos não
possuíam uma unidade política, era fácil
instigar uma nação contra outra).
No aldeamento, vigorava uma rígida
disciplina. O sino da igreja marcava os
horários. De início, por volta das 5 horas, as
mulheres eram reunidas para orações e
sermões dos padres, sendo posteriormente
enviadas para o cultivo da terra, ou para o
preparo de roupas, ou ainda para os afazeres
domésticos. Feito o desjejum, os homens iam
para o trabalho (geralmente a agricultura ou
pecuária), enquanto as crianças eram
chamadas para aulas de leitura escrita e
doutrina religiosa.
Depois do almoço, em tomo das 16
horas, o sino tocava anunciando o fim do
trabalho; servia-se o jantar e se fazia a oração
diária do rosário. Ao anoitecer, chamavam-se
os homens para a doutrinação. Qualquer
insubordinação era duramente punida, daí o
porquê de os aldeamentos possuírem
instrumentos de tortura, como o tronco, para
prender os indisciplinados, o pelourinho, para
açoites públicos e mesmo, em casos graves,
penas de mutilações físicas.
Embora combatessem o genocídio e a
escravidão indígena - pontos positivos de seu
trabalho, os jesuítas contribuíram
enormemente para a destruição cultural
(etnocídio) dos silvícolas, à medida que
substituíam a centenária vida social destes por
uma outra, “branca”, preconceituosa,
intolerante, maniqueísta, pretensamente
civilizada, que condenava a nudez, a
poligamia, a religião politeísta, as casas
coletivas, enfim, a vida livre e diferente.
Mas a Igreja católica do Brasil colonial
também era instituição ligada à classe
proprietária. Prova é que as Ordens dos
jesuítas e dos franciscanos estavam entre os
grandes latifundiários do Nordeste,
controlavam inúmeros índios (mão-de-obra
gratuita) e, ao mesmo tempo, vários currais de
gado, em grandes extensões de terra,
geralmente ao longo de rios, como os
cearenses: Jaguaribe, Choró, Pacoti,
Aracatiaçu, Acaraú e Coreaú.
Aliás, foram os poderes econômico e
político da Igreja que levaram o Ministro
português Marquês de Pombal a expulsar os
jesuítas do Brasil em 1759. A partir daí, os
aldeamentos foram convertidos em vilas, que,
administradas por um diretor, tiveram os
inacianos substituídos por padres seculares,
muitos dos quais grande, senhores de terra,
inimigos “naturais” dos índios.
Á luz da história, o método de
aldeamento foi um fracasso. Os gentios
morriam em grandes quantidades, devido em
contato com as doenças trazidas pelos brancos
e pelo próprio regime de trabalho forçadamente
estabelecido. Além disso, tratava-se de impor a
182
HISTÓRIA DO CEARÁ
doutrina, a obediência e a submissão ao
catolicismo. O resultado foi a destruição sócio-
cultural do índio, sua destribalização,
descaracterização e massificação, de tal sorte
que o nativo dificilmente poderia resistir ao
avanço do conquistador.
4.3 ANDANDO PELOS SERTÕES
Outra ordem religiosa, presente no
Ceará colonial, foi a dos franciscanos ou frades
capuchinhos, que passaram a entrar
casualmente no Brasil, na segunda metade do
século XVII. O momento máximo de atuação
no Nordeste deu-se entre os anos de
1709 e 1742, quando da chegada de vários
capuchinhos italianos e franceses. Trouxeram
uma novidade no processo evangelizador, as
chamadas Santas Missões, espécies de
missões móveis. Ressalte-se que, após a
expulsão dos jesuítas, esse método foi
praticamente o único existente, embora os
capuchinhos hajam dirigido aldeamentos, como
o de Miranda, onde foram “domesticados” os
índios Cariris.
As Santas Missões estabeleciam-se em
um local por dez ou doze dias; as viagens não
eram planejadas, indo um missionário para
onde fosse convidado, seja uma vila, seja urna
fazenda. Quem o convidasse deveria pagar a
viagem, a alimentação e a hospedagem. Essa
nova forma de evangelização se tornou um
sucesso, fato comprovado pelo expressivo
número de pessoas que seguiam os padres
quando do deslocamento destes de uma região
para outra.
Nas Santas Missões, o franciscano
confessava a todos e depois fazia pregações,
geralmente falando de penitência, de
sacrifícios, de dor, de sofrimento pelos
pecados - marcando, assim, profundamente a
visão religiosa de nosso povo.
Note que, com esse método de
evangelização, o trabalho com os índio foi aos
poucos sendo negligenciado e, finalmente,
abandonado; os nativos, assim, não
encontraram mais quem (bem ou mal)
defendesse seus interesses.
Depois, em 1850, já no Segundo
reinado, foi baixada a Lei de Terras, a qual
obrigava o registro em cartório da posse de
qualquer terra do País, Ora, os índios lá
sabiam o que era isso! - muitos nem se. Quer
falavam português! Foi-lhes mais um duro
golpe. Os nativos começaram a sofrer
espoliação por parte de grilheiros, que se
apoderavam das sesmarias indígenas,
expulsando os índios das terras.
Nas santas missões havia todo um
clima de festa, desde a recepção e entrada do
missionário, buscado por grande número de
cavaleiros em procissão, até a festa do
encerramento pomposo, último dia da missão.
O vaqueiro era um homem solitário, visto que
seu patrão vivia nas cidades do litoral e seu
vizinho mais próximo ficava a 3 ou 4 Km de
distância, devido ao tamanho das fazendas.
Assim, quando os padre visitavam o lugarejo,
era momento de celebrações (casamentos,
batismos etc.) e de alegres encontro dos
183
HISTÓRIA DO CEARÁ
sertanejos embora muitos colocassem em
primeiro plano as cachaças, as mulheres e a
prestação de contas com os inimigos.
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  • 1. HISTÓRIA DO CEARÁ HISTÓRIA DO CEARÁ AULAS 01 e 02 ⊗ Início da ocupação ⊗ As tentativas de conquistas ⊗ O fundador do Ceará O INÍCIO DA OCUPAÇÃO O nome Ceará, que passou do rio à capitania, em 1799, à província em 1822, ao Estado, em 1889, é de origem incerta, sendo freqüentemente escrito no Século XVII com s., Seará, Siará, Syará e depois Ciará e Ceará. Manuel Aires do Casal apresenta como palavra do idioma indígena Ciará, ‘Canto da Jandaia’. Conforme o romancista José de Alencar, deriva do Tupi Cemo, ‘cantar forte’, de Ara, ‘pequeno periquito’. Outra hipótese considera-se como provindo de suiçara, ‘abundância de caça’. Para o historiador João Brígido, Ceará seria uma deturpação do Tupi Ciri-Ará, significando Ciri, no idioma Guarani, ‘andar para trás’, e Ará, ‘branco’, ‘alvacento’, ou seja ‘caranguejo branco’.] A idéia de uma variação de Saara (deserto africano) como procedência dessa expressão, é também levantada, porém fantasiosa. 1.1 AS TENTATIVAS DE CONQUISTAS Nos 30 anos posteriores a chegada de Pedro Alvares Cabral, no chamado período Pré - Colonial (1500-1530), o Brasil ficou praticamente esquecido por Portugal. Explica- se isso pelo fato de os lusitanos estarem, sobremaneira, voltados para o comércio e o lucro das famosas especiarias orientais, e pela ausência de riquezas minerais no litoral brasileiro. Não obstante, como exceção a esse quadro de abandono, verificou-se a exploração do Pau-Brasil, que se estendia por uma faixa litorânea entre o Rio Grande do Norte e o Rio de Janeiro. O Pau-Brasil, porém, oferecia lucros pequenos se comparados àqueles ganhos com as especiarias, além de que sua exploração não fixava o colono na terra, pois finda a madeira numa área, iam os europeus à outra. Foi apenas a partir de 1530 que Portugal decidiu, definitivamente, colonizar o país. A Coroa portuguesa almejava, assim, não só evitar perder a posse do Brasil para outros povos (ingleses, franceses, holandeses), que assediavam a colônia, mas também tomar esta economicamente viável, uma vez que o comércio das especiarias estava em crise naquele momento histórico. Acontece que o Brasil ocupado do século XVI não passava de pequena porção de terra compreendida entre o litoral de Pernambuco e o Rio de Janeiro, na qual se encontrava a principal atividade econômica desenvolvida pelos lusitanos na colônia: o cultivo da cana-de-açúcar. 155
  • 2. HISTÓRIA DO CEARÁ Logo se conclui que, no século XVI, ficou o Ceará praticamente esquecido pela Coroa portuguesa. E por qual razão isso ocorreu? Autores apontam razões como as correntes aéreas e marítimas - que dificultavam o acesso à costa cearense -, a oposição dos índios à presença do invasor português, a aridez do clima e até a presença constante de estrangeiros na região, impedindo a chegada dos portugueses. O motivo principal, contudo, foi a falta de grandes atrativos econômicos. O Ceará não dispunha de ouro ou prata, não servia para o plantio em larga escala de cana- de-açúcar, não tinha especiarias e suas riquezas (âmbar, algodão nativo, sal, pau- violeta, macacos e papagaios) não despertavam, com intensidade, a cobiça da metrópole, uma nação mercantilista, voltada essencialmente para o lucro e para o acúmulo de metais preciosos. A maior prova do abandono cearense, no primeiro século da ocupação lusa, aconteceu ao criar-se o sistema de capitanias hereditárias em 1534. O donatário do “Siará Grande”, 2 Antônio Cardoso de Barros, nunca se interessou pela concessão destas terras onde jamais pôs os pés, embora tivesse ocupado o cargo de provedor-mor da Bahia no governo-geral de Tomé de Sousa. Cardoso de Barros, inclusive, faleceu em 1556, ao lado do primeiro bispo do Brasil, dom Fero Fernandes Sardinha, devorado pelo índios. Caetés, após um naufrágio na costa de Alagoas. É inegável, por outro lado, que muitos aventureiros estiveram no Ceará nesse período, praticando escambo com os índios, trocando machados, foices, tesouras, tecidos, quinquilharias etc., por produtos nativos. Um desses aventureiros esteve em terras cearenses antes mesmo de Cabral ter “descoberto” o Brasil na Bahia em abril de 1500. Foi o espanhol Vicente Yanez Pimon, experiente navegador e antigo companheiro de Cristóvão Colombo na viagem à América em 1492. Pinzon visitou o Ceará em fevereiro de 1500, provavelmente no Mucuripe, em Fortaleza, e na Ponta Grossa no município de Aracati. Esse fato, inclusive, na visão de alguns historiadores, teria feito do Ceará o “verdadeiro” local do “descobrimento” do Brasil. Seria apenas no século XVII que o governo luso espanhol (estávamos na época da União Ibérica) iniciaria a ocupação do litoral setentrional do Brasil e, em particular, do cearense. Tal ocupação fez-se por razões estratégico-militares; ocupar-se-ia o Ceará para proteger o território contra a ação de estrangeiros, sobretudo de franceses, que chegando a fundar uma colônia na região (a denominada França Equinocial, no Maranhão) ameaçando as posses ibéricas, bem como para estabelecer um ponto de apoio logístico para a conquista do litoral norte da colônia, ainda não ocupado produtivamente. Dessa forma, em 1603, houve a primeira tentativa oficial de ocupação do Ceará, com o açoriano Pelo Coelho de Sousa. Este obteve de Diogo Botelho - 8 Governador-Geral do Brasil - a patente de capitão-mor e o direito de organizar uma bandeira na pretensão de 156
  • 3. HISTÓRIA DO CEARÁ explorar o rio Jaguaribe, combater os piratas estrangeiros, descobrir minas e “oferecer” paz aos índios. Partindo da Paraíba, à frente de 200 índios “mansos” (Vá submissos ao conquistador) e de 65 soldados (entre os quais o jovem Martim Soares Moreno), Fero Coelho atingiu pelo litoral a serra de lbiapaba, onde travou combate contra os índios tabajaras e alguns franceses, então aliados. Derrotando os adversários, Pero Coelho tentou seguir para o Maranhão, mas só atingiu o rio Parnaíba (Piauí) pois seus homens, cansados, maltrapilhos e famintos recusaram- se a prosseguir a viagem. De retomo ao litoral, o capitão-mar fundou, às margens do rio Ceará, o forte de São Tiago e o povoado de Nova Lisboa, chamando a área de Nova Lusitãnia. Ficou ali pouco tempo. Os índios, ressentidos com o comportamento brutal dos “civilizados” europeus, passaram a atacar o Fortim. Pero, então, retirou-se para o rio Jaguaribe, cons- truindo nas margens deste o forte de São Lourenço. Contudo, a pesada seca de 1605 a 1607 (a primeira registrada pela historiografia local) e os persistentes ataques indígenas levaram Pero Coelho a deixar o Siará em dolorosa caminhada, na qual pereceram de fome e sede alguns soldados e seu filho mais velho. Dirigindo-se ao forte dos Reis Magos no Rio Grande do Norte e depois Paraíba e Europa, Pero Coelho faleceu em Lisboa, pobre, após tentar cobrar de Portugal os pagamentos pelos serviços prestados nas terras cearenses. Fracassava, assim, a tentativa pioneira de ocupação do “Siará Grande”. Outra tentativa de ocupação ocorreu em 1607, com os padres jesuítas Francisco Pinto e Luís Figueiras, que pretendiam catequizar os silvícolas locais - isto interessava às autoridades . metropolitanas, na medida que “ameaçava” os nativos e indispunha estes com os estrangeiros e piratas que abordavam a região. Partindo de Pemambuco em janeiro daquele ano, os inacianos dirigiram-se de barco para a foz do rio Jaguaribe, acompanhados de 60 índios já “catequizados”. Desembarcando no Jaguaribe, seguiram pelo litoral, a pé, rumo a Ibiapaba. Muitos dos nativos desta serra, aterrorizados com as brutalidades praticadas por Pero Coelho, haviam migrado para o. Maranhão; mesmo assim, os religiosos iniciaram. o trabalho catequético, até que, em janeiro de 1608, foram atacados pelos índios Tacarijus. Francisco Pinto acabou trucidado pelos nativos, enquanto Luiz Figueiras conseguiu fugir, dirigindo-se para ribeira do rio Ceará e, depois, para o Rio Grande do Norte. Posterionnente relatou sua empreitada em Relação do Maranhão, o primeiro texto escrito sobre o Ceará. Figueiras, todavia, não foi muito feliz no relacionamento com os nativos brasileiros. Anos depois, em 1643, vítima de um naufrágio na Ilha de Marajó, foi morto e devorado pelos índios Aruãs. 157
  • 4. HISTÓRIA DO CEARÁ 1.2 MARTINS SOARES MORENO: O “FUNDADOR DO CEARÁ”. Na visão dos historiadores tradicionais, Martim Soares Moreno constitui-se o grande conquistador do Ceará. Martim Soares Moreno nasceu em Santiago do Cacém, Portugal, em 1585 ou 1586, vindo para o Brasil como soldado do Governador-Geral Diogo Botelho. Em 1603, como visto, acompanhou Pero Coelho na fracassada bandeira deste, fazendo, não obstante, amizade com os índios locais (em particular, com o chefe potiguar Jacaúna), aprendendo os dialetos dos aborígenes e familiarizando-se com costumes nativos. O ano de 1609 encontraria-o como tenente c do forte dos Reis Magos, no Rio Grande, fazendo incursões pelo litoral cearense, combatendo traficantes. Em fins de 1611, acompanhado de um padre e de seis soldados, regressou ao Ceara para efetivar a posse a capitania, fundando na barra do rio Ceará, com ajuda dos índios de Jacaúna, um pequeno forte - o de São Sebastião. Segundo o próprio Moreno, ali chegou a degolar mais de duzentos piratas franceses e holandeses, tomando-lhes três navios. Em 1613, Moreno foi convocado para combater a França Equinocial, no Maranhão, ao lado de Jerônimo de Albuquerque, que já havia se destacado na conquista do Rio Grande. Ficou o forte de São Sebastião entregue ao comando de Estevão de Campos. Pretendendo estabelecer uma base de operações, Albuquerque construiu em Jericoacoara um fortim - o de Nossa Senhora do Rosário -, enviando Moreno para averiguar as posições francesas no Maranhão. O barco do conquistador cearense, porem foi destruído sendo levado por fortes ventos para a ilha de São Domingos no Caribe. Dali, Moreno seguiu para Sevilha, Espanha, de onde, em 1614, remeteu às autoridades coloniais os informes colhidos nas terras maranhenses. Nesse meio tempo, Jerãnimo de Albuquerque, deixando o forte de Jericoacoara nas mãos de quarenta soldados, regressou a Pernambuco, enquanto os homens do forte de São Sebastião enfrentavam e derrotavam mais de duzentos franceses comandados por Du Pratz, que tentavam conquistar aquela posição do rio Siará. Martim Soares Moreno retomou ao Brasil em 1615 e, novamente, foi combater os franceses no Maranhão. Adoecendo, procurou voltar para o Ceará, contudo, mais uma vez, um forte temporal levou sua embarcação para São Domingos, de onde seguiu para a Espanha. No meio do percurso, seu navio foi interceptado por corsários da França; mutilado de uma mão e muito ferido, Soares Moreno acabou preso e conduzido à Europa, passando cerca de 10 meses nas prisões francesas. Condenado à pena capital, só não foi morto devido à interferência do embaixador espanhol, Duque de Montelion. Liberto, Moreno escreveu a Relação do Ceará, outro importante documento sobre a terra cearense. 158
  • 5. HISTÓRIA DO CEARÁ Em Portugal, no ano de 1619, a Coroa conferiu-lhe o título de capitão-mor do Ceará por 10 anos, o ordenado anual de 400 cruzados e a posse de 2 léguas de terras cearenses. Retomando ao “Siará” em 1621, encontrou o forte de São Sebastião quase destruído. Remodelou o que foi possível, tentando desenvolver a economia local, incentivando a pecuária e o cultivo de cana-de-açúcar. Nos anos seguintes, tornaram-se constantes os seus apelos às autoridades lusas no sentido de obter ajuda para viabilizar a colonização. Tudo inocuamente. Em 1631 terminando seu prazo como capitão mor e cansado da falta de recursos e da pouca atenção da Metrópole, retirou-se definitivamente do Ceará (o comando do forte ficou com seu sobrinho, Domingos da Veiga). Foi para Pemambuco - combater os holandeses, que então ocupavam o Nordeste do Brasil- e depois, em 1648, já velho, para Portugal. Não se sabe quando faleceu, mas o certo é que não mais retomou ao Ceará. Mesmo assim, Martim Soares Moreno é tido pela maioria dos historiadores como” fundador” do Ceará, sendo até mesmo lembrado na obra Iracema de José de Alencar como o guerreiro branco Martim. Mas seria mesmo Soares Moreno o fundador do Ceará?! Pode-se contemplar uma só pessoa com tal título? Será que Moreno, parafraseando Bertold Brecht, não teve alguém que o ajudou a erguer os fortes, a navegar, a cozer os alimentos?! Como conceder a uma pessoa a premissa de fundador de uma terra já anteriormente habitada pelos índios?! Admitir isso seria negar os povos, as sociedades, as culturas aqui existentes. Preferimos vê-Io como o conquistador maior, o plantador da semente invasora européia, do genocídio dos nativos. 1.3 – A PRESENÇA HOLANDESA NO CEARÁ. Os holandeses invadiram e ocuparam o Nordeste brasileiro duas vezes: na Bahia, entre 1624 e 1625, e em Pernambuco, no período de 1630 a 1654. Seus objetivos, formulados pela Companhia das Índias Orientais eram de controlar a região produtora de cana-de-açúcar e, evidentemente, conseguir outras riquezas. Assim, após serem expulsos da Bahia, conquistaram Pernambuco, estendendo seu domínio para outras capitanias como Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e o Ceará. A ocupação do Ceará deu-se, ao que parece, não apenas para explorar riquezas, mas também para servir de apoio à manutenção de Pernambuco, o grande centro produtor da cana-de-açúcar no período colonial. 159
  • 6. HISTÓRIA DO CEARÁ Em 1637, no mês de outubro, 126 homens, comandados por George Gartsman, desembarcaram no Mucuripe, dirigindo-se para o forte do rio Siará na companhia de diversos índios, agora já em plena animosidade com o branco português. O fortim de São Sebastião, ocupado por 33 soldados sob as ordens de Bartolomeu Brito, logo caiu ante a força dos atacantes flamengos. Estava, portanto, temporariamente desfeito o império luso no Ceará. No Fortim conquistado pelos holandeses, ficaram 45 homem liderado por Hendrick Van Ham, enquanto Gartsman conduzia os portugueses prisioneiros para o ‘Rio Grande do Norte. Posteriormente, o comando do Fone passou para Gedeon Morris de Jonge, que logo constatou a existência de poucos atrativos econômicos na terra, senão sal, âmbar e pau-violeta. Com o tempo, observando os índios que as práticas dos holandeses não se diferiam do tratamento brutal a eles aplicados pelos lusitanos, revoltaram-se e, em 1644, invadiram e destruíram o fone de São Sebastião, trucidando todos os flamengos. A terra voltava para seus autênticos donos, os nativos. Mas o branco holandês veio novamente ao Ceará em abril de 1649, agora sob o mando de Matias Beck. Este, na colina Marajaitiba, às margens do rio Pajeú, ergueu o fone de Schoonenborch, homenagem ao então Governa-dor do Brasil-Holandês. Ao tempo em que penna-neceu no Ceará, o comandante holandês escreveu o que seria o ter-ceifo documento da historiografla local, o Diário de Matins Beck. Após inúteis buscas de minas de prata em ltarema e na serra da Ibiapaba, e com a expulsão dos holandeses de Pernambuco em 1654, Beck retir-ou-se do Ceará em maio do mesmo ano. Em conse-qüência, os portugueses, através do capitão-mar Álvaro de Azevedo Barreto, retomaram a colonização, mudando o nome de forte de Schoonemborch para Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, em tomo da qual depois se desenvolveria a cidade de Fortaleza. Desligado do Estado do Maranhão,4ao qual estivera sujeito desde 1621, o Ceará, a panir de 1656, passou a subordinar-se a Pemambuco, situação mantida por 143 anos, até 1799, quando se tomou capitania autônoma. Mesmo depois efetivado o domínio luso, continuou o Ceará seu acanhado desenvolvimento em volta do pequeno forte [u.] O retardamento do progresso da capitania não se deveu apenas à incapacidade administrativa dos capitães-mores, às desavenças entre as autoridades e à pobreza financeira das Cdmaras e dos Cofres Reais. Deveu-se, muito mais, às condições 1ft ortkm geral a que estava sujeito Pernambuco, a capitania 1ft quem dependeu política e economicamente, de 1656 a 1799. O pequeno número de povoadores presos ao litoral não se animava a investir contra o sertão dominado pelo silvícola agressivo e indomável, sempre pronto a repelir o invasor à flecha e tacape, em defesa de sua 160
  • 7. HISTÓRIA DO CEARÁ gleba; a bicharada lwstil e a ecologia desconhecida aterrorizavam o lwmem branco, prendendo-o cada vez mais à orla marítima. A ocupação do interior cearense, contudo, aconteceria a partir (mais ou menos) do último quartel do século XVII, com a penetração e o desenvolvimento da pecuária nos sertões nordestinos. HISTÓRIA DO CEARÁ AULAS 03 e 04 ⊗ A Economia cearense na colonia ⊗ 2.1 – AONDE O BOI VAI, O HOMEM VAI ATRÁS... No capítulo anterior vimos que o “ingresso” do Ceará na história do Brasil deu- se tardiamente, apenas no século XVII, com o levantamento de construções militares no litoral. Mas, conquistado o Norte, até o Amazonas, expulsos franceses e holandeses, o Ceará, incorporado à administração de Pernambuco, seguirá, até o final do século, entregue à sua própria sorte, sediando apenas uma pequena guarnição militar cuja tarefa consistia em provar simbolicamente o domínio português [...] Tal quadro mudaria mais ou menos a partir do último quartel do século XVII e, com maior intensidade, no início do século seguinte, quando verificou-se, de forma definitiva, a ocupação interior cearense, o que se deu em função da pecuária - daí a razão de afinar-se que o interior foi ocupado economicamente antes do litoral. Conforme relata a historiográfica brasileira, a pecuária constituía-se, no período colonial, de atividade econômica secundária e complementar da cana-de-açúcar, cujo cultivo se dava’ sobretudo no litoral, na zona da mata nordestina. Tinha o boi a função de fornecer carnes, força de tração e transporte para a região produtora de açúcar. Com o tempo, porém, o gado passou a ser conduzido para o interior do Nordeste, possibilitando, assim, a ocupação deste. E por que o boi e o homem foram para os sertões? Por motivos como a crise político – econômica lusa, agravada com a União Ibérica, que fez diversos portugueses emigrarem para o Brasil, em direção ao interior nordestino, uma vez que não existia terras no litoral para todos; e o aumento do número de reses e a necessidade de mais áreas na wna da mata para o cultivo da cana. Não se pode dissociar este fato [o povoamento interiorano] da expedição de uma carta, por D. Pedro II de Portugal em 1701, na qual proibia a criação de gado a menos de 10 léguas da costa, a fim de que se respeItassem as terras litorâneas, para o plantio da cana-de- 161
  • 8. HISTÓRIA DO CEARÁ açúcar. Com esta medida legal, o Rei oficializou a política de interiorizar a pecuária. A penetração e ocupação do sertão nordestino - e por extensão, do interior do Ceará - aconteceu, conforme esquema clássico de Capistrano de Abreu, a partir de duas rotas de povoamento: a do Sertão de Fora, dominada por Pernambucanos, vindo pelo litoral, saindo de Pernambuco em direção ao Maranhão, e a do Sertão de Dentro, controlada por baianos, vindos pelo interior, abrangendo a região que vai do médio São Francisco ao Rio Parnaíba (PI). Nesse processo de colonização, o grande perdedor foi o índio, exterminado impiedosamente diante do avanço branco, quando não, escravizado. Com efeito, fez-se instantânea a reação do nativo, como na chamada “Guerra dos Bárbaros”, quando por mais de 30 anos (entre o último quartel do século XVII e a segunda década do século XVIII), os verdadeiros donos das terras resistiram e lutaram contra a presença do europeu invasor, até serem implacavelmente derrotados, chacinados e disseminados. Não dava para vencer a superioridade bélica do conquistador “civilizado”. A terra era conseguida gratuitamente, bastando serem requisitadas sesmarias às autoridades coloniais. O governo português, dessa maneira, estimulava a ocupação dos sertões, uma vez que estaria não só garantindo seu domínio sobre terras há tanto possuídas e não ocupadas, mas também o entesouramento, com a cobrança de impostos sobre o gado, o couro, «carne e tudo mais que pudesse ser gerado com a ocupação produtiva da Região por conseguinte, mediante à profusão de terras concedidas pela coroa, grandes latifúndios se formaram, mercê do sistema das sesmarias. As datas variavam de tamanho, havendo-as de 5, 10 e 20 léguas em quadra, que podiam ser concedidas a alguém beneficiado com outras precedentemente. Só em 1753 foi proibida a concessão de sesmarias a quem houvesse recebido outras anteriores [...] No Ceará, as primeiras doações de sesmarias para a pecuária datam, conforme Raimundo Girão, do período entre 1678 e 1782, nas imediações do Rio Jaguaribe, no sentido de Aracati para o Sul. Aliás, a colonização fez-se, sobretudo, margeando os rios, em particular aqueles com maior volume d’água, que serviam de caminhos naturais para a penetração. Nos 30 anos iniciais do século XVIII, grandes áreas estavam ocupadas produtivamente, havendo uma grande concentração ao longo do Jaguaribe e de seus afluentes maiores - Salgado, Banabuiú e Quixeramobim, uma menor junto ao Acaraú e outra, mais reduzida, ao longo do Coreaú. Uma extensa área, compreendida entre os dois maiores rios, parcialmente fechada ao Sul pelo Quixeramobim, teve uma ocupação incipiente. De difícil acesso pelo interior, esta área sofreu uma ocupação rarefeita em relação às demais e só iria figurar na história econômica do Ceará no período de expansão da agricultura, entre 162
  • 9. HISTÓRIA DO CEARÁ fins do século XVIII e começo do seguinte. O gado adaptou-se bem à caatinga; para expansão pecuarista, contribuíram fatores como as vastas extensões, as abundantes pastagens, o caráter salino do solo, a própria facilidade na aquisição das sesmarias, a exigência de pouco capital para o estabelecimento das fazendas, além do fato de que, o gado, na hora da comercialização, dispensava as despesas com transporte, pois consistia num produto que se auto transportava - daí a afirmação segundo a qual o boi era mercadoria, transporte e frete. Para a montagem da fazenda bastava a compra de algumas reses e a construção de uma casa simples, geralmente feita de taipa e coberta de palha, vez que a mão-de-obra básica - os vaqueiros - além de numericamente reduzida, era paga não com dinheiro, mas com cabeças de gado, no sistema de “quartiação”, ou seja, de cada quatro bezerros nascidos anualmente, um pertencia ao vaqueiro. Os vaqueiros, vestindo roupa de couro e montados em cavalos escolhidos, pastoravam o gado. Símbolo mais fiel do Nordeste, era merecedor de respeito e admiração, em razão da superioridade que lhe conferia o conhecimento da terra, do rebanho, dos métodos de criação etc. Poderia, com o tempo, devido ao sistema “quartiáção”, tomar-se dono de fazenda. O pastoreio, com relativa liberdade no trabalho facilitou o uso dos índios “domesticados” (já submissos aos dominadores) pouco se empregou a mão-de- obra negra escrava. Esta era utilizada principalmente no labor doméstico das fazendas. Havia certa incompatibilidade da escravidão com a pecuária, devido a grande mobilidade espacial da atividade, que permitia ao cativo fácil fuga. De mais a mais, não se pode relegar ao esquecimento a falta de recursos para a compra do africano e a pouca necessidade de mão-de-obra nas fazendas. Os vaqueiros eram os responsáveis diretos pelas coisas da fazenda, vez que os proprietários dos latifúndios quase sempre residiam nas áreas litorâneas, onde eram também cultivadores de cana-de-açúcar. Os que viam para o sertão, contudo, instalavam-se em casas enormes, baixas, sóbrias, com. cobertura de telha em duas águas e de vastos alpendres - habitações erguidas para atender as exigência de segurança dos antigos donos de engenhos embora não apresentassem grande conforto ou requinte. Ao lado daquelas fazendas, além do curral para ordenhar do gado, construía-se a casa de farinha, para beneficiar a mandioca e fabricar a farinha, produto este que, ao lado da cama, representava a base alimentar da população rural; a engenlwca (se o ten’eno se prestava ao cultivo da cana) para produção do mel e da rapadura; teares, onde se confeccionavam redes de dormir e tecidos grosseiros de algodão [...]. Ao Jongo do latifúndio, ficavam as miseráveis habitações dos outros moradores da fazenda: mulatos, mestiços, índios 163
  • 10. HISTÓRIA DO CEARÁ “mansos”, pretos forros, brancos, muitos dos quais fugitivos da justiça ou de vinganças pessoais. Próximos a esses casebres - normalmente de taipa, de chão batido, com tetos baixos e de palha - encontravam-se pequenos roçados de subsistência, trabalhados por mulheres e crianças (os homens estavam no pastoreio), que cultivavam milho, feijão, mandioca e até um pouco de algodão para fiação doméstica. Dificilmente se .adquiriam produtos fora da fazenda, aqueles, portanto, tinham caráter auto- suficiente. A fazenda era a unidade econômico- social do a Sertão. Ali, os proprietários - pode- se dizer, os primeiros coronéis - impunham a todos seu mando, dizendo quem deveria viver ou morrer; explorando os camponeses, tomando-os verdadeiros semi-servos e utili- zando-os como jagunços em seus grupos armados. Com o passar do tempo, crescia, continuamente, o número de fazendas, aumentando, em conseqüência, a produção bovina. Como exemplo, basta verificar que o Capitão Félix da Cunha Linhares, morador na Ribeira do Acaraú, no testamento que deixou [u.] datado do Sítio Muritiapuá em 7 de setembro de 1723, declarava-se dono de seis fazendas, nas quais havia de 8.000 cabeças de bovinos, 150 éguas e 50 cavalos. No espólio do Capitão Vitoriano Correia Vieira, de Quixeramobim, inventariado em 1740, figuram 1.150 vacas, 220 bois, 200 boiotes, 160 novilhas, 310 garrotes, 320 garrotas, 150 bezerros e 150 bezerras, no total de 2.260 cabeças. Essa quantidade vultosa opunha-se a diminuta população da capitania. Para se ter idéia, há indícios de que a população cearense em 1775 não passava de 34 mil habitantes. Conclui-se, logo, que a produção de carne excedia a demanda da escassa população, cujo poder aquisitivo era ainda menor. Assim, a princípio, o problema foi solucionado com a venda do gado, vivo, para outras áreas, sobretudo para a região açucareira pernambucana e, em menor grau, para a Bahia e para a área mineradora. As boiadas a serem comercializadas seguiam sertão afora, guiada pelos tangerinos, seguindo as veredas e caminhos sertanejos: A ‘estrada geral do Jaguaribe’, cortando a capitania de Norte a Sul, na banda ocidental colocava em comunicação as áreas de produção ao longo do rio com o médio São Francisco a ‘estrada das boiadas’ interligava a região central Quixeramobim, Boa Viagem, Sobral - com o Piaui, e os caminhos que partiam da banda oriental – Camucim e Acaraú, cruzavam as anteriores, deixando ao largo a zona que abrigava os povoados de Fortaleza e Aquiraz”. Visando satisfazer às próprias necessidades e às do gado, além do auxílio na defesa mútua, muitos tangerinos acordavam locais para encontrarem-se, notadamente nas proximidades dos rios e nos cruzamentos dos caminhos. Esses pousos dos tangedores de 164
  • 11. HISTÓRIA DO CEARÁ gado, em breve, transformaram-se em ranchos e depois, em povoados, hoje importantes cidades cearenses, como os casos de Icó e Quixeramobim. A comercialização do gado, embora lentamente, possibilitou as primeiras mudanças na economia de subsistência da capitania, vez que o boi, além de atender ao consumo da população cearense, tinha o excedente vendido em outros mercados, tomando real a aquisição de produtos importados do exterior ou mesmo de outras regiões da colônia. A venda dos rebanhos para outras capitanias, porém, revelou-se não muito lucrativa. Nas longas caminhadas, o gado emagrecia, a ponto de ficar imprestável para o abate, forçando os proprietários a vendê-Io por baixíssimos preços. Ademais, havia prejuízos decorrentes de assaltos, de ataques de animais selvagens, de perdas e, principalmente, dos altos impostos; situação ainda pior era a das reses do litoral, portadoras de cascos menos resistentes às longas distâncias. Por tais razões, foi que a partir da segunda década do século XVIII, os fazendeiros do litoral passaram a vender sua matéria-prima já industrialmente preparada, reduzida a carne a mantas conservadas pelo sal e capazes de resistir, sem deterioração, a longas viagens. Surgiram assim as fábricas de beneficiamento de carne, as chamadas oficinas, charqueadas ou feitorias, situadas, sobremaneira, no estuário dos grandes rios, onde produziam o charque (igualmente conhecido por jabá ou carne do Ceará), que, pelo resto do século XVIII, se constituiu o principal e quase exclusivo elemento do comércio da capitania. 2.2 PRAZERES DA CARNE SECA Diversas causas facilitavam o fabrico do charque no litoral: os ventos constantes e a baixa umidade relativa do ar favoreciam a secagem do produto, a existência de sal em abundância e o grande rebanho da capitania também contribuíram. Além disso, a técnica, aprendida dos índios, não exigia profundos conhecimentos e nem muito capital, visto serem rudimentares as instalações das oficinas, reduzidas a galpões cobertos de palha, [A] varais para estender a carne desdobrada, salgada, e [A] algum tacho de ferro para a extração de parca gordura dos ossos por meio de fervura em água [...] a courama era estaqueada, seca ao sol; o sebo, simplesmente lavado, posto ao tempo em varas e depois secado, em formas de madeiras cúbicas, produzindo pães de peso variável. A ossamenta era amontoada e queimada e esta cinza tirada pàra aterros, ou servia, empilhada, para fazer mangueiras e cercas. Todas as outras partes do boi não tinham valor comercial e eram atiradas fora. O charque contribuiu para modificar um pouco a face econômica e social do Ceará. Com ele ocorreu uma divisão de trabalho na ca-pitania entre fazendas de criação, oficinas 165
  • 12. HISTÓRIA DO CEARÁ de salgas e pontos de comercialização as boiadas do sertão - como vimos no início - conduzidas para as feiras de Pernambuco e Bahia, passaram a ser deslocadas, então, para o litoral, fazendo com que esta porção territorial e o Sertão interpenetrassem-se comercialmente, e possibilitando o surgimento de um mercado interno. O charque também fez aparecer núcleos urbanos importantes como Aracati, Acaraú, Camocim, Granja e Sobral, bem como diversificou a produção, pois agora, afora a carne, poderiam ser comercializados couros e peles, que até a época da salga inexistiam como mercadoria, dado o insignificante volume de animais abatidos nos limites da capitania. No período colonial, desenvolveu-se no Nordeste, consoante Capistrano de Abreu, uma civilização do couro, visto que este produto foi largamente utilizado tal confecção de diversos artefatos e utensílios, marcando de forma profunda a vida dos camponeses. De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e, mais tarde, a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a maca para guardar a roupa, a mochila para milhar cavalo, a apeia para prendê-lo em viagens, as bainhas de faca, as broacas e os surrões, a roupa de entrar no mato, os burguês para os curtumes ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois, que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz. Também de couro era a mobília (cadeiras de encosto, tamboretes), as cadeiras baixas de estar à almofada de bilros, os baús- guarda-roupa, arabescados de pregaria dourada. Inclusive, a produção do couro em cabelo, solas e atanados, a princípio destinada ao mercado interno, no final do século XVIII passou também a ser exportada para a Europa, para embalar rolos de fumo e para produzir calçados, arreios, selas de montaria etc. Embora não se saiba qual a participação cearense nessas transações (na condição de capitania subalterna, o comércio externo cearense era feito através do porto de Recife ou por contrabando), o certo é que o couro chegou a estar em terceiro lugar no valor estimado das exportações brasileiras. As oficinas de charque instalaram-se inicialmente na região de maior produção, na foz do Rio Jaguaribe, para sernos precisos, no pequeno arraial de São José do Porto dos Barcos, hoje cidade de Aracati. Dali, as charqueadas estenderam-se ao Oeste, insta- lando-se nos rios Acaraú e Coreaú, estendo-se posteriormente para o rio Parnaíba, no Piauí, bem como para Leste, para os rios Açu e Mossoró, no Rio Grande do Norte. Desses rios, o charque era levado em sumacas (embarcações para aproximadamente 80 mil quilos de carne seca) e em outros tipos de barcos para as capitanias da colônia; em particular, para Pernambuco, Bahia e Rio de 166
  • 13. HISTÓRIA DO CEARÁ Janeiro, onde serviria de alimento para os pobres e escravos. A citada Aracaju, de certa forma próxima a Recife e a Salvador, não obstante seu porto de pouca profundidade, prosperou bastante nessa etapa, torna-se, a partIr e mais ou menos do ano 1750, principal núcleo urbano do Ceará - isso em conseqüência não só das charqueadas, mais principalmente da função de entreposto comercial que desempenhava. As boiadas transitavam pelas margens do rio Jaguaribe em direção às oficinas de Aracati, que por sua vez faziam sair os produtos importados (artigos de luxo, manufaturas, ferramentas e até materiais de construção) para abastecer as fazendas interioranas. O progresso de Aracati, o pulmão da economia cearense, fez as autoridades portuguesas elevá-Ia à categoria de vila em 1748, com a denominação de vila Santa Cruz de Aracati. A Coroa lusa pretendia, assim, o controle sobre a produção e a comercialização captaçao e tantos - o que fez, a principio, diminuir as atividades comerciais aracatienses. Os comerciantes, para escapar das garras do fisco lusitano, passaram a recorrer ao contrabando ou a outros portos de embarque, como os situados na ribeira dos rios Acaraú e Pamaíba. Isso, porém, logo foi superado, ganhando a elite da vila destaque na vida econômica, política e social da capitania, sendo Aracati inclusive, cogitada, para sediar a administração do Ceará, fato nunca ocorrido. Como foi dito, do Jaguaribe as oficinas de charque propagaram-se para o rio Acaraú. As primeiras fábricas, aí, foram levantadas no modesto ‘Porto dos Barcos’, afastado cerca de 5 km da barra do rio, onde, no lugar denominaM ‘Outra Banda’, se instalaram outras, [unda-mento do povoado que se adensou com o nome de Oficina, hoje cidade do Acaraú.21 A liderança das charqueadas na região norte da capitania,22 no entanto, ficou a cargo de Sobral, situada na margem esquerda do rio Acaraú. Para o Porto do Acaraú, vindo de SobraL durante a safra, rnmavam as boiadas, os carros de bois cheios de cames, de couro e sola; dali transportados em sumacas, para os principais portos da colônia, principalmente Pemambuco. Os barcos que levavam os produws paswris voltavam trazendo as grandes novidades em pratarias, porcelanas, cristais, móveis de jacarandá e outros objetos raros, entre eles materiais de construção.B Isso contribuiu para o afonnoseamento de Sobral, elevada à condição de vila em 1773 e ainda hoje conhecida como Princesa da Região Norte. Submissa a Recife desde 1701 e grande fornecedora de bois de corte à zona açucareira pernambucana, a capitania do Rio Grande do Norte também passou a produzir charque, fundando feitorias nos rios Açu e Mossoró. Em conseqüência, os fazendeiros potiguares começaram a levar seu gado para o litoral, provocando o desabastecimento de I carne fresca em Recife e proximidades. Na segunda metade do século XVIII, era diminuta a venda de rebanhos do Ceará para Pernambuco 167
  • 14. HISTÓRIA DO CEARÁ (embora continuasse, em particular, os bovinos da região dos lnhamuns) porque os sertanejos preferiam a comercialização em forma de carne salgada - mais lucrativa. Atento a seus interesses, Pernambuco na pretensão de reabastecer a população com carne e manter a arrecadação tributária (afinal, menos boiadas indo para as terras pernambucanas era menos impostos pagos) em 1788 baixou resolução proibindo às charqueadas nos rios Açu e Mossoró. Isso, de ceno modo, ajudou a produção de carne salgada cearense, pois afastava a concorrência none-rio grandense, embora passasse agora a ser alvo de maior fiscalização e controle dos negócios por pane das autoridades coloniais - uma vez que praticamente iria suprir o consumo pernambucano. As oficinas de charque entraram em decadência a partir da última década do século XVIII. A historiografia tradicional cita como causa para tal fenômeno as calamitosas secas de 1777-1778 e de 1790-1793, que teriam reduzido drasticamente os rebanhos nordestinos, tanto que a liderança nacional na produção de carne seca passou para o Rio Grande do Sul. Não se pode esquecer, contudo, uma outra causa dessa ruína: o fato de, a partir do último quartel do citado século, o sertanejo ter passado a dedicar maior atenção a uma atividade agrícola que marcaria profundamente a economia cearense: a cotonicultura, isto é, o cultivo do algodão, produto então bastante procurado no mercado internacional, sobretudo para abastecer as fábricas têxteis da Inglaterra, que vivia sua revolução industrial. No decorrer do século XIX, os rebanhos bovinos recuperaram-se, mas as charqueadas jamais voltaram a possuir a importância de antes. A cotonicultura tornou-se nossa principal atividade econômica. 2.3 - DOCE ALGODÃO O algodão já era cultivado pelos índios antes da chegada do português invasor. Com da economia de subsistência em todo o Brasil, como matéria-prima para fabricação doméstica de tecidos para os mais pobres e especialmente para os escravos; aliás, os fios e rolos de algodão chegaram a ser usados como moeda nas capitanias mais atrasadas, como no Maranhão, Piauí i’no próptio Ceará - eram os Nimbós, abandonados ipenas no início do Século XIX. Todavia, a partir do último quartel do século XVIII, aconteceu um extraordinário aumento do plantio de algodão na colônia - isso em conseqüência das exigências do mercado externo, que requeria o produto para atender a demanda das indústrias têxteis, sobretudo as da Inglaterra, palco maior da revolução industrial. A guerra de independência dos Estados Unidos (1774-83) - então o grande produtor mundial de algodão e principal fornecedor dessa matéria-prima para a Inglaterra, sua metrópole - também contribui para a expansão 168
  • 15. HISTÓRIA DO CEARÁ da cotonicultura brasileira. Esta tinha como destacadas áreas de produção o Maranhão, o Ceará e Pernambuco, e menor grau a Bahia e a Paraíba. Com o algodão rompeu-se o exclusivismo pastoril no Ceará. A base da economia passa a ser assenta.do. na agricultura, com a pequena disponibilidade de capital atraída para o financiamento da referida lavoura de exportação. O clima pouco úmido e a regularidade das chuvas favoreciam a expansão do algodão. A cotonicultura, ao contrário da pecuária e da cana-de-açúcar, foi praticada não apenas em latifúndios, mas também em médias e pequenas propriedades, onde trabalhavam além dos fazendeiros, os moradores, rendeiros e parceiros, espécies de semi-servos modernos. A mão-de-obra algodoeiro seria basicamente a mesma antes usada na pecuária, sendo pouco empregado o negro africano; o ciclo vegetativo do algodão tornava desvantajoso o emprego do escravo africano, que ficava ocioso grande parte do tempo, além de que a facilidade da colheita possibilitava o emprego de mulheres e crianças. Não se pense, entretanto, que o crescimento da lavoura algodoeiro excluiu a atividade pecuarista pelo contrário, acomodaram-se uma a outra para criar os fundamentos de um complexo sócio econômico que iria se consolidar no decorrer do século XIX, dando origem ao denominado binômio gado-algodão. Os grandes núcleos de produção algodoeiro no Ceará eram os distritos de Fortaleza e de Aracati, e as serras de Baturité, Uruburetama, Meruoca, Pereiro e Aratanha. Algumas vilas interioranas, como !có - surgida como pólo de comércio pecuarista, encaminhando os rebanhos para Bahia e Pernambuco - tornaram-se pólos de comércio de algodão. O grande centro coleror do produto, não obstante, seria Fortaleza que, as- sim, começou a surgir como iminente centro econômico e político do Ceará, situação consolidada na segunda metade do século XIX; [u.] o algodão encontra rw porto de Fortaleza o ponto natural de exportaçãD [...] em detrimento dD porto de Aracati, a montante da foz do Jaguaribe é de acesso merws fácil a barcos de maior tonelagem. Com o posterior emprego de navios a vapor, 2.4 OUTRAS ATIVIDADES Desenvolveram-se no Ceará colonial, além das tradicionais lavouras de subsistência (milho, arroz, feijão, mandioca etc.), outras atividades econômicas como a mineração e a cana-de-açúcar. A exploração de minérios na capitania praticamente não obteve nenhum êxito. Após o insucesso aos holandeses em encontrar riquezas em nosso subsolo no século XVII, as ações nesse sentido restringiram-se a rápidas pesquisas e remessas de amostras para 169
  • 16. HISTÓRIA DO CEARÁ exame em Recife e Lisboa. Registram os historiadores tentativas mal sucedidas de encontrar minas de prata na serra dos Cocos e Ibiapaba (Ubajara) , no ano de 1744, e no Vale do Cariri, entre 1756 e 1758, quando inclusive se fundou a Companhia do Ouro das Minas de São José dos Cariris, logo falida Quanto à cana-de-açúcar, sabe-se que Martins Soares Moreno tentou estimular seu cultivo no litoral, no início da colonização, fracassando, sobretudo, devido à impropriedade do solo. O plantio da cana em terras cearenses aconteceu com maior ênfase no vale do Cariri, onde, em modestos engenhos de madeira, se fabricavam açúcar de má qualidade, melaço (mel) e rapadura, uma das alegrias do sertanejo. HISTÓRIA DO CEARÁ AULAS 05 e 06 ⊗ Os índios cearenses OS ÍNDIOS CEARENSE Quem me dera ao menos uma vez, Ter de volta todo o ouro que entreguei A quem conseguiu me convencer. Que era prova de amizade Se alguém levasse embora até o que eu não tinha Quem me dera ao menos uma vez Esquecer que acreditei que era por brincadeira Que se cortava sempre um pano-de-chão De linho nobre pura seda [...] (Índios - Legião Urbana) Quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, este era habitado por cerca de 4 milhões de indivíduos chamados erroneamente de “índios”. O primeiro contato do branco europeu com o nativo foi amistoso; é só lembrar o escambo (troca de produtos). Contudo, na medida que avançavam as atividades colonizadoras, essa relação tomou- se homicida. Ao índio restaram poucas opções; a escravidão, a morte, a expulsão de suas terras ou ainda uma heróica e infrutífera resistência. Dessa forma, começou o genocídio indígena. Milhões foram mortos em nome do capitalismo, do comércio, do lucro, da fé. E o pior de tudo, tentou-se justificar esse holocausto propagando a idéia que o índio era “selvagem, pagão, inferior, indisciplinado, sujo, preguiçoso e que precisava adaptar-se à missão progressista e cristã do branco civi- lizado”. Tais argumentos são apenas desculpas para amparar a destruição física e cultural (etnocídio) do silvícola, o roubo de suas riquezas, a violência sexual, a 170
  • 17. HISTÓRIA DO CEARÁ destribalização. Desses 4 milhões de índios do ano de 1500, restam hoje pouco mais de 150 mil, dispersos pelo país, sujeitos à extrema miséria, a doenças, à exploração de grileiros, de garimpeiros, de multinacionais, perdendo a própria cultura e identidade - discriminados, sem assistência do governo, sem nada... Tomou-se rotineira nos livros de história a idéia de “descobrimento do Brasil”. Refere-se ela à chegada dos portugueses a terras até então desconhecidas. Contudo, em 1500 esse país foi descoberto somente para o branco europeu, visto que já era habitado por milhões de índios. Tal ano marca, por certo, o início da invasão, da conquista e da exploração da terra “brasilis”. A origem do homem americano é confusa. Não se sabe, com certeza, de onde ele veio. A teoria mais aceita diz haver ele migrado da Ásia há 12 mil anos, pelo estreito de Bering, noroeste da América do Norte. Isso, porém, parece entrar em choque com as afirmações da arqueóloga da USp, Niéde Guidon, que haveria encontrado, no município de São Raimundo Nonato (PI), vestígios confinnando a presença humana no Brasil há cerca de 40 mil anos. A questão continua em aberto, esperando maiores revelações por parte dos estudiosos da área. Se difícil é compreender a procedência dos silvícolas, mais limitado é o estudo dessas sociedades, já que estas não apresentavam uma homogeneidade. Os índios do Brasil não formavam uma única sociedade; verificam-se diferenças quanto a sua organização sócio- cultural. Às vezes, os grupos eram rivais uns dos outros. 3.2 OS DONOS DA TERRA Não se sabe ao certo quantos índios habitavam o “Siará” antes da chegada do português invas: Martim Soares Moreno estimou em 150 mil os nativos e em 22 as aldeias destes, mas tais números não são conbáveis, pois o “fundador do Ceará” pouco explorou os sertões. Não há unanimidade na historiografla local quanto aos nomes, classificação e localização dos aborígenes. De certo modo, é compreensível, vez que as ações de expulsão e extermínio destes nativos foram feitas quase sem registros ou documentação. Não obstante tais imprecisões, conforme às línguas faladas pelos nativos, o historiador Carlos Studart Filh028 aglutinou-os em 5 grupos, a saber: os Tupis, çariris, Tremembés, Tarairius e Jês. Os Tupis cearenses compunham-se basicamente de duas grandes nações, a dos 1àbajaras (parentes dos Tupiniquins) e a dos Potiguares (próximos dos Tupinambás) , inimigas radicais. Os Tabajaras, que provavelmente vieram da Bahia, habitavam a serra da Ibiapaba. Guerreiros valorosos, segundo alguns, antropófagos, chegaram a dominar 171
  • 18. HISTÓRIA DO CEARÁ outras tribos (como a dos Tucurijus) , oferecendo feroz resistência à penetração do conquistador (foram eles que, em aliança com traficantes franceses, combateram Pero Coelho em 1603). Aliás, os nativos daquela região, notadamente os próprios Tabajaras, ao entrarem em contato com as artimanhas dos brancos, decidiram formar uma confederação para enfrentá-los e criar uma área livre da influência invasora. Ora, isso era incompatível com o projeto colonialista de Portugal. Assim, a partir de 1654, com a retomada da capitania cearense pelos lusos, passaram estes a trabalhar para o afastamento dos silvícolas de tal propósito. Entre 1656 e 1690, foram enviadas diversas expedições militares e, sobretudo, jesuítas (entre os quais o famoso Padre Antônio Vieira), a partir do Maranhão, a fim de dissuadir os nativos. Fracassaram todos eles, pelo menos até 1695, quando os religiosos conseguiram se estabelecer na Serra e fundar o aldeamento de Nossa Senhora da Assunção de Thiapaba (depois vila Visçosa Real e atualmente cidade de Visçosa do Ceará). Os aldeamentos eram espécies de aldeias artificiais, militarizadas, tendo como chefe Um missionário que usava de todos as maneiras para catequizar e “domesticar” os índios. wgo, pode-se verificar que catequização e colonização estavam estreitamente ligadas. O gentio, convertido ao catolicismo, era um ínq.io aculturado, desnorteado, confuso, muitas vezes expulso da própria ten;a e estrutura social, e, por tal razão, menos incapaz de resistir ao branco conquistador, mais fácil de ser escr(iVizado ou de ser usado como verdadeiro semi-servonos latifúndios que surgiam, bem como de servir de soldado em. guerras contra os aborígenes ainda “indóceis”. Os Potiguares, originários do Rio Grande do Norte, de onde foram expulsos pelos colonizadores, localizavam-se principalmente no Baixo Jaguaribe e em alguns pontos ao longo do litoral. Também combateram a bandeira de Pero Coelho (embora alguns do grupo, já “mansos”, tenham servido como flecheiros na expedição deste conquistador e na dos jesuítas Pinto e Figueiras). Foram vítimas de inúmeras violências e mortes, até que se submeteram ao branco” cristão e civilizado”. Inclusive, um de seus líderes, chamado Jacaúna, foi importante aliado de Soares Moreno, ajudando bastante no combate a outros indígenas (ainda “não- dominados”) e até a piratas estrangeiros. Com a morte de Jacaúna e a saída de Moreno do Ceará, as relações entre Potiguares e Perós (portugueses) deterioraram-se. Os índios acabaram ajudando os holandeses a apossarem-se do forte de São Sebasrião em 1637. Contudo, como os métodos mesquinhos dos flamengos não se diferenciavam das prá- ticas dos lusitanos, os mesmos Potiguares, no ano de 1644, tomaram o Forte e trucidaram os ocupantes. Em 1649, graças a presentes e dádivas oferecidas por Matias Beck, os Potiguares, 172
  • 19. HISTÓRIA DO CEARÁ mais uma vez, aliaram-se aos holandeses e com estes viveram em relativa harmonia até 1654. Neste ano, com a expulsão dos flamengos, a maior parte desses nativos, temendo o revanchismo português, abandonou o litoral e refugiou-se na Ibiapaba. Aqueles que ficaram na porção litorânea, acabaram jogados nos aldeamentos de São Sebastião de Paupina (hoje Messejana), Bom Jesus da Aldeia de Parangaba (depois vila Nova Arronches e, na atualidade, novamente Parangaba) e Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaia (posteriormente, Vila Nova de Soure e hoje, mais uma vez, Caucaia). Do grupo Cariri ou Quiriri, que ocupava áreas dispersas entre os rios São Francisco (BA) e Parnaíba (PI), poderíamos citar as nações dos Inhamuns (habitantes dos sertões de igual nome e aldeados por frades carmelitas em São Mateus, hoje Jucás), dos Cariús (localizados sobretudo na serra do Pereira e nas terras compreendidas entre os rios Cariús e Bastões, foram “amansados” na missão do Miranda, atual Crato), dos Cariris propriamente dito (uns dos que, vivendo no extremo sul da capitania, reagiram intensamente à invasão branca; foram catequizados em Missão Velha, em Missão Nova - hoje São José dos Cariris - em Caucaia, em Salamanca - atual Barbalha - e no Miranda - Crato) e dos Caratéus ou Crateús (que se localizavam na bacia superior do rio Poti). O grupo dos índios Tramenbés ocupava uma faixa litorânea que ia da baía de São Jorge, no Maranhão às margens do rio Curo. Constituiu-se outro povo que também ofereceu muita resistência aos dominadores europeus. Acabaram aldeados pelos jesuítas na Missão de Nossa Senhora da Conceição de Almofala, hoje município de Itarema, após várias expedições brancas para exterminá-Ios. Alguns índios desse grupo foram ainda catequizados em Soure, Caucaia. Dentre as nações que compunham o grupo 1àrairiu, destacaram-se os Janduins (habitantes originais do Rio Grande do Norte, da Paraíba e de Pernambuco, mas que incursionavam amiúde pelas terras do Baixo Jaguaribe) , osCanindés e os JenipaVos habitantes das margens dos rios Banabuiú, Quixeramobim e cabeceiras dos Cariús. Os Canindés, aliás, seriam Janduins cearenses que receberam denominação a parte em memória de um de seus chefes, o qual, em 1692, em um fato inédito para ahistória do Brasil, firmou um acordo de paz com o próprio rei de Portugal, D. Pedro II. Os nativos respeitaram o tratado; os lusos, não, e aqueles índios foram sangrentamente submetidos e jogados à catequese no aldeamento de Monte- Mor-Novo (Baturité), Outros Tarairius eram os Baiacus, também chamados de Paiacus ou ainda de Pacajus; nas crônicas coloniais, tinham-nos por índios “rebeldes e problemáticos”. Sofreram violento processo de extermínio, e os sobreviventes acabaram “civilizados” nos aldeamentos de Monte-Mar-Velho (depois denominado Guarani e hoje, Pacajus) e de Messejana. 173
  • 20. HISTÓRIA DO CEARÁ Igualmente Tarairius eram os Arariús (que habitavam a serra da Meruoca e a bacia do Acaraú) , os Quixelôs (confinados na Missão Velha, atual 19uatu, mas que, por resistência, foram transferidos para Monte-Mar- Novo, Baturité) e os Tacarijus ou Tucurijus (situados na chapada da serra da Ibiapaba, sendo responsáveis pelo trucidamento do jesuíta Francisco Pinto em 1607). Do grupo Jê, ao que parece, nas terras do Ceará, apenas habitavam os Aruás em área próxima ao rio Jaguaribe. Ainda conforme Carlos Studart, além dos 5 grupos citados, haveria um sexto, sem denominação própria, que conteria exatamente as tribos de fílíação lingüística dtí,Vidosa. Nele estariam, entre outros, os Acongwiçus eosÂcriús, amboshabitaJltes da ri:bceirado Acaraú . ceamansados no aldeamento de Nossa Senhora da Assunção de lbiapaba (Visçosa); os Anapurus . (encontradospa serra Grande), os ApUjarés habitantes dos setões de Canindé) , os Calabaças (que viviam na margem esquerda do rio Salgado, onde hoje está.a cidade de tavras) , osIcós (situados . entre o Salgado e o rio do Peixe (PB) ,foram aldeados pa missão dePorto A_eg),”e,.Rio Grande do . Norte), os Icozinhos situados namestp. área dosse pa),”entes Icós e catequizados em Mitanda, Crato), os Jaguaribaras (espalhados entre a margem esquerda do Ghoró e a serra de Baturité), os Jucás ou Iucás (ocupavam as margens do riacho com igual denominação, nos sertões de lnhamus) e os Anacés (habitantes da área Compreendida entre olitonHe a serra detJrupuretama). 3.3 A GUERRA DOS “BÁRBAROS” Pelo exposto, já é possível concluir que o mundo indígena findou-se com o avanço das fazendas de gado do branco colonizador (que assassinava o gentio, agredia-o, violentava-o sexualmente, usurpava as terras deste) e com a própria ação dos missionários católicos, os quais, na pretensão de catequizar o nativo, acabaram por destruir-lhe a cultura e o modo de viver. O índio, dessa forma, foi aculturado, destribalizado, escravizado e, quando não, exterminado. Todavia, é preciso deixar bem claro que os silvícolas JAMAIS aceitaram passivamente a dominação do homem branco; reagiram de modo heróico contra essa circunstância. Tal reação veio de diversas maneiras, como, por exemplo, escapando dos aldeamentos, fugindo do cativeiro e, sobretudo, armando-se para lutar abertamente contra o invasor, atacando-lhes as vilas e as fazendas, trucidando-o; o europeu, em contrapartida, fazia a “guerra justa”, enchendo os senões de sangue e cadáveres. Um dos grandes exemplos da resistência indígena no Brasil deu-se com a chamada “Guerra dos Bárbaros”, na qual nativos do Rio Grande do Norte e principalmente do Ceará, e alguns de 174
  • 21. HISTÓRIA DO CEARÁ Pemambuco, Piauí e Pamaíba se uniram em uma confederação para enfrentar o conquistador branco. Tal guerra durou mais de 30 anos, indo do último quartel do século XVII à segunda década do século seguinte, terminando com milhares de índios mortos, escravizados e, outras vezes, jogados em aldeamentos ante a superioridade militar do inimigo. Iniciou-se o confronto por volta de 1686, no Rio Grande do Norte. Os índios Janduins, habitantes das regiões de Açu, Mossoró e Apodi, no meio de tanto terror e opressão, rebelaram-se contra o domínio lusitano, matando, saqueando, destruindo tudo que pertencesse a seus algozes. Nos anos seguintes, a revolta propagouse pelo vale cearense do Jaguaribe, alcançando os mais distantes sertões e chegando aos limites das capitanias do Piauí, Pernambuco e Paraíba. As nações dos Baiacus, !cós, Anacés, Quixelôs, Jaguaribaras, Acriús, Arariús, Canindés, Jenipapos, Tremembés, Crateús e outras acompanharam os Janduins e, esquecendo seus passados de conflitos internos, lançaram- se, feroz e bravamente, à luta. Em face da situação, o Governador- Geral do Brasil, Frei Manuel da Ressurreição, no ano de 1688, decidiu requisitar bandeirantes de São Paulo e de São Vicente para pôr fim à revolta. Assim, Domingo Jorge Velho, antes chamado para massacrar os negros em Palmares, marchou ao Rio Grande do Norte, mesma capitania para onde se dirigiu, após meses de viagem, o terço do mestre-de-campo Matias Cardoso. Este deu início a animalesca campanha de extennínio do gentio, enviando em seu lugar o tenente João Amaro Maciel Parente célebre por atrocidades praticadas contra nativos de outras regiões do Brasil- para combater no vale do Jaguaribe, auxiliando como podia as milícias locais. Era comum nesse período os colonizadores, para combater a resistência indígena, utilizar em expedições militares fossem estas milícias compostas por eles próprios, fossem terços comandados por um mestre-de-campo, homens experientes em combate a rebeliões. (O mais famoso mestre - de campo foi Domingo Jorge Velho, responsável pela destruição do Quilombo de Palmares.) Em tais expedições, além dos brancos e mestiços, participavam também índios “domesticados” retirados de aldeamentos ou prisioneiros de guerra, bem como criminosos e degredados, que poderiam receber o perdão por seus crimes. As companhias de terço, quase sempre, eram solicitadas ao poder da capitania pelos colonos, e seus oficiais recebiam toda espécie de privilégios, como a concessão de sesmarias ou o direito de escravizar os índios. A presença dos bandeirantes vicentinos, contudo, não acabou com a guerra. As táticas de guerrilha dos nativos desorientavam e assustavam os paulistas. Acordos de paz eram, na mesma intensidade, assinados e desfeitos (como o realizado entre Canindé e o 175
  • 22. HISTÓRIA DO CEARÁ rei luso D. Pedro lI). Os comandantes portugueses eram mortos e substituídos. Solicitavam-se mais e mais reforços. A Matias Cardoso, na chefia do terço, sucedeu o mestre-de-campo Femão Carrilho, que em 1691 conseguiu impor pesada derrota aos Baiacus, escravizando vários deles e obrigando-os a lutar ao lado dos fazendeiros contra outras nações que ainda guerreavam. Em 1694, os Baiacus libertaram-se do jugo branco e voltaram à confederação indígena, praticamente aniquilando os colonos moradores dos rios Jaguaribe e Banabuiú e interrompendo as comunicações com Pemambuco. Foram, porém, novamente batidos, e, enquanto alguns deles eram escravizados ou uniam-se a outras nações para continuar a guerra, outros eram enviados para a catequese no aldeamento de Nossa Senhora da Madre de Deus. Mesmo assim, as atividades bélicas persistiram, tanto que se fez necessário pedir mais reforços de São Paulo, agora sob o comando do mestre -de-campo Manuel Alves de Morais Navarro. Este, não se sabe bem por qual razão em 1699, cometeu grande atrocidade e covardia contra os nativos: reuniu os Baiacus aldeados, prometendo-lhes ricos despojos e, enquanto estavam desannados, dançando pintados festivamente, ordenou um repentino ataque com anuas de fogo. Os índios foram atingidos à traição, sem piedade; mais de 500 pereceram. Esse crime hediondo levantou protestos de inúmeros religiosos e autoridades da Colônia. N avarro, em conseqüência, foi preso e submetido em Pernambuco a um processo que não resultou em nada. No ano de 1706, o Governo Real autorizou o fornecimento de anuas a todos os brancos moradores da capitania cearense, para a proteção dos bens e para a autodefesa. Em 1713, os Baiacus, reorganizados e em conjunto com os Anacés, ]aguaribaras, Acriús, Arariús, Canindés, ]enipapos e ,Tremembés, atacaram Aquiraz, então sede da capitania; isso após as autoridades descumprirem um acordo de paz existentes. Cerca de 200 pessoas morreram defendendo a vila, enquanto os demais moradores fugiram desesperadamente, sob flechas, lanças e tacapes indígenas, buscando a proteção dos canhões da fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, na foz do rio Pajeú. Com certo fundamento se pretende que a fuga do povo de Aquirás e terras vizinhas para a Fortaleza de N. S. d’Assunção deu lugar, uma vez conjurado o perigo, a um aumento considerável do pequeno núcleo demográfico ali existente sob a proteção de suas armas e, já então, conhecido por aldeia do forte. Criou assim, o predomínio desta povoação sobre a rival, a então Vila de Aquirás. Aquiraz só não foi completamente destruída devido à ação dos homens do coronel João de Barros Braga. Este, grande 176
  • 23. HISTÓRIA DO CEARÁ senhor de terras do Jaguaribe, liderava a milícia local, o regimento da cavalaria do Jaguaribe (chamada nos antigos textos de “Cavalaria do Certam”), a qual composta basicamente por mestiços e índios “mansos”, todos vestidos de couro como os vaqueiros, e especialistas em matar e provocardor, percorreu, nos anos seguintes, os vales do Jaguaribe e Cariri e até os confins do Piauí, varrendo e eliminado os nativos em “nome da civilização”. Barros, aliás, ao “salvar” Aquiraz, recebeu do governo o direito de fazer “guerra justa” contra os Anacés, podendo matá-Ias e escravizar quantos quisesse. Para se ter idéia de como tal guerra foi conduzida, basta assinalar que em pouco tempo o Coronel do regimento da cavalaria aprisionou cerca de 400 gentios (fora os mortos em combate), dos quais executou a sangue frio 95 - os que lhe pareciam mais ferozes -, vendendo o resto como escravos. Essa guerra de extermínio, levada a cabo pela “Cavalaria do Certam”, marcou o início da derrocada dos aborígines. No final da década de 20, estavam quase todos batidos, chacinados, escravizados ou, às vezes, condenados à aculturação nos aldeamentos. Ficou, assim, registrado para a história o lamentável genocídio e etnocídio dos quais foram vítimas. João de Barros Braga, em compensação pelos “heróicos” assassinatos que liderara, foi nomeado em 1731 governadores da capitania do Rio Grande do Norte, deixando o cargo, contudo, três anos depois, ironicamente por ter ordenado o fuzilamento de um índio sem processo legal. 3.4 MONTES E FEITOSAS Sem função econômica definida, muitas vezes os índios já “domesticados” acabavam na dependência (semi-servidão) de grandes fazendeiros. Estes, dotados de enorme autonomia perante as autoridades governamentais, chegavam mesmo a controlar tribos inteiras, envolvendo-as nas disputas particulares. Com base nesse raciocínio compreende-se a participação de muitos gentios no famoso conflito entre as famílias Montes e Feitosas que abalou o sul cearense no primeiro quartel século XVIlI. A família Feitosa originaria de Alagoas, chegou ao Ceará por volta de 1707. Quando Lourenço Alves Feitosa e o irmão Francisco Alves Feitosa conseguiram algumas sesmaria longo do rio Jucá. Posteriormente, expandiram as posses para áreas próximas ao rio Juguaribe e ao Iço, tornando-se poderosos senhores de terras. Os Montes por sua vez naturais de Sergipe vieram para a capitania. Cearense antes dos Feitosa, em 1682 situando em sesmaria da sona de Iço e igualmente obtendo bastante influencia econômica. No inicio do século XVIII, ao que parece esta família era liderada pelo coronel Francisco do Monte Silva. A princípio, tais famílias até se uniram para combater os indígenas que então se revoltaram contra a presença do homem branco, mas essa cooperação depois se 177
  • 24. HISTÓRIA DO CEARÁ transformou numa sanguinária rixa. Não se sabe com precisão o porquê da inimizade. Alguns autores falam em questões de honra pessoal (segundo a tradição, Francisco Feitosa teria se casado com uma viúva irmã de onde, intrigando-se com este); outros, alegam ter motivo da guerra uma disputa por terras. Quaisquer que fossem as causas do confronto, nas décadas de 1710 e 1720 as famílias envolveram-se em grandes hostilidades, que se fizeram repercutir ainda nos anos subseqüentes. Suas práticas rotineiras de emboscadas, saques, combates abertos, incêndios, assassinatos de índios e vaqueiros levaram pânico e terror para a porção sul da capitania, mostrando quão frágil eram os sistemas jurídico e governamental vigentes. Tinha-se ali um verdadeiro “império dos coronéis”, onde a arma e a força prevaleciam. As coisas agravaram-se quando o primeiro ouvidor do Ceará (ou seja, o agente governamental responsável pela aplicação da justiça), José Mendes Machado, envolveu-se escandalosamente na guerra, tomando partido pelos Feitosas e tentando acobertar as ações criminosas destes. Conforme a historiografia tradicional, esse magistrado não era, no dizer popular, “flor que se cheire”; mostrando-se ávido, violento, venal e pouco escrupuloso, ganhou a sugestiva alcunha de “tubarão”, incompatibilizando-se com o capitão-mor da capitania e com a Câmara Municipal de Aquiraz. Em 1724, em uma de suas viagens de correição pelo sul da capitania, Mendes Machado firmou aliança com os irmãos Francisco e Lourenço Feitosa, autorizando-os, ao lado do coronel João Ferreira da Fonseca (um latifundiário da região do rio Jaguaribe) e de alguns índios Jucás, a capturarem Francisco Monte, que então se encontrava na região do Cariri Novo, mais tarde chamada Crato. O patriarca dos Montes não foi pego, mas os Feitosas aproveitaram a oportunidade para saquear as fazendas do inimigo, seqüestrar negros, mulheres e assassinar quem tentasse resistir. No início de 1725, o “Tubarão” e os Feitosas realizaram nova investida contra a família de lcó, saqueando, matando e roubando amuLS que as pessoas possuíam para ckfender aos índios. Novamente as mulheres não foram poupados. O ouro e as roupas que possuíam eram tirados, e eram insultadas com palavrões e ações; os saqueadores colocando suas mãos abaixo das saias das mulheres de modo escandaloso’, atiravam nelas quando tentavam fugir. Os Montes, diante dessas mortíferas investidas dos Feitosas, resolveram levar a guerra aos domínios destes; reuniram seus jagunços e partiram para os lnhamuns. Ao passarem pelo aldeamento de São Mateus, obtiveram a adesão dos índios lnhamuns, inimigos fidagais dos aborígines Jucás, que então serviam de capangas aos Feitosas. A gente de lcó estava preparada para triturar o adversário. Os Feitosas, no entanto, avisados da 178
  • 25. HISTÓRIA DO CEARÁ aproximação dos Montes, também aglutinaram as forças (entre as quais diversos índios Jucás Jenipapos e Cariús) e ficaram à espreita, emboscando os pretensos atacantes no lugar denominado Bom Sucessos e fazendo-os fugir em desespero. Motivados com a vitória e sedentos de vingança, dias depois o exército dos Feitosas marchou para São Mateus, onde, surpreendendo os lnhamuns na hora de uma misa, acabaram por massacrá-Ias em um ato de extrema covardia. Combates seguintes sucederam-se e ganharam repercussão, levando o capitão-mor da capitania, Manuel Francês, a tomar providências. O responsável pelos destinos do Ceará, em meados de 1725, ordenou os dois coronéis a largarem as anuas, sob ameaça de pena de morte e confisco de bens. Até ali, estimavam-se em mais de 400 os mortos, Francês determinou ainda que “tubarão” regressasse imediatamente a Aquiraz (este, contudo, temendo ser preso, preferiu abandonar o cargo de ouvidar e fugir para a Bahia). Só assim a guerra teve diminuída a intensidade, embora, vez ou outra, acontecessem confrontos eventuais com muitas vítimas. Instalou-se um processo para apurar as responsabilidades do ocorrido (para custear as despesas de tal processo, aliás, foram confiscadas seis léguas de terra de Lourenço Feitosa), não tendo resultado efetivo. Os latifundiários ficaram impunes, como se nada tivesse acontecido. Os únicos, ao nosso ver, que sofreram alguma punição, foram os índios envolvidos no confronto, obrigados a deixar o Ceará (para não mais serem usados pelos coronéis). Os Montes, segundo registram os antigos historiadores, saíram da contenda empobrecidos e dizimados, enquanto os Feitosas continuaram fortes e a exercer seu poder nos anos seguintes. O processo de colonização do Ceará, como de todo o Brasil, apresentou um grande perdedor: o índio, vítima de uma insana destruição física e cultural. Os nativos, sobreviventes à “ação civilizadora e cristã” do branco, acabaram marginalizados pela sociedade, ‘passando a ser denominados de caboclos como se simplesmente tivessem desaparecidos por completo ou miscigenados com outros grupos étnicos - vindo daí o falso mito de que o Ceará era “um estado onde não havia índios”. Mas eles não desapareceram! Eles existem! Hoje, seus descendentes, como os Tremembés (em Almofala -ltarema), os Genipapos e Canindés (em Lagoa da Encantada - Aquiraz), os Paiacus (em Aquiraz e Pacajus), os Pitagarys (em Maranguape), os Tabajaras (em Viçosa) e os Tapebas (estes originários do convívio entre Cariris, Potiguares e Tremembés em Caucaia) lutam pelo reconhecimento e preservação de sua identidade e patrimônio cultural, além de exigirem, com toda razão, a demarcação I de terras historicamente a eles pertencentes. Cinco séculos após a invasão portuguesa, a resistência indígena continua. 179
  • 26. HISTÓRIA DO CEARÁ HISTÓRIA DO CEARÁ AULAS 07 e 08 ⊗ Catequese e aldeamento “A história dos povos indígenas que povoaram nosso solo pátrio contém as mais preciosas lições. O índio não é um ‘selvagem’; ele não é um ser inferior; é, antes, uma criatura humana de riquezas espirituais e culturais a nós desconhecidas, porque, no decurso dos séculos, não soubemos olhá-lo a não ser com olhos de adversário. Índio não é aquele que deve morrer; é aquele que deve viver. Há toda uma dívida a ser resgatada por nós cristãos no século XX.”32 (o. Aloísio Lorscheider, ex- arcebispo de Fortaleza) 4.1 FÉ, REI E ESPADA A Igreja católica e Portugal estiveram intimamente ligadas no processo de colonização do Brasil, ainda que, em alguns momentos, entrassem em conflito. No período colonial, a Igreja dividia-se em cleros secular e regular. O primeiro (bispos, padres, vigários) cuidava das paróquias, das vilas e estava encarregado de ministrar sacramentos, tais como: confissão, batismo, casamento e eucaristia à generalidade dos habitantes, uma vez que todos eram obrigados a ser católico. O clero regular constituía-se aquele das ordens religiosas, como os jesuítas, franciscanos, carmelitas e beneditinos, que se responsabilizavam pela educação e pela catequese dos índios e colonos. Dessas ordens, destacou-se mais no Brasil a Companhia de Jesus, dos padres jesuítas. Essa companhia foi fundada em 1540, por Inácio de Loyola, na chamada contra-refoma, movimento da Igreja católica que visava a combater por todos os meios os protestantes. Os padres dessa ordem foram os principais responsáveis pela introdução do cristianismo na América. Grandes proprietários de terra, os jesuítas recusavam-se a pagar impostos, entrando em choque com o fisco luso. Por serem contra a escravidão dos silvícolas, também se conflitaram com os colonos, embora fossem grandes exploradores do trabalho indígena. Para eles, o Novo Mundo era o paraíso terrestre, habitado por índios inocentes, de alma pura, mas que, com sua ignorância e costumes “bárbaros”, estavam no caminho do Satanás. Para evitar tal fim, bastava-lhes a conversão ao cristianismo. De modo contrário, os jesuítas e a Igreja apoiaram a escravidão do negro. 4.2 A “MISSÃO” A atuação das ordens religiosas esteve voltada, sobretudo, para a cristianização dos silvícolas. A princípio, tentaram catequizá-los de forma pacífica, atraindo-os com danças, 180
  • 27. HISTÓRIA DO CEARÁ cantos, presentes e longas pregações. Isso, contudo, não apresentou resultados positivos. Os índios preferiam ouvir seus antigos líderes espirituais, os Pajés, mantendo, assim, suas estruturas sócio-culturais, para “irritação” dos catequistas, que as tinham como obras demoníacas, fanáticas e supersticiosas. Em pouco tempo, os evangelizadores concluíram que a catequização só se tornaria eficaz caso as lideranças indígenas fossem afastadas; e a solução para tal feito foi adotar o método dos aldeamentos. Os aldeamentos, também chamados de missões, constituíam-se espécies de aldeias artificiais, militarizadas, para onde os silvícolas eram conduzidos no intuito de serem doutrinados e convertidos – muitas vezes a força - ao catolicismo. Tinham tais aldeamentos, teoricamente, o comando absoluto de um missionário, mas, na prática, estavam sob a influência das autoridades coloniais. Formadas a partir da concessão pelo governo de uma légua quadrada de terra aos gentios, que se visava a catequizar, esse método foi inicialmente aplicado na Bahia em 1556, propagando-se depois para outras regiões do Brasil, como o Ceará. O catolicismo, se comparado à religião politeísta dos aborígines, é recente no Ceará. Chegou com o desenvolvimento da colonização, com os criadores de gado muito religiosos. Para sua expansão, contudo, foi fundamental o trabalho de ordens religiosas tais quais as dos jesuítas. Após o fracasso da expedição dos padres Francisco Pinto e Luís Figueiras, os membros da Companhia de Jesus voltaram às terras cearenses na segunda metade do século XVII, com o objetivo prático de “amansar” os índios da região da Ibiapaba, em particular, os Tabajaras, que se opunham radicalmente à penetração do homem branco. Como se viu no capítulo anterior, após fracassadas tentativas, os missionários atingiram suas pretensões, ao fundar em 1695 o aldeamento de Nossa Senhora da Assunção da Ibiapaba, atual Viçosa do Ceará. Ainda no século XVII e, principalmente, no seguinte, os jesuítas fundaram outras missões, também hoje cidades destacadas como as de Parangaba (depois chamadas de Arronches e, novamente, Parangaba), Caucaia (em seguida denominada Vila Nova de Soure e, mais uma vez, Caucaia), Paiacu (depois Monte Mor Velho, Guarani e, na atualidade, Pacajus), Paupina (atual Messejana), Monte Mar Novo (hoje Baturité), Telha (Iguatu), Miranda (Crato) e Aracati Mirim (Almofala). A fundação de aldeamentos interessava ao governo português, pois era esse método a chave para um povoamento branco menos obstacu/arizado, quer dizer, o índio “civili_ado” era um nativo que deixava de opor-se, intransigentemente, ao avançar dos colonos em suas terras. Além disso, o nativo evangelizado podia servir como mão de obra semi- servil, ou mesmo escrava, em diversos tipos de trabalhos, além de atuar como soldado nas guerras contra os aborígenes ainda 181
  • 28. HISTÓRIA DO CEARÁ “selvagens” - daí porque freqüentemente os aldeamentos funcionavam cama bases militares, onde se preparava a guerra contra tais índios bravios (como os nativos não possuíam uma unidade política, era fácil instigar uma nação contra outra). No aldeamento, vigorava uma rígida disciplina. O sino da igreja marcava os horários. De início, por volta das 5 horas, as mulheres eram reunidas para orações e sermões dos padres, sendo posteriormente enviadas para o cultivo da terra, ou para o preparo de roupas, ou ainda para os afazeres domésticos. Feito o desjejum, os homens iam para o trabalho (geralmente a agricultura ou pecuária), enquanto as crianças eram chamadas para aulas de leitura escrita e doutrina religiosa. Depois do almoço, em tomo das 16 horas, o sino tocava anunciando o fim do trabalho; servia-se o jantar e se fazia a oração diária do rosário. Ao anoitecer, chamavam-se os homens para a doutrinação. Qualquer insubordinação era duramente punida, daí o porquê de os aldeamentos possuírem instrumentos de tortura, como o tronco, para prender os indisciplinados, o pelourinho, para açoites públicos e mesmo, em casos graves, penas de mutilações físicas. Embora combatessem o genocídio e a escravidão indígena - pontos positivos de seu trabalho, os jesuítas contribuíram enormemente para a destruição cultural (etnocídio) dos silvícolas, à medida que substituíam a centenária vida social destes por uma outra, “branca”, preconceituosa, intolerante, maniqueísta, pretensamente civilizada, que condenava a nudez, a poligamia, a religião politeísta, as casas coletivas, enfim, a vida livre e diferente. Mas a Igreja católica do Brasil colonial também era instituição ligada à classe proprietária. Prova é que as Ordens dos jesuítas e dos franciscanos estavam entre os grandes latifundiários do Nordeste, controlavam inúmeros índios (mão-de-obra gratuita) e, ao mesmo tempo, vários currais de gado, em grandes extensões de terra, geralmente ao longo de rios, como os cearenses: Jaguaribe, Choró, Pacoti, Aracatiaçu, Acaraú e Coreaú. Aliás, foram os poderes econômico e político da Igreja que levaram o Ministro português Marquês de Pombal a expulsar os jesuítas do Brasil em 1759. A partir daí, os aldeamentos foram convertidos em vilas, que, administradas por um diretor, tiveram os inacianos substituídos por padres seculares, muitos dos quais grande, senhores de terra, inimigos “naturais” dos índios. Á luz da história, o método de aldeamento foi um fracasso. Os gentios morriam em grandes quantidades, devido em contato com as doenças trazidas pelos brancos e pelo próprio regime de trabalho forçadamente estabelecido. Além disso, tratava-se de impor a 182
  • 29. HISTÓRIA DO CEARÁ doutrina, a obediência e a submissão ao catolicismo. O resultado foi a destruição sócio- cultural do índio, sua destribalização, descaracterização e massificação, de tal sorte que o nativo dificilmente poderia resistir ao avanço do conquistador. 4.3 ANDANDO PELOS SERTÕES Outra ordem religiosa, presente no Ceará colonial, foi a dos franciscanos ou frades capuchinhos, que passaram a entrar casualmente no Brasil, na segunda metade do século XVII. O momento máximo de atuação no Nordeste deu-se entre os anos de 1709 e 1742, quando da chegada de vários capuchinhos italianos e franceses. Trouxeram uma novidade no processo evangelizador, as chamadas Santas Missões, espécies de missões móveis. Ressalte-se que, após a expulsão dos jesuítas, esse método foi praticamente o único existente, embora os capuchinhos hajam dirigido aldeamentos, como o de Miranda, onde foram “domesticados” os índios Cariris. As Santas Missões estabeleciam-se em um local por dez ou doze dias; as viagens não eram planejadas, indo um missionário para onde fosse convidado, seja uma vila, seja urna fazenda. Quem o convidasse deveria pagar a viagem, a alimentação e a hospedagem. Essa nova forma de evangelização se tornou um sucesso, fato comprovado pelo expressivo número de pessoas que seguiam os padres quando do deslocamento destes de uma região para outra. Nas Santas Missões, o franciscano confessava a todos e depois fazia pregações, geralmente falando de penitência, de sacrifícios, de dor, de sofrimento pelos pecados - marcando, assim, profundamente a visão religiosa de nosso povo. Note que, com esse método de evangelização, o trabalho com os índio foi aos poucos sendo negligenciado e, finalmente, abandonado; os nativos, assim, não encontraram mais quem (bem ou mal) defendesse seus interesses. Depois, em 1850, já no Segundo reinado, foi baixada a Lei de Terras, a qual obrigava o registro em cartório da posse de qualquer terra do País, Ora, os índios lá sabiam o que era isso! - muitos nem se. Quer falavam português! Foi-lhes mais um duro golpe. Os nativos começaram a sofrer espoliação por parte de grilheiros, que se apoderavam das sesmarias indígenas, expulsando os índios das terras. Nas santas missões havia todo um clima de festa, desde a recepção e entrada do missionário, buscado por grande número de cavaleiros em procissão, até a festa do encerramento pomposo, último dia da missão. O vaqueiro era um homem solitário, visto que seu patrão vivia nas cidades do litoral e seu vizinho mais próximo ficava a 3 ou 4 Km de distância, devido ao tamanho das fazendas. Assim, quando os padre visitavam o lugarejo, era momento de celebrações (casamentos, batismos etc.) e de alegres encontro dos 183
  • 30. HISTÓRIA DO CEARÁ sertanejos embora muitos colocassem em primeiro plano as cachaças, as mulheres e a prestação de contas com os inimigos. 184