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HUMANIZAÇÃO
CAMINHOSDAHUMANIZAÇÃONASAÚDE
PRÁTICA E REFLEXÃO
IZABEL CRISTINA RIOS
A Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) também mantém um
outro projeto, em parceria com as Secretarias de Estado da Saúde e dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, voltado à humanização da saúde: a Rede de Reabilitação Lucy Montoro.
• Conta com uma Unidade Móvel de Reabilitação e unidades fixas de hospitais e centros de reabilitação, na
capital e em diversas cidades do Estado de São Paulo.
• Viagens da Unidade Móvel pelo estado para fornecimento de órteses, próteses e meios de locomoção a
pessoas com deficiência, onde não haja unidade fixa.
• Investimento de R$ 52 milhões na construção e ampliação das primeiras unidades fixas e funcionamento até 2010.
• Capacidade de 100 mil atendimentos mensais.
Caminhos da Humanização na Saúde é um
livro composto por artigos e relatos que apre-
sentam ao leitor a experiência da autora com
o trabalho da Humanização em vários contex-
tos do campo público da Saúde no Estado de
São Paulo.
Alguns textos revelam seu mergulho teórico
em territórios do conhecimento que permi-
tem compreender e interpretar cenários, fatos
e práticas, que re-significados ganham vigor
para outros desdobramentos.
Outros textos relatam experiências, às vezes
no modo do “como fazer”, sem a pretensão
de dar receitas prontas (que não existem),
mas com a vontade de contar uma história de
trabalho que pode servir de base para outros
projetos.
A heterogeneidade dos textos testemunha al-
gumas entre as muitas possibilidades para o
pensar e o agir nessa temática. Mas em todos
os casos, apresentam-se concepções e meto-
dologias que se contrapõem a certa banali-
zação do tema (que desqualifica o potencial
transformador da Humanização sobre as prá-
ticas e mentalidades na área da Saúde).
Os caminhos são muitos...
E este livro tem a intenção de estimular em
todos que encontraram na área da Saúde o
lugar para a expressão do seu encantamen-
to pela vida humana, o desejo de criar outras
formas mais eficientes e significativas de cui-
dar das pessoas, mais gratificantes e fortale-
cedoras para os seus profissionais.
Izabel Cristina Rios é médica, formada pela
FMUSP (Faculdade de Medicina da Universi-
dade de São Paulo), Psiquiatra e Psicanalista,
com experiência nas áreas Clínica, Educação
em Saúde e Desenvolvimento Humano e Ins-
titucional. Atua principalmente nos seguintes
temas: Humanização, Humanidades Médi-
cas, Saúde Mental, e Educação Médica. No
CEDEM-FMUSP (Centro de Desenvolvimento
da Educação Médica FMUSP) é pesquisadora,
coordena o Grupo das Disciplinas de Humani-
dades Médicas e integra o Comitê HUMANIZA
HC-FMUSP. No CRT DST aids (Centro de Refe-
rência e Treinamento em Doenças Sexualmen-
te Transmissíveis e aids) foi coordenadora do
Comitê de Humanização e diretora do Núcleo
de Desenvolvimento Institucional e Educação.
Foi coordenadora da Área de Humanização da
Coordenação dos Institutos de Pesquisa da Se-
cretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Na
Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo,
coordenou grupos de Educação Permanente e
Saúde Mental no Programa Saúde da Família.
Planejou e implementou o Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS) Casa Viva.
Comitê Humaniza HC FMUSP:
valorização da vida e da cidadania
Objetivos:
• Ferramenta de gestão para melhorar a qualidade e a eficácia da atenção dispensada aos usuários do HC
FMUSP;
• Conceber e implantar novas iniciativas de humanização que venham beneficiar os usuários e os profissionais
de saúde;
• Desenvolver um conjunto de indicadores de resultados e sistema de incentivo ao tratamento humanizado;
• Modernizar as relações de trabalho, tornando as Unidades mais harmônicas, com profissionais preparados para
a humanização no cuidado.
Equipe Coordenadora do Humaniza HC:
Profa. Dra. Linamara Rizzo Battistella, Dra.Valéria Pereira de Souza, Dr. Fábio Pacheco Muniz de Souza e Castro,
Dra. Polyanna Costa Lucinda e Dra Izabel Cristina Rios constituem o GRUPO DE TRABALHO COMITÊ DE HU-
MANIZAÇÃO da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo – Comitê HUMANIZA HC.
Informações: http://www.hcnet.usp.br/humaniza/
CAMINHOS DA
NA SAÚDE
1
HUMANIZAÇÃO
PRÁTICA E REFLEXÃO
Izabel Cristina Rios
2009
CAMINHOS DA
NA SAÚDE
2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Rios, Izabel Cristina
Caminhos da humanização na saúde : prática e
reflexão / Izabel Cristina Rios. -- São Paulo :
Áurea Editora, 2009.
Bibliografia.
1. Humanização dos serviços de saúde 2. Médico
e paciente I. Título.
09-06602 CDD-362.19892
Índices para catálogo sistemático:
1. Humanização dos serviços de saúde :
Bem-estar social 362.19892
Produção Editorial: Áurea Editora
Coordenação: Dirceu Pereira Jr.
Edição: Milton Bellintani
Revisão: Silvia Marangoni
Projeto Gráfico e Diagramação: Mveras Design Gráfico
Apoio Oficial:
Rede de Reabilitação Lucy Montoro
Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FFMUSP)
Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência
Governo do Estado de São Paulo
3
Para Eduardo
4
Prefácio - Dra. Linamara Rizzo Battistella................................................. 05
1. Humanização
A essência da ação técnica e ética nas práticas de saúde............................. 07
2. Violência e Humanização........................................................................... 27
3. O realce à Subjetividade
Assim começa a humanização na atenção à saúde....................................... 39
4. A cultura institucional da humanização.................................................. 57
5. Modelo de curso de humanização para serviços de saúde
Conceitos e estratégias para a ação.................................................................71
6. Humanização no ambiente de trabalho
O estudo de fatores psicossociais...................................................................101
7. Oficinas de humanização
Aproximando as pessoas para o diálogo........................................................119
8. Recepção humanizada
O programa jovens acolhedores..................................................................... 129
9. Rodas de conversa
Aprendendo saúde mental no PSF................................................................ 137
10. Impressões dos trabalhadores de uma unidade básica de saúde sobre
o seu trabalho.................................................................................................151
11. Em busca da humanização nos serviços de saúde
A questão do método..................................................................................... 167
SUMÁRIO
5
PREFÁCIO
Linamara Rizzo Battistella
	 Humanizar a assistência é conceito e atitude! O Programa Nacio-
nal de Humanização Hospitalar, criado em 2000, assumiu o desafio de
“ofertar atendimento de qualidade, articulando os avanços tecnológicos
com acolhimento, melhoria dos cuidados e das condições de trabalho dos
profissionais”. Este conceito depende da mudança de atitude em direção a
cultura da excelência e da gestão dos processos de trabalho.
	 Humanização é ferramenta de gestão, pois valoriza a qualidade do
atendimento, preserva as dimensões biológicas, psicológicas e sociais dos
usuários e enfatiza a comunicação e a integração dos profissionais.
	 Fundada no respeito à vulnerabilidade humana e na crença de
que a relação entre dois atores, profissional e paciente, está sempre sujeita
a emoções que devem ser guiadas pelo sentimento de compromisso e de
compaixão. Assim, sem esquecer a objetividade, é preciso interpretar a
experiência de viver a doença, as seqüelas e a deficiência.
	 Neste livro está traduzida, com muita riqueza, a experiência da hu-
manização na assistência aos doentes crônicos e às pessoas com deficiência,
para as quais a qualidade do cuidado supera a esperança de cura. Mas a
autora vai mais longe, fornecendo as diretrizes para a implantação e o de-
senvolvimento do programa de humanização hospitalar. Este livro traduz a
experiência da Dra. Izabel Cristina Rios, profissional, dedicada ao “cuidar” e
apresenta os resultados de experiências bem sucedidas, de ensinar os jovens
médicos sobre a importância da humanização do cuidado.
	 A esperança emerge a partir do exercício de escutar-nos uns aos
outros e de reconhecer no sofrimento o direito ao atendimento precoce,
resolutivo e de qualidade. O fortalecimento dos vulneráveis é alcançado
com base nos direitos humanos e no respeito pela dignidade individual.
Respeito é atributo indissociável da personalidade da Dra. Izabel Rios, que
6
militou no programa de humanização desde a sua concepção, ajudou a
implantar esta estratégia na Secretaria de Estado de Saúde e, mais recen-
temente, no Hospital das Clínicas da FMUSP. Apoiar a edição deste livro
sinaliza o compromisso do Governo do Estado de São Paulo em oferecer ao
lado das modernas tecnologias da área de saúde, profissionais qualificados
e sensíveis aos valores e crenças que permeiam a emoção do paciente e
seus familiares.
	 A implantação destes programas de humanização na Rede de Re-
abilitação Lucy Montoro é um imperativo! O governo do Estado de São
Paulo valoriza a oferta de modernas tecnologias na área de saúde, mas en-
fatiza a necessidade permanente de qualificar, sensibilizar, e comprometer
os profissionais com a humanização da assistência à saúde.
Linamara Rizzo Battistella é Médica Fisiatra, Professora da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo, Coordenadora do Comitê de Hu-
manização da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da Faculdade
de Medicina da USP, Comitê Humaniza HC, e Secretária de Estado dos
Direitos da Pessoa com Deficiência do Governo do Estado de São Paulo.
HUMANIZAÇÃO:
A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS
PRÁTICAS DE SAÚDEa
CAPÍTULO I
8
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
A humanização é hoje um tema frequente nos serviços públicos de
Saúde, nos textos oficiais e nas publicações da área da Saúde Coletiva.
Embora o termo laico humanização possa guardar em si um traço
maniqueísta, seu uso histórico o consagra como aquele que rememora
movimentos de recuperação de valores humanos esquecidos, ou solapados
em tempos de frouxidão ética. No nosso horizonte histórico, a humaniza-
ção desponta, novamente, no momento em que a sociedade pós-moderna
passa por uma revisão de valores e atitudes. Não é possível pensar a hu-
manização na saúde sem antes dar uma olhada no que acontece no mundo
contemporâneo...
Em uma visão panorâmica, a época da pós-modernidade1,2
se carac-
teriza pelo reordenamento social decorrente do capitalismo multinacional
e a globalização econômica. Desabaram os ideais utópicos, políticos, éticos
e estéticos da modernidade que creditavam ao projeto iluminista a cons-
trução de um mundo melhor, movido pela razão humana. As pessoas, cada
vez mais descrentes da política e das ideias revolucionárias que, na práti-
ca, deram poder a governos corruptos e incapazes de promover o bem da
nação, não buscaram mais seus referenciais de identificação nos grandes
coletivos sociais, mas sim em si mesmas. Para certos autores, essa é uma
das principais características do que eles chamam de época hipermoderna
ou supermoderna3,4
: a figura do excesso e da deformação notadamente no
que se refere ao “eu”.
Nessa vertente, Lasch dá aos tempos atuais o nome de Cultura Nar-
císica, e Debors, de Sociedade do Espetáculo5,6
, ora ressaltando o indivi-
dualismo, o culto ao corpo e a supervalorização dos aspectos da aparência
estética, ora ressaltando o exibicionismo, a captura pela imagem e o com-
portamento histriônico que se realiza como espetáculo.
No campo das relações, a perda de suportes sociais e éticos, somada
ao modo narcísico de ser, cria as condições para a intolerância à diferença,
e o outro é visto não como parceiro ou aliado, mas como ameaça. Tal dis-
posição, associada à rapidez e pouco estímulo à reflexão sobre os aspectos
existenciais e morais do viver humano, faz com que a violência – que (por
motivos que fogem ao alcance deste artigo) é parte do nosso cotidiano – se
apresente também como modo de resolver conflitos.
a
Publicado na forma de artigo na Revista Brasileira de Educação Médica, v., n., 2008.
9
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
No contraponto, do meio do século XX para cá, começam a se dese-
nhar respostas para a sociedade assim estabelecida. Direitos Humanos, Bioé-
tica, Proteção Ambiental, Cidadania, mais do que conceitos emergentes7
, são
práticas que vão ganhando espaço no dia-a-dia das pessoas, chamando-nos
para o trabalho de construção de outra realidade.
Na área da Saúde surgiram várias iniciativas com o nome de hu-
manização. É bem provável que esse termo tenha sido forjado há umas
duas décadas, quando os acordes da luta anti-manicomial, na área da
Saúde Mental8
, e do movimento feminista pela humanização do parto e
nascimento, na área da Saúde da Mulher 9
, começaram a ganhar volume e
produzir ruído suficiente para registrar marca histórica.
Desde então, vários hospitais, predominantemente do setor público,
começaram a desenvolver ações que chamavam de “humanizadoras”. Ini-
cialmente, eram ações que tornavam o ambiente hospitalar mais afável:
atividades lúdicas, lazer, entretenimento ou arte, melhorias na aparência
física dos serviços. Não chegavam a abalar ou modificar substancialmente a
organização do trabalho ou o modo de gestão, tampouco a vida das pessoas,
mas faziam o papel de válvulas de escape para diminuir o sofrimento que o
ambiente hospitalar provoca em pacientes e trabalhadores. Pouco a pouco, a
ideia foi ganhando consistência, resultando alterações de rotina (por exem-
plo, visita livre, acompanhante, dieta personalizada).
Em 2001, quando a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo
fez um levantamento dos hospitais públicos do Estado que desenvolviam
ações humanizadoras, praticamente todos faziam alguma coisa nesse sen-
tido. O mesmo se verificou em noventa e quatro hospitais de referência no
país, escolhidos pelo Ministério da Saúde, praticamente na mesma época.
A iniciativa partia dos próprios trabalhadores, independentemente de in-
centivo ou determinação dos gestores locais. Tratava-se de uma resposta
a essa necessidade sentida e reconhecida pelas pessoas em seus ambientes
de trabalho.
Hoje, várias sondagens conceituais, manifestações ideológicas, cons-
truções teóricas e técnicas e programas temáticos fazem da humanização
um instigante campo de inovação da produção teórica e prática na área
da Saúde10
.
10
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
Sob vários olhares, a Humanização pode ser compreendida como:
- Princípio de conduta de base humanista e ética
- Movimento contra a violência institucional na área da Saúde
- Política pública para a atenção e gestão no SUS
- Metodologia auxiliar para a gestão participativa
- Tecnologia do cuidado na assistência à saúde
Em nosso entender, a Humanização se fundamenta no respeito e
valorização da pessoa humana, e constitui um processo que visa à trans-
formação da cultura institucional, por meio da construção coletiva de
compromissos éticos e de métodos para as ações de atenção à Saúde e de
gestão dos serviços. Esse conceito amplo abriga as diversas visões da hu-
manização supracitadas como abordagens complementares, que permitem
a realização dos propósitos para os quais aponta sua definição.
A humanização reconhece o campo das subjetividades como instân-
cia fundamental para a melhor compreensão dos problemas e para a busca
de soluções compartilhadas. Participação, autonomia, responsabilidade e
atitude solidária são valores que caracterizam esse modo de fazer saúde
que resulta, ao final, em mais qualidade na atenção e melhores condições
de trabalho. Sua essência é a aliança da competência técnica e tecnológica
com a competência ética e relacional.
Humanização e ética
“Humanizar o quê? Por acaso não somos humanos?” (Auxiliar de
Enfermagem de uma UBS da SMS-SP)
Há alguns anos, quando o assunto humanização chegou aos servi-
ços de Saúde, a reação dos trabalhadores foi a mais variada possível. Algu-
mas pessoas (que já trabalhavam com ações humanizadoras) sentiram-se
finalmente reconhecidas e encontraram seus pares, mas a maioria (que não
fazia a mínima ideia do que se tratava) reagiu com desdém ou indignação:
não eram humanos, afinal? Humanizar os serviços soava como um insulto.
Entretanto, tão logo se começava a discutir a humanização como o proces-
so de construção da ética relacional que recuperava valores humanísticos
esmaecidos pelo cotidiano institucional ora aflito, ora desvitalizado, ficava
clara a importância de trazer tal discussão para o campo da Saúde. A Me-
11
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
dicina (e certamente todas as profissões que se destinam ao cuidar) é uma
prática ético-dependente11
, ou seja, ainda que o mundo se acabe em um
livre agredir, em que vença o mais forte, o mais rico, ou o mais bonito, na
área da Saúde é imprescindível a educação para a ética nas relações entre
as pessoas, sem a qual não é possível realizar a missão que nos destina
essa escolha profissional.
Humanizar, então, não se refere a uma progressão na escala bioló-
gica ou antropológica, o que seria totalmente absurdo, mas ao reconhe-
cimento da natureza humana em sua essência e a elaboração de acordos
de cooperação, de diretrizes de conduta ética, de atitudes profissionais
condizentes com valores humanos coletivamente pactuados.
No sentido filosófico, humanização é um termo que encontra suas raí-
zes no Humanismo12
, corrente filosófica que reconhece o valor e a dignidade
do Homem – a medida de todas as coisas – considerando sua natureza, seus
limites, interesses e potenciais. O Humanismo busca compreender o Homem
e criar meios para que os indivíduos compreendam uns aos outros.
Na leitura psicanalítica, o termo fala do lugar da subjetividade no
campo da Saúde. Humanização, como tornar humano, significa admitir
todas as dimensões humanas – históricas, sociais, artísticas, subjetivas,
sagradas ou nefastas – e possibilitar escolhas conscientes e responsáveis.
A Psicanálise se encontra com o Humanismo quando coloca no cen-
tro do seu campo de investigação, compreensão e intervenção, o homem
e sua natureza humana (que pode ser tão divina quanto demoníaca... No
mais das vezes, as duas... Na melhor das hipóteses, a primeira cuidando
para que a segunda se mantenha o mais quieta possível). A natureza hu-
mana comporta pulsões para a construção e para a agressão. Em nossa es-
sência, temos potencial para agir tanto em um sentido quanto em outro. O
julgamento ético de cada ato e a sua escolha são tarefa psíquica constante,
que põe em jogo os valores que a cultura nos dá por referência e os desejos
que se ocultam no íntimo de cada um. Reconhecer a importância dessas
características humanas é o primeiro passo para a humanização.
O segundo passo é desenvolver métodos que permitam a inserção de
tais aspectos humanos no pensar e agir sobre os processos saúde-adoeci-
mento-cura e nas relações de trabalho. Trata-se de criar espaços legítimos
12
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
de fala e escuta que devolvam à palavra sua potência reveladora e trans-
formadora13
.
Na relação do profissional com o paciente, a escuta não é só um ato
generoso e de boa vontade, mas um imprescindível recurso técnico para
o diagnóstico e a adesão terapêutica. Na relação entre profissionais, esses
espaços são a base para o exercício da gestão participativa e da transdis-
ciplinaridade.
Na vertente moral, a humanização pode evocar valores humanitá-
rios como: respeito, solidariedade, compaixão, empatia, bondade, todos
valores morais7
pensados como juízos sobre as ações humanas que as de-
finem como boas ou más, representando uma determinada visão de mundo
em um dado tempo e lugar e, portanto, mutáveis de acordo com as trans-
formações da sociedade. A humanização propõe a construção coletiva de
valores que resgatem a dignidade humana na área da Saúde e o exercício
da ética, aqui pensada como um princípio organizador da ação. O agir
ético, neste ponto de vista, se refere à reflexão crítica que cada um de nós,
profissional da saúde, tem o dever de realizar, confrontando os princípios
institucionais com os próprios valores, seu modo de ser e pensar e agir no
sentido do Bem... Claro que seria um ato de violência se, em nome da hu-
manização, determinássemos quais os valores pessoais que cada um deve
ter. Entretanto, na dimensão institucional, tratam-se de valores fundamen-
tais para balizar a atitude profissional de todos com diretrizes éticas que
expressem o que, coletivamente, se considera bom e justo.
A ética, assim pensada, torna-se um importante instrumento contra
a violência e a favor da humanização.
Humanização e violência institucional
Na sua história, a humanização surge, então, como resposta espontâ-
nea a um estado de tensão, insatisfação e sofrimento tanto dos profissionais
quanto dos pacientes, diante de fatos e fenômenos que configuram o que
chamamos de violência institucional na Saúde. (Violência Institucional14
aqui se refere à expressão cunhada na História recente para definir a utili-
zação de castigos, abusos e arbitrariedades praticados nas prisões, escolas e
instituições psiquiátricas, com a conivência do Estado e da sociedade).
13
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
Na área da Saúde, a violência institucional decorre de relações so-
ciais marcadas pela sujeição dos indivíduos. Historicamente, a organiza-
ção hierárquica do hospital do século XIX foi uma importante estratégia
da Medicina da época moderna14
para o desenvolvimento da clínica e da
tecnologia médica. Aumentou o acesso da população ao atendimento e
propiciou grandes avanços técnicos. Entretanto, junto a esses progressos,
também se engendraram situações que tornaram o hospital lugar de sofri-
mento15
. O não reconhecimento das subjetividades envolvidas nas práticas
assistenciais no interior de uma estrutura caracterizada pela rigidez hie-
rárquica, controle, ausência de direito ou recurso das decisões superiores,
forma de circulação da comunicação apenas descendente, descaso pelos
aspectos humanísticos, e disciplina autoritária, fizeram do hospital um
lugar onde as pessoas são tratadas como coisas e prevalece o desrespeito à
sua autonomia e a falta de solidariedade15
.
A própria organização científica do trabalho (fortemente presente
na área da Saúde) fragmenta o processo que vai do início ao fim da pro-
dução, seja de bens, seja de serviços, deixando cada etapa do processo a
cargo de um grupo de trabalhadores que acaba tendo apenas a visão da
parte que lhe cabe e não do todo. Essa estratégia agiliza e multiplica o re-
sultado, entretanto cria um estado de alienação em relação à importância
de cada um para a realização completa da tarefa que, na área da Saúde,
tem como consequência a naturalização do sofrimento e a diminuição do
compromisso e da responsabilidade na produção da saúde.
Desenha-se, assim, um cenário social e institucional, em que a falta
de sensibilidade e de valores humanísticos abre espaço para que o com-
portamento violento (expresso em atos de brutalidade explícita ou sofis-
ticados disfarces da intolerância e do desprezo) passe a ser a norma e não
a exceção.
Outro fator que contribui para esse estado de coisas é a medicaliza-
ção do viver humano. Inicialmente, a medicalização se referia à transfor-
mação de problemas sociais em problemas de saúde. Por exemplo: antes de
encarnar no corpo, a fome é um problema da pobreza ou da educação, de-
pois de um tempo vira desnutrição. Combater a fome é diferente de tratar
a desnutrição do ponto de vista social (uma coisa é dar atenção à Saúde,
14
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
outra é mudar a distribuição de renda). Aos poucos, a medicalização foi
abrangendo problemas que em épocas anteriores não teriam a Medicina
como destino, mas sim outras áreas do saber. Com o aumento da crença
das pessoas no que consideram verdades científicas na área da Saúde, e a
decadência do valor socialmente dado às outras formas de compreensão
da existência humana, toda e qualquer expressão da vida passa por um
diagnóstico previsto em algum CID (Código Internacional das Doenças), e
busca remédio na Medicina. Assim, toda tristeza vira depressão, toda in-
quietação vira ansiedade e todo mundo procura os serviços de Saúde atrás
de respostas rápidas e deglutíveis, mesmo que não funcionem...
Ao lado desse fenômeno cultural da contemporaneidade, em nossa
realidade, o sucateamento dos serviços de saúde devido à má gestão da
coisa pública ou aos sempre insuficientes investimentos frente aos cres-
centes custos da Medicina Biotecnológica, levou à pletora do acesso aos
serviços e ao esgotamento dos profissionais para atender. Filas interminá-
veis, pacientes mal atendidos por profissionais mal remunerados e desva-
lorizados, e todo tipo de conflito passaram a ser comuns nessa arena assim
armada.
Como dito anteriormente, a humanização surgiu em resposta a esse
enredo, na forma de ações localizadas, e foi se instituindo até chegar,
hoje, à forma de uma política pública na área da Saúde. Não por acaso, a
humanização une suas primeiras vozes nos hospitais, fazendo coro a um
movimento contrário à situação em que há aqueles que mandam e deci-
dem e outros que obedecem e não opinam sobre nada. Nesse sentido, a
humanização buscava nas ações humanizadoras a recuperação não só da
saúde física, mas principalmente do respeito, do direito, da generosidade,
da expressão subjetiva e dos desejos das pessoas.
Humanização como política pública para a atenção e gestão no SUS
A humanização nasceu dentro do SUS. Os princípios do SUS16
são to-
talmente de inspiração humanista: universalidade, integralidade, equidade e
participação social. Levados às últimas consequências definem a humaniza-
ção em qualquer concepção, em qualquer instância de atenção ou gestão. Tal
caráter faz do SUS, hoje, o principal sistema de inclusão social deste país.
15
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
Enquanto na maioria dos hospitais privados a humanização foi tra-
tada como cosmética da atenção – recepcionistas jovens e bonitas, bem
vestidas e maquiadas, ambientes bem decorados que não devem nada aos
hotéis de luxo, frigobar no quarto e lojinha de conveniência –, nos hos-
pitais públicos e movimentos sociais a humanização escapa aos modelos
comerciais e recupera dos ideais do SUS a prática da cidadania.
Quase vinte anos depois da sua criação, o SUS é o sistema idealizado
para os anseios de saúde do povo brasileiro, mas é também o sistema de
saúde público que apresenta as contradições e heterogeneidades que ca-
racterizam a nossa sociedade: serviços modernos, e de ponta tecnológica,
ao lado de serviços sucateados nos quais a cronificação do modo obsoleto
de operar o serviço público, a burocratização e os fenômenos que caracte-
rizam situações de violência institucional estão presentes.
No ano 2000, o Ministério da Saúde, sensível às manifestações se-
toriais e às diversas iniciativas locais de humanização das práticas de saú-
de, criou o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospita-
lar (PNHAH). O PNHAH era um programa que estimulava a disseminação
das ideias da Humanização, os diagnósticos situacionais e a promoção de
ações humanizadoras de acordo com realidades locais. Inovador e bem
construído por um grupo de psicanalistas, o programa tinha forte acen-
to na transformação das relações interpessoais pelo aprofundamento da
compreensão dos fenômenos no campo das subjetividades.
Em 2003, o Ministério da Saúde passou o PNHAH por uma revisão, e
lançou a Política Nacional de Humanização (PNH)16
, que mudou o patamar
de alcance da humanização dos hospitais para toda a rede SUS e definiu
uma política cujo foco passou a ser, principalmente, os processos de gestão
e de trabalho. Como política, a PNH se apresenta como um conjunto de di-
retrizes transversais que norteiam toda atividade institucional que envolva
usuários ou profissionais da Saúde, em qualquer instância de efetuação.
Tais diretrizes apontam como caminho:
- A valorização da dimensão subjetiva e social em todas as práticas
de atenção e gestão fortalecendo compromissos e responsabilidade;
- O fortalecimento do trabalho em equipe, estimulando a transdisci-
plinaridade e a grupalidade;
16
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
- A utilização da informação, comunicação, educação permanente e
dos espaços da gestão na construção de autonomia e protagonismo;
- A promoção do cuidado (pessoal e institucional) ao cuidador.
Nessa vertente, a humanização focaliza com especial atenção os
processos de trabalho e os modelos de gestão e planejamento, interferindo
no cerne da vida institucional, local onde de fato se engendram os vícios e
os abusos da violência institucional. O resultado esperado é a valorização
das pessoas em todas as práticas de atenção e gestão, a integração, o com-
promisso e a responsabilidade de todos com o bem comum.
Para sua implementação16
, a PNH atua nos eixos de institucionaliza-
ção que operaram a mudança de cultura a que se propõe. Tais eixos com-
preendem a inserção das diretrizes da humanização nos planos estaduais e
municipais dos vários governos, nos programas de Educação Permanente,
nos cursos profissionalizantes e instituições formadoras da área da Saúde,
na mídia, nas ações de atenção integral à Saúde, no estímulo à pesquisa
relacionada ao tema, vinculando-os ao repasse de recursos.
Várias ações e indicadores de validação e monitoramento foram de-
senvolvidos pelo Ministério da Saúde para estimular e acompanhar os
processos de humanização não só nos hospitais, mas nos três níveis de
atenção à Saúde no SUS. A estratégia de criação e fortalecimento dos Gru-
pos de Trabalho de Humanização nas instituições (grupos formados por
pessoas ligadas ao tema e aos gestores dos serviços de Saúde, com o papel
de implementar a PNH na sua unidade) merece considerações à parte e
ajustes (veja último capítulo deste livro), mesmo assim mostrou-se exitosa
em vários locais, acumulando bons exemplos de trabalho na área.
Entretanto, a humanização só se torna realidade em uma instituição
quando seus gestores fazem dela mais que retórica, um modelo de fazer
gestão. Boas intenções e programas limitados a ações circunstanciais não
sustentam a humanização como processo transformador. Os instrumentos
que de fato asseguram esse processo são: a informação, a educação per-
manente, a qualidade e a gestão participativa.
Enfim, pensar a humanização como política significa menos o que
fazer e mais como fazer. Embora importantes, não são necessariamente as
ações ditas humanizadoras que determinam um caráter humanizado ao
17
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
serviço como um todo, mas a consideração aos princípios conceituais que
definem a humanização como a base para toda e qualquer atividade. Este é
o grande desafio: criar uma nova cultura de funcionamento institucional e
de relacionamentos na qual, cotidianamente, se façam presente os valores
da humanização.
Humanização e a gestão participativa
Com a PNH, a humanização alcança os processos de gestão e orga-
nização do trabalho nos serviços de Saúde, e a gestão participativa des-
ponta como modelo eleito para a realização dessa política. Quando fala-
mos em gestão participativa ou cogestão estamos nos referindo ao modo
de administrar que não se basta na linha superior de comando e inclui o
pensar e o fazer coletivo17
.
As estratégias para a gestão participativa nos serviços de Saúde de-
vem ser estudadas caso a caso, partindo do conhecimento das realidades
institucionais específicas, entretanto algumas ações que a propiciam em
qualquer contexto são:
- A criação de espaços de discussão para a contextualização dos
impasses, sofrimentos, angústias e desgastes a que se submetem os profis-
sionais de Saúde no dia-a-dia pela própria natureza do seu trabalho;
- O pensar e decidir coletivamente sobre a organização do trabalho,
envolvendo gestores, usuários e trabalhadores, em grupos com diversas
formações;
- A criação de equipes transdisciplinares efetivas que sustentem a
diversidade dos vários discursos presentes na instituição, promovendo o
aproveitamento da inteligência coletiva.
De um modo mais específico, a gestão participativa se dá por meio
da criação de instâncias de participação nas quais é possível considerar e
estabelecer consensos entre desejos e interesses diversos, por exemplo:
- O conselho gestor de saúde, que aglutina gestores, trabalhadores e
usuários para decidir os rumos institucionais;
- A ouvidoria, que faz a mediação entre usuários e instituição para
a solução de problemas particulares;
- As equipes de referência, que se compõem de profissionais que
18
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
juntos acompanham pacientes comuns ao grupo;
- Os grupos de trabalho de humanização, que fazem a escuta insti-
tucional e criam dispositivos comunicacionais;
- As visitas abertas, que propiciam as parcerias com familiares para
o cuidado de seus parentes.
Algumas ferramentas, como as pesquisas de satisfação dos usuá-
rios e dos trabalhadores, ou as pesquisas de clima institucional e de fato-
res psicossociais do trabalho (FPST), podem ser bastante úteis para certos
diagnósticos institucionais e para o planejamento da ambiência (ambiente
físico, social, interpessoal) e da organização dos processos de trabalho. (Os
FPST18
são dimensões referentes à gestão, organização e relações interpes-
soais no trabalho, que no ambiente físico e relacional podem produzir a
satisfação e o sentimento de realização, ou no seu revés, o sofrimento e o
adoecimento do trabalhador. Permitem o estudo de como os trabalhado-
res percebem a instituição, privilegiando o olhar subjetivo da experiência
do trabalho na vida das pessoas em determinado tempo e lugar. Os fatores
psicossociais que relacionam saúde e satisfação no trabalho abrangem: es-
tabilidade no emprego, salários e benefícios, relações sociais no trabalho,
supervisão e chefia, ambiente físico de trabalho, reconhecimento e valoriza-
ção, oportunidades de desenvolvimento profissional, conteúdo, variedade e
desafio no trabalho, qualificação, autonomia, subutilização de habilidades e
competências, carga de trabalho (física, cognitiva ou emocional.)
Particularmente importantes são as estratégias, metodologias e fer-
ramentas que se destinam ao desenvolvimento do profissional da área da
Saúde. Acreditamos que a possibilidade de promover atendimentos verda-
deiramente humanizados requer, necessariamente, a educação dos profis-
sionais da Saúde dentro dos princípios da humanização e o desenvolvi-
mento de ações institucionais visando ao cuidado e à atenção às situações
de sofrimento e estresse decorrentes do próprio trabalho e ambiente em
que se dão as práticas de saúde.
Nessa direção, a Educação Permanente19
é uma estratégia para o
exercício da gestão participativa que visa à transformação das práticas de
formação, de atenção, e de gestão, na área da Saúde. Baseada na apren-
dizagem significativa, a educação permanente constrói os saberes a partir
19
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
das experiências das pessoas. Nas rodas de conversa, oficinas e reuniões
discutem-se os problemas, propõem-se soluções gerenciais, mudanças na
organização do trabalho e definem-se ações educativas de acordo com as
necessidades observadas.
Dessa maneira faz-se da gestão participativa o caminho para a hu-
manização dos serviços. Entretanto, como há poucos gestores com forma-
ção técnica para essa metodologia, ainda são raras as experiências dessa
forma inovadora de fazer gestão de pessoas.
Humanização e a tecnologia do cuidado na assistência à saúde
Na assistência à Saúde, a supremacia do recorte biológico e o auto-
ritarismo dos discursos de saber e poder deflagraram crítica contundente
ao modelo biomédico de atenção. No aprofundamento do estudo das situ-
ações conjunturais associadas a esse fato, chegou-se ao que se pensa hoje
sobre a humanização na vertente da indissolubilidade da relação entre
atenção e gestão. Por outra linha do pensar (que também se articula com o
que expusemos até aqui neste artigo), o foco ilumina a relação do profis-
sional da saúde com o paciente e o resultado desse encontro.
Na Medicina, o tecnicismo da prática atual descartou os aspectos
humanísticos no cuidado à saúde12
. A biotecnologia aplicada à Medicina
propiciou indiscutíveis conquistas para o bem das pessoas (alguém hoje
consegue imaginar um procedimento cirúrgico, até mesmo de pequeno
porte, sem anestesia, por exemplo?). Estudos mostram que os recursos
tecnológicos, a visão centrada nos aspectos biológicos da doença, e a or-
ganização do trabalho médico para o atendimento de massa ampliaram o
acesso da população aos bens e serviços de Saúde, mas, em compensação,
criou um abismo entre o médico e o paciente.
A tecnologia que é determinante para aumentar a sobrevida humana
e para a diminuição drástica do sofrimento devido aos males que acome-
tem a saúde, tornou-se um intermediário que afasta os profissionais do
contato mais próximo e mais demorado com o paciente, não só por que
agiliza o atendimento e aumenta a produtividade contada em números,
mas também por que fascina e captura o interesse dos profissionais da
Saúde, particularmente dos médicos. Os pacientes passam, então, à con-
20
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
dição de objetos de estudo e manipulação na construção do saber e da
prática científica. E os profissionais, à condição de peças e engrenagens
que fazem funcionar a máquina institucional. O tecnicismo perde de vista
estados vivenciais importantes para a realização do cuidado à saúde.
Já no modelo psicossocial agregam-se saberes de teorias compre-
ensivas sobre o vínculo, capazes de desvendar atitudes e emoções que
facilitam ou impedem o bom diagnóstico e a aliança terapêutica20,10. Por
exemplo, a Psicanálise ensina que, ao adoecer, a pessoa vive um processo
que chamamos de regressão narcísica21
, que, em graus variáveis de acordo
com a história pessoal, a personalidade e a gravidade de sua doença a
torna mais frágil, mais sensível e mais dependente daquele que lhe presta
cuidados. É como se o paciente, inconscientemente, voltasse aos tempos
em que era cuidado por sua mãe e dela dependia para sua sobrevivência.
Desconsiderar esse estado, ou tratar o paciente com displicência, superfi-
cialidade ou mesmo pressa e desatenção às suas emoções, não é só uma
falha ética, mas sim um erro técnico que pode provocar danos para o pa-
ciente e o fracasso do tratamento. Por outro lado, não se trata de entender
o paciente como infantilizado e desconsiderar sua autonomia, o que seria
além de antiético, o descumprimento de um direito dos usuários de servi-
ços de saúde22
. Ou seja, não basta bom senso e paciência, é preciso que o
profissional aprenda teorias e técnicas relacionais.
Entretanto, mesmo conscientes da importância do campo da sub-
jetividade na Saúde, da ênfase dada ao princípio da integralidade e do
desenvolvimento de tecnologias leves destinadas ao aprimoramento da
atenção (particularmente no campo da atenção básica à saúde20
), para a
maioria dos profissionais, o modo tecnicamente humanizado permanece
como utopia – aquele que seria o jeito certo de fazer, mas não dá ou não
adianta.
O grande nó ainda não desatado talvez tenha a ver com a necessida-
de de desenvolver nos profissionais o interesse legítimo pelo paciente. Ta-
refa nada fácil nos tempos atuais, em que, como discutido anteriormente,
prevalece o individualismo e o jeito narcísico de ser, inclusive na própria
formação acadêmica dos profissionais da Saúde.
21
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
Humanização e ensino médico
Embora a PNH tenha como um dos seus eixos de implementação a
inserção das diretrizes da humanização nas escolas formadoras de pro-
fissionais da área da Saúde, na prática, sua presença no ensino superior
ainda é pálida e sôfrega.
No ensino médico, há algum tempo, várias escolas daqui e de ou-
tras partes do mundo colocaram disciplinas de humanidades médicas nos
seus currículos de graduação. As experiências são bem heterogêneas, mas
é comum a dificuldade de integração dos temas humanísticos ao escopo
da Medicina23
. Ainda que essenciais para a boa prática médica, para mui-
tos alunos e professores as disciplinas de humanidades médicas são tidas
como prescindíveis e desinteressantes.
A humanização se inscreve como um tema dentro dessas disciplinas,
mas frequentemente é abordada de forma superficial e periférica. Na nossa
experiência de trabalho em uma disciplina de humanidades, percebemos
que os alunos desconhecem completamente a abrangência significativa da
humanização nas práticas de saúde. Ao final das discussões sobre o tema,
mostram-se bastante surpresos ao descobrir que se trata de algo bem mais
complexo e bem mais diretamente ligado ao exercício da Medicina do que
as ideias de “ser bonzinho”, “ser educado” e “agradar ao paciente” que tra-
zem nas suas associações ao tema e traduzem preconceito e descaso com
o que mal conhecem.
Por outro lado, embora muitos hospitais-escola tenham Comitês de
Humanização, o tema ainda é relativamente recente no cotidiano da maio-
ria das práticas de atenção e ensino15. Sobre esta questão, no Seminário
Internacional de Gestão – Mostra SES-SP de 2008, uma pesquisa realizada
com residentes do primeiro e último ano da Residência Médica do Hospital
Heliópolis da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo24
– para a qual
convergem alunos formados em diferentes escolas do estado – revelou
dados curiosos. Na entrada à Residência, os médicos apresentavam vaga
noção do que seria humanização, considerando-a mais focada na quali-
dade da relação médico-paciente. Na saída da Residência, a maioria deles
apresentou maior falta de informação e de interesse pelo assunto, inclusive
considerando que a humanização tem menos a ver com o seu trabalho e
22
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
mais com o serviço de voluntários, a administração hospitalar, os psicólo-
gos e assistentes sociais.
Esses achados corroboram nossas observações tanto no que se refere
à timidez com que o tema está inscrito na formação médica, quanto ao fato
de que ainda é prevalente nos hospitais a ideia da humanização voltada para
ações pontuais que amenizam as tensões cotidianas da vida intra-hospitalar.
Outra observação importante é que além de não ter havido acréscimo no seu
aprendizado ao longo da Residência, houve uma distorção do que trata a
humanização e a sua importância no trabalho médico.
Estudos que vão ao encontro da compreensão do papel da tecnolo-
gia e das mudanças sociais do trabalho médico11
, ou do atendimento hos-
pitalar 15 mostram que as transformações tecnológicas da Medicina e o
modo como se organiza hoje o trabalho médico não favorecem o discurso
e a prática da humanização. A própria mudança do PNHAH para a PNH
(que aumenta o campo iluminado da humanização, mantendo foco nas re-
lações intersubjetivas, mas acentuando a necessidade de mudar processos
de gestão e organização do trabalho na área da Saúde) tem como base a
realidade descrita nesses e noutros trabalhos.
Parece fundamental que o ensino da humanização na formação mé-
dica deve partir da conscientização do tema em todos os âmbitos nos quais
se dá o aprendizado. É preciso que os hospitais-escola desenvolvam a PNH
no seu dia-a-dia, ao mesmo tempo em que as disciplinas de humanidades
curriculares trabalhem seus conteúdos com os alunos, em um verdadeiro
movimento de integração serviço-escola.
Outro aspecto fundamental para o desenvolvimento da humaniza-
ção no ensino médico é a inclusão dos seus princípios e diretrizes na ges-
tão educacional, e a presença de espaços de construção de subjetividade,
escuta e exercício de reflexão sobre a vida de estudante e de médico, como
se observa nos programas de tutoria25
.
Na condição de espaços nos quais se cultiva o vínculo, o respeito à
diferença de opinião, a construção coletiva de ideias e juízos sobre os mais
diversos temas do cotidiano médico, os programas de tutoria são locus
privilegiados para o cultivo da humanização no ensino médico. Cenário
que abriga histórias de vida, vivências comuns ao estudante de Medicina,
23
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
situações que podem estar na frente ou atrás dos panos e que podem e
devem ser conscientemente abordadas, trocando o cinismo pela ética.
Do caminho percorrido ao que ainda temos que percorrer...
No tempo em que na Medicina havia poucos recursos para o diag-
nóstico e tratamento, a presença do médico ao lado do paciente, obser-
vando-o minuciosamente, acompanhando sua evolução, ampliando seu
conhecimento acerca da sua vida e hábitos, eram atitudes necessárias para
o próprio exercício da profissão11
. Essa atitude, mais próxima ao que hoje
se postula para a humanização das práticas, não era algo da ordem do
amor ao próximo, como, ingenuamente, uma certa visão romântica tende
a insinuar. Vários relatos da história da Medicina mostram o grande inte-
resse científico dos médicos na busca de soluções para os males do corpo,
alguns levados pelo altruísmo, outros pela vaidade26
. Durante muito tem-
po, a proximidade com o paciente era quase um imperativo técnico para o
exercício da boa Medicina11
.
As mudanças sociais e culturais que atravessaram os tempos desde
essa época transformaram a face da Medicina e das práticas de saúde, che-
gando ao contexto que discutimos neste artigo e suas implicações no surgi-
mento da humanização na Saúde. Começando por ações isoladas, pontuais,
amadoras, a humanização foi desenvolvendo conceitos e tecnologias para
sua aplicação tanto no campo das relações profissionais-pacientes, quanto
no campo da gestão, chegando à forma de política pública na Saúde.
Entretanto, a falta de compreensão mais profunda da dimensão psi-
cossocial que envolve os processos saúde-doença, a falta de compromis-
so com o resultado do trabalho, a falta de decisões compartilhadas com
pacientes, de projetos assistenciais discutidos em equipe multidisciplinar,
e mesmo de gestão participativa nos serviços de Saúde, tornam a huma-
nização do cuidado um projeto ideal ainda bem distante da realidade dos
serviços de Saúde.
Trabalhamos durante vários anos junto aos hospitais públicos
da Secretaria de Estado da Saúde coordenando a Área de Humanização e
pudemos observar que além desses problemas estruturais referentes princi-
palmente à gestão dos serviços, há um outro lado do problema que, menos
24
HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
evidente e mais entranhado na cultura dos serviços, também dificulta mui-
to as mudanças de comportamento que a humanização advoga. Trata-se
do que cada profissional espera da sua profissão. Para muitos, o trabalho
é o dever a ser cumprido para dar direito ao salário. Para outros é também
caminho para a satisfação pessoal, a superação de desafios, o prazer de ser
alguém que faz diferença na vida dos outros, e na própria vida.
De acordo com nossa experiência e ponto de vista, a humanização
só terá assegurado seu lugar na relação do profissional com o paciente
quando se mostrar indispensável para os bons resultados que o profissio-
nal deseja de si mesmo no seu trabalho27
. Para isso, há que se provocar (se
é que isso é possível) uma descoberta fundamental na vida dos profissio-
nais de Saúde: a recuperação do desejo e do prazer de cuidar, algo que, de
tão distante dos valores culturais que predominam na contemporaneidade,
parece irremediavelmente perdido, mas quem sabe...
Aí então, a necessidade de bem cuidar será sentida como uma dis-
posição que pode mover o desejo de aprender um outro jeito de ser e fazer
o encontro clínico no campo intersubjetivo e, mais além deste, realizar a
humanização em toda sua amplitude.
	
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HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
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VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
CAPÍTULO II
28
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
A capacidade de ver
José Saramago, em seu “Ensaio sobre a cegueira” (p. 10) retira do
Livro dos Conselhos a epígrafe1
:
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
E nos faz mergulhar numa história fantástica na qual uma misterio-
sa epidemia de cegueira branca acomete as pessoas de um país e, à medida
que cada vez mais pessoas não podem ver o mundo, preocupadas consigo
mesmas e sua sobrevivência individual, destroem-se as bases da organi-
zação social vigente e se instala um estado de coisas em que domina o
espírito do “salve-se-quem-puder”, a “lei do mais forte”, o individualismo,
a ganância, o colapso de valores humanistas. O resultado é uma socieda-
de caótica, destrutiva e suicida. Os personagens que conseguem manter
princípios éticos e ações solidárias, sustentando uma organização coletiva
baseada no respeito e cooperação, são os que escapam de ser tragados pela
violência de uma multidão cega, potencialmente assassina, que percebe os
outros como inimigos.
O autor tece uma analogia entre a perda da visão e a progressiva
perda da humanidade decorrente do egoísmo de quem não consegue en-
xergar o mundo como um lugar a ser compartilhado por todos, mas um
lugar hostil que se presta a prover necessidades particulares.
Qualquer semelhança com situações das sociedades contemporâneas
certamente não é mera coincidência. Saramago escreveu esse romance
com clara intenção de fazer uma contundente crítica à dissolução de va-
lores éticos e alertar sobre a decadência humana e social que acomete a
sociedade quando esses valores entram em crise.
Por isso, a epígrafe nos precipita à responsabilidade: se podemos
ver o que está acontecendo, devemos buscar a reparação. Ver, conhecer,
refletir sobre si mesmo, os outros e as situações que nos envolvem em
contexto particular e coletivo. É o princípio da ética, da cidadania, da
humanização.
Princípio que emerge da concepção de homem comum no lugar so-
cial e tempo histórico da modernidade. Podemos dizer que a noção de
cidadania2 que temos hoje (um sistema de direitos e deveres que se apli-
cam a todos os membros de uma sociedade) é uma evolução cujo ponto
29
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
de partida foram as modificações econômicas, políticas e sociais que se
iniciaram a partir do século XVI.
O mercantilismo e a criação de bases para o desenvolvimento do
capitalismo3,4,5
iniciante exigiu uma sociedade organizada sob o esque-
ma político representado pela figura do Estado, cuja consolidação se deu,
principalmente, através da modificação do conceito do lugar do homem
comum na sociedade. Cada indivíduo passou a ser importante porque o Es-
tado construiu seus alicerces na coletividade. Nas sociedades capitalistas,
o homem comum é chamado de cidadão e ocupa um lugar estratégico na
sua constituição, dinâmica e sobrevivência, e as instituições surgem como
dispositivos de ação para a organização da sociedade e manutenção da
ordem. Nesse contexto, a vida como valor máximo do ser humano passa
a ter uma importância particular, quando a esse valor supostamente na-
tural agregam-se outros que permitem o uso das práticas de saúde como
estratégia de ação sobre a população para, através da promoção da saúde
e da reprodução, manter-se a vida, a saúde da força de trabalho e na con-
temporaneidade, o consumo.
Entretanto, nessa configuração da sociedade em que todos são di-
tos cidadãos – teoricamente com direitos iguais (inclusive de acesso a
bens), mas que na lógica capitalista não estão ao alcance de todos – não
se mantém a ordem das coisas sem que opere a violência3,6,
nos seus mais
diversos matizes.
A violência7
aparece como problema histórico e social em todas as
sociedades, e nas sociedades da modernidade aparece como instrumento
de organização e dominação. A violência revela estruturas de dominação
de classes, grupos, indivíduos, etnias, faixas etárias, gêneros, nações e sur-
ge como resultado de tensões entre os que querem manter certos lugares e
privilégios e os que se rebelam contra eles, não necessariamente por sede
de justiça, mas muitas vezes apenas por fome de poder...
Na nossa sociedade, a violência8
se revela estrutural ante a desigual-
dade social e a incapacidade do Estado de suprir as necessidades de toda
população, criando um contingente de excluídos que não tem meios para
exercer seus direitos e deveres cidadãos. A exclusão social não é só uma
questão de pobreza, mas principalmente de ausência de poder público e
30
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
sua substituição por um poder paralelo, marginal e violento cujas regras
não respeitam as leis do coletivo, porque nesses espaços de não-governo
instauram-se domínios que governam com regras particulares.
Vivemos em uma sociedade violenta9
: em 2006, as causas externas
foram a terceira causa de morte na população brasileira, sendo que entre
essas, os homicídios ocuparam o primeiro lugar. Não se tratam só dos atos
de brutalidade criminosos (que já são bastante altos), o que cada vez mais
chama a atenção é a prevalência de um modo subjetivo de lidar com situ-
ações cotidianas e resolver conflitos pelo uso da violência.
Na contemporaneidade10
, o individualismo e a desigualdade relati-
vos ao modo capitalista de organização social, a deterioração e descrença
nas instituições, as rupturas na malha de apoio social e a banalização da
violência pela mídia tornam o viver violento um modo de estar no mundo
quase aceitável, uma vez que a essas situações agregam-se valores que
alimentam tal comportamento:
- A competitividade extrema que coloca o outro no lugar do inimigo
em potencial e não como parceiro;
- O culto ao machismo e à força bruta como expressão de poder e
virilidade;
- A adoção de figuras sociais de exuberante comportamento narcí-
sico como modelos identificatórios;
- A capacidade de consumo como valor maior que a capacidade
ética na construção da identidade pessoal;
- A busca do prazer fácil e imediato;
- A velocidade e superficialidade dos contatos interpessoais, valen-
do mais a quantidade e o valor instrumental das relações, que a qualidade
do encontro;
- A desqualificação de outros modos de pensar a existência humana
(senso comum, Religião, Filosofia, Arte e Ciência) em favor do limitado
discurso da ciência positivista;
- A desvalorização da vida, a coisificação das pessoas;
- A medicalização, ou a transformação do mal-estar existencial (não
mais representado em outros campos do saber) em vago e doloroso mal-
estar, vagando pelo corpo.
31
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
Fatores psíquicos individuais11
também contribuem para o com-
portamento violento, entretanto cabe lembrar que tais fatores são cons-
titutivamente dependentes da cultura. Estudo de Vethencourt11
com jo-
vens delinquentes pobres da Venezuela revelou, em suas histórias de vida,
crianças que cresceram em ambiente pobre material e afetivamente, em
meio a situações de violência e ausência de expectativas de realização
de projetos pessoais. Tais jovens apresentavam desestruturação sutil da
personalidade, desorganização do comportamento em relação a valores
socialmente aceitos, regressão e reativação de núcleos de violência narcí-
sicos, perda do autocontrole pela estigmatização, recrudescimento da raiva
contra o outro e contra o próprio grupo.
Enfim, em uma visão macroscópica, a violência é um problema so-
cial, histórico e cultural que decorre de relações sociais marcadas por con-
tradições e diferentes formas de dominação, presente em todas as socieda-
des, em tonalidades e graus de aceitação variáveis.
O comportamento violento é instrumental, latente nos valores cultu-
rais vigentes, e manifesto no modo de ser cotidiano das pessoas. A opinião
pública condena a violência, mas admite situações em que é aceitável,
protegida e mesmo naturalizada. Instituições respeitáveis como a família
(no que tange à violência doméstica), a escola, as empresas, o hospital, nos
seus bastidores “podem” se amparar em ideologias que sustentam o uso da
violência como meio.
Aproximando nossa lente para o campo das subjetividades7
, a vio-
lência se apresenta como um modo de relação humana, um comportamento
que se molda dentro da cultura e dos valores reproduzidos nas instituições,
começando pela família e depois avançando para outros espaços sociais. É
assustador, mas, nesta sociedade, com frequência, dependendo do momento
ou situação estaremos correndo o risco de sermos vítimas ou algozes.
O território da cegueira branca...
Nas instituições, a violência decorre da cultura geral de violência
de que falávamos e da organização visando a manutenção da ordem que
consolida lugares de poder e controle dos sujeitos.
Sobre a instituição12
devemos lembrar que ela é condição básica
32
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
do desenvolvimento humano. Produto das interações humanas. Nascemos
numa família, crescemos construindo nossa identidade nos grupos que
participamos, seja a escola, a religião, o trabalho, a tribo. Portanto, sempre
estaremos ligados uns aos outros em graus variáveis. A questão, portanto,
não é crucificar a instituição, mas perceber suas várias finalidades, pensá-
las e transformá-las a partir de valores éticos revigorados.
Na dinâmica institucional12
, o modo de relação que está na base de
qualquer tipo de violência, a relação de domínio e submissão, também
se apresenta no que chama de violência institucional na Saúde. Segundo
Foucault, a violência institucional3
historicamente se engendrou nos presí-
dios, escolas, instituições psiquiátricas, que usavam o castigo moralmente
legitimado pela sociedade.
A violência institucional na área da Saúde decorre de relações so-
ciais marcadas pela sujeição dos indivíduos. Data na transformação do
hospital antigo no hospital moderno3,5
, sob os então “novos” métodos
organizacionais. Historicamente, foi se configurando desde o controle,
a alienação e o não reconhecimento das subjetividades envolvidas nas
práticas assistenciais. Na vertente da organização científica do trabalho
criaram-se as castas dos que pensam e dos que obedecem, levando-se ao
estado de alienação do sujeito em relação ao seu trabalho, à instituição e
ao contexto social em que se inscreve a sua prática que não só torna seu
trabalho mecânico e sem sentido como potencialmente violento, porque
perde qualidades fundamentais para o contato técnico e sensível necessá-
rio às relações intersubjetivas na Saúde.
O assim chamado institucionalismo11
resulta dessa forma de violên-
cia e faz com que a instituição de saúde passe a provocar doença ao invés
do cuidado e da cura. Fatores que levam ao desenvolvimento do quadro
clínico são:
- Uso da disciplina e rigidez hierárquica para organização e controle
do trabalho;
- Supremacia do fenômeno biológico e da intervenção sobre um
corpo descontextualizado de sua história;
- “Dessubjetivação” das pessoas envolvidas nas práticas;
- Desenvolvimento de especialidades e tecnologias que fazem a clí-
33
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
nica das doenças e não a clínica das pessoas historicamente constituídas;
- Hegemonia do discurso médico em torno do qual orbitam discursos de
outras disciplinas, na maioria das vezes construídos sobre o mesmo modelo;
- Uso do discurso do saber para o exercício do poder e de diversos
tipos de comportamento de dominação e submissão tanto entre profissio-
nais, quanto em relação aos pacientes;
- Formas de comunicação apenas descendentes e ausência de direito
ou recurso das decisões superiores.
Por outro lado, temos que considerar alguns elementos mais sutis
que escapam a essa constatação sobre o modo como se encontra hoje a
vida institucional na Saúde. Lembremo-nos de que, em cada época, se
constroem saberes legitimados socialmente, diretamente implicados nas
práticas sociais, entre as quais a Saúde.
Na nossa sociedade coloca-se a ciência positivista como hegemô-
nica4 e desautoriza-se outros campos que anteriormente davam respostas
às inquietações humanas como a Arte, a Religião, a Filosofia, os espaços
coletivos de reflexão. Com isso, a sociedade ganha eficiência nas áreas
tecnológicas, mas perde sustentação humanística para compreender a sub-
jetividade humana.
Por exemplo: diminuindo as vias de escoamento representacional,
o mal- estar existencial passa a ser percebido como sensação de doença
e requer respostas na Medicina, no remédio, na intervenção no corpo13
.
Acrescente-se a maior ou menor vulnerabilidade psíquica e biológica de
cada um para o surgimento da patologia mental e temos a prevalência
crescente dessas patologias: estados depressivos, estados ansiosos e fóbi-
cos, somatizações, adições (obesidade, alcoolismo, abuso de drogas).
Consoante a essa demanda, desde a década de 1970 vem se desen-
volvendo um modo de fazer clínica psiquiátrica que se apoia preferencial-
mente na teoria dos neurotransmissores e no uso de drogas, tanto para
os casos em que os sintomas são indiscutíveis manifestações reativas a
situações inerentes ao estar vivo, quanto aos casos de indicação precisa.
Passamos da fase em que todo comportamento incompatível aos ide-
ais da sociedade burguesa era passível de internação e a loucura3 estava
ligada à paixão, à falta de reflexão, contrapondo-se ao juízo e à virtude.
34
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
Os avanços médicos do século XX desenvolveram outras referências para
a patologia mental, menos apoiadas no juízo moral do comportamento
desviante e mais “científica” dentro dos princípios da Medicina moderna.
Entretanto, indo de um extremo para o outro nos encontramos diante da
absurda situação que nos coloca os códigos de classificação de doenças2
,
no seu furor nosográfico que patologiza as expressões humanas em todas
suas nuances, prestando-se muito mais aos interesses pecuniários dos se-
guros saúde e ao progresso das vendas de psicofármacos pelas indústrias
farmacêuticas, que aos propósitos terapêuticos a que se destinariam por
princípio.
Nesse sentido, a humanização na Saúde (contra a violência institu-
cional) chama à reflexão sobre em que se apoiam nossos saberes e práticas
e quanto somos carregados por determinações sociais que imprimem inte-
resses na nossa atividade.
Longe da cegueira, perto da humanização
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”
Retomo a epígrafe porque acredito que esse é o nosso movimento
de escolha.
Pensar a humanização, sob o ponto de vista que adotei neste traba-
lho, diz respeito a pensar em que contexto sociocultural se engendram as
patologias e as práticas de saúde das quais somos agentes.
Vivemos numa sociedade complexa10
, que, entre outros aspectos, se
caracteriza pela velocidade e profusão de informações, superficialidade
das relações afetivas e desarticulação dos universos simbólicos que tecem
a malha de apoio social do indivíduo no coletivo. Preconiza-se o livre
acesso aos bens de consumo sem que se forneçam democraticamente os
meios práticos para o seu alcance. Exaltam-se o individualismo, a compe-
titividade e o sucesso pessoal à custa da neutralização das diferenças e o
acomodamento a modelos idealizados de bem-estar e prazer que limitam
expressões diversas das subjetividades e não são possíveis a todos.
Nesse meio, as patologias e principalmente as mentais reproduzem
no cenário da vida privada o modo de funcionamento social sustentado na
contradição, alienação, isolamento e angústia.
35
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
Se deslocarmos nosso foco de observação para o interior das institui-
ções de Saúde12
, não será surpresa perceber que também nelas essas vivên-
cias se expressam, em graus variáveis. Subliminarmente, a não consciência
da estrutura maior em que estamos imersos reproduz tudo aquilo que obser-
vamos como características das sociedades contemporâneas: aprisionamen-
to a valores descontextualizados, alienação, indiferenciação, individualismo
e o aniquilamento das chances de manifestações de subjetividade.
Voltando às nossas reflexões iniciais, consideramos que as ações de
promoção da saúde devem ter como base a compreensão da vida humana
na diversidade de suas expressões individual e coletiva. Tal atitude pressu-
põe a consciência de que todos nós estamos imersos nesse universo histó-
rico de representações da vida, do prazer, do sofrimento, da morte, no qual
se armam encruzilhadas que, para alguns, é a captura para a doença.
Os vários discursos na instituição constituem-se da sobreposição
do sujeito psíquico (que comporta a dimensão de cada história pessoal)
no sujeito institucional (lugar de representação, de imagos culturais, de
papel social). Recuperar o lugar dessas duas dimensões é a perspectiva da
humanização.
A humanização como reação à violência institucional na Saúde bus-
ca recuperar o lugar das várias dimensões discursivas dos sujeitos que
atuam ou recorrem às instituições de saúde, desconstruindo relações de
dominação-submissão e dando lugar à construção de saberes compartilha-
dos e o desenvolvimento dos potenciais de inteligência coletiva14
definidos
por Levy como “a valorização, a utilização otimizada e a colocação em si-
nergia das competências, imaginações e energias intelectuais, independen-
temente de sua diversidade qualitativa e de sua localização” (Levy, 1993,
p.36), que se traduz na comunicação, no debate e na divulgação das ideias
para a construção de projetos e ações coletivas em sinergia com princípios,
missão e visão institucional coletivamente construídos.
Cabe novamente perguntar: qual é o nosso papel como agentes de
Saúde nessa sociedade?
Não temos como negar que respondemos por pelo menos duas fun-
ções, uma manifesta, outra nem tanto. Nossa função manifesta é a promo-
ção da saúde, e a outra é a criação de respostas para conflitos inerentes à
36
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
vida na sociedade que, direta ou indiretamente, recaem sobre os corpos.
Nessa vertente, tanto quem pratica quanto quem recebe cuidados de
saúde está exercendo cidadania. E mais, ambos estão atuando no campo
dos direitos, em contraponto à violência. Os direitos humanos15
consti-
tuem um sistema de conhecimento e prática que busca integrar direitos
subjetivos com direitos sociais – algo absolutamente em sintonia com a
humanização.
Os direitos subjetivos falam das liberdades individuais, e os direitos
sociais, dos direitos que devem ser garantidos pelo estado: saúde, trabalho,
educação entre outros.
Os direitos absolutos são exatamente o campo do nosso trabalho e
a base de qualquer perspectiva de cidadania tanto para os profissionais
quanto para os pacientes. Entre eles estão: o direito à vida, a não ser dis-
criminado, a não ser torturado ou receber tratamento ou punição cruel,
desumana ou degradante, a ser reconhecido como pessoa perante a lei e à
liberdade de pensamento.
O bom cuidado da saúde é um direito humano e quando podemos
exercer nossas atividades profissionais decentemente estamos exercendo
nossos direitos de cidadão, caso contrário estamos no meio da encenação
de uma farsa, cegos ou não.
Para finalizar, gostaria de lembrar a crônica de Carlos Drummond
de Andrade,16
nos dizendo da fixação humana pelo verbo matar, que des-
liza seu desejo homicida nos vértices de inocentes expressões linguísticas
cotidianas com as quais vivemos matando o tempo, matando a fome. Ma-
tamos aula, matamos charadas. Nosso dedo polegar é o mata piolhos. E
termina brincando e nos chamando a refletir que:
“Se a linguagem espelha o homem, e se o homem adorna a lin-
guagem com tais subpensamentos de matar, não admira que os atos de
banditismo, a explosão intencional de aviões, o fuzilamento de reféns, o
bombardeio aéreo de alvos residenciais, as bombas e a variada tragédia dos
dias modernos se revele como afirmação cotidiana do lado perverso do ser
humano. Admira é que existam a pesquisa de antibióticos, Cruz Vermelha
Internacional, Mozart, o amor.” (1993, p.67.)
Não sei por quê... Mas acredito no poeta!
37
VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO
Referências Bibliográficas
1. Saramago, J. Ensaio sobre a cegueira, São Paulo, Companhia das
Letras, 1995.
2. Bezerra Jr, B. org. Cidadania e Loucura, Petrópolis, Editora Vozes e
Abrasco, 1987.
3. Foucault, M. Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1986
4. Mendes Gonçalves, R. B. Medicina e história: raízes sociais do tra-
balho médico, tese de doutorado, FMUSP, 1979, mimeo.
5. Foucault, M. O nascimento da clínica, Rio de Janeiro, Forense-Uni-
versitária, 1977.
6. SBPC, Violência, Revista Ciência e Cultura, nº.1, 2002.
7. Costa, J.F. Violência e Psicanálise, Rio de Janeiro, Graal, 1986.
8. Minayo, M.C. Violência e Saúde como um campo interdisciplinar e de
ação coletiva, História, Ciências, Saúde vol.IV, nov 1997-fev 1998.
9. Ministério da Saúde, Saúde Brasil 2006: Uma análise da desigual-
dade em saúde, Brasília-DF, 2006.
10. Birman, J. Mal Estar na Atualidade, Rio de Janeiro, Civilização Bra-
sileira, 2001.
11. Vethencourt, J. L., Psicología de la violencia. Gaceta APUCV/IPP,
62: 5-10, 1990.
12. Souza, M. L. R. O Hospital: um lugar terapêutico? Percurso nº.9, 2,1992.
13. Benoit, P. Psicanálise e Medicina. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1989.
14. Levy, P. As tecnologias da Inteligência – O futuro do pensamento na
era da informática. São Paulo: Editora 34, 1993
15. Ayres, J. R., Calazans, G., França Jr, I. “Saúde coletiva e direitos huma-
nos – um diálogo possível e necessário” Anais do VI Congresso Brasileiro
de Saúde Coletiva.
16. Andrade, C. D De notícias e não-notícias faz-se a crônica, Rio de
Janeiro, Record, 6ª. Ed, 1993.
O Realce à Subjetividade:
assim começa a Humanização
na atenção à Saúde
CAPÍTULO III
40
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
“Porque eu sou do tamanho do que vejo, e não do tamanho da minha
altura.” Alberto Caieiro
Para começar...
O primeiro princípio norteador da PNH “A valorização da dimensão
subjetiva e social em todas as práticas de atenção e gestão”1
, logo no início
da sua cartilha, destaca a importância da dimensão subjetiva na Humani-
zação, dimensão esta que, ao longo do último século, foi se esmaecendo
das práticas até a quase total desconsideração2
, muito embora, inerente à
condição humana, jamais possa desaparecer. Mas, o que se quer dizer com
valorizar a dimensão subjetiva, ou em outros termos, trabalhar no campo
da subjetividade na área da Saúde?
Minha proposta neste texto é fazer algumas reflexões sobre essa
questão, particularmente no que se refere à atenção, sem pretensão de dar
conta do assunto, mas com desejo de aproximação ao tema. Para começar,
vou assumir a redação na primeira pessoa do singular, porque se trata da
minha visão sobre o assunto, e por que me parece meio estranho falar de
subjetividade usando uma linguagem que não considera a própria...
É possível que há uns bons anos, mais precisamente até a década
de 1940, a relação médico-paciente fosse mais próxima, e nesse sentido
mais humana, uma vez que diante de tão poucos recursos diagnósticos e
terapêuticos, a proximidade do médico com seu paciente era quase um
imperativo técnico3
para o seu ofício. No clássico Tratado de Medicina
Interna de Cecil4
, Lewis Thomas ilustra essa afirmação ao narrar uma im-
pressão sua guardada da infância a respeito dos poucos recursos da Medi-
cina e a dedicação do médico, no caso, seu pai: “Há aqui um mistério, e
esse é um aspecto da medicina que tem sido esquecido por muitas pessoas,
médicos e pacientes. Uma vez identificada a natureza da enfermidade e a
notícia transmitida ao paciente, aconteciam várias outras coisas. Primei-
ro, o médico assumia a responsabilidade pelo desfecho, fosse ele o melhor
ou o pior. E talvez mais importante que tudo, ele se tornava um arrimo.
Tornar-se um arrimo significava passar aos fatos, o que o médico fazia:
ele podia não ter muito na sua maleta preta e não ter poções mágicas para
servir e certamente nada que pudesse colocar ou tirar de um computador,
Heterônimo de Fernando Pessoa – “ Guardador de Rebanhos” , Poemas Completos
de Alberto Caeiro, Editora Martin Claret, 1ª. ed., 2006.
41
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
porém ele tinha sua presença e aí estava a diferença. Sir William Osler
costumava ensinar que isso poderia fazer toda a diferença do mundo, caso
o médico entendesse o que estava ocorrendo ao seu paciente e usasse essa
compreensão e se tornasse disponível ao mesmo tempo como uma fonte de
esperança e força, esses atos de habilidade profissional poderiam melho-
rar a situação. Eu acredito nessas coisas, mesmo que não as compreenda
bem.” (Cecil, 1984, pp. 38-39) A presença do médico e o cuidado possível
pelo conhecimento e compreensão da situação do paciente são tidos pelo
autor como atos de habilidade profissional.
As grandes mudanças que marcaram nossa História contemporâ-
nea5 refletem-se na área da Saúde em cenários nos quais nessa antiga
mala preta (que hoje mais parece uma bolsa de Mary Poppins) há muito
mais recursos para diagnosticar, intervir e medicar, e cada vez menos a
presença realmente interessada e disponível do médico, e sejamos justos,
não só deste, mas de toda estrutura do serviço de Saúde, que acaba se
configurando em um labirinto frio e impessoal. Mudanças no processo
de trabalho médico3
decorrentes da capitalização da Medicina e o aparato
institucional e tecnológico interposto na relação com o paciente, assim
como a organização hierárquica, a comunicação descendente e a gestão
centralizada dos serviços respondem por grande parte do mal-estar das
instituições de Saúde. Mal-estar que desencadeou movimentos teórico-
práticos6
que hoje se agregam sob a bandeira da Humanização, que bem
antes de ser política pública (Política Nacional de Humanização – PNH),
se expressava na luta antimanicomial, na humanização do parto e nasci-
mento, na criação de ambientes hospitalares mais acolhedores, partindo
do ponto comum de tentar ultrapassar o recorte biológico e alcançar as
muitas dimensões existenciais da pessoa que busca atenção à saúde (e da
que lhe atende!).
Com certeza, o primeiro nó crítico da realidade das práticas de Saúde
que, sob o enfoque da humanização, procurou-se desatar foi a questão da
“dessubjetivação” dos envolvidos nessas práticas. Por esse caminho, uma
das primeiras conceituações7
adotadas na Secretaria de Estado da Saúde de
São Paulo para a Humanização dizia: “Humanização é o processo de trans-
formação da cultura institucional que reconhece os aspectos subjetivos das
42
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
relações humanas, os valores socioculturais e os funcionamentos institu-
cionais na compreensão dos problemas e elaboração de ações de saúde,
melhorando as condições de trabalho e a qualidade do atendimento.” (Rios,
2003, pp.20), conceito que pouco tempo depois encontrou respaldo na
referida cartilha da PNH1
.
Sem nos deixar cair na busca nostálgica do médico à semelhança do
pai do nosso protagonista citado há pouco neste texto (que era o médico
do seu tempo), posto que hoje os tempos são outros, voltando à minha
questão inicial, a pergunta é: do que trata essa dimensão subjetiva esco-
tomizada que agora queremos que venha à luz dos nossos olhos? Reitero:
não acredito nas propostas de se tentar recuperar um modo de ser de ou-
tras épocas, ainda que aparentemente fosse mais acolhedor, uma vez que
pensar a subjetividade, e o trabalho nesse campo, hoje envolve conheci-
mentos e habilidades técnicas e éticas marcadamente contemporâneas.
Dos meus autores mais caros8,9,10
utilizo a definição de subjetividade
como o resultado de processos relacionais contínuos de natureza biológica,
histórica, psíquica, social, cultural, religiosa, que se condensam ou sedimen-
tam no indivíduo e lhe determinam características particulares. Resultado
de processos relacionais, a subjetividade tem caráter dinâmico, contínuo e
sistêmico, e se constrói nas relações com o mundo e com as pessoas11
.
A subjetividade nos diz sobre o modo ou modos de ser das pessoas
em determinado tempo e lugar. Embora as pessoas sejam bastante diferen-
tes entre si, as subjetividades8
se constituem da interação entre o mundo
interno (incluindo a biologia) e a história, valores e lugares da cultura
da época, presentes desde antes do nascimento, a começar pela própria
família que preparou o berço. Comporta um plano singular (aquilo que só
diz respeito a mim mesma – minha constituição física, minha biografia,
meus desejos e atos) e um plano coletivo (aquilo que compartilho com ou-
tros seres humanos em um mesmo tempo – a linguagem, as necessidades
básicas, os valores socioculturais). De forma muito simplificada, a título
de exemplo, diríamos que a subjetividade capitalista12
produz a homoge-
neização dos indivíduos, a normatização e massificação do pensamento
segundo um sistema de valores consumistas. A subjetividade narcísica dos
tempos atuais8, 9
produz comportamentos de descrença em relação ao ou-
43
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
tro, isolamento e solidão, segundo um sistema de valores que têm o eu
como sua referência. Portanto, quando falamos de subjetividade estamos
dizendo de processos que se dão no indivíduo e no coletivo determinando
modos de ser no singular e no plural. Assim como o mundo externo incide
sobre nosso mundo interno, e nesse encontro molda nossa identidade, nós
também somos agentes de transformação do mundo externo, cenário onde
expressamos nossa singularidade.
No campo da subjetividade, tanto do ponto de vista individual quan-
to coletivo, não existe neutralidade nas relações humanas. Mesmo quando
aparentemente distanciadas pelo saber específico de uma técnica que tra-
balha na concretude do corpo, como faz o modelo biomédico2
de atenção à
saúde. Ainda que nesse modelo de atenção o corpo seja pensado pelos pro-
fissionais como organismo, para o paciente e sua família, continua sendo
corpo com nome próprio, portanto histórico, social, psíquico. E mais, no
que se refere às relações que se estabelecem, pode-se ignorar os efeitos
subjetivos que causam nos profissionais, pacientes e familiares, mas suas
memórias vão guardar essas marcas silenciosas, e não menos atuantes na
constante remodelagem das subjetividades das pessoas envolvidas.
Isto posto, através do prisma psicanalítico, proponho uma vista pa-
norâmica da dimensão subjetiva da condição de paciente e da condição de
profissional da Saúde manifestas no dia-a-dia do nosso trabalho quando
do encontro de ambos.
O paciente e os aspectos psíquicos do adoecimento
Em um tempo distante, cada um de nós teve uma primeira pessoa
que cuidou de nós quando éramos bebês. E depois vieram outros: pessoas
da família ou não, médicos, professores, amigos. A subjetividade começa
a ser construída em uma relação13
que se dá no território que compreende
o corpo do bebê e da sua mãe. O corpo a todo tempo cuidado, protegido,
acariciado, é o palco de histórias e emoções que são construídas e guarda-
das na memória que assim é, tanto psíquica, quanto corporal13,14
. Sobre o
corpo biológico do bebê em relação com o outro que lhe cuida se constrói
o que, na Psicanálise, chamamos de corpo erógeno14,15
, ou seja, uma estru-
tura que é ao mesmo tempo física, emocional e histórica. Carrega a mate-
44
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
rialidade da carne, líquidos e processos físico-químicos no mesmo invólucro
da alma. Por isso, tocar o corpo será sempre provocar sensações, puxar pela
memória, e escrever mais uma linha na história da vida da pessoa.
Na prática, não existe procedimento técnico, clínico ou cirúrgico,
que não provoque emoções, sentimentos, lembranças, e não deixe seus
rastros de impressões, efeitos e memória. Isso é importante porque os pa-
cientes podem reagir ao contato físico com o profissional da Saúde de um
modo que a gente muitas vezes não entende, porque não se trata apenas de
um sentir por vias neurais... Mas um sentir carregado de vivências muitas
vezes inconscientes para o próprio paciente. Nessa hora, precisamos dar
um desconto e mesmo que jamais saibamos os porquês de suas reações, a
nós cabe a calma, a habilidade para contornar a situação e se possível, a
sabedoria de não julgá-los.
Tocar o corpo, mesmo que feito de modo absolutamente técnico e
ético (como sempre deve ser, sendo o contrário totalmente inaceitável),
nunca será sentido como um ato asséptico. Particularmente quando o tema
a ser revisto no corpo for o sexo.
Sexo e subjetividade formam uma trama irredutível. De novo, da
Psicanálise, aprendemos que o desenvolvimento da sexualidade está na
base do desenvolvimento da identidade14,15
. Nascemos seres sexuados, e
antes mesmo de nos sabermos como um “eu” vivente, recebemos nomes
e cuidados segundo o gênero. Para os meninos, azul. Rosa, para as meni-
nas... É bem verdade que a sexualidade infantil13,14
(e hoje, espera-se que
todo profissional da Saúde saiba) não é a mesma coisa que a sexualidade
adulta, mas é no ambiente cultural que suas insígnias se inscrevem. No
campo da subjetividade e dos processos relacionais que o constituem, a
construção da identidade se dá junto ao desenvolvimento da sexualidade
durante a infância e a adolescência pela composição de vivências corpo-
rais, culturais e emocionais que formam a matriz da personalidade adulta.
O processo é bastante complexo e absolutamente belo, como só é possível
na natureza essencialmente humana da nossa existência.
Não sei se tão breve colocação de um tema cujo aprofundamento
foge ao escopo deste texto seja suficiente para fazer perceber que, no nos-
so cotidiano de profissionais da Saúde, precisamos estar atentos porque,
45
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
em sã consciência, ninguém pensa em sexo como genitais internos e ex-
ternos do ponto de vista semiológico (exceto nós, talvez...). Lembro agora
de um episódio no posto de saúde em que eu trabalhava. A educadora de
Saúde fazia grupos de gestantes para ensinar como funciona o organismo
feminino na gravidez. Ela tinha vários materiais ilustrativos, com fotos e
modelos tridimensionais de útero, ovários, útero gravídico, fetos, enfim...
No primeiro encontro com as gestantes, seu objetivo era ensinar-lhes o
que é a fecundação do óvulo pelo espermatozóide. Bem intencionada, ela
começou o encontro perguntando às moças ali presentes: vocês sabem
como engravidaram? E aí foi risinho para cá, faces coradas para lá e estava
literalmente na cara que todo mundo pensou numa cena, num lugar, numa
pessoa, em tudo, menos no óvulo com o espermatozóide!
Não dá para separar a memória do corpo.
E quando a pessoa adoece, então...
Com a disseminação das informações de toda e qualquer natureza
pelos meios de comunicação, qualquer pessoa tem acesso a notícias de
cunho médico, ainda que muitas vezes de forma e conteúdo inadequados.
O tempo da inocência acabou... É cada vez mais comum o paciente chegar
com um diagnóstico em mente e querer dirigir a prescrição, conforme viu
na televisão e na Internet. O profissional da Saúde não é mais o detentor
de um saber guardado entre seus pares, mas alguém que deve ser capaz
de mediar esse saber junto aos seus pacientes e sociedade, considerando a
singularidade de seu acontecer em cada pessoa.
O que precisamos ter em mente é que, o paciente, bem informado ou
não acerca da sua doença, quando se apresenta para nós é, antes de tudo,
alguém que pensa e reage à sua doença de modo particular e inconsciente-
mente busca em nós mais que o conhecimento sobre sua doença, o suporte
para os acontecimentos psíquicos devidos a esse adoecimento. As possi-
bilidades são muitas, mas invariavelmente, o que acontece são singulari-
dades diretamente vinculadas às experiências de vida. Porque como dizia,
não há acontecimento no corpo que não evoque lembranças, sentimentos,
culpas, desejos e tratar um paciente como um todo significa ter sensi-
bilidade para tudo isso, ou no mínimo, respeito e comportamento ético.
Lembremos que cada um teve uma experiência particular com o primeiro
46
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
cuidador e os demais que surgiram ao longo da vida, e assim quando do
encontro com o profissional de Saúde no momento do adoecer, vai nele
depositar demandas que se referem a essas vivências, o que pode facilitar a
construção do vínculo terapêutico ou impedi-lo totalmente, de acordo com
a capacidade do profissional de perceber ou não essa dimensão afetiva do
paciente, presente no modo como o paciente se dirige a ele e, em quase
todos os casos, manifesta explicitamente quando ele sabe conversar com o
paciente sobre a vida e não só sobre sintomas.
Há pouco tempo acompanhei um familiar a uma consulta com um
médico especialista, professor titular de uma importante escola médica de
São Paulo. A paciente apresentava-se bastante fragilizada devido à doença
e recorrera a ele, que sendo médico e professor, lhe trazia à lembrança o
marido há muitos anos falecido e que também tinha sido médico e profes-
sor de Medicina. Um médico muito querido e admirado por sua competên-
cia técnica e humana. Bem, o nosso professor aqui a recebeu com elegante
e educada frieza, em quinze minutos escrutinou-a com precisão técnica
e mandou fazer alguns exames. Quando ela o interrogou sobre o retorno
para ver os exames, ele lhe disse que os mandasse pelo correio e ele lhe
daria as orientações terapêuticas por telefone. Inconformada, pois o retor-
no para complementação da primeira consulta trata-se inclusive de um
direito do paciente segundo o Código de Ética Médica, em vão ela tentou
reivindicar mais espaço de encontro e de conversa com o professor titular,
que se manteve firme como o mármore do piso do seu belo consultório
particular. O problema da falta de competência ético-relacional na atenção
à Saúde não é privilégio dos serviços públicos como às vezes querem nos
fazer crer... Acontece também nos melhores endereços da cidade.
Alguns autores14, 16,17
postulam que ao adoecer, principalmente
quando de um evento mórbido relativamente grave, é comum ocorrer o
processo de regressão narcísica, ou de retorno do interesse e energia (li-
bido) da pessoa para ela mesma. O retorno ao narcisismo14
diz respeito ao
modo de funcionamento psíquico que guarda semelhança com o modo
subjetivo característico dos tempos precoces da vida psíquica normal, mas
que no caso de um adulto pode significar comportamentos incômodos
para ele próprio e seus cuidadores. Nesse modo de funcionamento psíqui-
47
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
co14
, ressurgem sentimentos habituais na tenra infância, ligados a vivências
de desamparo e dor e a necessidade de ser cuidado por alguém dotado de
especial capacidade de empatia e poder de proteção, tal como foi a mãe, ou
sua substituta. A emergência dessas emoções por si só já pode desencadear
muita angústia ao paciente, pois, na maioria das vezes, estamos falando de
um adulto, uma pessoa independente, que estava vivendo dentro de contin-
gências mais ou menos sob seu controle até ser interrompido pela doença. O
abalo que a doença causa na imagem que o sujeito tem de si e a necessidade
de cuidados para restaurá-la pode aparecer na forma de exigências ansiosas
do paciente e de seus familiares para com o profissional da Saúde.
Por outro lado, o desligamento das energias psíquicas dirigidas ao
mundo e a sua consequente volta para si mesmo (regressão narcísica) faz
parte de um processo necessário para o acúmulo de forças para o restabe-
lecimento. Se os conflitos que esse estado pode acarretar forem bem equa-
cionados, ou seja, se o profissional compreender que se trata de alguém fra-
gilizado vivendo um momento difícil, saber um pouco de sua vida anterior
(como em outras situações difíceis ele se comportou, o que lhe faz bem ou
mal, enfim saber um pouco do modo de ser do paciente), e principalmente
se conscientizar de que muito do que depositar nele (profissional) se deve a
esse estado de coisas e não propriamente a algum tipo de julgamento sobre o
mesmo, é muito provável que ao invés de confusão e perplexidade, paciente
e profissional da Saúde unam esforços no sentido da cura.
A escuta do que os pacientes contam nas bordas do roteiro da anam-
nese nos revela o quanto a doença não é algo externo à suas vidas, como
a princípio pode parecer. Ao contrário, o adoecimento está ligado ao modo
de ser e viver das pessoas, sendo que a terapêutica deve considerar essa
ordem de valor. Esta observação é particularmente valiosa para as doenças
crônicas e aquelas chamadas psicossomáticas17
(mas cabe ressaltar que
todo ser humano é psicossomático, ainda que tenhamos dificuldades para
alcançar a dimensão mais verdadeira dessa afirmação).
Para outras pessoas, a regressão, a demanda de cuidados e a mobili-
zação da família pode ser algo desejado. Pode ser do interesse do paciente
enquistar-se na condição de doente14,16
, como uma forma de vida protegi-
da e circunscrita no refúgio da doença. Nesses casos, a cura pode ser sen-
48
O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde
tida como uma ameaça e para que ela ocorra será necessário trabalhar pela
aquisição de capacidade para cuidar de si mesmo e assumir uma atitude de
maturidade, o que nem sempre será possível sem a ajuda de psicoterapia.
Há também aqueles casos em que a doença é uma forma de se obter
gratificações sociais diversas ou mesmo se livrar de grandes sofrimentos
psíquicos contra os quais não se consegue encontrar outras armas, por
exemplo, quando a doença exige que o sujeito se afaste de relações ou
situações que lhe são incômodas18
. Infelizmente, essa situação é muito
recorrente entre pessoas vivendo situações de trabalho penoso, muito fre-
qüentemente na área da Saúde e da Educação... O modelo mecanicista18
que as instituições adotam para o trabalho na Saúde, além de não promo-
ver a saúde integral dos pacientes, é também causa de adoecimento para
nós mesmos.
Por fim, cabe lembrar que o lado oculto da queixa, ao qual estamos
nos referindo nessas reflexões sobre aspectos subjetivos do adoecimento,
é, na maioria das vezes, oculto também para o próprio paciente, pois se
tratam de manifestações inconscientes. Este, sem saber, repete junto ao
profissional de Saúde padrões de vinculação19
semelhantes aos que viveu
com sua mãe, com seu pai, ou com aqueles que foram significativos em
sua vida em outros tempos. Demanda-lhes o amor, ou a responsabilidade,
ou a correção que esperava dessas figuras, e responde conforme seu desejo
de ser amado ou de desafiar uma autoridade.
O profissional da saúde e o lugar do cuidador
Meu convite agora é acompanhar algumas ideias sobre o lugar do
profissional da Saúde (aqui pensado e referido como cuidador) no con-
texto atual das práticas de saúde e mais particularmente no que se refere
a seus matizes subjetivos. Penso esse lugar como uma instância sobrede-
terminada que comporta o papel social que é atribuído ao profissional, o
imaginário cultural do qual faz parte, as películas mnêmicas que o pacien-
te lhe deposita (como vimos anteriormente) e, é claro, sua pessoa real, sua
personalidade e história pessoal.
O papel social3
do profissional da Saúde é definido pelo modo como
se organiza a sociedade. Não pretendo aprofundar este estudo nessa ver-
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Livro caminhos da-humanizacao_na_saude

  • 1. HUMANIZAÇÃO CAMINHOSDAHUMANIZAÇÃONASAÚDE PRÁTICA E REFLEXÃO IZABEL CRISTINA RIOS A Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) também mantém um outro projeto, em parceria com as Secretarias de Estado da Saúde e dos Direitos da Pessoa com Deficiência, voltado à humanização da saúde: a Rede de Reabilitação Lucy Montoro. • Conta com uma Unidade Móvel de Reabilitação e unidades fixas de hospitais e centros de reabilitação, na capital e em diversas cidades do Estado de São Paulo. • Viagens da Unidade Móvel pelo estado para fornecimento de órteses, próteses e meios de locomoção a pessoas com deficiência, onde não haja unidade fixa. • Investimento de R$ 52 milhões na construção e ampliação das primeiras unidades fixas e funcionamento até 2010. • Capacidade de 100 mil atendimentos mensais. Caminhos da Humanização na Saúde é um livro composto por artigos e relatos que apre- sentam ao leitor a experiência da autora com o trabalho da Humanização em vários contex- tos do campo público da Saúde no Estado de São Paulo. Alguns textos revelam seu mergulho teórico em territórios do conhecimento que permi- tem compreender e interpretar cenários, fatos e práticas, que re-significados ganham vigor para outros desdobramentos. Outros textos relatam experiências, às vezes no modo do “como fazer”, sem a pretensão de dar receitas prontas (que não existem), mas com a vontade de contar uma história de trabalho que pode servir de base para outros projetos. A heterogeneidade dos textos testemunha al- gumas entre as muitas possibilidades para o pensar e o agir nessa temática. Mas em todos os casos, apresentam-se concepções e meto- dologias que se contrapõem a certa banali- zação do tema (que desqualifica o potencial transformador da Humanização sobre as prá- ticas e mentalidades na área da Saúde). Os caminhos são muitos... E este livro tem a intenção de estimular em todos que encontraram na área da Saúde o lugar para a expressão do seu encantamen- to pela vida humana, o desejo de criar outras formas mais eficientes e significativas de cui- dar das pessoas, mais gratificantes e fortale- cedoras para os seus profissionais. Izabel Cristina Rios é médica, formada pela FMUSP (Faculdade de Medicina da Universi- dade de São Paulo), Psiquiatra e Psicanalista, com experiência nas áreas Clínica, Educação em Saúde e Desenvolvimento Humano e Ins- titucional. Atua principalmente nos seguintes temas: Humanização, Humanidades Médi- cas, Saúde Mental, e Educação Médica. No CEDEM-FMUSP (Centro de Desenvolvimento da Educação Médica FMUSP) é pesquisadora, coordena o Grupo das Disciplinas de Humani- dades Médicas e integra o Comitê HUMANIZA HC-FMUSP. No CRT DST aids (Centro de Refe- rência e Treinamento em Doenças Sexualmen- te Transmissíveis e aids) foi coordenadora do Comitê de Humanização e diretora do Núcleo de Desenvolvimento Institucional e Educação. Foi coordenadora da Área de Humanização da Coordenação dos Institutos de Pesquisa da Se- cretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Na Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, coordenou grupos de Educação Permanente e Saúde Mental no Programa Saúde da Família. Planejou e implementou o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Casa Viva. Comitê Humaniza HC FMUSP: valorização da vida e da cidadania Objetivos: • Ferramenta de gestão para melhorar a qualidade e a eficácia da atenção dispensada aos usuários do HC FMUSP; • Conceber e implantar novas iniciativas de humanização que venham beneficiar os usuários e os profissionais de saúde; • Desenvolver um conjunto de indicadores de resultados e sistema de incentivo ao tratamento humanizado; • Modernizar as relações de trabalho, tornando as Unidades mais harmônicas, com profissionais preparados para a humanização no cuidado. Equipe Coordenadora do Humaniza HC: Profa. Dra. Linamara Rizzo Battistella, Dra.Valéria Pereira de Souza, Dr. Fábio Pacheco Muniz de Souza e Castro, Dra. Polyanna Costa Lucinda e Dra Izabel Cristina Rios constituem o GRUPO DE TRABALHO COMITÊ DE HU- MANIZAÇÃO da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – Comitê HUMANIZA HC. Informações: http://www.hcnet.usp.br/humaniza/ CAMINHOS DA NA SAÚDE
  • 2. 1 HUMANIZAÇÃO PRÁTICA E REFLEXÃO Izabel Cristina Rios 2009 CAMINHOS DA NA SAÚDE
  • 3. 2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Rios, Izabel Cristina Caminhos da humanização na saúde : prática e reflexão / Izabel Cristina Rios. -- São Paulo : Áurea Editora, 2009. Bibliografia. 1. Humanização dos serviços de saúde 2. Médico e paciente I. Título. 09-06602 CDD-362.19892 Índices para catálogo sistemático: 1. Humanização dos serviços de saúde : Bem-estar social 362.19892 Produção Editorial: Áurea Editora Coordenação: Dirceu Pereira Jr. Edição: Milton Bellintani Revisão: Silvia Marangoni Projeto Gráfico e Diagramação: Mveras Design Gráfico Apoio Oficial: Rede de Reabilitação Lucy Montoro Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FFMUSP) Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência Governo do Estado de São Paulo
  • 5. 4 Prefácio - Dra. Linamara Rizzo Battistella................................................. 05 1. Humanização A essência da ação técnica e ética nas práticas de saúde............................. 07 2. Violência e Humanização........................................................................... 27 3. O realce à Subjetividade Assim começa a humanização na atenção à saúde....................................... 39 4. A cultura institucional da humanização.................................................. 57 5. Modelo de curso de humanização para serviços de saúde Conceitos e estratégias para a ação.................................................................71 6. Humanização no ambiente de trabalho O estudo de fatores psicossociais...................................................................101 7. Oficinas de humanização Aproximando as pessoas para o diálogo........................................................119 8. Recepção humanizada O programa jovens acolhedores..................................................................... 129 9. Rodas de conversa Aprendendo saúde mental no PSF................................................................ 137 10. Impressões dos trabalhadores de uma unidade básica de saúde sobre o seu trabalho.................................................................................................151 11. Em busca da humanização nos serviços de saúde A questão do método..................................................................................... 167 SUMÁRIO
  • 6. 5 PREFÁCIO Linamara Rizzo Battistella Humanizar a assistência é conceito e atitude! O Programa Nacio- nal de Humanização Hospitalar, criado em 2000, assumiu o desafio de “ofertar atendimento de qualidade, articulando os avanços tecnológicos com acolhimento, melhoria dos cuidados e das condições de trabalho dos profissionais”. Este conceito depende da mudança de atitude em direção a cultura da excelência e da gestão dos processos de trabalho. Humanização é ferramenta de gestão, pois valoriza a qualidade do atendimento, preserva as dimensões biológicas, psicológicas e sociais dos usuários e enfatiza a comunicação e a integração dos profissionais. Fundada no respeito à vulnerabilidade humana e na crença de que a relação entre dois atores, profissional e paciente, está sempre sujeita a emoções que devem ser guiadas pelo sentimento de compromisso e de compaixão. Assim, sem esquecer a objetividade, é preciso interpretar a experiência de viver a doença, as seqüelas e a deficiência. Neste livro está traduzida, com muita riqueza, a experiência da hu- manização na assistência aos doentes crônicos e às pessoas com deficiência, para as quais a qualidade do cuidado supera a esperança de cura. Mas a autora vai mais longe, fornecendo as diretrizes para a implantação e o de- senvolvimento do programa de humanização hospitalar. Este livro traduz a experiência da Dra. Izabel Cristina Rios, profissional, dedicada ao “cuidar” e apresenta os resultados de experiências bem sucedidas, de ensinar os jovens médicos sobre a importância da humanização do cuidado. A esperança emerge a partir do exercício de escutar-nos uns aos outros e de reconhecer no sofrimento o direito ao atendimento precoce, resolutivo e de qualidade. O fortalecimento dos vulneráveis é alcançado com base nos direitos humanos e no respeito pela dignidade individual. Respeito é atributo indissociável da personalidade da Dra. Izabel Rios, que
  • 7. 6 militou no programa de humanização desde a sua concepção, ajudou a implantar esta estratégia na Secretaria de Estado de Saúde e, mais recen- temente, no Hospital das Clínicas da FMUSP. Apoiar a edição deste livro sinaliza o compromisso do Governo do Estado de São Paulo em oferecer ao lado das modernas tecnologias da área de saúde, profissionais qualificados e sensíveis aos valores e crenças que permeiam a emoção do paciente e seus familiares. A implantação destes programas de humanização na Rede de Re- abilitação Lucy Montoro é um imperativo! O governo do Estado de São Paulo valoriza a oferta de modernas tecnologias na área de saúde, mas en- fatiza a necessidade permanente de qualificar, sensibilizar, e comprometer os profissionais com a humanização da assistência à saúde. Linamara Rizzo Battistella é Médica Fisiatra, Professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Coordenadora do Comitê de Hu- manização da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, Comitê Humaniza HC, e Secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Governo do Estado de São Paulo.
  • 8. HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDEa CAPÍTULO I
  • 9. 8 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE A humanização é hoje um tema frequente nos serviços públicos de Saúde, nos textos oficiais e nas publicações da área da Saúde Coletiva. Embora o termo laico humanização possa guardar em si um traço maniqueísta, seu uso histórico o consagra como aquele que rememora movimentos de recuperação de valores humanos esquecidos, ou solapados em tempos de frouxidão ética. No nosso horizonte histórico, a humaniza- ção desponta, novamente, no momento em que a sociedade pós-moderna passa por uma revisão de valores e atitudes. Não é possível pensar a hu- manização na saúde sem antes dar uma olhada no que acontece no mundo contemporâneo... Em uma visão panorâmica, a época da pós-modernidade1,2 se carac- teriza pelo reordenamento social decorrente do capitalismo multinacional e a globalização econômica. Desabaram os ideais utópicos, políticos, éticos e estéticos da modernidade que creditavam ao projeto iluminista a cons- trução de um mundo melhor, movido pela razão humana. As pessoas, cada vez mais descrentes da política e das ideias revolucionárias que, na práti- ca, deram poder a governos corruptos e incapazes de promover o bem da nação, não buscaram mais seus referenciais de identificação nos grandes coletivos sociais, mas sim em si mesmas. Para certos autores, essa é uma das principais características do que eles chamam de época hipermoderna ou supermoderna3,4 : a figura do excesso e da deformação notadamente no que se refere ao “eu”. Nessa vertente, Lasch dá aos tempos atuais o nome de Cultura Nar- císica, e Debors, de Sociedade do Espetáculo5,6 , ora ressaltando o indivi- dualismo, o culto ao corpo e a supervalorização dos aspectos da aparência estética, ora ressaltando o exibicionismo, a captura pela imagem e o com- portamento histriônico que se realiza como espetáculo. No campo das relações, a perda de suportes sociais e éticos, somada ao modo narcísico de ser, cria as condições para a intolerância à diferença, e o outro é visto não como parceiro ou aliado, mas como ameaça. Tal dis- posição, associada à rapidez e pouco estímulo à reflexão sobre os aspectos existenciais e morais do viver humano, faz com que a violência – que (por motivos que fogem ao alcance deste artigo) é parte do nosso cotidiano – se apresente também como modo de resolver conflitos. a Publicado na forma de artigo na Revista Brasileira de Educação Médica, v., n., 2008.
  • 10. 9 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE No contraponto, do meio do século XX para cá, começam a se dese- nhar respostas para a sociedade assim estabelecida. Direitos Humanos, Bioé- tica, Proteção Ambiental, Cidadania, mais do que conceitos emergentes7 , são práticas que vão ganhando espaço no dia-a-dia das pessoas, chamando-nos para o trabalho de construção de outra realidade. Na área da Saúde surgiram várias iniciativas com o nome de hu- manização. É bem provável que esse termo tenha sido forjado há umas duas décadas, quando os acordes da luta anti-manicomial, na área da Saúde Mental8 , e do movimento feminista pela humanização do parto e nascimento, na área da Saúde da Mulher 9 , começaram a ganhar volume e produzir ruído suficiente para registrar marca histórica. Desde então, vários hospitais, predominantemente do setor público, começaram a desenvolver ações que chamavam de “humanizadoras”. Ini- cialmente, eram ações que tornavam o ambiente hospitalar mais afável: atividades lúdicas, lazer, entretenimento ou arte, melhorias na aparência física dos serviços. Não chegavam a abalar ou modificar substancialmente a organização do trabalho ou o modo de gestão, tampouco a vida das pessoas, mas faziam o papel de válvulas de escape para diminuir o sofrimento que o ambiente hospitalar provoca em pacientes e trabalhadores. Pouco a pouco, a ideia foi ganhando consistência, resultando alterações de rotina (por exem- plo, visita livre, acompanhante, dieta personalizada). Em 2001, quando a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo fez um levantamento dos hospitais públicos do Estado que desenvolviam ações humanizadoras, praticamente todos faziam alguma coisa nesse sen- tido. O mesmo se verificou em noventa e quatro hospitais de referência no país, escolhidos pelo Ministério da Saúde, praticamente na mesma época. A iniciativa partia dos próprios trabalhadores, independentemente de in- centivo ou determinação dos gestores locais. Tratava-se de uma resposta a essa necessidade sentida e reconhecida pelas pessoas em seus ambientes de trabalho. Hoje, várias sondagens conceituais, manifestações ideológicas, cons- truções teóricas e técnicas e programas temáticos fazem da humanização um instigante campo de inovação da produção teórica e prática na área da Saúde10 .
  • 11. 10 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE Sob vários olhares, a Humanização pode ser compreendida como: - Princípio de conduta de base humanista e ética - Movimento contra a violência institucional na área da Saúde - Política pública para a atenção e gestão no SUS - Metodologia auxiliar para a gestão participativa - Tecnologia do cuidado na assistência à saúde Em nosso entender, a Humanização se fundamenta no respeito e valorização da pessoa humana, e constitui um processo que visa à trans- formação da cultura institucional, por meio da construção coletiva de compromissos éticos e de métodos para as ações de atenção à Saúde e de gestão dos serviços. Esse conceito amplo abriga as diversas visões da hu- manização supracitadas como abordagens complementares, que permitem a realização dos propósitos para os quais aponta sua definição. A humanização reconhece o campo das subjetividades como instân- cia fundamental para a melhor compreensão dos problemas e para a busca de soluções compartilhadas. Participação, autonomia, responsabilidade e atitude solidária são valores que caracterizam esse modo de fazer saúde que resulta, ao final, em mais qualidade na atenção e melhores condições de trabalho. Sua essência é a aliança da competência técnica e tecnológica com a competência ética e relacional. Humanização e ética “Humanizar o quê? Por acaso não somos humanos?” (Auxiliar de Enfermagem de uma UBS da SMS-SP) Há alguns anos, quando o assunto humanização chegou aos servi- ços de Saúde, a reação dos trabalhadores foi a mais variada possível. Algu- mas pessoas (que já trabalhavam com ações humanizadoras) sentiram-se finalmente reconhecidas e encontraram seus pares, mas a maioria (que não fazia a mínima ideia do que se tratava) reagiu com desdém ou indignação: não eram humanos, afinal? Humanizar os serviços soava como um insulto. Entretanto, tão logo se começava a discutir a humanização como o proces- so de construção da ética relacional que recuperava valores humanísticos esmaecidos pelo cotidiano institucional ora aflito, ora desvitalizado, ficava clara a importância de trazer tal discussão para o campo da Saúde. A Me-
  • 12. 11 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE dicina (e certamente todas as profissões que se destinam ao cuidar) é uma prática ético-dependente11 , ou seja, ainda que o mundo se acabe em um livre agredir, em que vença o mais forte, o mais rico, ou o mais bonito, na área da Saúde é imprescindível a educação para a ética nas relações entre as pessoas, sem a qual não é possível realizar a missão que nos destina essa escolha profissional. Humanizar, então, não se refere a uma progressão na escala bioló- gica ou antropológica, o que seria totalmente absurdo, mas ao reconhe- cimento da natureza humana em sua essência e a elaboração de acordos de cooperação, de diretrizes de conduta ética, de atitudes profissionais condizentes com valores humanos coletivamente pactuados. No sentido filosófico, humanização é um termo que encontra suas raí- zes no Humanismo12 , corrente filosófica que reconhece o valor e a dignidade do Homem – a medida de todas as coisas – considerando sua natureza, seus limites, interesses e potenciais. O Humanismo busca compreender o Homem e criar meios para que os indivíduos compreendam uns aos outros. Na leitura psicanalítica, o termo fala do lugar da subjetividade no campo da Saúde. Humanização, como tornar humano, significa admitir todas as dimensões humanas – históricas, sociais, artísticas, subjetivas, sagradas ou nefastas – e possibilitar escolhas conscientes e responsáveis. A Psicanálise se encontra com o Humanismo quando coloca no cen- tro do seu campo de investigação, compreensão e intervenção, o homem e sua natureza humana (que pode ser tão divina quanto demoníaca... No mais das vezes, as duas... Na melhor das hipóteses, a primeira cuidando para que a segunda se mantenha o mais quieta possível). A natureza hu- mana comporta pulsões para a construção e para a agressão. Em nossa es- sência, temos potencial para agir tanto em um sentido quanto em outro. O julgamento ético de cada ato e a sua escolha são tarefa psíquica constante, que põe em jogo os valores que a cultura nos dá por referência e os desejos que se ocultam no íntimo de cada um. Reconhecer a importância dessas características humanas é o primeiro passo para a humanização. O segundo passo é desenvolver métodos que permitam a inserção de tais aspectos humanos no pensar e agir sobre os processos saúde-adoeci- mento-cura e nas relações de trabalho. Trata-se de criar espaços legítimos
  • 13. 12 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE de fala e escuta que devolvam à palavra sua potência reveladora e trans- formadora13 . Na relação do profissional com o paciente, a escuta não é só um ato generoso e de boa vontade, mas um imprescindível recurso técnico para o diagnóstico e a adesão terapêutica. Na relação entre profissionais, esses espaços são a base para o exercício da gestão participativa e da transdis- ciplinaridade. Na vertente moral, a humanização pode evocar valores humanitá- rios como: respeito, solidariedade, compaixão, empatia, bondade, todos valores morais7 pensados como juízos sobre as ações humanas que as de- finem como boas ou más, representando uma determinada visão de mundo em um dado tempo e lugar e, portanto, mutáveis de acordo com as trans- formações da sociedade. A humanização propõe a construção coletiva de valores que resgatem a dignidade humana na área da Saúde e o exercício da ética, aqui pensada como um princípio organizador da ação. O agir ético, neste ponto de vista, se refere à reflexão crítica que cada um de nós, profissional da saúde, tem o dever de realizar, confrontando os princípios institucionais com os próprios valores, seu modo de ser e pensar e agir no sentido do Bem... Claro que seria um ato de violência se, em nome da hu- manização, determinássemos quais os valores pessoais que cada um deve ter. Entretanto, na dimensão institucional, tratam-se de valores fundamen- tais para balizar a atitude profissional de todos com diretrizes éticas que expressem o que, coletivamente, se considera bom e justo. A ética, assim pensada, torna-se um importante instrumento contra a violência e a favor da humanização. Humanização e violência institucional Na sua história, a humanização surge, então, como resposta espontâ- nea a um estado de tensão, insatisfação e sofrimento tanto dos profissionais quanto dos pacientes, diante de fatos e fenômenos que configuram o que chamamos de violência institucional na Saúde. (Violência Institucional14 aqui se refere à expressão cunhada na História recente para definir a utili- zação de castigos, abusos e arbitrariedades praticados nas prisões, escolas e instituições psiquiátricas, com a conivência do Estado e da sociedade).
  • 14. 13 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE Na área da Saúde, a violência institucional decorre de relações so- ciais marcadas pela sujeição dos indivíduos. Historicamente, a organiza- ção hierárquica do hospital do século XIX foi uma importante estratégia da Medicina da época moderna14 para o desenvolvimento da clínica e da tecnologia médica. Aumentou o acesso da população ao atendimento e propiciou grandes avanços técnicos. Entretanto, junto a esses progressos, também se engendraram situações que tornaram o hospital lugar de sofri- mento15 . O não reconhecimento das subjetividades envolvidas nas práticas assistenciais no interior de uma estrutura caracterizada pela rigidez hie- rárquica, controle, ausência de direito ou recurso das decisões superiores, forma de circulação da comunicação apenas descendente, descaso pelos aspectos humanísticos, e disciplina autoritária, fizeram do hospital um lugar onde as pessoas são tratadas como coisas e prevalece o desrespeito à sua autonomia e a falta de solidariedade15 . A própria organização científica do trabalho (fortemente presente na área da Saúde) fragmenta o processo que vai do início ao fim da pro- dução, seja de bens, seja de serviços, deixando cada etapa do processo a cargo de um grupo de trabalhadores que acaba tendo apenas a visão da parte que lhe cabe e não do todo. Essa estratégia agiliza e multiplica o re- sultado, entretanto cria um estado de alienação em relação à importância de cada um para a realização completa da tarefa que, na área da Saúde, tem como consequência a naturalização do sofrimento e a diminuição do compromisso e da responsabilidade na produção da saúde. Desenha-se, assim, um cenário social e institucional, em que a falta de sensibilidade e de valores humanísticos abre espaço para que o com- portamento violento (expresso em atos de brutalidade explícita ou sofis- ticados disfarces da intolerância e do desprezo) passe a ser a norma e não a exceção. Outro fator que contribui para esse estado de coisas é a medicaliza- ção do viver humano. Inicialmente, a medicalização se referia à transfor- mação de problemas sociais em problemas de saúde. Por exemplo: antes de encarnar no corpo, a fome é um problema da pobreza ou da educação, de- pois de um tempo vira desnutrição. Combater a fome é diferente de tratar a desnutrição do ponto de vista social (uma coisa é dar atenção à Saúde,
  • 15. 14 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE outra é mudar a distribuição de renda). Aos poucos, a medicalização foi abrangendo problemas que em épocas anteriores não teriam a Medicina como destino, mas sim outras áreas do saber. Com o aumento da crença das pessoas no que consideram verdades científicas na área da Saúde, e a decadência do valor socialmente dado às outras formas de compreensão da existência humana, toda e qualquer expressão da vida passa por um diagnóstico previsto em algum CID (Código Internacional das Doenças), e busca remédio na Medicina. Assim, toda tristeza vira depressão, toda in- quietação vira ansiedade e todo mundo procura os serviços de Saúde atrás de respostas rápidas e deglutíveis, mesmo que não funcionem... Ao lado desse fenômeno cultural da contemporaneidade, em nossa realidade, o sucateamento dos serviços de saúde devido à má gestão da coisa pública ou aos sempre insuficientes investimentos frente aos cres- centes custos da Medicina Biotecnológica, levou à pletora do acesso aos serviços e ao esgotamento dos profissionais para atender. Filas interminá- veis, pacientes mal atendidos por profissionais mal remunerados e desva- lorizados, e todo tipo de conflito passaram a ser comuns nessa arena assim armada. Como dito anteriormente, a humanização surgiu em resposta a esse enredo, na forma de ações localizadas, e foi se instituindo até chegar, hoje, à forma de uma política pública na área da Saúde. Não por acaso, a humanização une suas primeiras vozes nos hospitais, fazendo coro a um movimento contrário à situação em que há aqueles que mandam e deci- dem e outros que obedecem e não opinam sobre nada. Nesse sentido, a humanização buscava nas ações humanizadoras a recuperação não só da saúde física, mas principalmente do respeito, do direito, da generosidade, da expressão subjetiva e dos desejos das pessoas. Humanização como política pública para a atenção e gestão no SUS A humanização nasceu dentro do SUS. Os princípios do SUS16 são to- talmente de inspiração humanista: universalidade, integralidade, equidade e participação social. Levados às últimas consequências definem a humaniza- ção em qualquer concepção, em qualquer instância de atenção ou gestão. Tal caráter faz do SUS, hoje, o principal sistema de inclusão social deste país.
  • 16. 15 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE Enquanto na maioria dos hospitais privados a humanização foi tra- tada como cosmética da atenção – recepcionistas jovens e bonitas, bem vestidas e maquiadas, ambientes bem decorados que não devem nada aos hotéis de luxo, frigobar no quarto e lojinha de conveniência –, nos hos- pitais públicos e movimentos sociais a humanização escapa aos modelos comerciais e recupera dos ideais do SUS a prática da cidadania. Quase vinte anos depois da sua criação, o SUS é o sistema idealizado para os anseios de saúde do povo brasileiro, mas é também o sistema de saúde público que apresenta as contradições e heterogeneidades que ca- racterizam a nossa sociedade: serviços modernos, e de ponta tecnológica, ao lado de serviços sucateados nos quais a cronificação do modo obsoleto de operar o serviço público, a burocratização e os fenômenos que caracte- rizam situações de violência institucional estão presentes. No ano 2000, o Ministério da Saúde, sensível às manifestações se- toriais e às diversas iniciativas locais de humanização das práticas de saú- de, criou o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospita- lar (PNHAH). O PNHAH era um programa que estimulava a disseminação das ideias da Humanização, os diagnósticos situacionais e a promoção de ações humanizadoras de acordo com realidades locais. Inovador e bem construído por um grupo de psicanalistas, o programa tinha forte acen- to na transformação das relações interpessoais pelo aprofundamento da compreensão dos fenômenos no campo das subjetividades. Em 2003, o Ministério da Saúde passou o PNHAH por uma revisão, e lançou a Política Nacional de Humanização (PNH)16 , que mudou o patamar de alcance da humanização dos hospitais para toda a rede SUS e definiu uma política cujo foco passou a ser, principalmente, os processos de gestão e de trabalho. Como política, a PNH se apresenta como um conjunto de di- retrizes transversais que norteiam toda atividade institucional que envolva usuários ou profissionais da Saúde, em qualquer instância de efetuação. Tais diretrizes apontam como caminho: - A valorização da dimensão subjetiva e social em todas as práticas de atenção e gestão fortalecendo compromissos e responsabilidade; - O fortalecimento do trabalho em equipe, estimulando a transdisci- plinaridade e a grupalidade;
  • 17. 16 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE - A utilização da informação, comunicação, educação permanente e dos espaços da gestão na construção de autonomia e protagonismo; - A promoção do cuidado (pessoal e institucional) ao cuidador. Nessa vertente, a humanização focaliza com especial atenção os processos de trabalho e os modelos de gestão e planejamento, interferindo no cerne da vida institucional, local onde de fato se engendram os vícios e os abusos da violência institucional. O resultado esperado é a valorização das pessoas em todas as práticas de atenção e gestão, a integração, o com- promisso e a responsabilidade de todos com o bem comum. Para sua implementação16 , a PNH atua nos eixos de institucionaliza- ção que operaram a mudança de cultura a que se propõe. Tais eixos com- preendem a inserção das diretrizes da humanização nos planos estaduais e municipais dos vários governos, nos programas de Educação Permanente, nos cursos profissionalizantes e instituições formadoras da área da Saúde, na mídia, nas ações de atenção integral à Saúde, no estímulo à pesquisa relacionada ao tema, vinculando-os ao repasse de recursos. Várias ações e indicadores de validação e monitoramento foram de- senvolvidos pelo Ministério da Saúde para estimular e acompanhar os processos de humanização não só nos hospitais, mas nos três níveis de atenção à Saúde no SUS. A estratégia de criação e fortalecimento dos Gru- pos de Trabalho de Humanização nas instituições (grupos formados por pessoas ligadas ao tema e aos gestores dos serviços de Saúde, com o papel de implementar a PNH na sua unidade) merece considerações à parte e ajustes (veja último capítulo deste livro), mesmo assim mostrou-se exitosa em vários locais, acumulando bons exemplos de trabalho na área. Entretanto, a humanização só se torna realidade em uma instituição quando seus gestores fazem dela mais que retórica, um modelo de fazer gestão. Boas intenções e programas limitados a ações circunstanciais não sustentam a humanização como processo transformador. Os instrumentos que de fato asseguram esse processo são: a informação, a educação per- manente, a qualidade e a gestão participativa. Enfim, pensar a humanização como política significa menos o que fazer e mais como fazer. Embora importantes, não são necessariamente as ações ditas humanizadoras que determinam um caráter humanizado ao
  • 18. 17 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE serviço como um todo, mas a consideração aos princípios conceituais que definem a humanização como a base para toda e qualquer atividade. Este é o grande desafio: criar uma nova cultura de funcionamento institucional e de relacionamentos na qual, cotidianamente, se façam presente os valores da humanização. Humanização e a gestão participativa Com a PNH, a humanização alcança os processos de gestão e orga- nização do trabalho nos serviços de Saúde, e a gestão participativa des- ponta como modelo eleito para a realização dessa política. Quando fala- mos em gestão participativa ou cogestão estamos nos referindo ao modo de administrar que não se basta na linha superior de comando e inclui o pensar e o fazer coletivo17 . As estratégias para a gestão participativa nos serviços de Saúde de- vem ser estudadas caso a caso, partindo do conhecimento das realidades institucionais específicas, entretanto algumas ações que a propiciam em qualquer contexto são: - A criação de espaços de discussão para a contextualização dos impasses, sofrimentos, angústias e desgastes a que se submetem os profis- sionais de Saúde no dia-a-dia pela própria natureza do seu trabalho; - O pensar e decidir coletivamente sobre a organização do trabalho, envolvendo gestores, usuários e trabalhadores, em grupos com diversas formações; - A criação de equipes transdisciplinares efetivas que sustentem a diversidade dos vários discursos presentes na instituição, promovendo o aproveitamento da inteligência coletiva. De um modo mais específico, a gestão participativa se dá por meio da criação de instâncias de participação nas quais é possível considerar e estabelecer consensos entre desejos e interesses diversos, por exemplo: - O conselho gestor de saúde, que aglutina gestores, trabalhadores e usuários para decidir os rumos institucionais; - A ouvidoria, que faz a mediação entre usuários e instituição para a solução de problemas particulares; - As equipes de referência, que se compõem de profissionais que
  • 19. 18 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE juntos acompanham pacientes comuns ao grupo; - Os grupos de trabalho de humanização, que fazem a escuta insti- tucional e criam dispositivos comunicacionais; - As visitas abertas, que propiciam as parcerias com familiares para o cuidado de seus parentes. Algumas ferramentas, como as pesquisas de satisfação dos usuá- rios e dos trabalhadores, ou as pesquisas de clima institucional e de fato- res psicossociais do trabalho (FPST), podem ser bastante úteis para certos diagnósticos institucionais e para o planejamento da ambiência (ambiente físico, social, interpessoal) e da organização dos processos de trabalho. (Os FPST18 são dimensões referentes à gestão, organização e relações interpes- soais no trabalho, que no ambiente físico e relacional podem produzir a satisfação e o sentimento de realização, ou no seu revés, o sofrimento e o adoecimento do trabalhador. Permitem o estudo de como os trabalhado- res percebem a instituição, privilegiando o olhar subjetivo da experiência do trabalho na vida das pessoas em determinado tempo e lugar. Os fatores psicossociais que relacionam saúde e satisfação no trabalho abrangem: es- tabilidade no emprego, salários e benefícios, relações sociais no trabalho, supervisão e chefia, ambiente físico de trabalho, reconhecimento e valoriza- ção, oportunidades de desenvolvimento profissional, conteúdo, variedade e desafio no trabalho, qualificação, autonomia, subutilização de habilidades e competências, carga de trabalho (física, cognitiva ou emocional.) Particularmente importantes são as estratégias, metodologias e fer- ramentas que se destinam ao desenvolvimento do profissional da área da Saúde. Acreditamos que a possibilidade de promover atendimentos verda- deiramente humanizados requer, necessariamente, a educação dos profis- sionais da Saúde dentro dos princípios da humanização e o desenvolvi- mento de ações institucionais visando ao cuidado e à atenção às situações de sofrimento e estresse decorrentes do próprio trabalho e ambiente em que se dão as práticas de saúde. Nessa direção, a Educação Permanente19 é uma estratégia para o exercício da gestão participativa que visa à transformação das práticas de formação, de atenção, e de gestão, na área da Saúde. Baseada na apren- dizagem significativa, a educação permanente constrói os saberes a partir
  • 20. 19 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE das experiências das pessoas. Nas rodas de conversa, oficinas e reuniões discutem-se os problemas, propõem-se soluções gerenciais, mudanças na organização do trabalho e definem-se ações educativas de acordo com as necessidades observadas. Dessa maneira faz-se da gestão participativa o caminho para a hu- manização dos serviços. Entretanto, como há poucos gestores com forma- ção técnica para essa metodologia, ainda são raras as experiências dessa forma inovadora de fazer gestão de pessoas. Humanização e a tecnologia do cuidado na assistência à saúde Na assistência à Saúde, a supremacia do recorte biológico e o auto- ritarismo dos discursos de saber e poder deflagraram crítica contundente ao modelo biomédico de atenção. No aprofundamento do estudo das situ- ações conjunturais associadas a esse fato, chegou-se ao que se pensa hoje sobre a humanização na vertente da indissolubilidade da relação entre atenção e gestão. Por outra linha do pensar (que também se articula com o que expusemos até aqui neste artigo), o foco ilumina a relação do profis- sional da saúde com o paciente e o resultado desse encontro. Na Medicina, o tecnicismo da prática atual descartou os aspectos humanísticos no cuidado à saúde12 . A biotecnologia aplicada à Medicina propiciou indiscutíveis conquistas para o bem das pessoas (alguém hoje consegue imaginar um procedimento cirúrgico, até mesmo de pequeno porte, sem anestesia, por exemplo?). Estudos mostram que os recursos tecnológicos, a visão centrada nos aspectos biológicos da doença, e a or- ganização do trabalho médico para o atendimento de massa ampliaram o acesso da população aos bens e serviços de Saúde, mas, em compensação, criou um abismo entre o médico e o paciente. A tecnologia que é determinante para aumentar a sobrevida humana e para a diminuição drástica do sofrimento devido aos males que acome- tem a saúde, tornou-se um intermediário que afasta os profissionais do contato mais próximo e mais demorado com o paciente, não só por que agiliza o atendimento e aumenta a produtividade contada em números, mas também por que fascina e captura o interesse dos profissionais da Saúde, particularmente dos médicos. Os pacientes passam, então, à con-
  • 21. 20 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE dição de objetos de estudo e manipulação na construção do saber e da prática científica. E os profissionais, à condição de peças e engrenagens que fazem funcionar a máquina institucional. O tecnicismo perde de vista estados vivenciais importantes para a realização do cuidado à saúde. Já no modelo psicossocial agregam-se saberes de teorias compre- ensivas sobre o vínculo, capazes de desvendar atitudes e emoções que facilitam ou impedem o bom diagnóstico e a aliança terapêutica20,10. Por exemplo, a Psicanálise ensina que, ao adoecer, a pessoa vive um processo que chamamos de regressão narcísica21 , que, em graus variáveis de acordo com a história pessoal, a personalidade e a gravidade de sua doença a torna mais frágil, mais sensível e mais dependente daquele que lhe presta cuidados. É como se o paciente, inconscientemente, voltasse aos tempos em que era cuidado por sua mãe e dela dependia para sua sobrevivência. Desconsiderar esse estado, ou tratar o paciente com displicência, superfi- cialidade ou mesmo pressa e desatenção às suas emoções, não é só uma falha ética, mas sim um erro técnico que pode provocar danos para o pa- ciente e o fracasso do tratamento. Por outro lado, não se trata de entender o paciente como infantilizado e desconsiderar sua autonomia, o que seria além de antiético, o descumprimento de um direito dos usuários de servi- ços de saúde22 . Ou seja, não basta bom senso e paciência, é preciso que o profissional aprenda teorias e técnicas relacionais. Entretanto, mesmo conscientes da importância do campo da sub- jetividade na Saúde, da ênfase dada ao princípio da integralidade e do desenvolvimento de tecnologias leves destinadas ao aprimoramento da atenção (particularmente no campo da atenção básica à saúde20 ), para a maioria dos profissionais, o modo tecnicamente humanizado permanece como utopia – aquele que seria o jeito certo de fazer, mas não dá ou não adianta. O grande nó ainda não desatado talvez tenha a ver com a necessida- de de desenvolver nos profissionais o interesse legítimo pelo paciente. Ta- refa nada fácil nos tempos atuais, em que, como discutido anteriormente, prevalece o individualismo e o jeito narcísico de ser, inclusive na própria formação acadêmica dos profissionais da Saúde.
  • 22. 21 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE Humanização e ensino médico Embora a PNH tenha como um dos seus eixos de implementação a inserção das diretrizes da humanização nas escolas formadoras de pro- fissionais da área da Saúde, na prática, sua presença no ensino superior ainda é pálida e sôfrega. No ensino médico, há algum tempo, várias escolas daqui e de ou- tras partes do mundo colocaram disciplinas de humanidades médicas nos seus currículos de graduação. As experiências são bem heterogêneas, mas é comum a dificuldade de integração dos temas humanísticos ao escopo da Medicina23 . Ainda que essenciais para a boa prática médica, para mui- tos alunos e professores as disciplinas de humanidades médicas são tidas como prescindíveis e desinteressantes. A humanização se inscreve como um tema dentro dessas disciplinas, mas frequentemente é abordada de forma superficial e periférica. Na nossa experiência de trabalho em uma disciplina de humanidades, percebemos que os alunos desconhecem completamente a abrangência significativa da humanização nas práticas de saúde. Ao final das discussões sobre o tema, mostram-se bastante surpresos ao descobrir que se trata de algo bem mais complexo e bem mais diretamente ligado ao exercício da Medicina do que as ideias de “ser bonzinho”, “ser educado” e “agradar ao paciente” que tra- zem nas suas associações ao tema e traduzem preconceito e descaso com o que mal conhecem. Por outro lado, embora muitos hospitais-escola tenham Comitês de Humanização, o tema ainda é relativamente recente no cotidiano da maio- ria das práticas de atenção e ensino15. Sobre esta questão, no Seminário Internacional de Gestão – Mostra SES-SP de 2008, uma pesquisa realizada com residentes do primeiro e último ano da Residência Médica do Hospital Heliópolis da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo24 – para a qual convergem alunos formados em diferentes escolas do estado – revelou dados curiosos. Na entrada à Residência, os médicos apresentavam vaga noção do que seria humanização, considerando-a mais focada na quali- dade da relação médico-paciente. Na saída da Residência, a maioria deles apresentou maior falta de informação e de interesse pelo assunto, inclusive considerando que a humanização tem menos a ver com o seu trabalho e
  • 23. 22 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE mais com o serviço de voluntários, a administração hospitalar, os psicólo- gos e assistentes sociais. Esses achados corroboram nossas observações tanto no que se refere à timidez com que o tema está inscrito na formação médica, quanto ao fato de que ainda é prevalente nos hospitais a ideia da humanização voltada para ações pontuais que amenizam as tensões cotidianas da vida intra-hospitalar. Outra observação importante é que além de não ter havido acréscimo no seu aprendizado ao longo da Residência, houve uma distorção do que trata a humanização e a sua importância no trabalho médico. Estudos que vão ao encontro da compreensão do papel da tecnolo- gia e das mudanças sociais do trabalho médico11 , ou do atendimento hos- pitalar 15 mostram que as transformações tecnológicas da Medicina e o modo como se organiza hoje o trabalho médico não favorecem o discurso e a prática da humanização. A própria mudança do PNHAH para a PNH (que aumenta o campo iluminado da humanização, mantendo foco nas re- lações intersubjetivas, mas acentuando a necessidade de mudar processos de gestão e organização do trabalho na área da Saúde) tem como base a realidade descrita nesses e noutros trabalhos. Parece fundamental que o ensino da humanização na formação mé- dica deve partir da conscientização do tema em todos os âmbitos nos quais se dá o aprendizado. É preciso que os hospitais-escola desenvolvam a PNH no seu dia-a-dia, ao mesmo tempo em que as disciplinas de humanidades curriculares trabalhem seus conteúdos com os alunos, em um verdadeiro movimento de integração serviço-escola. Outro aspecto fundamental para o desenvolvimento da humaniza- ção no ensino médico é a inclusão dos seus princípios e diretrizes na ges- tão educacional, e a presença de espaços de construção de subjetividade, escuta e exercício de reflexão sobre a vida de estudante e de médico, como se observa nos programas de tutoria25 . Na condição de espaços nos quais se cultiva o vínculo, o respeito à diferença de opinião, a construção coletiva de ideias e juízos sobre os mais diversos temas do cotidiano médico, os programas de tutoria são locus privilegiados para o cultivo da humanização no ensino médico. Cenário que abriga histórias de vida, vivências comuns ao estudante de Medicina,
  • 24. 23 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE situações que podem estar na frente ou atrás dos panos e que podem e devem ser conscientemente abordadas, trocando o cinismo pela ética. Do caminho percorrido ao que ainda temos que percorrer... No tempo em que na Medicina havia poucos recursos para o diag- nóstico e tratamento, a presença do médico ao lado do paciente, obser- vando-o minuciosamente, acompanhando sua evolução, ampliando seu conhecimento acerca da sua vida e hábitos, eram atitudes necessárias para o próprio exercício da profissão11 . Essa atitude, mais próxima ao que hoje se postula para a humanização das práticas, não era algo da ordem do amor ao próximo, como, ingenuamente, uma certa visão romântica tende a insinuar. Vários relatos da história da Medicina mostram o grande inte- resse científico dos médicos na busca de soluções para os males do corpo, alguns levados pelo altruísmo, outros pela vaidade26 . Durante muito tem- po, a proximidade com o paciente era quase um imperativo técnico para o exercício da boa Medicina11 . As mudanças sociais e culturais que atravessaram os tempos desde essa época transformaram a face da Medicina e das práticas de saúde, che- gando ao contexto que discutimos neste artigo e suas implicações no surgi- mento da humanização na Saúde. Começando por ações isoladas, pontuais, amadoras, a humanização foi desenvolvendo conceitos e tecnologias para sua aplicação tanto no campo das relações profissionais-pacientes, quanto no campo da gestão, chegando à forma de política pública na Saúde. Entretanto, a falta de compreensão mais profunda da dimensão psi- cossocial que envolve os processos saúde-doença, a falta de compromis- so com o resultado do trabalho, a falta de decisões compartilhadas com pacientes, de projetos assistenciais discutidos em equipe multidisciplinar, e mesmo de gestão participativa nos serviços de Saúde, tornam a huma- nização do cuidado um projeto ideal ainda bem distante da realidade dos serviços de Saúde. Trabalhamos durante vários anos junto aos hospitais públicos da Secretaria de Estado da Saúde coordenando a Área de Humanização e pudemos observar que além desses problemas estruturais referentes princi- palmente à gestão dos serviços, há um outro lado do problema que, menos
  • 25. 24 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE evidente e mais entranhado na cultura dos serviços, também dificulta mui- to as mudanças de comportamento que a humanização advoga. Trata-se do que cada profissional espera da sua profissão. Para muitos, o trabalho é o dever a ser cumprido para dar direito ao salário. Para outros é também caminho para a satisfação pessoal, a superação de desafios, o prazer de ser alguém que faz diferença na vida dos outros, e na própria vida. De acordo com nossa experiência e ponto de vista, a humanização só terá assegurado seu lugar na relação do profissional com o paciente quando se mostrar indispensável para os bons resultados que o profissio- nal deseja de si mesmo no seu trabalho27 . Para isso, há que se provocar (se é que isso é possível) uma descoberta fundamental na vida dos profissio- nais de Saúde: a recuperação do desejo e do prazer de cuidar, algo que, de tão distante dos valores culturais que predominam na contemporaneidade, parece irremediavelmente perdido, mas quem sabe... Aí então, a necessidade de bem cuidar será sentida como uma dis- posição que pode mover o desejo de aprender um outro jeito de ser e fazer o encontro clínico no campo intersubjetivo e, mais além deste, realizar a humanização em toda sua amplitude. Referências Bibliográficas 1. ANDERSON, P. As Origens da Pós-Modernidade, Rio de Janeiro, Zahar, 1999. 2. LYOTARD, J.F. A condição pós-moderna, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 2002. 3. LIPOVETSKY, G. Os tempos hipermodernos, São Paulo, Barcarolla, 2004. 4. AUGÉ, M. Não Lugares – Introdução a uma antropologia da supermo- dernidade, Campinas, Papirus, 2005. 5. BIRMAN, J. Mal Estar na Atualidade, Rio de Janeiro, Civilização Brasi- leira, 2001. 6. COSTA, J.F. O vestígio e a aura – Corpo e consumismo na moral do es- petáculo, Rio de Janeiro, Garamond, 2004. 7. SCHRAMM, F R , REGO, S T A, BRAZ, M , PALÁCIOS, M Bioética, Ris- cos e Proteção. Rio de Janeiro, Editora UFRJ - Editora Fiocruz, 2005.
  • 26. 25 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE 8. REIS, A. O. A. ; MARAZINA, I. ; GALLO, P.R. A Humanização na Saúde como instancia libertadora. Saúde e Sociedade, 2004, p. 36-43. 9. DINIZ, C.S.G. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento, Ciência e Saúde Coletiva, 2005 vol. 10 n.3, pp.627-637. 10. DESLANDES, S. F. Humanização, revisitando o conceito a partir das contribuições da sociologia médica, in Humanização dos Cuidados em Saúde, Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz, 2006. 11. SCHRAIBER, L. B. No encontro da técnica com a Ética: o exercício de julgar e decidir no cotidiano do trabalho em Medicina. Interface – Comu- nic. Saúde, Educ., 1997 v.1, n.1. 12. NOGARE, P.D. Humanismo e anti-humanismo: introdução à antropo- logia filosófica. Rio de Janeiro: Vozes, 1977. 13. VOLICH, R M Entre uma angústia a outra..., Boletim de Novidades Pul- sional, São Paulo, 1995 n.80 pp. 37-45. 14. FOUCAULT, M Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1986 15. SÁ, M. C. Em busca de uma porta de saída: os destinos da solidariedade, da cooperação e do cuidado com a vida na porta de entrada de um hospital de emergência (Tese), São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2005. 16. HUMANIZASUS: Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, Brasília, DF, 2004. 17. MINISTÉRIO DA SAÚDE – Gestão participativa e co-gestão, Brasília, 2004, [capturado 24 jun. 2008] Disponível em: http://dtr2001.saude.gov. br/editora/produtos/impressos/folheto/04_1164_FL.pdf 18. MARTINEZ, M. C. Relação entre satisfação com aspectos psicossociais e saúde dos trabalhadores. Rev. Saúde Pública, 2004, v. 1, n. 38, p. 55-61. 19. MINISTÉRIO DA SAÚDE – A educação permanente entra na roda: pó- los de educação permanente em saúde, Brasília, 2005, [capturado 24 jun. 2008] Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/educa- cao_permanente_entra_na_roda.pdf 20. AYRES, J.R. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática, Rev Saúde e Sociedade, 2000, n.6, vol.4. 21. FREUD, S. Introdução ao Narcisismo, Edição Standard Brasileira, Vol.
  • 27. 26 HUMANIZAÇÃO: A ESSÊNCIA DA AÇÃO TÉCNICA E ÉTICA NAS PRÁTICAS DE SAÚDE XIV, Rio de Janeiro, Imago. 22. MINISTÉRIO DA SAÚDE – Cartilha dos direitos dos usuários da saúde, Brasília, 2006, [capturado 24 jun. 2008] Disponível em: http://www.con- selho.saude.gov.br/biblioteca/livros/cartaaosusuarios01.pdf 23. RIOS, I. C., LOPES JUNIOR, A., KAUFMAN, A., VIEIRA, J. E., SCANAVI- NO, M. T., OLIVEIRA, R. A. A Integração das Disciplinas de Humanidades Médicas na Faculdade de Medicina da USP – Um Caminho para o Ensino. Rev. Bras. Educ. Méd., v.32, n.1, 2008. 24. MORI, G., ABRAMOVICH, I., MONTEIRO, P. Mudança na ótica e na ética das relações durante a Residência Médica sobre a humanização em saúde, 2007, [capturado 24 jun. 2008] Disponível em: http://sistema.saude.sp.gov.br/eventos/Palestras/28-11-2007%20-%20 Mostra%20SES/Comunicacoes%20Orais/5_Humanizacao%20nos%20Ser- vicos%20de%20Saude/Glenda_Garrafa_Mori.pdf 25. BELLODI, P. L., MARTINS, M. A. Tutoria - Mentoring na formação médica, São Paulo, Ed. Casa do Psicólogo, 2005 26. THORWALD, J. O século dos cirurgiões, São Paulo, Ed. Hemus, 2005 27. RIOS, I. C. Ser e fazer diferente... É possível provocar o desejo? Rev. Interface, Comunic Saúde Educ, 2007, v.11 n.26.
  • 29. 28 VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO A capacidade de ver José Saramago, em seu “Ensaio sobre a cegueira” (p. 10) retira do Livro dos Conselhos a epígrafe1 : “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. E nos faz mergulhar numa história fantástica na qual uma misterio- sa epidemia de cegueira branca acomete as pessoas de um país e, à medida que cada vez mais pessoas não podem ver o mundo, preocupadas consigo mesmas e sua sobrevivência individual, destroem-se as bases da organi- zação social vigente e se instala um estado de coisas em que domina o espírito do “salve-se-quem-puder”, a “lei do mais forte”, o individualismo, a ganância, o colapso de valores humanistas. O resultado é uma socieda- de caótica, destrutiva e suicida. Os personagens que conseguem manter princípios éticos e ações solidárias, sustentando uma organização coletiva baseada no respeito e cooperação, são os que escapam de ser tragados pela violência de uma multidão cega, potencialmente assassina, que percebe os outros como inimigos. O autor tece uma analogia entre a perda da visão e a progressiva perda da humanidade decorrente do egoísmo de quem não consegue en- xergar o mundo como um lugar a ser compartilhado por todos, mas um lugar hostil que se presta a prover necessidades particulares. Qualquer semelhança com situações das sociedades contemporâneas certamente não é mera coincidência. Saramago escreveu esse romance com clara intenção de fazer uma contundente crítica à dissolução de va- lores éticos e alertar sobre a decadência humana e social que acomete a sociedade quando esses valores entram em crise. Por isso, a epígrafe nos precipita à responsabilidade: se podemos ver o que está acontecendo, devemos buscar a reparação. Ver, conhecer, refletir sobre si mesmo, os outros e as situações que nos envolvem em contexto particular e coletivo. É o princípio da ética, da cidadania, da humanização. Princípio que emerge da concepção de homem comum no lugar so- cial e tempo histórico da modernidade. Podemos dizer que a noção de cidadania2 que temos hoje (um sistema de direitos e deveres que se apli- cam a todos os membros de uma sociedade) é uma evolução cujo ponto
  • 30. 29 VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO de partida foram as modificações econômicas, políticas e sociais que se iniciaram a partir do século XVI. O mercantilismo e a criação de bases para o desenvolvimento do capitalismo3,4,5 iniciante exigiu uma sociedade organizada sob o esque- ma político representado pela figura do Estado, cuja consolidação se deu, principalmente, através da modificação do conceito do lugar do homem comum na sociedade. Cada indivíduo passou a ser importante porque o Es- tado construiu seus alicerces na coletividade. Nas sociedades capitalistas, o homem comum é chamado de cidadão e ocupa um lugar estratégico na sua constituição, dinâmica e sobrevivência, e as instituições surgem como dispositivos de ação para a organização da sociedade e manutenção da ordem. Nesse contexto, a vida como valor máximo do ser humano passa a ter uma importância particular, quando a esse valor supostamente na- tural agregam-se outros que permitem o uso das práticas de saúde como estratégia de ação sobre a população para, através da promoção da saúde e da reprodução, manter-se a vida, a saúde da força de trabalho e na con- temporaneidade, o consumo. Entretanto, nessa configuração da sociedade em que todos são di- tos cidadãos – teoricamente com direitos iguais (inclusive de acesso a bens), mas que na lógica capitalista não estão ao alcance de todos – não se mantém a ordem das coisas sem que opere a violência3,6, nos seus mais diversos matizes. A violência7 aparece como problema histórico e social em todas as sociedades, e nas sociedades da modernidade aparece como instrumento de organização e dominação. A violência revela estruturas de dominação de classes, grupos, indivíduos, etnias, faixas etárias, gêneros, nações e sur- ge como resultado de tensões entre os que querem manter certos lugares e privilégios e os que se rebelam contra eles, não necessariamente por sede de justiça, mas muitas vezes apenas por fome de poder... Na nossa sociedade, a violência8 se revela estrutural ante a desigual- dade social e a incapacidade do Estado de suprir as necessidades de toda população, criando um contingente de excluídos que não tem meios para exercer seus direitos e deveres cidadãos. A exclusão social não é só uma questão de pobreza, mas principalmente de ausência de poder público e
  • 31. 30 VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO sua substituição por um poder paralelo, marginal e violento cujas regras não respeitam as leis do coletivo, porque nesses espaços de não-governo instauram-se domínios que governam com regras particulares. Vivemos em uma sociedade violenta9 : em 2006, as causas externas foram a terceira causa de morte na população brasileira, sendo que entre essas, os homicídios ocuparam o primeiro lugar. Não se tratam só dos atos de brutalidade criminosos (que já são bastante altos), o que cada vez mais chama a atenção é a prevalência de um modo subjetivo de lidar com situ- ações cotidianas e resolver conflitos pelo uso da violência. Na contemporaneidade10 , o individualismo e a desigualdade relati- vos ao modo capitalista de organização social, a deterioração e descrença nas instituições, as rupturas na malha de apoio social e a banalização da violência pela mídia tornam o viver violento um modo de estar no mundo quase aceitável, uma vez que a essas situações agregam-se valores que alimentam tal comportamento: - A competitividade extrema que coloca o outro no lugar do inimigo em potencial e não como parceiro; - O culto ao machismo e à força bruta como expressão de poder e virilidade; - A adoção de figuras sociais de exuberante comportamento narcí- sico como modelos identificatórios; - A capacidade de consumo como valor maior que a capacidade ética na construção da identidade pessoal; - A busca do prazer fácil e imediato; - A velocidade e superficialidade dos contatos interpessoais, valen- do mais a quantidade e o valor instrumental das relações, que a qualidade do encontro; - A desqualificação de outros modos de pensar a existência humana (senso comum, Religião, Filosofia, Arte e Ciência) em favor do limitado discurso da ciência positivista; - A desvalorização da vida, a coisificação das pessoas; - A medicalização, ou a transformação do mal-estar existencial (não mais representado em outros campos do saber) em vago e doloroso mal- estar, vagando pelo corpo.
  • 32. 31 VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO Fatores psíquicos individuais11 também contribuem para o com- portamento violento, entretanto cabe lembrar que tais fatores são cons- titutivamente dependentes da cultura. Estudo de Vethencourt11 com jo- vens delinquentes pobres da Venezuela revelou, em suas histórias de vida, crianças que cresceram em ambiente pobre material e afetivamente, em meio a situações de violência e ausência de expectativas de realização de projetos pessoais. Tais jovens apresentavam desestruturação sutil da personalidade, desorganização do comportamento em relação a valores socialmente aceitos, regressão e reativação de núcleos de violência narcí- sicos, perda do autocontrole pela estigmatização, recrudescimento da raiva contra o outro e contra o próprio grupo. Enfim, em uma visão macroscópica, a violência é um problema so- cial, histórico e cultural que decorre de relações sociais marcadas por con- tradições e diferentes formas de dominação, presente em todas as socieda- des, em tonalidades e graus de aceitação variáveis. O comportamento violento é instrumental, latente nos valores cultu- rais vigentes, e manifesto no modo de ser cotidiano das pessoas. A opinião pública condena a violência, mas admite situações em que é aceitável, protegida e mesmo naturalizada. Instituições respeitáveis como a família (no que tange à violência doméstica), a escola, as empresas, o hospital, nos seus bastidores “podem” se amparar em ideologias que sustentam o uso da violência como meio. Aproximando nossa lente para o campo das subjetividades7 , a vio- lência se apresenta como um modo de relação humana, um comportamento que se molda dentro da cultura e dos valores reproduzidos nas instituições, começando pela família e depois avançando para outros espaços sociais. É assustador, mas, nesta sociedade, com frequência, dependendo do momento ou situação estaremos correndo o risco de sermos vítimas ou algozes. O território da cegueira branca... Nas instituições, a violência decorre da cultura geral de violência de que falávamos e da organização visando a manutenção da ordem que consolida lugares de poder e controle dos sujeitos. Sobre a instituição12 devemos lembrar que ela é condição básica
  • 33. 32 VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO do desenvolvimento humano. Produto das interações humanas. Nascemos numa família, crescemos construindo nossa identidade nos grupos que participamos, seja a escola, a religião, o trabalho, a tribo. Portanto, sempre estaremos ligados uns aos outros em graus variáveis. A questão, portanto, não é crucificar a instituição, mas perceber suas várias finalidades, pensá- las e transformá-las a partir de valores éticos revigorados. Na dinâmica institucional12 , o modo de relação que está na base de qualquer tipo de violência, a relação de domínio e submissão, também se apresenta no que chama de violência institucional na Saúde. Segundo Foucault, a violência institucional3 historicamente se engendrou nos presí- dios, escolas, instituições psiquiátricas, que usavam o castigo moralmente legitimado pela sociedade. A violência institucional na área da Saúde decorre de relações so- ciais marcadas pela sujeição dos indivíduos. Data na transformação do hospital antigo no hospital moderno3,5 , sob os então “novos” métodos organizacionais. Historicamente, foi se configurando desde o controle, a alienação e o não reconhecimento das subjetividades envolvidas nas práticas assistenciais. Na vertente da organização científica do trabalho criaram-se as castas dos que pensam e dos que obedecem, levando-se ao estado de alienação do sujeito em relação ao seu trabalho, à instituição e ao contexto social em que se inscreve a sua prática que não só torna seu trabalho mecânico e sem sentido como potencialmente violento, porque perde qualidades fundamentais para o contato técnico e sensível necessá- rio às relações intersubjetivas na Saúde. O assim chamado institucionalismo11 resulta dessa forma de violên- cia e faz com que a instituição de saúde passe a provocar doença ao invés do cuidado e da cura. Fatores que levam ao desenvolvimento do quadro clínico são: - Uso da disciplina e rigidez hierárquica para organização e controle do trabalho; - Supremacia do fenômeno biológico e da intervenção sobre um corpo descontextualizado de sua história; - “Dessubjetivação” das pessoas envolvidas nas práticas; - Desenvolvimento de especialidades e tecnologias que fazem a clí-
  • 34. 33 VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO nica das doenças e não a clínica das pessoas historicamente constituídas; - Hegemonia do discurso médico em torno do qual orbitam discursos de outras disciplinas, na maioria das vezes construídos sobre o mesmo modelo; - Uso do discurso do saber para o exercício do poder e de diversos tipos de comportamento de dominação e submissão tanto entre profissio- nais, quanto em relação aos pacientes; - Formas de comunicação apenas descendentes e ausência de direito ou recurso das decisões superiores. Por outro lado, temos que considerar alguns elementos mais sutis que escapam a essa constatação sobre o modo como se encontra hoje a vida institucional na Saúde. Lembremo-nos de que, em cada época, se constroem saberes legitimados socialmente, diretamente implicados nas práticas sociais, entre as quais a Saúde. Na nossa sociedade coloca-se a ciência positivista como hegemô- nica4 e desautoriza-se outros campos que anteriormente davam respostas às inquietações humanas como a Arte, a Religião, a Filosofia, os espaços coletivos de reflexão. Com isso, a sociedade ganha eficiência nas áreas tecnológicas, mas perde sustentação humanística para compreender a sub- jetividade humana. Por exemplo: diminuindo as vias de escoamento representacional, o mal- estar existencial passa a ser percebido como sensação de doença e requer respostas na Medicina, no remédio, na intervenção no corpo13 . Acrescente-se a maior ou menor vulnerabilidade psíquica e biológica de cada um para o surgimento da patologia mental e temos a prevalência crescente dessas patologias: estados depressivos, estados ansiosos e fóbi- cos, somatizações, adições (obesidade, alcoolismo, abuso de drogas). Consoante a essa demanda, desde a década de 1970 vem se desen- volvendo um modo de fazer clínica psiquiátrica que se apoia preferencial- mente na teoria dos neurotransmissores e no uso de drogas, tanto para os casos em que os sintomas são indiscutíveis manifestações reativas a situações inerentes ao estar vivo, quanto aos casos de indicação precisa. Passamos da fase em que todo comportamento incompatível aos ide- ais da sociedade burguesa era passível de internação e a loucura3 estava ligada à paixão, à falta de reflexão, contrapondo-se ao juízo e à virtude.
  • 35. 34 VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO Os avanços médicos do século XX desenvolveram outras referências para a patologia mental, menos apoiadas no juízo moral do comportamento desviante e mais “científica” dentro dos princípios da Medicina moderna. Entretanto, indo de um extremo para o outro nos encontramos diante da absurda situação que nos coloca os códigos de classificação de doenças2 , no seu furor nosográfico que patologiza as expressões humanas em todas suas nuances, prestando-se muito mais aos interesses pecuniários dos se- guros saúde e ao progresso das vendas de psicofármacos pelas indústrias farmacêuticas, que aos propósitos terapêuticos a que se destinariam por princípio. Nesse sentido, a humanização na Saúde (contra a violência institu- cional) chama à reflexão sobre em que se apoiam nossos saberes e práticas e quanto somos carregados por determinações sociais que imprimem inte- resses na nossa atividade. Longe da cegueira, perto da humanização “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” Retomo a epígrafe porque acredito que esse é o nosso movimento de escolha. Pensar a humanização, sob o ponto de vista que adotei neste traba- lho, diz respeito a pensar em que contexto sociocultural se engendram as patologias e as práticas de saúde das quais somos agentes. Vivemos numa sociedade complexa10 , que, entre outros aspectos, se caracteriza pela velocidade e profusão de informações, superficialidade das relações afetivas e desarticulação dos universos simbólicos que tecem a malha de apoio social do indivíduo no coletivo. Preconiza-se o livre acesso aos bens de consumo sem que se forneçam democraticamente os meios práticos para o seu alcance. Exaltam-se o individualismo, a compe- titividade e o sucesso pessoal à custa da neutralização das diferenças e o acomodamento a modelos idealizados de bem-estar e prazer que limitam expressões diversas das subjetividades e não são possíveis a todos. Nesse meio, as patologias e principalmente as mentais reproduzem no cenário da vida privada o modo de funcionamento social sustentado na contradição, alienação, isolamento e angústia.
  • 36. 35 VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO Se deslocarmos nosso foco de observação para o interior das institui- ções de Saúde12 , não será surpresa perceber que também nelas essas vivên- cias se expressam, em graus variáveis. Subliminarmente, a não consciência da estrutura maior em que estamos imersos reproduz tudo aquilo que obser- vamos como características das sociedades contemporâneas: aprisionamen- to a valores descontextualizados, alienação, indiferenciação, individualismo e o aniquilamento das chances de manifestações de subjetividade. Voltando às nossas reflexões iniciais, consideramos que as ações de promoção da saúde devem ter como base a compreensão da vida humana na diversidade de suas expressões individual e coletiva. Tal atitude pressu- põe a consciência de que todos nós estamos imersos nesse universo histó- rico de representações da vida, do prazer, do sofrimento, da morte, no qual se armam encruzilhadas que, para alguns, é a captura para a doença. Os vários discursos na instituição constituem-se da sobreposição do sujeito psíquico (que comporta a dimensão de cada história pessoal) no sujeito institucional (lugar de representação, de imagos culturais, de papel social). Recuperar o lugar dessas duas dimensões é a perspectiva da humanização. A humanização como reação à violência institucional na Saúde bus- ca recuperar o lugar das várias dimensões discursivas dos sujeitos que atuam ou recorrem às instituições de saúde, desconstruindo relações de dominação-submissão e dando lugar à construção de saberes compartilha- dos e o desenvolvimento dos potenciais de inteligência coletiva14 definidos por Levy como “a valorização, a utilização otimizada e a colocação em si- nergia das competências, imaginações e energias intelectuais, independen- temente de sua diversidade qualitativa e de sua localização” (Levy, 1993, p.36), que se traduz na comunicação, no debate e na divulgação das ideias para a construção de projetos e ações coletivas em sinergia com princípios, missão e visão institucional coletivamente construídos. Cabe novamente perguntar: qual é o nosso papel como agentes de Saúde nessa sociedade? Não temos como negar que respondemos por pelo menos duas fun- ções, uma manifesta, outra nem tanto. Nossa função manifesta é a promo- ção da saúde, e a outra é a criação de respostas para conflitos inerentes à
  • 37. 36 VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO vida na sociedade que, direta ou indiretamente, recaem sobre os corpos. Nessa vertente, tanto quem pratica quanto quem recebe cuidados de saúde está exercendo cidadania. E mais, ambos estão atuando no campo dos direitos, em contraponto à violência. Os direitos humanos15 consti- tuem um sistema de conhecimento e prática que busca integrar direitos subjetivos com direitos sociais – algo absolutamente em sintonia com a humanização. Os direitos subjetivos falam das liberdades individuais, e os direitos sociais, dos direitos que devem ser garantidos pelo estado: saúde, trabalho, educação entre outros. Os direitos absolutos são exatamente o campo do nosso trabalho e a base de qualquer perspectiva de cidadania tanto para os profissionais quanto para os pacientes. Entre eles estão: o direito à vida, a não ser dis- criminado, a não ser torturado ou receber tratamento ou punição cruel, desumana ou degradante, a ser reconhecido como pessoa perante a lei e à liberdade de pensamento. O bom cuidado da saúde é um direito humano e quando podemos exercer nossas atividades profissionais decentemente estamos exercendo nossos direitos de cidadão, caso contrário estamos no meio da encenação de uma farsa, cegos ou não. Para finalizar, gostaria de lembrar a crônica de Carlos Drummond de Andrade,16 nos dizendo da fixação humana pelo verbo matar, que des- liza seu desejo homicida nos vértices de inocentes expressões linguísticas cotidianas com as quais vivemos matando o tempo, matando a fome. Ma- tamos aula, matamos charadas. Nosso dedo polegar é o mata piolhos. E termina brincando e nos chamando a refletir que: “Se a linguagem espelha o homem, e se o homem adorna a lin- guagem com tais subpensamentos de matar, não admira que os atos de banditismo, a explosão intencional de aviões, o fuzilamento de reféns, o bombardeio aéreo de alvos residenciais, as bombas e a variada tragédia dos dias modernos se revele como afirmação cotidiana do lado perverso do ser humano. Admira é que existam a pesquisa de antibióticos, Cruz Vermelha Internacional, Mozart, o amor.” (1993, p.67.) Não sei por quê... Mas acredito no poeta!
  • 38. 37 VIOLÊNCIA E HUMANIZAÇÃO Referências Bibliográficas 1. Saramago, J. Ensaio sobre a cegueira, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 2. Bezerra Jr, B. org. Cidadania e Loucura, Petrópolis, Editora Vozes e Abrasco, 1987. 3. Foucault, M. Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1986 4. Mendes Gonçalves, R. B. Medicina e história: raízes sociais do tra- balho médico, tese de doutorado, FMUSP, 1979, mimeo. 5. Foucault, M. O nascimento da clínica, Rio de Janeiro, Forense-Uni- versitária, 1977. 6. SBPC, Violência, Revista Ciência e Cultura, nº.1, 2002. 7. Costa, J.F. Violência e Psicanálise, Rio de Janeiro, Graal, 1986. 8. Minayo, M.C. Violência e Saúde como um campo interdisciplinar e de ação coletiva, História, Ciências, Saúde vol.IV, nov 1997-fev 1998. 9. Ministério da Saúde, Saúde Brasil 2006: Uma análise da desigual- dade em saúde, Brasília-DF, 2006. 10. Birman, J. Mal Estar na Atualidade, Rio de Janeiro, Civilização Bra- sileira, 2001. 11. Vethencourt, J. L., Psicología de la violencia. Gaceta APUCV/IPP, 62: 5-10, 1990. 12. Souza, M. L. R. O Hospital: um lugar terapêutico? Percurso nº.9, 2,1992. 13. Benoit, P. Psicanálise e Medicina. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1989. 14. Levy, P. As tecnologias da Inteligência – O futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: Editora 34, 1993 15. Ayres, J. R., Calazans, G., França Jr, I. “Saúde coletiva e direitos huma- nos – um diálogo possível e necessário” Anais do VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. 16. Andrade, C. D De notícias e não-notícias faz-se a crônica, Rio de Janeiro, Record, 6ª. Ed, 1993.
  • 39.
  • 40. O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde CAPÍTULO III
  • 41. 40 O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde “Porque eu sou do tamanho do que vejo, e não do tamanho da minha altura.” Alberto Caieiro Para começar... O primeiro princípio norteador da PNH “A valorização da dimensão subjetiva e social em todas as práticas de atenção e gestão”1 , logo no início da sua cartilha, destaca a importância da dimensão subjetiva na Humani- zação, dimensão esta que, ao longo do último século, foi se esmaecendo das práticas até a quase total desconsideração2 , muito embora, inerente à condição humana, jamais possa desaparecer. Mas, o que se quer dizer com valorizar a dimensão subjetiva, ou em outros termos, trabalhar no campo da subjetividade na área da Saúde? Minha proposta neste texto é fazer algumas reflexões sobre essa questão, particularmente no que se refere à atenção, sem pretensão de dar conta do assunto, mas com desejo de aproximação ao tema. Para começar, vou assumir a redação na primeira pessoa do singular, porque se trata da minha visão sobre o assunto, e por que me parece meio estranho falar de subjetividade usando uma linguagem que não considera a própria... É possível que há uns bons anos, mais precisamente até a década de 1940, a relação médico-paciente fosse mais próxima, e nesse sentido mais humana, uma vez que diante de tão poucos recursos diagnósticos e terapêuticos, a proximidade do médico com seu paciente era quase um imperativo técnico3 para o seu ofício. No clássico Tratado de Medicina Interna de Cecil4 , Lewis Thomas ilustra essa afirmação ao narrar uma im- pressão sua guardada da infância a respeito dos poucos recursos da Medi- cina e a dedicação do médico, no caso, seu pai: “Há aqui um mistério, e esse é um aspecto da medicina que tem sido esquecido por muitas pessoas, médicos e pacientes. Uma vez identificada a natureza da enfermidade e a notícia transmitida ao paciente, aconteciam várias outras coisas. Primei- ro, o médico assumia a responsabilidade pelo desfecho, fosse ele o melhor ou o pior. E talvez mais importante que tudo, ele se tornava um arrimo. Tornar-se um arrimo significava passar aos fatos, o que o médico fazia: ele podia não ter muito na sua maleta preta e não ter poções mágicas para servir e certamente nada que pudesse colocar ou tirar de um computador, Heterônimo de Fernando Pessoa – “ Guardador de Rebanhos” , Poemas Completos de Alberto Caeiro, Editora Martin Claret, 1ª. ed., 2006.
  • 42. 41 O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde porém ele tinha sua presença e aí estava a diferença. Sir William Osler costumava ensinar que isso poderia fazer toda a diferença do mundo, caso o médico entendesse o que estava ocorrendo ao seu paciente e usasse essa compreensão e se tornasse disponível ao mesmo tempo como uma fonte de esperança e força, esses atos de habilidade profissional poderiam melho- rar a situação. Eu acredito nessas coisas, mesmo que não as compreenda bem.” (Cecil, 1984, pp. 38-39) A presença do médico e o cuidado possível pelo conhecimento e compreensão da situação do paciente são tidos pelo autor como atos de habilidade profissional. As grandes mudanças que marcaram nossa História contemporâ- nea5 refletem-se na área da Saúde em cenários nos quais nessa antiga mala preta (que hoje mais parece uma bolsa de Mary Poppins) há muito mais recursos para diagnosticar, intervir e medicar, e cada vez menos a presença realmente interessada e disponível do médico, e sejamos justos, não só deste, mas de toda estrutura do serviço de Saúde, que acaba se configurando em um labirinto frio e impessoal. Mudanças no processo de trabalho médico3 decorrentes da capitalização da Medicina e o aparato institucional e tecnológico interposto na relação com o paciente, assim como a organização hierárquica, a comunicação descendente e a gestão centralizada dos serviços respondem por grande parte do mal-estar das instituições de Saúde. Mal-estar que desencadeou movimentos teórico- práticos6 que hoje se agregam sob a bandeira da Humanização, que bem antes de ser política pública (Política Nacional de Humanização – PNH), se expressava na luta antimanicomial, na humanização do parto e nasci- mento, na criação de ambientes hospitalares mais acolhedores, partindo do ponto comum de tentar ultrapassar o recorte biológico e alcançar as muitas dimensões existenciais da pessoa que busca atenção à saúde (e da que lhe atende!). Com certeza, o primeiro nó crítico da realidade das práticas de Saúde que, sob o enfoque da humanização, procurou-se desatar foi a questão da “dessubjetivação” dos envolvidos nessas práticas. Por esse caminho, uma das primeiras conceituações7 adotadas na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo para a Humanização dizia: “Humanização é o processo de trans- formação da cultura institucional que reconhece os aspectos subjetivos das
  • 43. 42 O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde relações humanas, os valores socioculturais e os funcionamentos institu- cionais na compreensão dos problemas e elaboração de ações de saúde, melhorando as condições de trabalho e a qualidade do atendimento.” (Rios, 2003, pp.20), conceito que pouco tempo depois encontrou respaldo na referida cartilha da PNH1 . Sem nos deixar cair na busca nostálgica do médico à semelhança do pai do nosso protagonista citado há pouco neste texto (que era o médico do seu tempo), posto que hoje os tempos são outros, voltando à minha questão inicial, a pergunta é: do que trata essa dimensão subjetiva esco- tomizada que agora queremos que venha à luz dos nossos olhos? Reitero: não acredito nas propostas de se tentar recuperar um modo de ser de ou- tras épocas, ainda que aparentemente fosse mais acolhedor, uma vez que pensar a subjetividade, e o trabalho nesse campo, hoje envolve conheci- mentos e habilidades técnicas e éticas marcadamente contemporâneas. Dos meus autores mais caros8,9,10 utilizo a definição de subjetividade como o resultado de processos relacionais contínuos de natureza biológica, histórica, psíquica, social, cultural, religiosa, que se condensam ou sedimen- tam no indivíduo e lhe determinam características particulares. Resultado de processos relacionais, a subjetividade tem caráter dinâmico, contínuo e sistêmico, e se constrói nas relações com o mundo e com as pessoas11 . A subjetividade nos diz sobre o modo ou modos de ser das pessoas em determinado tempo e lugar. Embora as pessoas sejam bastante diferen- tes entre si, as subjetividades8 se constituem da interação entre o mundo interno (incluindo a biologia) e a história, valores e lugares da cultura da época, presentes desde antes do nascimento, a começar pela própria família que preparou o berço. Comporta um plano singular (aquilo que só diz respeito a mim mesma – minha constituição física, minha biografia, meus desejos e atos) e um plano coletivo (aquilo que compartilho com ou- tros seres humanos em um mesmo tempo – a linguagem, as necessidades básicas, os valores socioculturais). De forma muito simplificada, a título de exemplo, diríamos que a subjetividade capitalista12 produz a homoge- neização dos indivíduos, a normatização e massificação do pensamento segundo um sistema de valores consumistas. A subjetividade narcísica dos tempos atuais8, 9 produz comportamentos de descrença em relação ao ou-
  • 44. 43 O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde tro, isolamento e solidão, segundo um sistema de valores que têm o eu como sua referência. Portanto, quando falamos de subjetividade estamos dizendo de processos que se dão no indivíduo e no coletivo determinando modos de ser no singular e no plural. Assim como o mundo externo incide sobre nosso mundo interno, e nesse encontro molda nossa identidade, nós também somos agentes de transformação do mundo externo, cenário onde expressamos nossa singularidade. No campo da subjetividade, tanto do ponto de vista individual quan- to coletivo, não existe neutralidade nas relações humanas. Mesmo quando aparentemente distanciadas pelo saber específico de uma técnica que tra- balha na concretude do corpo, como faz o modelo biomédico2 de atenção à saúde. Ainda que nesse modelo de atenção o corpo seja pensado pelos pro- fissionais como organismo, para o paciente e sua família, continua sendo corpo com nome próprio, portanto histórico, social, psíquico. E mais, no que se refere às relações que se estabelecem, pode-se ignorar os efeitos subjetivos que causam nos profissionais, pacientes e familiares, mas suas memórias vão guardar essas marcas silenciosas, e não menos atuantes na constante remodelagem das subjetividades das pessoas envolvidas. Isto posto, através do prisma psicanalítico, proponho uma vista pa- norâmica da dimensão subjetiva da condição de paciente e da condição de profissional da Saúde manifestas no dia-a-dia do nosso trabalho quando do encontro de ambos. O paciente e os aspectos psíquicos do adoecimento Em um tempo distante, cada um de nós teve uma primeira pessoa que cuidou de nós quando éramos bebês. E depois vieram outros: pessoas da família ou não, médicos, professores, amigos. A subjetividade começa a ser construída em uma relação13 que se dá no território que compreende o corpo do bebê e da sua mãe. O corpo a todo tempo cuidado, protegido, acariciado, é o palco de histórias e emoções que são construídas e guarda- das na memória que assim é, tanto psíquica, quanto corporal13,14 . Sobre o corpo biológico do bebê em relação com o outro que lhe cuida se constrói o que, na Psicanálise, chamamos de corpo erógeno14,15 , ou seja, uma estru- tura que é ao mesmo tempo física, emocional e histórica. Carrega a mate-
  • 45. 44 O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde rialidade da carne, líquidos e processos físico-químicos no mesmo invólucro da alma. Por isso, tocar o corpo será sempre provocar sensações, puxar pela memória, e escrever mais uma linha na história da vida da pessoa. Na prática, não existe procedimento técnico, clínico ou cirúrgico, que não provoque emoções, sentimentos, lembranças, e não deixe seus rastros de impressões, efeitos e memória. Isso é importante porque os pa- cientes podem reagir ao contato físico com o profissional da Saúde de um modo que a gente muitas vezes não entende, porque não se trata apenas de um sentir por vias neurais... Mas um sentir carregado de vivências muitas vezes inconscientes para o próprio paciente. Nessa hora, precisamos dar um desconto e mesmo que jamais saibamos os porquês de suas reações, a nós cabe a calma, a habilidade para contornar a situação e se possível, a sabedoria de não julgá-los. Tocar o corpo, mesmo que feito de modo absolutamente técnico e ético (como sempre deve ser, sendo o contrário totalmente inaceitável), nunca será sentido como um ato asséptico. Particularmente quando o tema a ser revisto no corpo for o sexo. Sexo e subjetividade formam uma trama irredutível. De novo, da Psicanálise, aprendemos que o desenvolvimento da sexualidade está na base do desenvolvimento da identidade14,15 . Nascemos seres sexuados, e antes mesmo de nos sabermos como um “eu” vivente, recebemos nomes e cuidados segundo o gênero. Para os meninos, azul. Rosa, para as meni- nas... É bem verdade que a sexualidade infantil13,14 (e hoje, espera-se que todo profissional da Saúde saiba) não é a mesma coisa que a sexualidade adulta, mas é no ambiente cultural que suas insígnias se inscrevem. No campo da subjetividade e dos processos relacionais que o constituem, a construção da identidade se dá junto ao desenvolvimento da sexualidade durante a infância e a adolescência pela composição de vivências corpo- rais, culturais e emocionais que formam a matriz da personalidade adulta. O processo é bastante complexo e absolutamente belo, como só é possível na natureza essencialmente humana da nossa existência. Não sei se tão breve colocação de um tema cujo aprofundamento foge ao escopo deste texto seja suficiente para fazer perceber que, no nos- so cotidiano de profissionais da Saúde, precisamos estar atentos porque,
  • 46. 45 O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde em sã consciência, ninguém pensa em sexo como genitais internos e ex- ternos do ponto de vista semiológico (exceto nós, talvez...). Lembro agora de um episódio no posto de saúde em que eu trabalhava. A educadora de Saúde fazia grupos de gestantes para ensinar como funciona o organismo feminino na gravidez. Ela tinha vários materiais ilustrativos, com fotos e modelos tridimensionais de útero, ovários, útero gravídico, fetos, enfim... No primeiro encontro com as gestantes, seu objetivo era ensinar-lhes o que é a fecundação do óvulo pelo espermatozóide. Bem intencionada, ela começou o encontro perguntando às moças ali presentes: vocês sabem como engravidaram? E aí foi risinho para cá, faces coradas para lá e estava literalmente na cara que todo mundo pensou numa cena, num lugar, numa pessoa, em tudo, menos no óvulo com o espermatozóide! Não dá para separar a memória do corpo. E quando a pessoa adoece, então... Com a disseminação das informações de toda e qualquer natureza pelos meios de comunicação, qualquer pessoa tem acesso a notícias de cunho médico, ainda que muitas vezes de forma e conteúdo inadequados. O tempo da inocência acabou... É cada vez mais comum o paciente chegar com um diagnóstico em mente e querer dirigir a prescrição, conforme viu na televisão e na Internet. O profissional da Saúde não é mais o detentor de um saber guardado entre seus pares, mas alguém que deve ser capaz de mediar esse saber junto aos seus pacientes e sociedade, considerando a singularidade de seu acontecer em cada pessoa. O que precisamos ter em mente é que, o paciente, bem informado ou não acerca da sua doença, quando se apresenta para nós é, antes de tudo, alguém que pensa e reage à sua doença de modo particular e inconsciente- mente busca em nós mais que o conhecimento sobre sua doença, o suporte para os acontecimentos psíquicos devidos a esse adoecimento. As possi- bilidades são muitas, mas invariavelmente, o que acontece são singulari- dades diretamente vinculadas às experiências de vida. Porque como dizia, não há acontecimento no corpo que não evoque lembranças, sentimentos, culpas, desejos e tratar um paciente como um todo significa ter sensi- bilidade para tudo isso, ou no mínimo, respeito e comportamento ético. Lembremos que cada um teve uma experiência particular com o primeiro
  • 47. 46 O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde cuidador e os demais que surgiram ao longo da vida, e assim quando do encontro com o profissional de Saúde no momento do adoecer, vai nele depositar demandas que se referem a essas vivências, o que pode facilitar a construção do vínculo terapêutico ou impedi-lo totalmente, de acordo com a capacidade do profissional de perceber ou não essa dimensão afetiva do paciente, presente no modo como o paciente se dirige a ele e, em quase todos os casos, manifesta explicitamente quando ele sabe conversar com o paciente sobre a vida e não só sobre sintomas. Há pouco tempo acompanhei um familiar a uma consulta com um médico especialista, professor titular de uma importante escola médica de São Paulo. A paciente apresentava-se bastante fragilizada devido à doença e recorrera a ele, que sendo médico e professor, lhe trazia à lembrança o marido há muitos anos falecido e que também tinha sido médico e profes- sor de Medicina. Um médico muito querido e admirado por sua competên- cia técnica e humana. Bem, o nosso professor aqui a recebeu com elegante e educada frieza, em quinze minutos escrutinou-a com precisão técnica e mandou fazer alguns exames. Quando ela o interrogou sobre o retorno para ver os exames, ele lhe disse que os mandasse pelo correio e ele lhe daria as orientações terapêuticas por telefone. Inconformada, pois o retor- no para complementação da primeira consulta trata-se inclusive de um direito do paciente segundo o Código de Ética Médica, em vão ela tentou reivindicar mais espaço de encontro e de conversa com o professor titular, que se manteve firme como o mármore do piso do seu belo consultório particular. O problema da falta de competência ético-relacional na atenção à Saúde não é privilégio dos serviços públicos como às vezes querem nos fazer crer... Acontece também nos melhores endereços da cidade. Alguns autores14, 16,17 postulam que ao adoecer, principalmente quando de um evento mórbido relativamente grave, é comum ocorrer o processo de regressão narcísica, ou de retorno do interesse e energia (li- bido) da pessoa para ela mesma. O retorno ao narcisismo14 diz respeito ao modo de funcionamento psíquico que guarda semelhança com o modo subjetivo característico dos tempos precoces da vida psíquica normal, mas que no caso de um adulto pode significar comportamentos incômodos para ele próprio e seus cuidadores. Nesse modo de funcionamento psíqui-
  • 48. 47 O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde co14 , ressurgem sentimentos habituais na tenra infância, ligados a vivências de desamparo e dor e a necessidade de ser cuidado por alguém dotado de especial capacidade de empatia e poder de proteção, tal como foi a mãe, ou sua substituta. A emergência dessas emoções por si só já pode desencadear muita angústia ao paciente, pois, na maioria das vezes, estamos falando de um adulto, uma pessoa independente, que estava vivendo dentro de contin- gências mais ou menos sob seu controle até ser interrompido pela doença. O abalo que a doença causa na imagem que o sujeito tem de si e a necessidade de cuidados para restaurá-la pode aparecer na forma de exigências ansiosas do paciente e de seus familiares para com o profissional da Saúde. Por outro lado, o desligamento das energias psíquicas dirigidas ao mundo e a sua consequente volta para si mesmo (regressão narcísica) faz parte de um processo necessário para o acúmulo de forças para o restabe- lecimento. Se os conflitos que esse estado pode acarretar forem bem equa- cionados, ou seja, se o profissional compreender que se trata de alguém fra- gilizado vivendo um momento difícil, saber um pouco de sua vida anterior (como em outras situações difíceis ele se comportou, o que lhe faz bem ou mal, enfim saber um pouco do modo de ser do paciente), e principalmente se conscientizar de que muito do que depositar nele (profissional) se deve a esse estado de coisas e não propriamente a algum tipo de julgamento sobre o mesmo, é muito provável que ao invés de confusão e perplexidade, paciente e profissional da Saúde unam esforços no sentido da cura. A escuta do que os pacientes contam nas bordas do roteiro da anam- nese nos revela o quanto a doença não é algo externo à suas vidas, como a princípio pode parecer. Ao contrário, o adoecimento está ligado ao modo de ser e viver das pessoas, sendo que a terapêutica deve considerar essa ordem de valor. Esta observação é particularmente valiosa para as doenças crônicas e aquelas chamadas psicossomáticas17 (mas cabe ressaltar que todo ser humano é psicossomático, ainda que tenhamos dificuldades para alcançar a dimensão mais verdadeira dessa afirmação). Para outras pessoas, a regressão, a demanda de cuidados e a mobili- zação da família pode ser algo desejado. Pode ser do interesse do paciente enquistar-se na condição de doente14,16 , como uma forma de vida protegi- da e circunscrita no refúgio da doença. Nesses casos, a cura pode ser sen-
  • 49. 48 O Realce à Subjetividade: assim começa a Humanização na atenção à Saúde tida como uma ameaça e para que ela ocorra será necessário trabalhar pela aquisição de capacidade para cuidar de si mesmo e assumir uma atitude de maturidade, o que nem sempre será possível sem a ajuda de psicoterapia. Há também aqueles casos em que a doença é uma forma de se obter gratificações sociais diversas ou mesmo se livrar de grandes sofrimentos psíquicos contra os quais não se consegue encontrar outras armas, por exemplo, quando a doença exige que o sujeito se afaste de relações ou situações que lhe são incômodas18 . Infelizmente, essa situação é muito recorrente entre pessoas vivendo situações de trabalho penoso, muito fre- qüentemente na área da Saúde e da Educação... O modelo mecanicista18 que as instituições adotam para o trabalho na Saúde, além de não promo- ver a saúde integral dos pacientes, é também causa de adoecimento para nós mesmos. Por fim, cabe lembrar que o lado oculto da queixa, ao qual estamos nos referindo nessas reflexões sobre aspectos subjetivos do adoecimento, é, na maioria das vezes, oculto também para o próprio paciente, pois se tratam de manifestações inconscientes. Este, sem saber, repete junto ao profissional de Saúde padrões de vinculação19 semelhantes aos que viveu com sua mãe, com seu pai, ou com aqueles que foram significativos em sua vida em outros tempos. Demanda-lhes o amor, ou a responsabilidade, ou a correção que esperava dessas figuras, e responde conforme seu desejo de ser amado ou de desafiar uma autoridade. O profissional da saúde e o lugar do cuidador Meu convite agora é acompanhar algumas ideias sobre o lugar do profissional da Saúde (aqui pensado e referido como cuidador) no con- texto atual das práticas de saúde e mais particularmente no que se refere a seus matizes subjetivos. Penso esse lugar como uma instância sobrede- terminada que comporta o papel social que é atribuído ao profissional, o imaginário cultural do qual faz parte, as películas mnêmicas que o pacien- te lhe deposita (como vimos anteriormente) e, é claro, sua pessoa real, sua personalidade e história pessoal. O papel social3 do profissional da Saúde é definido pelo modo como se organiza a sociedade. Não pretendo aprofundar este estudo nessa ver-