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Abílio Ferreira (José Abílio Ferreira)




Dados biográficos

       José Abílio Ferreira nasceu em São José do Rio Preto-SP, em 09 de
outubro de 1960. É jornalista e participou da arregimentação político-cultural
levada a cabo pelo movimento negro na década de 80. Foi integrante dos
encontros de escritores negros promovidos pelo Quilombhoje e outros grupos
envolvidos com afirmação da literatura negra em nosso país, bem como das
publicações resultantes desses encontros. Em sua auto-apresentação no volume
7 de Cadernos Negros, lembra o “processo de embranquecimento sofrido na
infância”, para destacar a relevância do trabalho de “afirmação da identidade da
negritude”, acrescentando que “escrever poesia é colocar, mesmo que não se
perceba, as contradições existentes na nossa mais profunda intimidade”.(1984, p.
10).
        Já em depoimento no número seguinte da série, ressalta a preocupação
com a formação do leitor afro-brasileiro: “no plano da comunidade, [Cadernos
Negros] trata de refletir o leitor, que não se enxerga na maior parte da produção
do grande mercado, discutindo o sentimento que a nossa sociedade nega e
mantém submerso”.(C.N.8, p. 10).

Referências Bibliográficas
Cadernos negros 7. (org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1984.
Cadernos negros 8. (org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1985.



Comentário Crítico

Memória e experiência na produção literária de Abílio Ferreira

                                                     Giovanna Soalheiro Pinheiroi


                             Mas, a quem não fará sonhar a rua? A sua influência é
                     fatal na palheta dos pintores, na alma dos poetas, no cérebro
                               das multidões. Quem criou o reclamo? A rua! Quem
                        inventou a caricatura? A rua! Onde a expansão de todos os
sentimentos da cidade? Na rua!
                                                   A alma encantadora das ruas

                                                          No carnaval, esperança
                                                                 Que gente longe
                                                              viva na lembrança
                                                                 Que gente triste
                                                          possa entrar na dança.
                                                               Que gente grande
                                                                 saiba ser criança
                                                        “Sonho de um Carnaval”


       Compreender a escritura de Abílio Ferreira é penetrar em uma obra
inegavelmente afro-brasileira que, não raro, está repleta de magia e mistério pela
densidade alegórica que a construção literária carrega em si. Na realidade é uma
escritura da experiência, mais precisamente da experiência observada, e de certa
maneira, vivenciada pelo sujeito empírico do autor. “Onde há experiência no
sentido estrito do termo, entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do
passado individual com outros do passado coletivo” (Walter Benjamin, obras
escolhidas III, p. 107.) Tal proposição de Benjamin esclarece, em grande medida,
a construção novelística do escritor negro aqui analisado, tendo em vista o
conjunto de sua obra que, em menor ou maior grau, arquiteta-se pelos sublimes
caminhos da memória. Além disso, a verve artística de Ferreira oscila entre o seu
ofício de jornalista, ao denunciar, com profunda racionalidade e de forma concisa,
as mazelas e vícios da nossa sociedade, mas ao mesmo tempo reverbera o
lirismo de um flâneur, mostrando-se um sensível apaixonado pelas “multidões”.

        O escritor é um dos integrantes do grupo Quilombhoje, tendo publicado os
seus contos e poesias nos Cadernos Negros, série de inegável importância para a
expressão de uma literatura que se distingue dos parâmetros estéticos
apregoados pelo Cânone Ocidental, uma vez que põe em evidência os conflitos
étnicos e sociais que permeiam a vida do negro brasileiro. No ano de 1989, é
publicada a sua antologia de contos e poesia, Fogo do olhar, pela Mazza Edições,
e em 1995 a novela de formação Antes do carnaval, pela Editora Selinunte. Antes
de partirmos para um breve estudo da composição literária de Ferreira, é
imprescindível ressaltar que a sua escrita propala, antes de tudo, o isolamento e a
solidão do sujeito moderno, referindo-se ao desespero e à miséria balizada na
pele da gente negra. Nesse sentido, torna-se manifesta a menção à literatura de
Lima Barreto e João do Rio, especialmente no que tange à densidade para
observar “os anônimos heróis” e o mundo povoado pela desventura da exclusão
social e pelo preconceito. Tais escritores depositaram nas malhas das letras todo
um conjunto de pensamentos antagônicos em torno da realidade nacional, posto
que, por meio de suas experiências, desenharam um painel vivo e, ao mesmo
tempo trágico, dos fundamentos éticos e sociais responsáveis pela formação
histórica da Nação Brasileira.
O narrador das cidades e das “multidões”: o flâneur

       Um dos temas de destaque presente na escritura de Abílio Ferreira, que
marca as narrativas tidas como modernas e pós-modernas, é o olhar diferenciado
sobre os espaços urbanos e sobre os indivíduos que neles habitam. Trata-se de
um modelo específico de narrador, o qual faz das ruas a sua própria moradia,
desenhando-a com os seus vícios, mazelas e encantos; observando os seus
detalhes íntimos e todo o contorno das avenidas e dos viadutos. Tal observador é
o flâneur, ou ainda, “O homem das multidões”, tendo este, como finalidade maior,
captar as marcas profundas presentes no corpo da cidade. (In Walter Benjamin,
OE. III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, p 45).

       O narrador da novela Antes do carnaval pinta as ruas com a expressividade
das palavras, fazendo-as singulares, à medida que põe as imagens no próprio
tecido narrativo:

                   Às cinco horas da tarde, o Viaduto do chá, ponte de ligação
                   entre o centro velho e o centro novo da cidade, começava a
                   ficar cheio de negros. Rodinhas se formavam nas esquinas da
                   direita com a São Bento e da Barão de Itapetininga com a
                   Conselheiro Crispiniano. Era o momento do rush – um corre-
                   corre em busca de condução para casa, uma massa de ar
                   cinzenta escondendo o pico dos edifícios, descendo sobre as
                   arvorezinhas das praças, pairando sobre as cabeças,
                   envolvendo as multidões apressadas. O trânsito parado,
                   buzinas ensurdecedoras sobrepondo-se aos outros ruídos da
                   cidade; de dentro dos aranha-céus, elevadores despejando
                   gente nas ruas, num vômito incontido. (Antes do carnaval,
                   p.84)

       No fragmento acima, bem como em parte considerável da narrativa,
observa-se a cidade e seu conjunto de elementos como uma das personagens da
novela. Os bailes no Viaduto do Chá e as luzes dos edifícios; o movimento das
danças; as praças, e os “rapazes com os black powers redondos e brilhantes
apontados para o sol” (AC. P.85) são, a bem dizer, símbolos que representam o
entusiasmo e a união “daquela gente” que tinha, nas ruas, o seu principal ponto de
encontro. Abílio, em Antes do carnaval, soube apreender a essência da “alma
encantadora das ruasii” e traduzir os sons, as imagens e as tradições negras que
fazem da praça uma “Encruzilhada de Néon”.

        A cidade deve evidentemente ser tomada como um conjunto arquitetônico
universal, mas em se tratando de uma obra que agrega as concepções de cultura
afro-brasileira, não é possível deixar de mencionar os espaços que, em sua
grande maioria, são habitados pela gente negra. Nesse sentido, as praças, os
viadutos, e até mesmo o mar, tornam-se símbolos da coletividade negra, ao se
constituírem como linhas de forças das identidades dispersas.
Antes do carnaval: um novo bildungsroman da identidade afro-brasileira

        Assim como Conceição Evaristo, em seu bildungsroman afro-brasileiro
Ponciá Vicêncio, Abílio, do mesmo modo, percorreu os caminhos do Romance de
formação.Trata-se, na realidade, de uma sucinta novela, porém de expressiva
densidade narrativa, na medida em que incorpora as experiências de duas
personagens, as quais terão suas vidas entrelaçadas pelo destino, à consciência
crítica sobre o que é SER NEGRO. A escritura que se apresenta em Antes do
carnaval é múltipla, digressiva e coesa, pois é a montagem da narrativa,
construída ao fim e ao cabo pelo leitor, que formará o sentido do texto. A trama é
dividida em três partes: a primeira relacionada ao mundo de Clara, uma das
protagonistas da novela; a segunda pautada nas vivências de Marcelo, este
também essencial para a constituição do enredo; e a última refere-se à posição e
às ponderações, repletas de lirismo, feitas pelo narrador em torno do espaço que
norteia a grande cidade de São Paulo.

       Clara e Marcelo são seres marcados por um destino comum, ou seja, desde
a infância, precisam afrontar as desventuras impostas pela sociedade que se
deseja puramente branca, no sentido mais amplo do termo. É o universo de Clara,
uma menina negra, que inicialmente é descrito pelo narrador: desde a
adolescência, assinalada pelos conflitos e pela exclusão que permeiam a sua
família, até o seu envolvimento com pessoas que não faziam parte do seu
contexto sócio-econômico e cultural. À medida que os anos passaram, a menina
transformou-se em uma jovem consciente dos conflitos e das tradições inerentes
ao seu mundo. Em muitos momentos na narrativa é possível perceber, ainda que
de forma simplesmente alusiva, as reminiscências de um passado que se pereniza
nas sublimes vozes negras, presentificadas na história, na literatura e na música:

                   A porta do apartamento estava entreaberta. Lá de dentro fluía
                   um som – Billie Holliday cantava uma música que
                   estranhamente não despertou nela um sentimento novo. Ao
                   contrário, era um sentimento antigo, longínquo, vivido em
                   algum momento que ela não lembrava.
                   Clara parou diante da mesa de som revestida de aço
                   inoxidável, com luzes coloridas piscando. O fato de a porta
                   estar aberta, a sala vazia e o aparelho de som ligado não lhe
                   chamou a atenção. Ela estava envolvida apenas por uma
                   preocupação: no meio daquele cheiro de novo que emanava
                   do carpete, dos estofados, dos quadros, destacava-se aquela
                   música pungente. Havia ali, sem dúvida, dois corpos
                   estranhos – Clara e a música. Mas por quê? (Antes do
                   carnaval, p. 62).

       A música é a evocação de um tempo outro, não essencialmente do
experimentado pela personagem Clara, mas de um tempo/espaço eterno,
arraigado na memória afro-descendente. O jazz imortal de Billie Holiday remete
não somente à ancestralidade africana e à história da escravidão, mas, sobretudo,
às relembranças de um passado miserável de exploração, intrínseco também à
própria vida da cantora. Nesse sentido, a música torna-se, ao mesmo tempo, um
instrumento de tomada de consciência – posto que possibilita o bradar das vozes
em relação aos conflitos étnicos e sociais – e um nobre componente da memória
cultural desses povos. Não é sem motivo que o escritor negro Du Bois, no capítulo
final de As almas da gente negra, constrói um belo ensaio sobre as Sorrow Songs,
isto é, as Canções da Dor que evidenciam a vida de angústia e o sofrimento dos
negros norte-americanos.

      Quando Clara se depara com o som tocado, o narrador tece o seguinte
comentário a respeito das impressões que a música lhe havia deixado: “era um
sentimento antigo, longínquo, vivido em algum momento que ela não lembrava”. A
música parece ter desencadeado em Clara uma memória involuntária, (Walter
Benjamin, OE. III), que a fez reconhecer-se na letra da canção. A existência da
personagem, assim como a de Marcelo, está indelevelmente vinculada à
lembrança da escravidão, não vivenciada por eles, mas presente, de uma outra
maneira, nos conflitos que norteiam a sociedade atual.

       O menino Marcelo, também negro, vivenciou fortes momentos de amargura
e solidão: foi abandonado pela mãe e adotado por uma senhora, Dona
Alexandrina, que não pôde lutar contra os infortúnios que, inevitavelmente,
atormentariam a existência de tal personagem. Percebeu que, da mesma forma
que ela, o filho teria um destino comum aos de muitos do seu bairro: não faria
faculdade, não passaria do primeiro grau, viveria solitário, por algum tempo, pelos
caminhos tortuosos da existência:

                   Enquanto esteve doente, sabendo que não duraria muito,
                   Dona Alexandrina sofreu só de pensar em como Marcelo
                   viveria sem ela. Porque ela conhecia muito bem a história dos
                   rapazes muito jovens que trabalhavam como cavalos, com
                   remuneração baixíssima, cansados, mal alimentados demais
                   para aproveitar os estudo e desistindo por falta de dinheiro ou
                   por problemas de saúde na família. E, mesmo quando
                   conseguiam terminar o segundo grau, não suportavam pagar
                   um curso pré-vestibular e muito menos um curso superior,
                   quando conseguiam entrar na faculdade. (Antes do Carnaval,
                   p. 72).

       Na realidade, as experiências de Marcelo contribuíram positivamente para
que ele modificasse a vida, não apenas pré-desenhada por sua mãe, mas também
resultado dos antagonismos sócio-econômicos inerentes à realidade brasileira. No
começo de sua formação chegou a negar, por influência dos amigos de escola, a
sua própria identidade, uma vez que retirou todo o cabelo crespo e passou a crer
que, a partir daquele momento, a sua vida teria outros contornos. Marcelo, do
mesmo modo que Clara, teve a sua consciência moldada pela música que, aliás, é
motivo recorrente na novela. “O tempo do soul marcou época”, afirma o narrador,
e é por meio dele que teremos acesso ao verdadeiro universo cultural do
personagem:

                   Toda semana em cada quarteirão de cada bairro da periferia,
                   surgia uma nova equipe de música mecânica, imitando as
                   grandes equipes que faziam os bailes de soul do centro da
                   cidade. (Antes do carnaval, p. 93).

       Marcelo e Clara foram impulsionados pelos ritmos da memória, foram
levados ao mar involuntariamente para que pudessem ligar-se pelos fragmentos
de suas recordações e experiências. Ao final da narrativa é descrito, de forma
quase transcendental, o encontro “estranho” das duas personagens no mar, sendo
este, na escritura de Ferreira, o fio que conduz a herança, além de permitir uma
profunda viagem às reminiscências do passado.

O Bildungsroman enquanto gênero específico

        A novela Antes do carnaval pode ser apreendida como uma narrativa
literária de caráter fortemente exemplar, pois sua estrutura encontra ressonância
nas tradições da memória e da formação, cujo narrador exerce, o que chamo, de
uma onisciência solidária: não há uma participação, em primeira pessoa, deste no
texto, mas há um denso olhar solidário a uma existência coletiva e cenas
observadas. Antes do carnaval está centrado nos anos de formação e
aprendizado de dois jovens negros, tendo em vista uma sucessiva aproximação
das tradições culturais afro-brasileiras. Lukács, em A Teoria do Romance expõe
sua concepção sobre o Romance de Formação, que em alguns pontos aproxima-
se da composição literária de Abílio Ferreira:

             A humanidade, como escopo fundamental desse tipo de
             configuração, requer um equilíbrio entre atividade e contemplação,
             entre vontade de intervir no mundo e capacidade receptiva em
             relação a ele. Chamou-se essa forma de romance de educação. Com
             acerto, pois sua ação tem de ser um processo consciente,
             conduzindo e direcionado por um determinado objetivo: o
             desenvolvimento de qualidades humanas que jamais florescem sem
             uma tal intervenção ativa dos homens e felizes acasos; pois o que
             se alcança desse modo é algo por si próprio edificante e encorajador
             aos demais, por si só próprio um meio de educação. A ação definida
             por esse objetivo tem algo da tranqüilidade da segurança. Mas não
             se trata da tranqüilidade apriorística de um mundo rematado; é a
             vontade de formação. (Lukács, 2000, p. 141).

      Após a leitura dessa narrativa, permanece uma indagação inevitável: trata-
se de um clássico bildungsroman europeu, nos quais os desfechos são quase
sempre plenos de beleza e felicidade? Na realidade não é possível definir o futuro
das personagens, uma vez que, a meu ver, o texto de Ferreira permanece como
uma esfinge a ser decifrado por nós, leitores. Há, sem a menor dúvida, ao final da
narrativa, uma consciência crítica formada pelas experiências vividas, mas ao
mesmo tempo percebe-se, de forma indireta, uma existência mutilada pela
memória histórica das catástrofes vivenciadas pela população escrava no Brasil. O
olhar do narrador desenha um jogo dialético entre passado/presente e
presente/futuro, pois, ao retratar a forma de escravidão atual – a doença profunda
e pungente da desigualdade social – confirma um processo que deverá ser
combatido, ato contínuo. Nota-se, dessa maneira, que a formação destoa de um
gênero universalizante, já que a promessa de felicidade vindoura depende
igualmente de uma análise perspicaz em torno dos conflitos que estão no cerne da
sociedade brasileira e de um olhar culturalmente diferenciado. Assim como o
romance de Conceição Evaristo, Antes do carnaval tem como desígnio maior não
somente idealizar a formação inerente à própria tradição dos povos de origem
africana, mas especialmente desmistificar uma democracia racial historicamente
construída. Seguindo a concepção de Florentina da Silva e Souza, nessa
escritura, nomeadamente afro-brasileira, há um grande desejo por parte do
narrador de agir sobre a vida do leitor, de maneira a conscientizá-lo em relação à
vida política e sócio-cultural. A idéia contida no bildungsroman afro-brasileiro
passa pela educação/formação, mas sem deixar de enfatizar as reminiscências da
diáspora negra.

       Por meio do que foi exposto acima, não é difícil notar que a existência
coletiva é o ponto referencial, a partir do qual o leitor pode situar-se e interferir no
assunto narrado, contribuindo na apreensão do significado do texto. Nesse
sentido, a literatura produzida por escritores afro-brasileiros passa a ter uma
missão muita bem delineada: a de edificar mundos, não apenas verossímeis, mas
motivado pelas experiências centradas na barbárie cometida contra os negros e
que, ainda hoje, deixa profundas marcas na civilização brasileira.

A alegoria: O carnaval

        O carnaval, já apresentado no título da novela, não é um simples
ornamento literário, mas é, sobretudo, uma alegoria para os possíveis encontros e
desencontros no destino da gente negra. Roberto DaMatta, em Carnavais,
malandros e heróis, faz um esboço contundente das relações sociais que se
estabelecem e que se dissolvem durante tais festividades no Brasil. Na concepção
do autor, essas comemorações são marcadas pelo relacionamento entre os
homens e Deus, possuindo, por essa razão, um sentido mais universal e
transcendente. Sendo assim, trata-se de um período de intensa renovação, no
qual vida e morte tentam se equilibrar nas cordas vacilantes do destino. Em Antes
do carnaval é necessário compreender que tudo tem início exatamente com o
“Banho da Dorotéia”: segundo o narrador, trata-se de uma festa misteriosa, já que
a maior parte das pessoas não sabia quem era Dorotéia ou a real acepção desse
ritual. O Banho era visto como uma prefiguração do carnaval – acontecia uma
semana antes dele – sendo que o seu sentido maior era o mergulho coletivo no
mar. Tal banho, a meu ver, é o fio condutor do destino de Clara e Marcelo, já que
é, por meio dele, que o primeiro encontro ocorrerá entre as duas personagens. O
caráter enigmático da narrativa nos faz apenas sugerir um sentido, mas devemos
caminhar pela própria ordem das coisas. As águas do mar refletem, com toda a
sua simbologia, ao começo de tudo, ao batismo e, por que não, ao renascimento
da vida. Observa-se, por meio da leitura da novela, que é nessas águas que
teremos a efetivação do processo de formação e a gênese de uma legítima
consciência étnica.

O mar

       O poder mais admirável que envolve a narrativa carnavalesca iii de Abílio é a
emergência desse símbolo – O MAR – ao mesmo tempo profano e sagrado,
permitindo a purificação do corpo e do espírito e, especialmente, fazendo insurgir
crenças, valores e as mais profundas raízes ancestrais. O narrador da novela
estabelece quase que um ritual ascético, ao personificá-lo por seu alento coletivo:

                    No verão, em certos fins de semana, muita gente era expulsa
                    pela cidade em direção ao mar. Ele, sim, era mais sincero:
                    nunca escondera o seu fascínio e o seu perigo. Seus
                    humores, seu temperamento impulsivo, tudo nele era
                    verdadeiro e simples. A superfície refletia o interior, de modo
                    que ninguém se atrevia a desafiá-lo quando se mostrava irado.
                    E ele próprio tinha o habito de avisar a todos a sua disposição
                    em receber visitas. Nessas ocasiões, mostrava-se dócil,
                    oferecendo a todos os que o amavam o seu abraço solidário e
                    reconfortante. (Antes do carnaval, p. 100).

O mar é fundamental em relação ao entendimento da escritura do autor aqui
estudado, a bem dizer no que tange à sua construção poética. Tal símbolo e
quase que um leitmotiv da obra de Ferreira e expressa a dinâmica da existência; a
imagem da vida e da morte; a ambivalência entre o ser e o não ser. Como fica
manifesto no fragmento acima, é a partir dele, e ao mesmo tempo do encontro de
Clara e Marcelo nesse mesmo ambiente, que as transformações começam a se
processar.

       Em um outro sentido – tomando como referência a história coletiva – o mar
possui ainda uma função mais figurativa, referindo-se à viagem percorrida pelo
Atlântico Negro, e especialmente, reverberando as vozes memoriais que
perenizam, nas profundezas dessas águas, a dor, a humilhação e, do mesmo
modo, a tradição e a riqueza ancestral dos negros no Brasil.

       A escritura de Abílio mostra, antes de tudo, a sensibilidade de um prosador
poeta, este sempre presente naquele. Além de sua singular obra poética, não raro,
encontramos em seus contos e novelas, folhas preenchidas com algumas doses
lirismo. A consciência étnica, por sua vez, não se faz presente em forma de um
grito aberto, mas por meio de conflitos sócio-culturais que estão do cerne de suas
páginas escritas. O autor soube unir, à sua condição de sujeito negro, a memória
coletiva da essência africana e, ao mesmo tempo, soube registrar a formação
nítida de uma identidade afro-brasileira.
Notas:
i
     Graduanda em Letras pela UFMG
ii

 O título em itálico refere-se a uma das produções literárias do escritor João do Rio, que magistralmente soube
registrar, com seu olhar de flâneur, as multidões jogadas à deriva e, ainda, o espaço urbanizado das grandes
cidades. Nesse aspecto, a composição de Abílio Ferreira assemelha-se às crônicas e contos do autor de A
alma encantadora das ruas.
iii
  O termo “carnavalesco” não se refere ao tipo de Literatura carnavalizada, e sim à simbologia das
comemorações festivas em torno de tal evento. Tomo Bakhtin como referência, uma vez que em sua obra há,
antes de tudo, a descrição do processo do Carnaval, o qual dá origem à Carnavalização da Literatura. Percebe-
se, portanto, que a construção de Abílio retoma alegoricamente alguns elementos do carnaval, mas sem
provocar o riso destronante inerente à carnavalização.

Referência Bibliográfica:

BAKHTHIN, Mikhail. Problemas de poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro, Forense, 1981.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos
Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1989.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Editora Mazza, 2005.

FERREIRA, Abílio. Antes do Carnaval. São Paulo: Editora Selinunte, 1995.

HOLLANDA, Chico Buarque de. “Sonho De Um Carnaval” . Chico Buarque de Hollanda
[Compositor]. In: ─ Chico Buarque de Hollanda: os primeiros anos. São Paulo, Som Livre.
2006

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2000.

SELIGMAN-SILVA, Márcio (Org.), História, Memória, Literatura. O Testemunho na Era das
Catástrofes: Campinas: Editora Unicamp, 2003.

SOUZA, FLORENTINA DA SILVA. Afro-descendência em cadernos negros e jornal do MNU
[Movimento Negro Unificado]. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.



Considerações sobre as canções do tempo* na poética de Abílio Ferreira

                                                                           Giovanna Soalheiro Pinheiro**

                                                Não, nenhum cárcere detém o crepúsculo ou impede
                                                                   A marcha sangrenta das horas.
                                                                                 Márcio Barbosa

                                                   Oh, água, voz do meu coração, chorando na areia
Derramando, durante toda a noite, um pranto tão triste,
                                                       Deitado, a escutar, não compreendo
                                            A voz do meu coração ou a voz no peito do mar,
                                       Oh água, que implora o descanso, serei eu, serei eu?
                                               Durante toda a noite escuto a água a chorar.
                                                                         Arthur Symons***


       “Aqueles que antigamente caminhavam nas trevas cantavam canções – Sorrow songs
–, pois sentiam-se exaustos em seus corações. E assim, diante de cada pensamento que
escrevi neste livro, coloquei uma frase musical, a presença de um eco dessas singulares
canções antigas nas quais a alma do escravo negro falava aos homens.” (As almas da gente
negra, p. 298). Tais palavras do escritor afro-americano Du Bois são essenciais no que tange
à compreensão da poética de Abílio Ferreira, uma vez que esta é, antes de tudo, a canção
memorial que emerge da alma eterna do povo negro. Seus poemas soam, em alto grau,
como “canções da dor” e da alegria, na medida em que põem na escritura poética o tempo
resgatado pela reminiscência da escravidão e, da mesma forma, a aspiração infinita de
reavivar os laços culturais formadores da identidade africana no Brasil.

       Falemos do tempo inerente a tal escritura, já que ele representa, especialmente na
produção de Ferreira, uma excursão à lúdica infância e, igualmente, um retorno à Mãe África,
a fim de resgatar uma tradição renegada pela história, como já foi pontuado acima. É bem
verdade que o tempo da memória é eterno, sendo ele a única maneira de perenizar as
vivências humanas. Devido a isso, para apreender a poesia do autor é necessário ter em
mente não apenas a mundividência pautada nas experiências de vida do povo negro, o que
fica em alto grau evidente na construção de sua prosa, mas é preciso também fazer um
movimento que vai do mundo exterior para o interior, tendo em vista o caráter peculiar de sua
expressão poética. Em meio ao lirismo que povoa a poética de Abílio, há um mergulho
profundo nas vozes daqueles que ainda fazem ecoar hoje um “grito velado”, repleto de dor
soluçante, sentimento de revolta e vontade de reconhecimento.

       Neste conciso texto, serão analisados alguns poemas presentes na antologia de
contos e poesia Fogo do olhar. Mas antes disso, não podemos deixar de mencionar que, na
obra de Ferreira, a referência ao social se faz presente em forma de uma “reflexão lírica”,
como nos descreve o texto de Adorno “Palestra sobre lírica e sociedade”, em Notas de
Literatura I. Em tal texto, é possível notar uma afinidade profunda entre a forma e sua
percepção do mundo social. Para o pensador alemão as “composições líricas não são
abusivamente tomadas como objetos de teses sociológicas, mas sim quando sua referência
ao social revela nelas próprias algo de essencial, algo do fundamento de sua qualidade”
(Adorno, p.66, 2003). Portanto, na medida em que o sujeito empírico de Ferreira, de certa
maneira, se apresenta na escritura, há a revelação de uma verdade essencial intrínseca às
experiências coletivas do Atlântico negro****. Neste sentido, é possível notar um diálogo com
as produções de Cruz e Souza e Oswaldo de Camargo que, da mesma forma que o autor
aqui estudado, depositaram na poesia símbolos agudos de suas dores íntimas. Um belo
exemplo é o poema “tambores”, que nos permite mergulhar no rio do tempo e perceber a dor
cruel daqueles que vivenciam o isolamento:

                   Canto
                   Rufam os tambores
E a índole fundida em mim
                   Comove e move as imagens que já vi
                   Os odores são assim – invisíveis
                   Mas pregados no ar
                   a ameaçar
                   as pedras
                   do mesmo modo vivem as cores
                   que em silêncio
                   vão marcando uma presença nobre
                   nos espaços pobres que há (...)
                                            (“Tambores”, p.11).

      Não é difícil perceber que os sons emitidos pelos ritmos dos tambores estão na
essência dessa composição, sendo um dos motivos que permeia a obra poética de Abílio. A
bem dizer, são as melodias da própria memória coletiva do povo negro. O tambor é um
elemento intimamente ligado à musicalidade e à tradição cultural africana. Tocá-lo,
conseqüentemente, é fazer um resgate das imagens ancestrais, como fica expresso nos
versos acima, e trazê-las para o presente. Não podemos deixar de fazer referência aos
recursos estéticos utilizados pelo autor na construção de sua poesia. Alguns exemplos muito
evidentes de musicalidade são o emprego das aliterações nasais em M e N, recursos que
podem ser notados em toda configuração da poética negra aqui mencionada.

      Outro belo exemplo é “lembrança da dança” que, além da referida musicalidade, nos
remete aos corpos negros chibatados pelos senhores de escravos e à tradição cultural da
dança africana:

                   E pensar que nossos gestos
                   Derramamento de braços
                   Corredeira de olhares
                   Ondulações corporais enfim
                   Eram nada mais que manifestação gritada

                   E pensar que nem pensávamos no feio das coisas
                   Porém tínhamos as veias já saltadas
                   Dilatadas pelos sons universais da euforia

                   E vagar pelas quebradas espontaneamente históricas
                   Essas bocas temporais que deglutiram nossos medos
                   Entre os dedos como líquido viscoso e quente
                   O tempo foi escapando em doses fluídas e fecundas
                   Canções encontros rastros descobertos

                   Atrás de nós alguns amores sólidos
                   Outros mortos
                   Outros simplesmente adormecidos
                   Todos espalhados no caminho afunilado que -
                   Fincado no tempo -
                   Nos golpeia a mente qual um espetáculo de dança
                                            (“lembrança da dança”, p. 36).
A música, novamente, se faz presente no poema, mas pelo natural acalento da dança.
O sujeito poético nos permite viajar à África e, de certa maneira, vivenciar um outro tempo
em que não existiam diferenças; em que a harmonia dos corpos reverenciava o poder dos
orixás e fazia com que o povo negro transcendesse no tempo, cultivando suas raízes. Outro
sentido aceitável é o balanço dos corpos, açoitados pela tragédia da escravidão africana no
Brasil. Não se trata apenas do castigo físico, mas, sobretudo, do “açoite moral” pelo qual
foram submetidos os negros em nosso país. A música e a dança são símbolos
representantes da própria memória cultural resguardada pelas vozes poéticas que,
terminantemente, ecoam um grito de horror, em muitos momentos peculiar às próprias
marcas do corpo.

        A poesia de Abílio Ferreira é repleta de imagens do passado, sendo elas apreendidas,
muitas vezes, pelos sons fluidos da música e por outros elementos da tradição ancestral.
Deixo, por fim, alguns versos de “Estória no telespelho”, nos quais a consciência bipartida e
os sonhos da infância parecem gritar e reconstruir uma identidade que, ao longo dos séculos,
foi refutada por uma suposta democracia racial. Nele, outra vez, temos presente o símbolo
do espelho – recorrente em uma parte considerável da poética afro-brasileira – construindo a
imagem ou o reflexo da voz poética que tenta, fortemente, reerguer-se.

                    Falemos de nós agora
                    Contemos nos dedos o que fomos nós
                    Lembra da inocência!
                    Pra onde foram aqueles meninos danados?
                    Nossas fantasias ficaram nas calças Curtas
                    Nos pés descalços, na bola de capotão
                    Éramos perfeitos atores, às vezes
                    Representando uma realidade que víamos
                    Com a consciência lambusada de doces
                    E auto-rejeição (...).
                                           (“Estória no Telespelho”, p. 37).

       Nos versos acima, torna-se manifesta a presença desse eu coletivo, por meio das
próprias expressões lingüísticas. A utilização da 1º pessoa do plural – “falemos de nós”,
“contemos nos dedos”, “nossas fantasias” – evidencia as dores e angústias da gente negra.
Essa voz coletiva parece endossar um passado que é inerente não apenas àquele que
ressoa o canto, mas a todos os que se sentem presentes dentro dele. O presente do
subjuntivo indica ainda a íntima necessidade de eternizar as imagens do passado na
atualidade; e em grande medida, obrigam-nos a reconhecer as diferenças, mostrando-nos a
“consciência lambusada de doces” e, portanto, a própria inocência da infância. “Estória no
telespelho” é um grito velado, mas que entoará sempre a sua mensagem, sobretudo a partir
de um mergulho no tempo, perpassando o jogo dialético entre o ontem e o hoje.



Notas:

* Na realidade, a expressão Canções do tempo é uma variante das    Sorrow Songs, “Canções da Dor”,
presentes em As almas da gente negra de Du Bois.
**Graduanda em Letras pela UFMG

*** A canção epigrafada inicia o primeiro capítulo “Sobre as nossas lutas espirituais” presente na obra As
almas da gente negra de Du Bois.

**** In: O Atlântico negro de Paul Gilroy




Referências Bibliográficas:

ADORNO, Theodor. “Notas de Literatura”. São Paulo: Duas Cidades/editora 34, 2003.

DU BOIS, W.E.B. As almas da gente negra.Rio de Janeiro. Lacerda Editores, 1999

CESAIRE, Aimé. Entrevista originalmente publicada em Magazine littéraire 34, Paris, França.
Novembro 1969. In: Agulha – Revista de Cultura. Edição 54, novembro/dezembro de 2006.
http://www.revista.agulha.nom.br

FERREIRA, Abílio. Fogo do olhar . Belo Horizonte: Mazza; São Paulo:Quilombhoje, 1989.
(poemas e contos).

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da

Cadernos negros 7. Org. (Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1984.




Bibliografia do autor

Obra individual
Fogo do olhar . Belo Horizonte: Mazza; São Paulo: Quilombhoje, 1989. (poemas e contos).
Antes do carnaval . São Paulo: Selinunte, 1995. (novela)

Não-ficção
Considerações acerca de um aspecto do fazer literário ou de como um escritor negro sofre
noites de insônia. In Quilombhoje (Org.) Reflexões sobre a literatura afro- brasileira . São
Paulo: Quilombhoje, 1982; 2 ed. São Paulo: Conselho de Participação e Desenvolvimento da
Comunidade Negra, 1985. (ensaio) Para a formação de um conceito de identidade nacional.
In ALVES, Miriam, CUTI, Luiz Silva, XAVIER, Arnaldo (Orgs.). Criação crioula, nu elefante
branco . São Paulo: Secretaria do Estado da Cultura / Imprensa Oficial, 1986. (ensaio)
Antologias
Cadernos negros 7. São Paulo: Ed. dos Autores, 1984.
Cadernos negros 8. São Paulo: Ed. dos Autores, 1985.
Cadernos negros 9. São Paulo: Ed. dos Autores, 1986.
CAMARGO, Oswaldo de (org.). A razão da chama – antologia de poetas negros
brasileiros . São Paulo: GRD, 1986.
Cadernos negros 10. São Paulo: Ed. dos Autores, 1987.
Breve antologia temática. In CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito . São Paulo:
Secretaria do Estado da Cultura, 1987. (poemas)
Cadernos negros 12. São Paulo: Ed. dos Autores, 1989.
Cadernos negros 13. São Paulo: Ed. dos Autores, 1990.
AUGEL, Moema Parente (org.). Schwarze prosa/Prosa negra – Afrobrasilianische
Erzahlungen der Gegenwart . Berlin: Edition Diá, 1993.
Controlamúria – o livro . São Paulo: Casa Pyndahyba, 1994.
Cadernos negros 18. São Paulo: Quilombhoje, 1995.
Cadernos negros 20. São Paulo: Quilombhoje, 1997.




Links do autor

http://www.quilombhoje.com.br/ensaio/cuti/TextocriticoErotismoCuti.htm
http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n50/a17v1850.pdf



Textos Selecionados

Tambores

Canto

Rufam os tambores
E a índole fundida em mim
Comove e move as imagens que já vi
Os odores são assim – invisíveis
Mas pregados no ar
                    a ameaçar
as pedras
do mesmo modo vivem as cores
que em silêncio
vão marcando uma presença nobre
nos espaços pobres que há (...)
                    (“Tambores”, p. 11)

Saga
é uma onda que sufoca
e estoura o peito
dilata as veias tapa os olhos
na sei se vai explodir numa lágrima
soco grito ou beijo
ah! Nem sei se os pedaços de mim vão fundir
nas saliências pequeninas duniverso.
                               (“Saga”, p.19)

Rio

Chorei
Pela morte do rio
A morte do rio
me deu pena de mim
Chorei
A espuma fedorenta sobre o rio
O rio coberto de branco – de luto
A morte do rio me deu pena de mim
Chorei
De ódio do branco que mata o rio.
                          (“Rio”, p. 21)


Lembrança da dança

E pensar que nossos gestos
Derramamento de braços
Corredeira de olhares
Ondulações corporais enfim
Eram nada mais que manifestação gritada

E pensar que nem pensávamos no feio das coisas
Porém tínhamos as veias já saltadas
Dilatadas pelos sons universais da euforia

E vagar pelas quebradas espontaneamente históricas
Essas bocas temporais que deglutiram nossos medos
Entre os dedos como líquido viscoso e quente
O tempo foi escapando em doses fluídas e fecundas
Canções encontros rastros descobertos

Atrás de nós alguns amores sólidos
Outros mortos
Outros simplesmente adormecidos
Todos espalhados no caminho afunilado que -
Fincado no tempo -
Nos golpeia a mente qual um espetáculo de dança
                                (“lembrança da dança”, p. 36)
Estória no Telespelho

Falemos de nós agora
Contemos nos dedos o que fomos nós
Lembra da inocência!
Pra onde foram aqueles meninos danados?
Nossas fantasias ficaram nas calças Curtas
Nos pés descalços, na bola de capotão
Éramos perfeitos atores, às vezes
Representando uma realidade que víamos
Com a consciência lambusada de doces
E auto-rejeição
Lembra dos planos!
Pra onde foram aqueles rapazes e garotas?
Nossas fantasias ficaram nas esquinas
Nas idas ao cinema, nos papos de madrugada
Éramos personagens inexpressivos, às vezes
Vivendo uma realidade que víamos
Com a consciência incrustada de chicletes
E pastas de alisar cabelo

Lembra das decepções!
Onde estão os nossos velhos amigos agora?
Nossas fantasias estão na cabeça
No dia-a-dia, nas visões de futuro
Somos protagonistas vulneráveis
A espera de um perfil
                    (“Estória no telespelho”, p. 37)

Noite

janela aberta
pra eu ver a noite
e deixar que ela me veja
tudo o que ela despeja –
a canção que se houve de longe
a luz dolorida da lua
 a brisa leve e ardida
os gritos de dor
as gargalhadas iludidas –
no meu coração
janela aberta
para eu ver a noite
e deixa que Lea me veja.
               (“Noite”, p. 54)
Memórias de um escritor negro

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Memórias de um escritor negro

  • 1. Abílio Ferreira (José Abílio Ferreira) Dados biográficos José Abílio Ferreira nasceu em São José do Rio Preto-SP, em 09 de outubro de 1960. É jornalista e participou da arregimentação político-cultural levada a cabo pelo movimento negro na década de 80. Foi integrante dos encontros de escritores negros promovidos pelo Quilombhoje e outros grupos envolvidos com afirmação da literatura negra em nosso país, bem como das publicações resultantes desses encontros. Em sua auto-apresentação no volume 7 de Cadernos Negros, lembra o “processo de embranquecimento sofrido na infância”, para destacar a relevância do trabalho de “afirmação da identidade da negritude”, acrescentando que “escrever poesia é colocar, mesmo que não se perceba, as contradições existentes na nossa mais profunda intimidade”.(1984, p. 10). Já em depoimento no número seguinte da série, ressalta a preocupação com a formação do leitor afro-brasileiro: “no plano da comunidade, [Cadernos Negros] trata de refletir o leitor, que não se enxerga na maior parte da produção do grande mercado, discutindo o sentimento que a nossa sociedade nega e mantém submerso”.(C.N.8, p. 10). Referências Bibliográficas Cadernos negros 7. (org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1984. Cadernos negros 8. (org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1985. Comentário Crítico Memória e experiência na produção literária de Abílio Ferreira Giovanna Soalheiro Pinheiroi Mas, a quem não fará sonhar a rua? A sua influência é fatal na palheta dos pintores, na alma dos poetas, no cérebro das multidões. Quem criou o reclamo? A rua! Quem inventou a caricatura? A rua! Onde a expansão de todos os
  • 2. sentimentos da cidade? Na rua! A alma encantadora das ruas No carnaval, esperança Que gente longe viva na lembrança Que gente triste possa entrar na dança. Que gente grande saiba ser criança “Sonho de um Carnaval” Compreender a escritura de Abílio Ferreira é penetrar em uma obra inegavelmente afro-brasileira que, não raro, está repleta de magia e mistério pela densidade alegórica que a construção literária carrega em si. Na realidade é uma escritura da experiência, mais precisamente da experiência observada, e de certa maneira, vivenciada pelo sujeito empírico do autor. “Onde há experiência no sentido estrito do termo, entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo” (Walter Benjamin, obras escolhidas III, p. 107.) Tal proposição de Benjamin esclarece, em grande medida, a construção novelística do escritor negro aqui analisado, tendo em vista o conjunto de sua obra que, em menor ou maior grau, arquiteta-se pelos sublimes caminhos da memória. Além disso, a verve artística de Ferreira oscila entre o seu ofício de jornalista, ao denunciar, com profunda racionalidade e de forma concisa, as mazelas e vícios da nossa sociedade, mas ao mesmo tempo reverbera o lirismo de um flâneur, mostrando-se um sensível apaixonado pelas “multidões”. O escritor é um dos integrantes do grupo Quilombhoje, tendo publicado os seus contos e poesias nos Cadernos Negros, série de inegável importância para a expressão de uma literatura que se distingue dos parâmetros estéticos apregoados pelo Cânone Ocidental, uma vez que põe em evidência os conflitos étnicos e sociais que permeiam a vida do negro brasileiro. No ano de 1989, é publicada a sua antologia de contos e poesia, Fogo do olhar, pela Mazza Edições, e em 1995 a novela de formação Antes do carnaval, pela Editora Selinunte. Antes de partirmos para um breve estudo da composição literária de Ferreira, é imprescindível ressaltar que a sua escrita propala, antes de tudo, o isolamento e a solidão do sujeito moderno, referindo-se ao desespero e à miséria balizada na pele da gente negra. Nesse sentido, torna-se manifesta a menção à literatura de Lima Barreto e João do Rio, especialmente no que tange à densidade para observar “os anônimos heróis” e o mundo povoado pela desventura da exclusão social e pelo preconceito. Tais escritores depositaram nas malhas das letras todo um conjunto de pensamentos antagônicos em torno da realidade nacional, posto que, por meio de suas experiências, desenharam um painel vivo e, ao mesmo tempo trágico, dos fundamentos éticos e sociais responsáveis pela formação histórica da Nação Brasileira.
  • 3. O narrador das cidades e das “multidões”: o flâneur Um dos temas de destaque presente na escritura de Abílio Ferreira, que marca as narrativas tidas como modernas e pós-modernas, é o olhar diferenciado sobre os espaços urbanos e sobre os indivíduos que neles habitam. Trata-se de um modelo específico de narrador, o qual faz das ruas a sua própria moradia, desenhando-a com os seus vícios, mazelas e encantos; observando os seus detalhes íntimos e todo o contorno das avenidas e dos viadutos. Tal observador é o flâneur, ou ainda, “O homem das multidões”, tendo este, como finalidade maior, captar as marcas profundas presentes no corpo da cidade. (In Walter Benjamin, OE. III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, p 45). O narrador da novela Antes do carnaval pinta as ruas com a expressividade das palavras, fazendo-as singulares, à medida que põe as imagens no próprio tecido narrativo: Às cinco horas da tarde, o Viaduto do chá, ponte de ligação entre o centro velho e o centro novo da cidade, começava a ficar cheio de negros. Rodinhas se formavam nas esquinas da direita com a São Bento e da Barão de Itapetininga com a Conselheiro Crispiniano. Era o momento do rush – um corre- corre em busca de condução para casa, uma massa de ar cinzenta escondendo o pico dos edifícios, descendo sobre as arvorezinhas das praças, pairando sobre as cabeças, envolvendo as multidões apressadas. O trânsito parado, buzinas ensurdecedoras sobrepondo-se aos outros ruídos da cidade; de dentro dos aranha-céus, elevadores despejando gente nas ruas, num vômito incontido. (Antes do carnaval, p.84) No fragmento acima, bem como em parte considerável da narrativa, observa-se a cidade e seu conjunto de elementos como uma das personagens da novela. Os bailes no Viaduto do Chá e as luzes dos edifícios; o movimento das danças; as praças, e os “rapazes com os black powers redondos e brilhantes apontados para o sol” (AC. P.85) são, a bem dizer, símbolos que representam o entusiasmo e a união “daquela gente” que tinha, nas ruas, o seu principal ponto de encontro. Abílio, em Antes do carnaval, soube apreender a essência da “alma encantadora das ruasii” e traduzir os sons, as imagens e as tradições negras que fazem da praça uma “Encruzilhada de Néon”. A cidade deve evidentemente ser tomada como um conjunto arquitetônico universal, mas em se tratando de uma obra que agrega as concepções de cultura afro-brasileira, não é possível deixar de mencionar os espaços que, em sua grande maioria, são habitados pela gente negra. Nesse sentido, as praças, os viadutos, e até mesmo o mar, tornam-se símbolos da coletividade negra, ao se constituírem como linhas de forças das identidades dispersas.
  • 4. Antes do carnaval: um novo bildungsroman da identidade afro-brasileira Assim como Conceição Evaristo, em seu bildungsroman afro-brasileiro Ponciá Vicêncio, Abílio, do mesmo modo, percorreu os caminhos do Romance de formação.Trata-se, na realidade, de uma sucinta novela, porém de expressiva densidade narrativa, na medida em que incorpora as experiências de duas personagens, as quais terão suas vidas entrelaçadas pelo destino, à consciência crítica sobre o que é SER NEGRO. A escritura que se apresenta em Antes do carnaval é múltipla, digressiva e coesa, pois é a montagem da narrativa, construída ao fim e ao cabo pelo leitor, que formará o sentido do texto. A trama é dividida em três partes: a primeira relacionada ao mundo de Clara, uma das protagonistas da novela; a segunda pautada nas vivências de Marcelo, este também essencial para a constituição do enredo; e a última refere-se à posição e às ponderações, repletas de lirismo, feitas pelo narrador em torno do espaço que norteia a grande cidade de São Paulo. Clara e Marcelo são seres marcados por um destino comum, ou seja, desde a infância, precisam afrontar as desventuras impostas pela sociedade que se deseja puramente branca, no sentido mais amplo do termo. É o universo de Clara, uma menina negra, que inicialmente é descrito pelo narrador: desde a adolescência, assinalada pelos conflitos e pela exclusão que permeiam a sua família, até o seu envolvimento com pessoas que não faziam parte do seu contexto sócio-econômico e cultural. À medida que os anos passaram, a menina transformou-se em uma jovem consciente dos conflitos e das tradições inerentes ao seu mundo. Em muitos momentos na narrativa é possível perceber, ainda que de forma simplesmente alusiva, as reminiscências de um passado que se pereniza nas sublimes vozes negras, presentificadas na história, na literatura e na música: A porta do apartamento estava entreaberta. Lá de dentro fluía um som – Billie Holliday cantava uma música que estranhamente não despertou nela um sentimento novo. Ao contrário, era um sentimento antigo, longínquo, vivido em algum momento que ela não lembrava. Clara parou diante da mesa de som revestida de aço inoxidável, com luzes coloridas piscando. O fato de a porta estar aberta, a sala vazia e o aparelho de som ligado não lhe chamou a atenção. Ela estava envolvida apenas por uma preocupação: no meio daquele cheiro de novo que emanava do carpete, dos estofados, dos quadros, destacava-se aquela música pungente. Havia ali, sem dúvida, dois corpos estranhos – Clara e a música. Mas por quê? (Antes do carnaval, p. 62). A música é a evocação de um tempo outro, não essencialmente do experimentado pela personagem Clara, mas de um tempo/espaço eterno, arraigado na memória afro-descendente. O jazz imortal de Billie Holiday remete não somente à ancestralidade africana e à história da escravidão, mas, sobretudo,
  • 5. às relembranças de um passado miserável de exploração, intrínseco também à própria vida da cantora. Nesse sentido, a música torna-se, ao mesmo tempo, um instrumento de tomada de consciência – posto que possibilita o bradar das vozes em relação aos conflitos étnicos e sociais – e um nobre componente da memória cultural desses povos. Não é sem motivo que o escritor negro Du Bois, no capítulo final de As almas da gente negra, constrói um belo ensaio sobre as Sorrow Songs, isto é, as Canções da Dor que evidenciam a vida de angústia e o sofrimento dos negros norte-americanos. Quando Clara se depara com o som tocado, o narrador tece o seguinte comentário a respeito das impressões que a música lhe havia deixado: “era um sentimento antigo, longínquo, vivido em algum momento que ela não lembrava”. A música parece ter desencadeado em Clara uma memória involuntária, (Walter Benjamin, OE. III), que a fez reconhecer-se na letra da canção. A existência da personagem, assim como a de Marcelo, está indelevelmente vinculada à lembrança da escravidão, não vivenciada por eles, mas presente, de uma outra maneira, nos conflitos que norteiam a sociedade atual. O menino Marcelo, também negro, vivenciou fortes momentos de amargura e solidão: foi abandonado pela mãe e adotado por uma senhora, Dona Alexandrina, que não pôde lutar contra os infortúnios que, inevitavelmente, atormentariam a existência de tal personagem. Percebeu que, da mesma forma que ela, o filho teria um destino comum aos de muitos do seu bairro: não faria faculdade, não passaria do primeiro grau, viveria solitário, por algum tempo, pelos caminhos tortuosos da existência: Enquanto esteve doente, sabendo que não duraria muito, Dona Alexandrina sofreu só de pensar em como Marcelo viveria sem ela. Porque ela conhecia muito bem a história dos rapazes muito jovens que trabalhavam como cavalos, com remuneração baixíssima, cansados, mal alimentados demais para aproveitar os estudo e desistindo por falta de dinheiro ou por problemas de saúde na família. E, mesmo quando conseguiam terminar o segundo grau, não suportavam pagar um curso pré-vestibular e muito menos um curso superior, quando conseguiam entrar na faculdade. (Antes do Carnaval, p. 72). Na realidade, as experiências de Marcelo contribuíram positivamente para que ele modificasse a vida, não apenas pré-desenhada por sua mãe, mas também resultado dos antagonismos sócio-econômicos inerentes à realidade brasileira. No começo de sua formação chegou a negar, por influência dos amigos de escola, a sua própria identidade, uma vez que retirou todo o cabelo crespo e passou a crer que, a partir daquele momento, a sua vida teria outros contornos. Marcelo, do mesmo modo que Clara, teve a sua consciência moldada pela música que, aliás, é motivo recorrente na novela. “O tempo do soul marcou época”, afirma o narrador,
  • 6. e é por meio dele que teremos acesso ao verdadeiro universo cultural do personagem: Toda semana em cada quarteirão de cada bairro da periferia, surgia uma nova equipe de música mecânica, imitando as grandes equipes que faziam os bailes de soul do centro da cidade. (Antes do carnaval, p. 93). Marcelo e Clara foram impulsionados pelos ritmos da memória, foram levados ao mar involuntariamente para que pudessem ligar-se pelos fragmentos de suas recordações e experiências. Ao final da narrativa é descrito, de forma quase transcendental, o encontro “estranho” das duas personagens no mar, sendo este, na escritura de Ferreira, o fio que conduz a herança, além de permitir uma profunda viagem às reminiscências do passado. O Bildungsroman enquanto gênero específico A novela Antes do carnaval pode ser apreendida como uma narrativa literária de caráter fortemente exemplar, pois sua estrutura encontra ressonância nas tradições da memória e da formação, cujo narrador exerce, o que chamo, de uma onisciência solidária: não há uma participação, em primeira pessoa, deste no texto, mas há um denso olhar solidário a uma existência coletiva e cenas observadas. Antes do carnaval está centrado nos anos de formação e aprendizado de dois jovens negros, tendo em vista uma sucessiva aproximação das tradições culturais afro-brasileiras. Lukács, em A Teoria do Romance expõe sua concepção sobre o Romance de Formação, que em alguns pontos aproxima- se da composição literária de Abílio Ferreira: A humanidade, como escopo fundamental desse tipo de configuração, requer um equilíbrio entre atividade e contemplação, entre vontade de intervir no mundo e capacidade receptiva em relação a ele. Chamou-se essa forma de romance de educação. Com acerto, pois sua ação tem de ser um processo consciente, conduzindo e direcionado por um determinado objetivo: o desenvolvimento de qualidades humanas que jamais florescem sem uma tal intervenção ativa dos homens e felizes acasos; pois o que se alcança desse modo é algo por si próprio edificante e encorajador aos demais, por si só próprio um meio de educação. A ação definida por esse objetivo tem algo da tranqüilidade da segurança. Mas não se trata da tranqüilidade apriorística de um mundo rematado; é a vontade de formação. (Lukács, 2000, p. 141). Após a leitura dessa narrativa, permanece uma indagação inevitável: trata- se de um clássico bildungsroman europeu, nos quais os desfechos são quase sempre plenos de beleza e felicidade? Na realidade não é possível definir o futuro das personagens, uma vez que, a meu ver, o texto de Ferreira permanece como uma esfinge a ser decifrado por nós, leitores. Há, sem a menor dúvida, ao final da
  • 7. narrativa, uma consciência crítica formada pelas experiências vividas, mas ao mesmo tempo percebe-se, de forma indireta, uma existência mutilada pela memória histórica das catástrofes vivenciadas pela população escrava no Brasil. O olhar do narrador desenha um jogo dialético entre passado/presente e presente/futuro, pois, ao retratar a forma de escravidão atual – a doença profunda e pungente da desigualdade social – confirma um processo que deverá ser combatido, ato contínuo. Nota-se, dessa maneira, que a formação destoa de um gênero universalizante, já que a promessa de felicidade vindoura depende igualmente de uma análise perspicaz em torno dos conflitos que estão no cerne da sociedade brasileira e de um olhar culturalmente diferenciado. Assim como o romance de Conceição Evaristo, Antes do carnaval tem como desígnio maior não somente idealizar a formação inerente à própria tradição dos povos de origem africana, mas especialmente desmistificar uma democracia racial historicamente construída. Seguindo a concepção de Florentina da Silva e Souza, nessa escritura, nomeadamente afro-brasileira, há um grande desejo por parte do narrador de agir sobre a vida do leitor, de maneira a conscientizá-lo em relação à vida política e sócio-cultural. A idéia contida no bildungsroman afro-brasileiro passa pela educação/formação, mas sem deixar de enfatizar as reminiscências da diáspora negra. Por meio do que foi exposto acima, não é difícil notar que a existência coletiva é o ponto referencial, a partir do qual o leitor pode situar-se e interferir no assunto narrado, contribuindo na apreensão do significado do texto. Nesse sentido, a literatura produzida por escritores afro-brasileiros passa a ter uma missão muita bem delineada: a de edificar mundos, não apenas verossímeis, mas motivado pelas experiências centradas na barbárie cometida contra os negros e que, ainda hoje, deixa profundas marcas na civilização brasileira. A alegoria: O carnaval O carnaval, já apresentado no título da novela, não é um simples ornamento literário, mas é, sobretudo, uma alegoria para os possíveis encontros e desencontros no destino da gente negra. Roberto DaMatta, em Carnavais, malandros e heróis, faz um esboço contundente das relações sociais que se estabelecem e que se dissolvem durante tais festividades no Brasil. Na concepção do autor, essas comemorações são marcadas pelo relacionamento entre os homens e Deus, possuindo, por essa razão, um sentido mais universal e transcendente. Sendo assim, trata-se de um período de intensa renovação, no qual vida e morte tentam se equilibrar nas cordas vacilantes do destino. Em Antes do carnaval é necessário compreender que tudo tem início exatamente com o “Banho da Dorotéia”: segundo o narrador, trata-se de uma festa misteriosa, já que a maior parte das pessoas não sabia quem era Dorotéia ou a real acepção desse ritual. O Banho era visto como uma prefiguração do carnaval – acontecia uma semana antes dele – sendo que o seu sentido maior era o mergulho coletivo no mar. Tal banho, a meu ver, é o fio condutor do destino de Clara e Marcelo, já que é, por meio dele, que o primeiro encontro ocorrerá entre as duas personagens. O caráter enigmático da narrativa nos faz apenas sugerir um sentido, mas devemos
  • 8. caminhar pela própria ordem das coisas. As águas do mar refletem, com toda a sua simbologia, ao começo de tudo, ao batismo e, por que não, ao renascimento da vida. Observa-se, por meio da leitura da novela, que é nessas águas que teremos a efetivação do processo de formação e a gênese de uma legítima consciência étnica. O mar O poder mais admirável que envolve a narrativa carnavalesca iii de Abílio é a emergência desse símbolo – O MAR – ao mesmo tempo profano e sagrado, permitindo a purificação do corpo e do espírito e, especialmente, fazendo insurgir crenças, valores e as mais profundas raízes ancestrais. O narrador da novela estabelece quase que um ritual ascético, ao personificá-lo por seu alento coletivo: No verão, em certos fins de semana, muita gente era expulsa pela cidade em direção ao mar. Ele, sim, era mais sincero: nunca escondera o seu fascínio e o seu perigo. Seus humores, seu temperamento impulsivo, tudo nele era verdadeiro e simples. A superfície refletia o interior, de modo que ninguém se atrevia a desafiá-lo quando se mostrava irado. E ele próprio tinha o habito de avisar a todos a sua disposição em receber visitas. Nessas ocasiões, mostrava-se dócil, oferecendo a todos os que o amavam o seu abraço solidário e reconfortante. (Antes do carnaval, p. 100). O mar é fundamental em relação ao entendimento da escritura do autor aqui estudado, a bem dizer no que tange à sua construção poética. Tal símbolo e quase que um leitmotiv da obra de Ferreira e expressa a dinâmica da existência; a imagem da vida e da morte; a ambivalência entre o ser e o não ser. Como fica manifesto no fragmento acima, é a partir dele, e ao mesmo tempo do encontro de Clara e Marcelo nesse mesmo ambiente, que as transformações começam a se processar. Em um outro sentido – tomando como referência a história coletiva – o mar possui ainda uma função mais figurativa, referindo-se à viagem percorrida pelo Atlântico Negro, e especialmente, reverberando as vozes memoriais que perenizam, nas profundezas dessas águas, a dor, a humilhação e, do mesmo modo, a tradição e a riqueza ancestral dos negros no Brasil. A escritura de Abílio mostra, antes de tudo, a sensibilidade de um prosador poeta, este sempre presente naquele. Além de sua singular obra poética, não raro, encontramos em seus contos e novelas, folhas preenchidas com algumas doses lirismo. A consciência étnica, por sua vez, não se faz presente em forma de um grito aberto, mas por meio de conflitos sócio-culturais que estão do cerne de suas páginas escritas. O autor soube unir, à sua condição de sujeito negro, a memória coletiva da essência africana e, ao mesmo tempo, soube registrar a formação nítida de uma identidade afro-brasileira.
  • 10. i Graduanda em Letras pela UFMG ii O título em itálico refere-se a uma das produções literárias do escritor João do Rio, que magistralmente soube registrar, com seu olhar de flâneur, as multidões jogadas à deriva e, ainda, o espaço urbanizado das grandes cidades. Nesse aspecto, a composição de Abílio Ferreira assemelha-se às crônicas e contos do autor de A alma encantadora das ruas. iii O termo “carnavalesco” não se refere ao tipo de Literatura carnavalizada, e sim à simbologia das comemorações festivas em torno de tal evento. Tomo Bakhtin como referência, uma vez que em sua obra há, antes de tudo, a descrição do processo do Carnaval, o qual dá origem à Carnavalização da Literatura. Percebe- se, portanto, que a construção de Abílio retoma alegoricamente alguns elementos do carnaval, mas sem provocar o riso destronante inerente à carnavalização. Referência Bibliográfica: BAKHTHIN, Mikhail. Problemas de poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro, Forense, 1981. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1989. DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999. EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Editora Mazza, 2005. FERREIRA, Abílio. Antes do Carnaval. São Paulo: Editora Selinunte, 1995. HOLLANDA, Chico Buarque de. “Sonho De Um Carnaval” . Chico Buarque de Hollanda [Compositor]. In: ─ Chico Buarque de Hollanda: os primeiros anos. São Paulo, Som Livre. 2006 LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2000. SELIGMAN-SILVA, Márcio (Org.), História, Memória, Literatura. O Testemunho na Era das Catástrofes: Campinas: Editora Unicamp, 2003. SOUZA, FLORENTINA DA SILVA. Afro-descendência em cadernos negros e jornal do MNU [Movimento Negro Unificado]. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. Considerações sobre as canções do tempo* na poética de Abílio Ferreira Giovanna Soalheiro Pinheiro** Não, nenhum cárcere detém o crepúsculo ou impede A marcha sangrenta das horas. Márcio Barbosa Oh, água, voz do meu coração, chorando na areia
  • 11. Derramando, durante toda a noite, um pranto tão triste, Deitado, a escutar, não compreendo A voz do meu coração ou a voz no peito do mar, Oh água, que implora o descanso, serei eu, serei eu? Durante toda a noite escuto a água a chorar. Arthur Symons*** “Aqueles que antigamente caminhavam nas trevas cantavam canções – Sorrow songs –, pois sentiam-se exaustos em seus corações. E assim, diante de cada pensamento que escrevi neste livro, coloquei uma frase musical, a presença de um eco dessas singulares canções antigas nas quais a alma do escravo negro falava aos homens.” (As almas da gente negra, p. 298). Tais palavras do escritor afro-americano Du Bois são essenciais no que tange à compreensão da poética de Abílio Ferreira, uma vez que esta é, antes de tudo, a canção memorial que emerge da alma eterna do povo negro. Seus poemas soam, em alto grau, como “canções da dor” e da alegria, na medida em que põem na escritura poética o tempo resgatado pela reminiscência da escravidão e, da mesma forma, a aspiração infinita de reavivar os laços culturais formadores da identidade africana no Brasil. Falemos do tempo inerente a tal escritura, já que ele representa, especialmente na produção de Ferreira, uma excursão à lúdica infância e, igualmente, um retorno à Mãe África, a fim de resgatar uma tradição renegada pela história, como já foi pontuado acima. É bem verdade que o tempo da memória é eterno, sendo ele a única maneira de perenizar as vivências humanas. Devido a isso, para apreender a poesia do autor é necessário ter em mente não apenas a mundividência pautada nas experiências de vida do povo negro, o que fica em alto grau evidente na construção de sua prosa, mas é preciso também fazer um movimento que vai do mundo exterior para o interior, tendo em vista o caráter peculiar de sua expressão poética. Em meio ao lirismo que povoa a poética de Abílio, há um mergulho profundo nas vozes daqueles que ainda fazem ecoar hoje um “grito velado”, repleto de dor soluçante, sentimento de revolta e vontade de reconhecimento. Neste conciso texto, serão analisados alguns poemas presentes na antologia de contos e poesia Fogo do olhar. Mas antes disso, não podemos deixar de mencionar que, na obra de Ferreira, a referência ao social se faz presente em forma de uma “reflexão lírica”, como nos descreve o texto de Adorno “Palestra sobre lírica e sociedade”, em Notas de Literatura I. Em tal texto, é possível notar uma afinidade profunda entre a forma e sua percepção do mundo social. Para o pensador alemão as “composições líricas não são abusivamente tomadas como objetos de teses sociológicas, mas sim quando sua referência ao social revela nelas próprias algo de essencial, algo do fundamento de sua qualidade” (Adorno, p.66, 2003). Portanto, na medida em que o sujeito empírico de Ferreira, de certa maneira, se apresenta na escritura, há a revelação de uma verdade essencial intrínseca às experiências coletivas do Atlântico negro****. Neste sentido, é possível notar um diálogo com as produções de Cruz e Souza e Oswaldo de Camargo que, da mesma forma que o autor aqui estudado, depositaram na poesia símbolos agudos de suas dores íntimas. Um belo exemplo é o poema “tambores”, que nos permite mergulhar no rio do tempo e perceber a dor cruel daqueles que vivenciam o isolamento: Canto Rufam os tambores
  • 12. E a índole fundida em mim Comove e move as imagens que já vi Os odores são assim – invisíveis Mas pregados no ar a ameaçar as pedras do mesmo modo vivem as cores que em silêncio vão marcando uma presença nobre nos espaços pobres que há (...) (“Tambores”, p.11). Não é difícil perceber que os sons emitidos pelos ritmos dos tambores estão na essência dessa composição, sendo um dos motivos que permeia a obra poética de Abílio. A bem dizer, são as melodias da própria memória coletiva do povo negro. O tambor é um elemento intimamente ligado à musicalidade e à tradição cultural africana. Tocá-lo, conseqüentemente, é fazer um resgate das imagens ancestrais, como fica expresso nos versos acima, e trazê-las para o presente. Não podemos deixar de fazer referência aos recursos estéticos utilizados pelo autor na construção de sua poesia. Alguns exemplos muito evidentes de musicalidade são o emprego das aliterações nasais em M e N, recursos que podem ser notados em toda configuração da poética negra aqui mencionada. Outro belo exemplo é “lembrança da dança” que, além da referida musicalidade, nos remete aos corpos negros chibatados pelos senhores de escravos e à tradição cultural da dança africana: E pensar que nossos gestos Derramamento de braços Corredeira de olhares Ondulações corporais enfim Eram nada mais que manifestação gritada E pensar que nem pensávamos no feio das coisas Porém tínhamos as veias já saltadas Dilatadas pelos sons universais da euforia E vagar pelas quebradas espontaneamente históricas Essas bocas temporais que deglutiram nossos medos Entre os dedos como líquido viscoso e quente O tempo foi escapando em doses fluídas e fecundas Canções encontros rastros descobertos Atrás de nós alguns amores sólidos Outros mortos Outros simplesmente adormecidos Todos espalhados no caminho afunilado que - Fincado no tempo - Nos golpeia a mente qual um espetáculo de dança (“lembrança da dança”, p. 36).
  • 13. A música, novamente, se faz presente no poema, mas pelo natural acalento da dança. O sujeito poético nos permite viajar à África e, de certa maneira, vivenciar um outro tempo em que não existiam diferenças; em que a harmonia dos corpos reverenciava o poder dos orixás e fazia com que o povo negro transcendesse no tempo, cultivando suas raízes. Outro sentido aceitável é o balanço dos corpos, açoitados pela tragédia da escravidão africana no Brasil. Não se trata apenas do castigo físico, mas, sobretudo, do “açoite moral” pelo qual foram submetidos os negros em nosso país. A música e a dança são símbolos representantes da própria memória cultural resguardada pelas vozes poéticas que, terminantemente, ecoam um grito de horror, em muitos momentos peculiar às próprias marcas do corpo. A poesia de Abílio Ferreira é repleta de imagens do passado, sendo elas apreendidas, muitas vezes, pelos sons fluidos da música e por outros elementos da tradição ancestral. Deixo, por fim, alguns versos de “Estória no telespelho”, nos quais a consciência bipartida e os sonhos da infância parecem gritar e reconstruir uma identidade que, ao longo dos séculos, foi refutada por uma suposta democracia racial. Nele, outra vez, temos presente o símbolo do espelho – recorrente em uma parte considerável da poética afro-brasileira – construindo a imagem ou o reflexo da voz poética que tenta, fortemente, reerguer-se. Falemos de nós agora Contemos nos dedos o que fomos nós Lembra da inocência! Pra onde foram aqueles meninos danados? Nossas fantasias ficaram nas calças Curtas Nos pés descalços, na bola de capotão Éramos perfeitos atores, às vezes Representando uma realidade que víamos Com a consciência lambusada de doces E auto-rejeição (...). (“Estória no Telespelho”, p. 37). Nos versos acima, torna-se manifesta a presença desse eu coletivo, por meio das próprias expressões lingüísticas. A utilização da 1º pessoa do plural – “falemos de nós”, “contemos nos dedos”, “nossas fantasias” – evidencia as dores e angústias da gente negra. Essa voz coletiva parece endossar um passado que é inerente não apenas àquele que ressoa o canto, mas a todos os que se sentem presentes dentro dele. O presente do subjuntivo indica ainda a íntima necessidade de eternizar as imagens do passado na atualidade; e em grande medida, obrigam-nos a reconhecer as diferenças, mostrando-nos a “consciência lambusada de doces” e, portanto, a própria inocência da infância. “Estória no telespelho” é um grito velado, mas que entoará sempre a sua mensagem, sobretudo a partir de um mergulho no tempo, perpassando o jogo dialético entre o ontem e o hoje. Notas: * Na realidade, a expressão Canções do tempo é uma variante das Sorrow Songs, “Canções da Dor”, presentes em As almas da gente negra de Du Bois.
  • 14. **Graduanda em Letras pela UFMG *** A canção epigrafada inicia o primeiro capítulo “Sobre as nossas lutas espirituais” presente na obra As almas da gente negra de Du Bois. **** In: O Atlântico negro de Paul Gilroy Referências Bibliográficas: ADORNO, Theodor. “Notas de Literatura”. São Paulo: Duas Cidades/editora 34, 2003. DU BOIS, W.E.B. As almas da gente negra.Rio de Janeiro. Lacerda Editores, 1999 CESAIRE, Aimé. Entrevista originalmente publicada em Magazine littéraire 34, Paris, França. Novembro 1969. In: Agulha – Revista de Cultura. Edição 54, novembro/dezembro de 2006. http://www.revista.agulha.nom.br FERREIRA, Abílio. Fogo do olhar . Belo Horizonte: Mazza; São Paulo:Quilombhoje, 1989. (poemas e contos). HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Cadernos negros 7. Org. (Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1984. Bibliografia do autor Obra individual Fogo do olhar . Belo Horizonte: Mazza; São Paulo: Quilombhoje, 1989. (poemas e contos). Antes do carnaval . São Paulo: Selinunte, 1995. (novela) Não-ficção Considerações acerca de um aspecto do fazer literário ou de como um escritor negro sofre noites de insônia. In Quilombhoje (Org.) Reflexões sobre a literatura afro- brasileira . São Paulo: Quilombhoje, 1982; 2 ed. São Paulo: Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, 1985. (ensaio) Para a formação de um conceito de identidade nacional. In ALVES, Miriam, CUTI, Luiz Silva, XAVIER, Arnaldo (Orgs.). Criação crioula, nu elefante branco . São Paulo: Secretaria do Estado da Cultura / Imprensa Oficial, 1986. (ensaio)
  • 15. Antologias Cadernos negros 7. São Paulo: Ed. dos Autores, 1984. Cadernos negros 8. São Paulo: Ed. dos Autores, 1985. Cadernos negros 9. São Paulo: Ed. dos Autores, 1986. CAMARGO, Oswaldo de (org.). A razão da chama – antologia de poetas negros brasileiros . São Paulo: GRD, 1986. Cadernos negros 10. São Paulo: Ed. dos Autores, 1987. Breve antologia temática. In CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito . São Paulo: Secretaria do Estado da Cultura, 1987. (poemas) Cadernos negros 12. São Paulo: Ed. dos Autores, 1989. Cadernos negros 13. São Paulo: Ed. dos Autores, 1990. AUGEL, Moema Parente (org.). Schwarze prosa/Prosa negra – Afrobrasilianische Erzahlungen der Gegenwart . Berlin: Edition Diá, 1993. Controlamúria – o livro . São Paulo: Casa Pyndahyba, 1994. Cadernos negros 18. São Paulo: Quilombhoje, 1995. Cadernos negros 20. São Paulo: Quilombhoje, 1997. Links do autor http://www.quilombhoje.com.br/ensaio/cuti/TextocriticoErotismoCuti.htm http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n50/a17v1850.pdf Textos Selecionados Tambores Canto Rufam os tambores E a índole fundida em mim Comove e move as imagens que já vi Os odores são assim – invisíveis Mas pregados no ar a ameaçar as pedras do mesmo modo vivem as cores que em silêncio vão marcando uma presença nobre nos espaços pobres que há (...) (“Tambores”, p. 11) Saga
  • 16. é uma onda que sufoca e estoura o peito dilata as veias tapa os olhos na sei se vai explodir numa lágrima soco grito ou beijo ah! Nem sei se os pedaços de mim vão fundir nas saliências pequeninas duniverso. (“Saga”, p.19) Rio Chorei Pela morte do rio A morte do rio me deu pena de mim Chorei A espuma fedorenta sobre o rio O rio coberto de branco – de luto A morte do rio me deu pena de mim Chorei De ódio do branco que mata o rio. (“Rio”, p. 21) Lembrança da dança E pensar que nossos gestos Derramamento de braços Corredeira de olhares Ondulações corporais enfim Eram nada mais que manifestação gritada E pensar que nem pensávamos no feio das coisas Porém tínhamos as veias já saltadas Dilatadas pelos sons universais da euforia E vagar pelas quebradas espontaneamente históricas Essas bocas temporais que deglutiram nossos medos Entre os dedos como líquido viscoso e quente O tempo foi escapando em doses fluídas e fecundas Canções encontros rastros descobertos Atrás de nós alguns amores sólidos Outros mortos Outros simplesmente adormecidos Todos espalhados no caminho afunilado que - Fincado no tempo - Nos golpeia a mente qual um espetáculo de dança (“lembrança da dança”, p. 36)
  • 17. Estória no Telespelho Falemos de nós agora Contemos nos dedos o que fomos nós Lembra da inocência! Pra onde foram aqueles meninos danados? Nossas fantasias ficaram nas calças Curtas Nos pés descalços, na bola de capotão Éramos perfeitos atores, às vezes Representando uma realidade que víamos Com a consciência lambusada de doces E auto-rejeição Lembra dos planos! Pra onde foram aqueles rapazes e garotas? Nossas fantasias ficaram nas esquinas Nas idas ao cinema, nos papos de madrugada Éramos personagens inexpressivos, às vezes Vivendo uma realidade que víamos Com a consciência incrustada de chicletes E pastas de alisar cabelo Lembra das decepções! Onde estão os nossos velhos amigos agora? Nossas fantasias estão na cabeça No dia-a-dia, nas visões de futuro Somos protagonistas vulneráveis A espera de um perfil (“Estória no telespelho”, p. 37) Noite janela aberta pra eu ver a noite e deixar que ela me veja tudo o que ela despeja – a canção que se houve de longe a luz dolorida da lua a brisa leve e ardida os gritos de dor as gargalhadas iludidas – no meu coração janela aberta para eu ver a noite e deixa que Lea me veja. (“Noite”, p. 54)