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Chicos
N. 40
Maio 2014
e-zine de literatura e ideias
de Cataguases – MG
Capa
Jorge Napoleão
Editores
Emerson Teixeira Cardoso
José Antonio Pereira
Colaboradores desta edição
Alberto Acosta
Antônio Jaime
Antônio Perin
Eltãnia André
Flauzina Márcia da Silva
Ronaldo Cagiano
Sebastião Nozza Bielli Lotti – Slotti
Fale conosco em:
cataletras.chicos@gmail.com
Visite-nos em:
http://chicoscataletras.blogspot.com/
Um dedo de prosa
Esta é a edição número 40 de 31 de maio de 2014.
Ao artista plástico e fotógrafo Jorge Napoleão
Este começo de ano foi triste para nós, faleceu o amigo e artista plástico Jorge Napoleão em
15.02.2014. Nós o homenageamos com algumas imagens dele, nossa capa e a já célebre foto que
fez do Chico Peixoto na contracapa. Também, perdemos o poeta mineiro Donizete Galvão e o
prosador colombiano Gabriel Garcia Marques. Quando perdemos um artista, nossa existência
torna-se mais obtusa e pesada. Eles, sensíveis que são, tornam nosso caminhar mais ameno,
desbrutalizam-nos de nosso cotidiano.
Andaram falando dos 50 anos do golpe de 64. Em respeito aos que foram silenciados, publicamos
alguns poemas produzidos em meio aquele período triste por Haroldo de Campos.
Apresentamos aos nossos amigos uma interessante poeta portuguesa, Fiama Pais Brandão.
Homenageamos Gabriel Garcia Marques com um texto de Mario Vargas Llosa.
Em traduções de Alberto Acosta a poesia de Eugenio Conchez em português e Ascânio Lopes em
espanhol.
Uma ótima entrevista de Cecília Meirelles ao Pedro Bloch.
E muito mais vocês encontrarão por aqui. Divirtam-se!
Uma boa leitura para todos.
Os Chicos
Sumário
DONIZETI GALVÃO
Alguns poemas............................................................................................................................03
HAROLDO DE CAMPOS
Poemas em meio a ditadura....................................................................................................08
EUGENIO CONCHEZ
Ars Vivend e outros poemas traduzidos por Alberto Acosta.........................................09
EZRA POUND
Canto 81.........................................................................................................................................18
ANTÔNIO PERIN
Um carnaval e suas máscaras.................................................................................................20
ASCÂNIO LOPES
Mi Enamorada............................................................................................................................21
FIAMA PAIS BRANDÃO
Epístolas para meus medos e mais alguns poemas.........................................................22
EMERSON TEIXEIRA CARDOSO
Quem tem medo do Anunciador? ........................................................................................29
JOSÉ ANTONIO PEREIRA
05 de março de 1978...................................................................................................................31
ELTÂNIA ANDRÉ
Aquela menina............................................................................................................................32
SEBASTIÃO NOZZA BIELLI LOTTI
Atenção aos invisíveis...............................................................................................................33
FLAUSINA MÁRCIA
Filme bom....................................................................................................................................34
ANTÔNIO JAIME SOARES
Todo mundo pro distrito.........................................................................................................35
JOSÉ ANTONIO PEREIRA
A enfermeira................................................................................................................................36
RONALDO CAGIANO
Um estreante com a segurança dos veteranos..................................................................38
HILDA DOOLITTE
Sob Relatos de uma temporada no divã.............................................................................39
MARIO VARGAS LLOSA
Prólogo de Cem anos de Solidão..........................................................................................40
CECÍLIA MEIRELLES
Entrevista a Pedro Bloch........................................................................................................42
Imagens
de
Jorge Napoleão
Donizete Galvão
Donizete Galvão Falecido no dia 30 de janeiro, deste ano, aos
58 anos. Poeta mineiro, de Borda da Mata radicado em São
Paulo, deixou sete livros de poesia.
Confira alguns poemas extraídos dos livros A Carne e o
Tempo, Mundo Mudo, Ruminações e O Homem Inacabado:
Milagre
Tem de haver um porto, uma praça,
um caramanchão de rosas brancas,
uma sombra. uma moringa d’água.
por certo, tem de haver uma pinguela,
um mata-burro, um canário da terra,
um fogão de lenha soltando fumaça.
deve haver numa curva um remanso,
ceva de pássaros, canto de seriema,
prata de peixes rio acima: piracema.
Do livro A Carne e o Tempo (1997)
Miolo
Lembro-te mata,
tenda de folhas,
ninhal de minas,
casulo de sombras,
alcova de brotos,
renda de luzes,
vertigem de avencas,
friagem de sapos,
labirinto de cipós,
manto de limos,
frescor de cambraias,
grafias de cascas,
acridez de sumos,
açúcar de flores.
Recorro a todos os nomes
sem nunca recuperar
o frêmito de espanto,
o susto da criança
Inaugurando a mata.
Do livro Ruminações (1999)
Oração natural
Fique atento
ao ritmo,
aos movimentos
do peixe no anzol.
Fique atento
às falas
das pessoas
que só dizem
o necessário.
Fique atento
aos sulcos
de sal
de sua face.
Fique atento
aos frutos tardios
que pendem
da memória.
Fique atento
às raízes
que se trançam
em seu coração.
A atenção:
forma natural
de oração.
Visita
Que ela chegue sem clarins ou trombetas,
entre como facho de luz
pelas gretas da janela
e atravesse o quarto
na sua claridade.
Que ela chegue
inesperada,
como a chuva
na tarde calorenta
e faça subir o odor
de poeira molhada.
Que ela chegue
e se deite ao meu lado,
sem que a perceba.
Que me lave
com água de fonte
e me cubra
com o bálsamo branco
do silêncio.
Do livro Mundo Mudo (2003)
Saturação
No círculo que a xícara de café
deixa desenhado no pires,
o grão amargo do equívoco.
O olhar preso, a vida presa.
Ânsia que confrange os ossos.
Ninguém atura o risco do cerco.
Ninguém sai dele de mãos vazias.
Do livro O Homem Inacabado (2010)
Donizete Galvão em uma audição do Quinta Poética na Casa das Rosas em São Paulo - SP
Aroldo Pereira, Ronaldo Cagiano, Donizete Galvão e Gilberto Nable
Haroldo de Campos
Haroldo Eurico Browne de Campos nasceu em São Paulo SP
1929, onde faleceu em2003. Poeta, tradutor, ensaísta, irmão
mais velho do também poeta, tradutor e ensaísta Augusto de
Campos. Lançou seu primeiro livro de poesias, O Auto do
Possesso, em 1950, pelo Clube de Poesia de São Paulo, ligado
à chamada Geração de 45, com a qual rompe no ano seguinte.
Com o irmão Augusto e o poeta e ensaísta Décio Pignatari
forma o grupo Noigandres e edita a revista-livro homônima,
em 1952. Em 1956, participa da organização da Exposição
Nacional de Arte Concreta no Museu de Arte Moderna de São
Paulo que, um ano depois, é montada no saguão do Ministério
da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro. Em 1958, publica,
em Noigandres 4, o Plano-Piloto para Poesia Concreta,
novamente com seu irmão Augusto e Pignatari. Juntos, em
1965, lançam também o livro Teoria da Poesia Concreta.
Defende a tese de doutorado Morfologia do Macunaíma, em
1972, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo - FFLCH/USP. No ano
seguinte, assume a cadeira de semiótica da literatura no
programa de pós-graduação em comunicação e semiótica da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP,
onde permanece até 1989. Publica Galáxias, um de seus textos
mais conhecidos, em 1984. Como tradutor de poesia, dedica-
se a diversas obras, com especial destaque para os autores de
vanguarda, como o poeta norte-americano Ezra Pound (1885
- 1972) e o romancista irlandês James Joyce (1882 - 1941). Sua
obra valoriza a utilização de recursos tecnológicos e a
interação da poesia com a música.
poesia em tempo de fome
fome em tempo de poesia
poesia em lugar do homem
nome em lugar do pronome
poesia de dar o nome
nomear é dar o nome
nomeio o nome
nomeio o homem
no meio a fome
nomeio a fome
Servidão de passagem
o azul é puro?
o azul é pus
de barriga vazia
o verde é vivo?
o verde é vírus
de barriga vazia
o amarelo é belo?
o amarelo é bile
de barriga vazia
o vermelho é fúcsia?
o vermelho é fúria
de barriga vazia
a poesia é pura?
a poesia é para
de barriga vazia
poesia em tempo de fome
poesia em tempo de fome
fome em tempo de poesia
poesia em lugar do homem
nome em lugar do pronome
poesia de dar o nome
nomear é dar o nome
nomeio o nome
nomeio o homem
no meio a fome
nomeio a fome
de lucro a lucro
de lucro a lucro
logrado
de logro a logro
lucrado
de lado a lado
lanhado
de lodo a lodo
largado
sol a sal
sal a sova
sova a suco
suco a sono
sono a sangue
homem senhor
homem servo
homem sobre
homem sob
homem saciado
homem saqueado
homem servido
homem sorvo
quem uísque
quem urina
quem feriado
quem faxina
quem volúpia
quem vermina
homemmoensahomemmoagem
ocre
acre
osga
asco
só moagem
ossomoagem
sem miragem
selva selvagem
ocre
acre
osga
asco
só moagem
ossomoagem
sem miragem
selva selvagem
Eugenio Conchez
Eugenio Conchez nasceu em Intendente Alvear (La Pampa,
Argentina) eml 24 de agosto de 1983. Estudou Letras na
Universidad Nacional de La Pampa (UNLPam) onde é
professor de Literatura Moderna. No ano 2006 publicou seu
livro de poemas Los salmos apócrifos.
Ars vivendi
Versos de Cyril Connolly
Num lugar agradável sempre
anelando de estar em outro,
com uma mulher perfeita
imaginando outra, mais perfeita ainda
(como a abelha e o seu ferrão, o promíscuo
abandono o que faz a sua angústia);
com um mal livro inacabado
começar um segundo.
Fama e paz dos antigos
quando uma obra bastava para uma vida;
o resto era glória e repouso,
falta de angústia,
viver para a beleza.
Num ensolarado país, uma casa entre oliveiras perto da água murmurosa
em Ischia ou Sanary-sur-Mer, em Tívoli
onde haveria uma primeira, poeirenta edição do Proust
e martini gelado
na casa que cheira a rosmaninho.
Batatas ao rosmaninho.
O dia esgotado em ansiar o que nos passa.
Traduzir preguiçosamente ao Byron e o Dante
com as despojadas palavras de sempre;
no caderno, sóbrias listas das coisas amadas.
E viver para a beleza
sempre sério, sempre lúcido,
pensando apenas
apenas fazendo nada.
“Vem – Aonde –
Ao nada terrível
tão só ali de onde vens
as coisas amigáveis e semelhantes a ti,
Os elementos. ”
Traducción: Alberto Acosta
Simplici myrto
XXXVIII
ao Teuco Castilla
Com dizer-te que, sem coroa já
as vezes perfumo-me de simples mirto
nas manhãs
e me assento a gastar, tibiamente
palavras de família.
Não com solenidade, mas serviçal
trago as minhas lapiseiras ao pátio
vestido mesmo como o meu pai, e o meu avô
e o seu pai antes que ele.
Eu era outro poeta ali, eclesiástico
e pálido, jovem como são os poetas.
Eu tinha palavras demais lá no sul.
Não só acreditava nelas, eram quase tudo o que eu tinha
necessárias, imprevistas, como pranchas na marejada.
Eu era triste e a cidade e suas ventanias,
mas acreditava no whisky, na repentina iluminação
que as noites sempre parecem prometer,
devidamente alongadas.
A pantera que me descobriste ainda me condena
mais, calado bicho, às suas batalhas
acontecem no passado. Familiar, e obscura como nunca,
as vezes parece-me ouvi-la envelhecer no irresolvido.
Como cansada de batalhas que, remoto, não posso traduzir.
Hoje floresceram, tranquilas, as glicinas
o denso meio dia as acerca.
Das minhas mãos uma uva cai no chão,
roda sobe a mesa, e da sua sombra
passa, para se cegar-se ao sol.
Bebo com os meus deuses e as minhas técnicas,
me lembro uns versos de Horácio.
Sei que não te parecerá indigno de nossa arte
salvar essas simples coisas.
Traducción: Alberto Acosta
M. D.
XVI
para Nicolás Bompadre
Os lábios vermelhos, pés descalços,
roçando a menina rubra como uvas passas,
no bochorno desse pátio desterrado,
ela dançava em Saigon.
A poeira ao sol a dourava, a dançada poeira
passava fechando os seus olhos.
O entardecer vermelho dos trópicos
a ia cansando quietamente
enquanto isso dançava com ela em Saigon.
Soubeste, escutaste dela
nos quartos de dormir do ópio;
uma menina branca no país do sol,
ágil, frugal como canas no amanhecer.
Imóvel a procuraste em sonos, e na vigília
mutável onde envelhecias.
Nunca, nunca a encontraste.
Escutei falar dessa menina nos clubes,
um animal fugaz que entregava-se no rio,
em ritual pequeno, onde havia risos e temor.
Não lhe pagavam, não lhe mentiam, e a menina não os desejava;
ia com eles a um rio, barrento sobe a lua.
Ela vê o terno branco, o automóvel preto,
um saber sobre o ter que ela não tem.
E ela sobe com o chinês silente, brilhante,
sossega-se indiferente sobre o mundo cansado.
Indiferente presta-se aos seus costumes,
ausente em seu corpo, dourado como as canas.
Nunca, nunca a viste
de coxas brancas sobre o barro do Mekong.
Quase ausente nas pálidas sombras
Imaginaste que a fumaça fechava os seus olhos próximos,
e assim, os olhos fechados, deixava-te um beijo triste, doce,
a sua maninha secava a tua velha frente, a sua maninha leve
como pétala branca de ameixeira.
Haverias trocado o teu passado, pela menina de Saigon.
Dançou comigo na noite de Saigon.
Dançou com os costumes dum homem
que sempre quis estranho, um dragão imemorial.
A garota não quere ter, mais a sua mãe e uma mãe despojada,
seus irmãos, despojos que nos olham dançar.
Alaranjado o amanhecer de Saigon, ela ainda dançou comigo
alienados pela fumaça, o silêncio, o álcool.
No quarto amarelo, sufocado, dos seus costumes
esse chinês lhe lava os pés, as coxas, e os ombros.
As nuvens agora matam os poeirentos raios
que, entrecortados na persiana, dançavam sobre a água, e o jaspe.
Poeira sobre frutas muito amadurecidas, ela cheira no amor, e cala.
As chuvas da monção agitam o silêncio.
Não saberás, nunca saberás
o que era nua no rio enquanto repenicava a chuva,
o seu torso branco emergindo do agitado Mekong. Ria.
Quererias já mudar o triste no amável,
que em teu calor último, ela, lenta como o ópio,
te vertera gotas frescas da sua boca, como chuva última, escampando.
Sim, que fosse ela quem te leve a esse último rio.
Não saberás as suas molhadas, afrutadas nudezes, já nunca.
O seu corpo, como o ópio torrado, era um engano.
Eu a toquei, a conheci, pedi palavras da sua boca.
Não foi minha; seu corpo, apagando-se, não lhe trazia o meu nome.
Em coloniais barcos, nos abandonou o silêncio.
Eu sei por que morro. Foi jovem e ela me deu algo que não entendo.
Quereria apaga-la em mim, como essas brasas se apagam,
como fecharam os leopardos seus tardos olhos na noite de Saigon.
Os longos dias que me ficam a trazerem ainda;
incessante, como marés de ausência, me despojará.
O ópio não me mata, e não a leva. O ópio, como a lembrança.
Traducción: Alberto Acosta
Ezra Pound
Ezra Weston Loomis Pound – Nascido em Hailey em
30.10.1885 morto em Veneza em 01.11.1972, foi um poeta,
músico e crítico literário norte americano que junto com T. S.
Eliot foi uma das maiores figuras do movimento modernista
da poesia do início do século XX no país norte-americano. Ele
foi o motor de diversos movimentos modernistas,
notadamente do Imagismo (seu líder e principal
representante) e do Vorticismo. Foi também o primeiro líder
do próprio modernismo na poesia em língua inglesa.
Canto 81
fragmento
O que amas de verdade permanece,
o resto é escória
O que amas de verdade não te será arrancado
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
Mundo de quem, meu ou deles
ou não é de ninguém?
Veio o visível primeiro, depois o palpável
Elísio, ainda que fosse nas câmaras do inferno,
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
O que amas de verdade não te será arrancado
A formiga é um centauro em seu mundo de dragões.
Abaixo tua vaidade, nem coragem
Nem ordem, nem graça são obras do homem,
Abaixo tua vaidade, eu digo abaixo.
Aprende com o mundo verde o teu lugar
Na escala da invenção ou arte verdadeira,
Abaixo tua vaidade,
Paquin, abaixo!
O elmo verde superou tua elegância.
"Domina-te e outros te suportarão"
Abaixo tua vaidade
Tu és um cão surrado e largado ao granizo,
Uma pega inchada sob o sol instável,
Metade branca, metade negra
E confundes a asa com a cauda
Abaixo tua vaidade
Que mesquinhos teus ódios
Nutridos na mentira,
Abaixo tua vaidade,
Ávido em destruir, avaro em caridade,
Abaixo tua vaidade,
Eu digo abaixo.
Mas ter feito em lugar de fazer
isto não é vaidade
Ter, com decência, batido
Para que um Blunt abrisse
Ter colhido no ar a tradição mais viva
ou num belo olho antigo a flama inconquistada
Isto não é vaidade.
Aqui, o erro todo consiste em não ter feito.
Todo: na timidez que vacilou.
Tradução conjunta de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari
Antônio Perin
Antônio Perin baiano, nasceu em Itaobim, cresceu nas franjas
do Meia Pataca ouvindo sapateiros, costureiras, roceiros,
tecelãos contarem seus casos e suas histórias de trabalho. Se
encantava com folias de reis e embriagados calangueiros em
seus desafios pelos becos da infância. Em casa escutava as
alucinantes histórias paterna, ouvia a avó cantando benditos
em latim enquanto costurava, estranhava a emoção materna
entre novelas radiofônicas e os afazeres domésticos.
Um carnaval e suas máscaras
Pela suja calçada
da avenida
vassouras de ventos
sopram pó de bauxita
da trilha do trem
Nas cinzas do carnaval
que se acabou
tortos postes flamejantes
mal iluminam
coloridas bandeiras
de plásticos
atadas aos fios e cabos
Ali
esfomeadas
criaturas humanas
mascaram a fome
com restos do lixo
Ao final da avenida
na curva dos trilhos
caminha o mendigo
em sua fantasia de trapos
afligido por seus demônios
que em redemoinhos
rondam seus pensamentos
como a morte rindo
assombra o moribundo
Ele não sabe que é seu
último carnaval.
Ascânio Lopes Ascânio Lopes Quatorzevoltas nasceu em Ubá MG) em 1906,
vindo com cinco meses para Cataguases. Em 1925 foi para
Belo Horizonte, onde estudou Direito. Morreu em 1929, aos
22 anos, o que decretou o fim da revista Verde.
Publicou apenas Poemas cronológicos (ao lado de Enrique de
Resende e Rosário Fusco). Em 1967, sua obra foi organizada
por Delson Gonçalves Ferreira no livro Ascânio Lopes: vida e
poesia. Também foi publicada em 1998 a antologia Ascânio,
o poeta da Verde, organizada por Joaquim Branco. Em 2005,
Luis Ruffato organizou e publicou Ascânio Lopes, todos os
caminhos possíveis onde incluiu poemas, ficção, artigos,
comentários, resenhas, além de fotos do poeta.
Mi enamorada
Su nombre era bestial y ella también
mas casi no hablaba y sólo sabía mirar.
Me gustó
hice versos extensos
gasté tiempo en las rimas raras
y en la colocación de pronombres
porque ella era normalista
y le gustaba la gramática y no perdonaba
[ galicismos.
Mas un día ella descubrió mis versos modernos
y percibió que fingía
y me gustaba equivocar los pronombres
y que mis sonetos eran sólo para ella.
Entonces me mandó a pasear y se arregló con un poeta sincero
que la comparaba a Marília
y que sabía de memoria la "Cena de los Cardenales"
y que chamuscaba todos los ritmos nuevos
y las poesías sin geometría ni compás.
Y se quedaban cínicamente amándose en el portón
cuando no iban al cine a delirar con las películas
[ dramáticas italianas de 12 actos.
Ella me mandó a pasear.
Tampoco nunca más hice sonetos.
Tradução para o espanhol de Alberto Acosta
Fiama Pais Brandão Fiama Hassa Pais Brandão – Dramaturga, tradutora e
poetisa, nasceu em Lisboa em 15.08.1938, e faleceu em
19.01.2007. Crítica de teatro, estagiou no Teatro
Experimental do Porto (1964), e foi, com Gastão Cruz - com
quem se casaria - fundadora do grupo Teatro Hoje (1974).
Traduziu vários autores como Bertolt Brecht, Antonin
Artaud, Novalis e Anton Chekhov e colaborou em revistas
literárias, como Seara Nova, Cadernos do Meio-Dia e Vértice,
entre outras. Revelou-se com "Morfismos", no âmbito da
iniciativa Poesia 61, coletânea que refletia uma tendência
poética atenta à palavra, à linguagem na sua opacidade, na
busca de uma expressão depurada e não discursiva. A criação
poética de Fiama Pais Brandão impõe-se pela busca de uma
expressão original, onde as palavras tentam evocar uma
essência perdida, anterior à erosão do tempo e do uso corrente.
A desconstrução das articulações do discurso e a sua
metaforização provocam um estranhamento que conduz o
leitor a despir a linguagem da sua convencionalidade e a
entrever o acesso pela palavra pura a um tempo primordial.
Fiama Pais Brandão recebeu várias distinções, entre as quais
se destacam o Prémio Adolfo Casais Monteiro, 1957; o Prémio
Revelação de Teatro, 1961; o Prémio Pen Clube Português de
Poesia, 1985; o Grande Prémio de Poesia APE/CTT, 1996; o
Prémio D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus, 1996; e o
Prémio Pen Clube Português de Ficção e o Prémio da Crítica
da Associação Portuguesa de Críticos Literários, ambos em
2005.
Epístola para os meus medos
Sois: os sons roucos, a espera vã, uma perdida imagem.
O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem
sinto-vos, vindes ao rés da terra, como ventos baixos,
poisais no peitoril. Sois muito antigos e jovens,
da infância em que por vós chorava encostada a um rosto.
Que saudade eu tenho, ó escuridão no poço,
ó rastejar de víboras nos caniços, ó vespa
que, como eu, degustaste o figo úbere.
Depois, mundo maior foi a presença e a ausência,
a alegria e as dores de outros que não eu.
E um dia, no alto da catedral de Gaudí,
chorei de horror da Queda, como os caídos anjos.
A porta branca
Por detrás desta porta,
uma de todas as portas que para mim se abrem e se fecham,
estou eu ou o universo que eu penso.
Deste meu lado, dois olhos que vigiam
os fenómenos naturais, incluindo a celeste mecânica
e as sociedades humanas, sedentárias e transumantes.
Mas podem os olhos fazer a sua enumeração,
e pode o pensado universo infindamente ir-se,
que para mim o que hoje importa
é aquela olhada vaga porta.
Que ela seja só como a vejo, a porta branca,
com duas almofadas em recorte,
lançada devagar sobre o vão do jardim,
onde o gato, por uma fenda aberta
pela sua pata, tenta ver-me,
tão alheio a versos e a universos.
Foz do Tejo, um país
O rio não dialoga senão pela alma
de quem o olha e embebeu a sua alma
de olhares ribeirinhos no passado
ou à flor do pensamento no futuro.
É um país que fala dentro da fronte,
olhando as naus, navios, barcos pesqueiros
e o trilho das famintas aves pintoras
de riscos negros, que perseguem o odor
das redes cheias, as outrossim poéticas
familiares gaivotas. É uma costa inteira
de imagens de gaivotas dentro dos olhos.
São bocas a pensar razões da vida,
gargantas já caladas pela nascença e morte,
quando entre si se vêem ou juntas olham
o mar dos seus próprios dias. São cabeças
velhas de labutar, entre dentes cerrados,
as palavras mudas de um ofício no mar,
antigas de silêncio, como se no esófago
guardassem há muito a sabedoria de ir
enfrentar o mar, transpor o mar, estar.
Tal como um rio o mar só quer falar
pela dor e alegria de alma com que o chama,
há séculos na orla, um povo mudo,
com as palavras presas, guturais sem fôlego,
dentro de si, tão firmes no palato, articuladas
na língua interior. E o mar é quieto ou bravo,
e a alma tensa de uma paixão secreta,
escondida atrás da boca, e sempre aberta,
tal como as pálpebras diante desta água.
Só a alma sabe falar com o mar,
depois de chamar a si o Rio, no imo
de cada um, recordações, de todos
os que cumprem na linha da costa o seu destino.
O de crianças, berços nascidos à beira-mar,
aleitadas por água marinha bebida por rebanhos,
alimentadas por frutos regados pela bruma.
Mesmo quando petroleiros, se olharmos o mar,
passam sem som na glote, para nós mesmos dizemos
que o tempo já findou das caravelas outrora
e dentro do nosso sangue passa o tempo de agora.
Também as vacinas, fenícias áfonas no poema
que as canta, sabem as formas, pelo olhar,
de serem mulheres com peixes à cabeça.
E os pregões que eu calo, revendo-as, eram outra
língua do mar, os nomes com que nos chamam
para o seu modo de levar entre as casas o mar.
Mas as dores não as ecoa o mar, nem mesmo
as de poetas, só as pancadas das palavras
no encéfalo parecem ser voz do mar.
É uma nação única de memórias do mar,
que não responde senão em nós. Glórias, misérias,
que guardámos por detrás do olhar lírico
e da língua, a silabar dentro da boca.
Nunca chamámos o mar nem ele nos chama
mas está-nos no palato como estigma.
Dezembro de 1997
Roupa
Aquela saia roda
como o topo do moinho de pás,
o que em mim confirma agora
que o vento me reveste.
*
Quando depois do nascimento me vestiram,
a roupa então em mim resplandeceu.
Mas estava nua, sem cambraia
ou a memória simples dela nos sentidos.
Nua e solene, com a roupa alheia
em tomo do meu corpo. E ignorava
valor, matéria e as pompas
que entregam roupas e versos ao comércio.
Acreditava só que o gesto amado
de me cobrirem de panos ao nascer
seria a minha glória
*
O pequeno velo de roupa é
o da imaginação. Vestiram-me
para me velar, como janelas afloram
nas casas ou como a palha envolve
medas. As escassas vestes
nas montras eram também
sinais da imaginação. E a linha
nas mãos da costureira assim
imaginada era.
*
Tão devagar cosia pelo traço do giz
a máquina que os pés moveram balançando
quanto os meus olhos devagar seguiram
o traçado dos pontos e o meu espanto
de ver a ordem surgir dos riscos soltos.
O rosto atento caía sobre o pano
que pouco a pouco me tomava a forma
do meu corpo tocado pela luxúria
de tão belos cetins, veludos
inverosímeis e, como tudo o que
a memória gera, fontes de dores.
*
O tépido calor cobre-me
por fora de tules em flor.
As folhas do loureiro ridentes
assemelham-se ao meu vestido
de verde cassa. Agradeço, pois, às bocas
de parentes os nomes ditos.
*
Todas as roupas usadas
próprias do Verão são aquele
vestido único, porque me haviam dito
que ao entrar pelos olhos
ele me cobria de fulgor.
*
Com a saia de tobralco leve passei
entre as nossas hortas, águas do poço,
coisas da quinta tão diversas todas.
E amei cada um dos vários nomes,
e também as palavras especiosas
que na retrosaria designam o belo fio
e aquelas que me mostravam os tecidos
em sequências de alucinações novas.
Urbanização
Tudo o que vivêramos
um dia fundiu-se
com o que estava
a ser vivido.
Não na memória
mas no puro espaço
dos cinco sentidos.
Havíamos estado no mundo, raso,
um campo vazio de tojo seco.
Depois, alguém
urbanizou o vazio,
e havia casas e habitantes
sobre o tojo. E eu,
que estivera sempre presente,
vi a dupla configuração de um campo,
ou a sós em silêncio
ou narrando esse meu ver.
Emerson Teixeira Cardoso
Quem tem medo do
Anunciador?
Quantos podem dizer que conheceram Paulo
Martins?
Dos treze para catorze anos eu andava pelo
Colégio Cataguases com um exemplar de A carne de
Júlio Ribeiro debaixo do braço, quando o Dr.
Manoel das Neves me interpelou: – Este era o livro
que nós os rapazes, aqui no tempo do professor
Antonio Amaro, queríamos ler.
A Carne, romance naturalista de Júlio Ribeiro,
foi uma das leituras mais reveladoras de minha
adolescência. A leitura, para mim era importante
na medida em que transcendia a mesmice do
cotidiano, a banalidade da existência de um
adolescente no início dos anos sessentas, sem a
maturidade para se absorver as grandes novidades
que por aí viriam. Bossa nova, Nova cap, Cinema
novo, as Novas aventuras do Tim Tim, O cruzeiro
novo enfim, tudo era novo: Brand new.
Os plásticos coloridos dos heróis das revistas da
Editora Ebal apareciam nos para brisas dos poucos
carros que circulavam pelo entorno do colégio
instigando a nossa imaginação pelo que havia de
mais criativo nos cartoons vindos do outro lado do
oceano.
Ir ao cinema para ver Brigite Bardot era a coisa mais
incerta daquelas horas incertas. Burlar a vigilância
do juizado de menores, representado
fidedignamente pelo Seu Panza era o que
chamaríamos hoje de missão impossível. “E Deus
criou a mulher” era impróprio para menores de 18
anos e os menores, adivinhe quem eram?
Mas o que descobri por acaso era que por aqui,
sem sede própria, um grupo de rapazes com alguns
(poucos) quilômetros rodados a mais que nós
outros, haviam criado um cine clube cujo nome
Serguei Eisenstein, naturalmente pretendia voos
mais altos no que se entendia até o momento por
cinema.
O cine clube exibia os filmes mais cotados pela
crítica nacional e internacional. A referência para a
escolha dos filmes talvez fosse o Cahier de Cinema
que tinha como um dos editores Françoise Truffaut,
mas àquela altura quem saberia disso?
Saberíamos depois que a não ser por um Orson
Welles, um Fred Zimmermann, um Griffith, o
cinema americano já estava descartado. Assim como
o Continental (cigarros) era a preferência nacional
os jovens cineastas europeus eram os preferidos dos
cineclubistas: eram os tempos da nouvelle-vague e
não por acaso o primeiro filme ali exibido foi Jules
et Jim (Uma mulher para dois) a mulher era Jeanne
Moreau, minha diva e de todos nós e os dois do título
eram: Oskar Werner e Henri Serre.
O cine clube por si só já deu muito o que falar,
mas o melhor estava por vir...
Pensaram em fundar um centro de arte para
difusão das várias modalidades de arte: artes
plásticas, poesia, música, literatura, teatro, o diabo.
E o pior é que fundaram mesmo. O CAC (Centro de
Arte de Cataguases) era uma criação dele, o cara
citado no início deste texto: Paulo Martins. O grupo
tinha uma postura singular, critica que não
suportava ideias conservadoras.
O jornal “Evolução” vinculava seus textos
escatológicos para escândalo de uma cidade para a
qual a chegada da televisão constituía a maior
novidade. No número 4 falando em nome do grupo,
Paulo dizia coisas assim:
“Daqui em diante somente criticaremos
posição geral dos fenômenos; paramos de tocar em
assuntos específicos, já destruídos na própria
insensatez da argamassa, lentidão vergonhosa da
cultura popular, participante endurecida pela
sentida redução dos raciocínios, crucificada,
raspada, idealizadora do que nega, rasteira
enquanto permanecer sendo estabelecida por média
burguesia, enjaulada, enganosa, relacionada
intimamente com cópia, imitações, artigos
produzidos em série, para consumo dirigido,
teleguiado.”
Em tudo e de tudo tinha a postura de um líder,
um agente ou reagente das estruturas edificadoras
das artes que a seu ver pediam ações modificadoras,
rápidas, extremas, profícuas.
Uma sala do prédio onde ficava a rádio Cataguases
foi palco da exposição de um tal Isaac Monteiro,
artista holandês. Os visitantes deixaram o local
assustados com seu estilo novo e transgressor.
Pedaços de tábuas velhas, velas e latas amassadas
davam o ar do que hoje conhecemos como
instalação.
Condescendente leitor, você que é familiarizado
com as mais hodiernas formas de arte
contemporânea, saberá o que é instalação. Saberá
também o que é performance. O que aconteceu
pouco antes da abertura da exposição do artista
holandês merece ser contado aqui:
Produto do desinteresse ou ignorância do público
havia na sala apenas alguns poucos visitantes que
aliás, deveriam entender daquela proposta de arte
tanto quanto eu entendia de mandarim.
Foi quando alguém (Provavelmente, Paulo Martins)
sobraçando um punhado das peças ali expostas e
logo seguido dos outros companheiros desceu as
escadas do velho prédio e puxou o pregão até o
entorno da praça Rui Barbosa, que naquele sábado
estava superlotada: Isaac Monteiro! Isaac
Monteiro!
Chovia, ou começava a chover e a imprevista
ou improvisada manifestação dos caquistas roubou
a cena. As pessoas que ali estavam, voltaram-se
curiosas para aquele estranho préstito e seguiram
ruidosos e histéricos de volta a galeria, e lá se
acotovelaram perplexos diante dos rapazes que
esboçando nervosos gestos, finalmente tentavam
dar explicações possíveis quanto à natureza do
evento.
Com Paulo Martins era assim: Não entendia a
arte que não fosse com o objetivo de transformar o
indivíduo e seu meio que para si dormitavam numa
realidade cultural estagnada, estática, passiva.
E o Centro de Arte de Cataguases buscava
intensamente uma arte baseada na experimentação.
Do seu convívio no Rio com gente do cinema
adquiriu a experiência necessária a realização de
seu filme; uma produção toda sua, que mesmo no
nome trazia a medida certa seus conceitos artísticos
“O Anunciador, o homem das Tormentas. ”
O elenco era formado pelos demais membros do
grupo: Carlos Moura, Antônio Jaime, Haroldo
Teixeira, Silvério Torres, Agenor Sereno, Mário
César Cardoso, Waldelar Moreira e suas
namoradas. Cataguases se via novamente em
tempos de cinema.
Falar desse projeto cinematográfico é lembrar
dos muitos grupos ou agremiações literárias ou não
que aqui surgiram nos últimos, vá lá, quarenta anos.
Todos muito significativos e eficazes, capazes de
inspirar nas gerações mais novas o desejo de
realizações criadoras, do fazer artístico.
Por isso não entendo o descaso (real ou aparente)
por sua obra que a meu ver é digna de ser lembrada
com uma exposição iconográfica, uma homenagem
da Câmara Municipal, uma medalha de honra ou
mérito.
Para disfarçar essa negligencia bem que se
poderia aparecer por aqui, um cine clube Paulo
Martins. Afinal, ele foi o protagonista do maior
movimento cultural surgido aqui no tempo em que
essas atividades não eram subvencionadas pelos
poderes públicos.
José Antonio Pereira
05 de março de 1978
Morávamos, eu e alguns amigos, todos mineiros de
Cataguases, num apartamento do Largo do Arouche, bem
em cima de O Chefão. Foi o primeiro lugar em que morei
na cidade após chegar do Rio de Janeiro. Gostava dali. O ir
e vir pela São João, virar a esquina do Hotel São Rafael, de
vez enquanto dava de cara com algum time de futebol
saindo ou chegando do hotel, subir a Vieira de Carvalho
rumo a Feira Hippie na Praça da República. Mal virava uma
das esquinas e entrava no Largo, sentia-me, em minha
imaginação, numa pracinha qualquer da Europa. O Dinho’s
Place, o Le Casserole, havia também um restaurante
húngaro que não me lembro o nome. Lá em baixo descendo
para a Duque de Caxias ficava o Cine Arouche. No sentido
da Rua Aurora o O Gato que ri. Perdia, prazerosamente, um
bom tempo observando o carinho dos floristas arrumando
e aparando as hastes de suas rosas no Mercado das Flores,
bem no meio do Largo. Muitas vezes atravessava a pista,
aspirava alegremente o cheiro das flores e ia olhar as curvas
daquela mulher deitada em sua nudez esculpida pelo
Brecheret.
Naquele dia havia uma incontida alegria entre nós.
Ansiosos aguardávamos o jogo do São Paulo contra o
Atlético. Eu e o amigo Idigar Sena, éramos dois atleticanos
convictos, ele nem tanto, por que se dividia entre o Galo e o
Flamengo do Rio. Tínhamos certeza que seriamos
campeões. Só que virou um dia para se esquecer, que
tornou-se inesquecível.
Eu já me tornara um atleticano ferrenhamente apaixonado.
Além do beque Luizinho, desculpem-me, aprendi com meu
pai chamar zagueiro de beque lá nas barrancas do Meia
Pataca no velho campo do Flamenguinho de Cataguases.
Luizinho era um beque refinado, esguio e elegante no trato
com a bola. Dava gosto vê-lo retirar a bola dos atacantes,
numa época em que era moda terem centroavantes fortes e
trombadores. Acho que algum técnico maluco andou
querendo incorporar ao nosso futebol aquelas jogadas de
pura força física do futebol americano. Coisa para
brutamontes. Mas o Luizinho afanava a bola do infeliz e
como o velho Meneghetti, que após bater a carteira da
vítima, saia com uma suavidade felina driblando
espetacularmente seus perseguidores.
Mas, meu ídolo mesmo, era o Reinaldo, baixinho, negro
como o Luizinho e futebol atrevido. Aquele time do Galo
jogava por música e ele era o Milles Davis numa inebriante
Jam Session. Destoava do padrão dos centroavantes que
fizeram sucesso até ali. A maioria empurradores de bolas
para o barbante, alguns de uma grossura de dar dó. Idigar
dizia que Reinaldo era um ponta de lança. Eu pouco me
importava com as definições. Era meu ídolo, por, além de
ser um genial jogador, comemorar seus gols com o braço
erguido e punho cerrado, num protesto silencioso como os
negros americanos Tommie Smith e John Carlos fizeram na
Olimpíada do México. E, cá entre nós, futebol é um dos
meios mais reacionários que temos. Imagine no meio da
ditadura a CBD comandada pelo João Havelange. Aquelas
comemorações despertavam a ira do regime militar pois
eram claramente contrárias à ditadura e estimulava em nós
o desejo de combatê-la, entre meus amigos reforçavam a
convicção na busca da democracia.
Pela televisão tomamos conhecimento que Reinaldo não
jogaria, fora julgado na véspera por conta de uma expulsão
lá no início do campeonato. Idigar, já indignado com
tamanha sacanagem, esbravejava e xingava afirmando que
tudo era uma armação para compensar a suspensão do
Chulapa, um centroavante, desses que tinha aos montes até
na várzea. Eu tinha certeza que a milicada dera mais um
golpe na gente.
Aquilo tinha mexido comigo, me deixara triste e apreensivo.
Reinaldo fizera o absurdo número de 28 gols nos 18 jogos
em que atuara. Era minha certeza de gol. O Galo chegara
invicto, se fosse por pontos corridos já seria campeão a
muito tempo, mas graças ao “genial” regulamento tinha
apenas a vantagem de fazer a decisão em casa, não podendo
nem ao menos empatar para ser campeão. Era preciso
vencer. Estava preocupado. Idigar afirmava que só faltava
terem comprado o juiz. Nem me dei conta de quem
substituiria o craque. O jogo seguiu num morrinhento zero
a zero, seguido de uma prorrogação dura de ver. Até que a
agonia foi para os pênaltis. Não é que depois de tanta
expectativa um tal de Joaozinho Paulista bateu um pênalti,
atirando a bola lá na Lagoa da Pampulha. Vacilo atleticano,
onde já se viu botar um paulista bater pênalti contra o São
Paulo? Perdemos o campeonato. Putos, fomos encher a
cara e afogar as magoas num boteco da Rua do Mário de
Andrade, a Aurora. Depois disto nunca mais dei muita bola
para o futebol.
Eltânia André
Aquela menina
Toda leitura é motivada por outras leituras, não
apenas o cânone, mas também as letras frugais são
importantes nesse processo. Minhas influências estão
condensadas no que vivi e no meu olhar sobre as coisas do
mundo ─ isso que impulsiona o que escrevo; a vida. Não
estão apenas nos clássicos desta e de outras gerações. Quero
deixar um exemplo: estou pensando em escrever um conto
sobre um caminhoneiro que, ao transportar sua carga de
Minas Gerais para o Ceará, encontra nas estradas o seu
passado. Não poderia pensar em Mozart ou em Villa-Lobos
(minha mania de mesclar a arte) ou em qualquer outro
clássico, inspiro-me no Zezo, canto brega do Ceará que ouvi
repetidas vezes na casa do Tio Gelicério, que mora no
interior de Minas Gerais. Trouxe vários CD’s piratas do
Príncipe dos Teclados na volta de uma de suas viagens.
Não li Proust aos oito anos, em francês, nem a Montanha
Mágica na adolescência, ou Ulysses. Lia, sim, o que a escola
exigia, mas lembro-me bem do que me caía nas mãos: os
estoques de bang-bang de bolso do meu irmão mais velho.
Faroestes ao som de Bad Company, Bob Dylan, Santanna –
os poucos LP’s que tínhamos e que passaram pelo crivo dos
meus três irmãos (novamente: literatura e música).
Lembro-me da banda de blues: Peso. E do Renato Blues Boy.
Naquela época, minha obrigação era arrumar a casa, pegava
na vassoura e o que deveria durar uns trinta
minutos vazava horas. Empolgada, sentava-me atrás da
porta com receio de minha mãe abri-la, mas não conseguia
parar de ler. Arriscava, aflita para saber o final. Havia muita
sensualidade nas páginas e foi ali que me percebi mulher.
Ao longe, ouvia a voz materna: filha, não vai acabar de
varrer esta casa hoje? Anda logo. Levantava correndo,
escondia o livrinho e dava as últimas vassouradas.
Cinema! Nada da experiência do garotinho de “Cinema
Paradiso”, filme italiano de 1988, escrito e dirigido por
Giuseppe Tornatore. Num verão, de férias na casa da vó
Olga em Pirapetinga, conheci o cinema, mas com outro
impacto. A cidade está encravada entre os estados de Minas
Gerais e Rio de Janeiro. Vovó morava na banda fluminense,
em frente à casa do senhor Jardim, além de amigos. Ela
trabalhava em sua casa, fazendo queijos e otras cositas na
cozinha. Homem de posses, fazendas, gado, comércio, era
proprietário do Cine Jardim, que ficava no lado mineiro.
Deixou a ordem na portaria: os netos da Dona Olga entram
sem pagar e em qualquer sessão. Rosinha, prima da minha
idade, levou-me para passear no coreto da igreja, a
brincadeira estava chata, então resolvemos tentar o cinema
– nunca tinha ido antes. Decepção: na primeira vez, luta de
Kung-Fu, a tela danificada, a sala vazia com meia dúzia de
cabeças, um cheiro estranho de morte e os morcegos
fazendo a festa. Noutra: o mesmo filme, a tela parecia mais
danificada ainda, a sala vazia com duas pessoas, um cheiro
estranho de morte e os morcegos permaneciam fazendo a
festa. Pouco tempo depois, em seu lugar um armarinho se
instalou. Pirapetinga nunca mais teve uma sala de cinema.
Em Cataguases, minha terra natal e onde viveu Humberto
Mauro, assisti a outros morcegos competindo com alguns
filmes brasileiros: Mazzaropi, chanchadas. Mas foi há
poucos anos que vi Titanic. Hoje o Cine Edgard, palco dos
festivais de músicas, está interditado pelo Corpo de
Bombeiros, esquelético e sem projeção.
Entretanto, aquela menina, após o faroeste e as
vassouradas, na sessão da tarde, via repetidamente na
televisão os musicais de Fred Astaire, Noviça Rebelde, A
Pantera Cor de Rosa, Tarzan, Jerry Lewis e outros clássicos
do cinema.
Outra coisa, quando digo que sou de Cataguases. As pessoas
perguntam: afinal de contas o que há nas águas do Rio
Pomba? Berço de importantes movimentos intelectuais e
artísticos e outros arroubos vanguardistas. Mas de todos os
escritores da minha terra natal o que verdadeiramente me
influenciou foi meu irmão; poeta precoce, lançou apenas
um livrinho tosco, com vários de seus poemas impressos em
folhas soltas e distribuídos num saco de papel de padaria.
Ele morreu jovem, vítima de um acidente em que uma tora
de madeira o calou para sempre, quebrando-lhe o pescoço.
Talvez eu tenha começado a ser escritora quando dei de cara
com as perdas: a morte do irmão, daquele cinema, do bang-
bang, da minha infância, daquela menina... não sei. Não sei.
Sebastião Nozza
Bielli Lotti
Atenção aos invisíveis
Um estudante de psicologia vestiu-se de gari e
transitou por muito tempo pelo campus da universidade
sem ser percebido. Passou pela cantina, circulou entre as
mesas, parando próximo de onde estavam os colegas mais
chegados, e nada: ninguém lhe dirigiu sequer um olhar.
Imaginem o material que recolheu; dá para desenvolver
uma tese. Caso de atores que se fizeram passar por
moradores de rua também aconteceram e o que declararam
depois foi constrangedor. Parece que Bibi Ferreira deu uma
de mendiga e o Procópio, seu pai, fingiu (imagino) que não
a reconheceu. Mas aí já é outro caso: uma brincadeira da
versátil atriz.
Jamais fui indiferente a eles (sem querer dar uma de bom
moço), e até briguei com uma zeladora na rodoviária do Rio,
que interrompeu o meu cochilo – eu havia perdido o ônibus
da meia-noite e resolvi ficar por ali, depois de vários chopes,
aguardando amanhecer para pegar o primeiro – e ao abrir
os olhos, incomodado com a vassoura nos meus pés, tive a
impressão de que seu rosto continha certa ironia. Sei que
existe uma grande diferença entre me indispor e tratá-los
com naturalidade, e o respeito que merecem, mas às vezes
me considero tão igual que isso pode acontecer.
Lembro-me de que nos anos setenta fiquei amigo de uma
empregada doméstica; mineira, negra, quarenta anos, e
procurei incentivá-la a estudar à noite e procurar
esclarecimentos sobre os seus direitos trabalhistas.
Tempos depois, quando a revi – não se sentava mais à noite
na Praça Nossa Senhora da Paz, pois já estava estudando –
ela me agradeceu, dizendo que sua vida havia melhorado
bastante, apesar da lei ainda não a beneficiar, como de
direito.
Um garoto de rua, que era uma constante explosão de
felicidade, despertou-me um afeto que hoje poderia até ser
julgado como pedofilia. Ele gostava de roubar bicicletas em
Ipanema e depois de curtir uma onda, colocava-as no
mesmo lugar. Levei-o para morar comigo no conjugado do
posto seis, fazendo-o meu ajudante na frustrada
empreitada de montar uma oficina de silkscreen. Meu
sócio, o Paraná, cartazista, conhecido do pessoal de teatro,
que tomava umas a mais e andava cheio de nóia, pois fora
torturado pela ditadura, botou tudo a perder.
Toni, nordestino perdido na cidade grande, faxineiro e
quebra-galho em vários afazeres, também acabou se
aboletando por lá, até que desfiz o apartamento, dei um “até
mais ver” pra todos e fui morar em Teresópolis.
Anos depois, morando novamente no Rio, após haver saído
do Amarelinho numa noite animada, esperava o ônibus,
quando Ivanir, o garoto das bicicletas, então um rapaz,
parou o táxi e me oferecendo carona. No trajeto até
Botafogo, ele me falou que os três meses vividos em minha
companhia ajudaram-no a ver bem melhor as coisas. O
mesmo acontecendo com Marquinhos – que tinha a
sensação de ser transparente em Ipanema – antes de voltar
para a casa dos pais.
No calçadão de Copacabana, o garoto de onze anos me
fala que fugiu de casa no subúrbio, não só pelos maus tratos
do padrasto, mas pelo medo que sentiu ante a amendoeira
com várias cabeças humanas dependuradas. Criei um
trabalho intitulado O Pesadelo de André. Não consigo
entender como morar na rua virou a coisa mais normal do
mundo.
Os subalternos, em seus uniformes cinzentos, vão
passando como sombras, e os excluídos, incapazes de se
integrar ao sistema, continuarão a incomodar, explicitando
que um montão de coisas anda errado, há muito, muito
tempo.
Flauzina Márcia
Filme bom
Tereza Madruga é o nome da atriz de TABU, filme
português de notável expressão dirigido por Miguel
Gomes e coproduzido pelo Brasil (Gullane Filmes).
Somos recebidos no filme, com um “documentário” sobre
desbravadores de selvas africanas, em preto e branco de
filmadora antiga.
Aspas em documentário, porque as imagens de
desbravamento não representam conquistas (todo
documentário tem essa pretensão), pois a narração
mostra um homem incapaz de sobreviver à dor ter
perdido sua mulher.
Assistindo conosco o documentário, está Pilar, nossa
protagonista, cheia de pureza.
O filme, porém, não se abre em altos recursos técnicos de
filmagem, continua no modelo documento, porém mais
nítido e em solo urbano.
Pilar exibe um pequeno cartaz no aguardo de uma jovem
polonesa, que ela iria hospedar.
A moça chega e diz que é amiga daquela, impedida de
viajar.
Pilar se preocupa, mas estava tudo bem e ela oferece ajuda
para a amiga da que não pode vir.
Fica óbvia a dispensa de hospedagem, por parte da moça,
que se diz outra, para ficar com outros jovens em outra
viagem, mas Pilar não percebe.
SHAME ONU é bandeira de protesto, do qual participa
Pilar...
Aurora, a vizinha dela, é outra história. Santa, empregada
de Aurora, é outra, não narrada, mas explícita.
É um milagre, o filme conta história de variadas pessoas,
de modo absolutamente não convencional, desmistifica a
imagem, o documento e a história.
Faz isso pedindo a Deus perdão pela tolice, nas preces da
querida Pilar.
Se Glauber Rocha rezasse teria feito esse filme.
Ao fim e ao cabo, revela-se a história de Aurora, que tinha
“sangue nas mãos”.
É sangue de uma só pessoa, os outros sangues estão nas
mãos de ninguém...
No dia em que me vir assassinando milhões de pessoas,
não mais verei filmes.
SHAME ON ME.
Orgulho-me desse filme, capaz de pôr no olho de um
crocodilo a lente maior da arte de ver e ser vista. Isso é
poesia de primeira.
Tabu recebeu o Prêmio da Crítica e o Prêmio Inovação do
2 62º Festival de Berlim, em 2012.
Antônio Jaime
Todo mundo pro
Distrito
Em abril de 1965, o CAC (Centro de Arte de
Cataguases) promoveu uma semana de artes e manhas em
Nova Friburgo. Vou falar apenas das artes. Na véspera,
passamos pelo Rio, onde vimos Amor em 3D, três peças do
chamado teatro do absurdo, que era o que tentávamos
fazer, sem o profissionalismo que vimos ali. Depois, na
rua, acompanhamos Carlos Drummond de Andrade e sua
Dolores, até que entraram num restaurante. Dia seguinte,
subimos a serra ao encontro da turma, hospedados pela
Fundação Getúlio Vargas.
Levamos uns curtas-metragens do Cinema Novo e L’âge
d’or, de Buñuel e Dalí, filme surrealista e anticlerical,
exibido justamente num colégio de padres, o mesmo, por
sinal, de onde Drummond fora expulso, décadas antes,
por insubordinação. E duas peças do nosso repertório, O
mestre, de Ionesco, e Peça-idéia, de Paulo Martins. Esta,
um exercício de improviso sobre tema nenhum, que
rendeu a Paulo, Carlos Moura e Silvério Torres bons
momentos de comicidade. Meu caso era o papel principal
da outra, pelo qual recebi até uma cantada de uma coroa.
“Sua interpretação foi divina”, ela disse, dando-me seu
endereço.
Poesia correu por conta de uns surrealistas paulistas,
Sérgio Lima, Cláudio Willer, Roberto Piva e Argos
Machado. Pintura, a cargo de uma tal Sociedade Amigos
da Holanda, do Rio, da qual nunca mais tive notícias. E
música, na voz de uma cantora, também do Rio, que se
dividia entre Nara, Elis e Bethânia. E deve estar na dúvida
até hoje, posto que também não mais a vi ou ouvi.
Curtimos adoidado aquilo tudo, inclusive a família que
nos ciceroneou, um tanto ou quanto avançada para os
padrões da época. Ou nós que éramos mais bobos.
O bicho quase pegou no final, quando distribuímos um
jornaleco mimeografado à porta da fábrica Ypu. As
“otoridade” entenderam como uma ação subversiva e foi
todo mundo parar no Distrito Policial. Quase todos
liberados no ato, menos Paulo, Moura e eu, porque
assináramos matérias no jornal consideradas ofensivas à
moral e aos bons costumes. Ou seja, uns palavrões. Três
dias sem poder sair da cidade até que foi do Rio um agente
do Dops e nos livrou a cara. A ditadura estava ainda em
seu primeiro ano, fosse depois do AI5, em 68, poderia ter
sido pior. “Amigos presos, amigos sumindo assim...”, o
clima era esse.
E acabei contando uma das manhas, no caso, da polícia.
Então, vai mais uma. Na última noite, chegou lá o marido
da cantora, de surpresa. Pois ela havia partido horas
antes, visivelmente apaixonada por um dos músicos que a
acompanhavam. Se houve ou se não houve alguma
encrenca entre eles dois, ninguém pôde até hoje explicar.
Mui divertido.
E nada divertida a vinda do pessoal da Fundação a
Cataguases, retribuindo a visita. A começar pela peça que
trouxeram, uma adaptação de O pequeno príncipe,
caretice total, que os militares teriam aplaudido de pé. E
não era hora de se brincar de principezinhos, até porque,
enquanto estiveram aqui, o pai de um dos garotos do
elenco foi deportado para a Argélia. Nome do pai: Miguel
Arraes. Não vi, mas me contaram que o moço tomou um
porre fenomenal. E voltei lá anos depois, com uma amiga,
outras gentes, outras curtições.
José Antonio Pereira
A enfermeira
Belarmino já vinha cramando, como dizia
Beninha, a algum tempo de um caroço bem no meio das
costas. Só que o danado dera para doer, e muito, nos
últimos dias. – Ô Beninha óia esse trem aqui prá mim!
Tá doendo demais da conta. Benvinda faz um muxoxo,
sai andando sem dar a mínima e dizendo: – Deixa de
manha coronel! Só sabe ficar cramando de um carocim
atoa. Vá ao posto de saúde! Coronel, era assim, que
desde o namoro Benvinda chamava Belarmino,
caprichando na pronuncia. – Imagina chamar meu
marido de coroné! Coroné é prá fazendeiro metido a
besta. O meu é Coronel, com todas as letras da patente.
Sempre que pensava no porquê daquilo tudo. Achava o
nome pomposo, forte e poderoso, a cidade tinha um
monte de ruas chamadas de coronel, Coronel João
Duarte, Coronel Vieira, Coronel Artur Cruz e tantos
outros coronéis. Gostava de imaginar seu homem viril e
autoritário, sentia, sem pensar no porquê, uma pitada
de prazer em ser dominada por seu homem. Quando o
chamava de Belarmino ou era por raiva ou para fazer
restrições ou reprimendas. Casaram a muito tempo. No
começo, era aquela volúpia toda. Em seis anos o coronel
a embarrigara cinco vezes. Quatro filhas depois, a
primeira não vingara, morreu dois dias depois de
nascer, Benvinda desistiu de dar ao coronel seu sonhado
filho homem. Cuidar da casa, cozinhar, lavar e passar
trouxas e mais trouxas de roupas. As roupas do coronel
eram pesadas e imundas, ele trabalhava de caldeireiro
na fábrica de papel. Parece que o vapor fixara nele o
cheiro de lenha queimada. Ela já não suportava mais
aquele cheiro, principalmente a noite quando ele
cismava de fazer alguma bobice. Beninha perdera o
fogo, era, já a algum tempo uma brasa dormida. E o
Belarmino, também já não era lá grandes coisas, na hora
agá de dar-lhe prazer, já vinha negando fogo.
O coronel, já aposentado, durante algum tempo achava
que as refugadas de Beninha, era puro cú-doce, por um
par de anos, cismou que ela só podia tá tendo um caso
com algum filadaputa qualquer. Mas acabou se dando
conta que ele também já não se interessava tanto por ela.
Isto depois de muito pensar e culpa-la por aquela rotina
chata da vida a dois. Beninha já mostrava no corpo as
marcas do tempo, vivia resmungando dores nas
cadeiras, ruminando maledicências pelos cantos. E na
roda do buraco na praça da estação um dia numa
discussão sobre impotência sexual Belarmino disparou:
– O que broxa o homem é casamento prolongado.
No plantão do pronto socorro, depois de assinar um
monte de papel, é atendido de pé no corredor por um
médico que depois de perguntar para ele três vezes o seu
nome finalmente vai ao caso: – Qual o seu problema?
Timidamente aponta para as costas. Por ordem do
médico levanta a camisa ali mesmo. – Senhor, temos
aqui um cravo inflamado. Vamos retirá-lo. O médico
vira para a enfermeira: – Suzi, cuide disto aqui para
mim. Aplique-lhe um anti-inflamatório, enquanto
atendo aquela moça passando mal ali. A enfermeira,
em contraste com o distanciamento do médico era só
delicadezas. – Meu bem, me acompanhe por favor!
Aquele tom de voz e a delicadeza da enfermeira
desconcertou o coronel. Entram numa sala de curativos.
– Tire a camisa! Apontando para uma daquelas camas
estreitas usadas no pronto socorro. – Sente-se aqui meu
bem! Aquele segundo meu bem mexeu com o coronel.
Sentado na maca, começou a olhar a enfermeira com
outros olhos, até a dor já aliviava. Nem se incomodou
com a picada da agulha. Quando a voz macia e meiga o
traz de volta à dor. – Deite-se! Ela se aproximara e
colocou com suavidade a mão em seu ombro e continuou
– Você se chama Belarmino. É isto? – É! Mas pode me
chamar de Mino. – Então Mino, deite-se de bruços.
Belarmino prontamente atendeu a ordem. Tinha horror
a hospitais, mas aquela doçura toda o derretera. Sentia-
se tão seguro que fechou os olhos. – Vou te preparar
para o doutor tirar o cravo. O gelo do álcool nas costas
incomodava, mas, o que o reconfortava e alegrava era a
leveza das mãos em suas costas. Abriu os olhos com o
rosto colado ao branco da maca. E viu bem junto ao seu
rosto aquele ponto onde juntam-se as curvaturas das
coxas e fecham-se formando o quadril. Aspirou
profundamente, tentando sentir o cheiro daquela
mulher. A voz meiga – Relaxa seu Mino! A enfermeira o
inebriou de vez, a fantasia o levou a imaginá-la
completamente nua. Pele morena, lisa e brilhante, seios
pequenos e firmes. Ela se pôs a dançar naquela sala toda
branca e fria, uma sensual dança afro. Uma voz
masculina o traz de volta: – O senhor como se chama?
Aquela pergunta outra vez, o incomodava. Era o doutor
que não fazia questão nenhuma de saber nem o nome.
Não responde. A enfermeira: – Seu Mino, vamos
começar! – Vai incomodar um pouco. Disse o doutor. –
Vou dar um pique para purgar a inflamação. Sentiu a
ponta fria do aço no corpo, mas não doeu. Chumaços de
algodão eram apertados contra suas costas, ouvia o
barulho deles empapados sendo atirados na lixeira.
Sentiu uma dor aguda quando a pinça entrou pelas
costas para a retirada do cravo. E ela se repetiu algumas
vezes. Aquilo era uma tortura. A voz do doutor ecoou
pela sala: – Pronto senhor! O senhor não tinha um
cravo. Era meia dúzia. Uma reunião de cravos bem no
meio das costas. Suzy! Combine com ele. Ele terá que
fazer curativos diariamente nos próximos dias para
sabermos se ficou tudo bem. Passar bem senhor... Como
é mesmo o nome do senhor? - Belarmino Senhor!
Respondeu irritado sem se dar conta de que o médico já
estava lá fora no corredor. A enfermeira: Seu Mino! O
senhor pode me procurar todos os próximos dias aqui
no plantão a partir das 3 horas da tarde. Ajuda-o a vestir
a camisa e carinhosamente seca a testa suada com um
guardanapo de papel.
Na praça, jogando buraco com os amigos, Belarmino
todo vaidoso contava sua história para os amigos.
Quando um deles sem a menor cerimônia perguntou:
– Mas afinal, e a tal enfermeira? Rendeu alguma coisa?
– Nada de nada! Com a voz alterada, num tom mais
acima, continuou Belarmino. – No terceiro dia, num
domingo, um calorão desgraçado, lá fui eu, todo
saliente, para o hospital. Até um Lancaster, pra dar um
cherim bão, passei na cara. Lá chegando quem me
atendeu? Um baita dum enfermeiro negro, forte, alto
prá burro. Perguntei pela Suzy e ele me despejou com a
cara mais ladina que já vi na minha vida: – Ela não veio
hoje! Folgou. Foi para a Parada Gay com a namorada
dela.
Ronaldo Cagiano
Um estreante com
a segurança dos
veteranos
Nos contos que integram “A mangueira da nossa
infância” (Ed. Ficções, SP, 2012, 112 pgs.), de Alexandre
Nobre, encontramos uma narrativa que captura os
instantes do quotidiano na vida de personagens que são
encontradiços na vida real.
Pela lente do autor, nada escapa ao seu flagrante, os
pequenos acontecimentos diários, as situações
corriqueiras, o banal que muitas vezes ao largo de nossas
percepções, mas que sob sua ótima adquire um acento
lírico pela leitura que faz do mundo e das pessoas que o
cercam.
É a rua, as cidades, as pessoas, os objetos, os animais &
outras situações e nuances, com suas peculiaridades e seus
detalhes, que transformam-se em matéria e circunstância
de sua delicada construção literária.
Os contos de “A mangueira da nossa infância” (re)visitam
o imaginário do autor, mas as dimensões geográfica,
social, histórica e humana, flertando com uma certa
cartografia interior, mergulhando nos escaninhos
psicológicos, a partir do que tudo adquire uma projeção
que transita do plausível ao onírico. Do seu
particularíssimo observatório do homem transcende a
mirada crítica, a reflexão, às vezes inflexão metafísica.
A prosa de Nobre é permeada por uma linguagem sutil,
sem adereços, sem contorcionismos, porém essa singeleza
e cristalinidade narrativas não negligenciam a densidade
dos temas que suas histórias albergam. Ele tangencia a
solidão do homem contemporâneo nessa sociedade que
nos insulariza e apequena; os dilemas das paixões, das
perdas, dos lutos; o espelho dos nossos desatinos, em que
é tênue a fronteira entre lucidez e loucura, os limites entre
vida e morte, entre paixão e amor; ou a falta de dialética na
convivência nessa sociedade ainda atormentada pelas
misérias morais e pelo preconceito.
Nesse sentido, seus contos (muitos deles premiados em
importantes concursos nacionais, como os prêmios “Luiz
Vilela” e “Ignácio de Loyola Brandão”) refletem sobre o
mundo cão, sobre as (nossas) relações, sobre o
desconforto e o despertencimento do ser nesse tempo e
nesse universo povoado de inquietações. E entre o real e o
imaginário, no confronto e a invenção e a memória, entre
a verdade exterior e a ficção, a pulsão metafórica e o
impulso poético predominam em sua prosa, conferindo-
lhe uma plasticidade e uma sutileza singulares, algo não
muito comuns numa certa prosa utilitarista hoje em voga
em nossa literatura, escrita apenas para atender aos
apetites do mercado.
Alexandre não simplifica seu ofício poético, pois não se
preocupa apenas em contar uma história, mas em dotar o
texto de tal rigor e harmonia, pois o que conta leva em
conta a arte de saber contar, o lirismo amalgamando as
histórias comuns. Em contos como “Babuska”, “A
mangueira da nossa infância” e “Acampamento”, por
exemplo, destacam- se o talento e a versatilidade do autor,
cujo projeto criativo percorre desde o diálogo à reflexão,
mapeando o inconsciente pessoal e coletivo, instâncias que
fornecem a Alexandre o leitmotiv de uma verdadeira
f(r)icção: aquela que nos dá um soco no estômago e não
nos deixa indiferentes após sua leitura.
Prestem atenção nesse paulistano radicado em Ribeirão
Preto, que se divide entre a literatura e a música com a
mesma intensidade (guitarrista e compositor): não é um
estreante promissor, mas uma realidade no cenário de
nossa literatura, tão redundante de obviedades. É um
nome que já nasce com o tutano dos escritores
estabelecidos.
Como disse Paul Auster, “um escritor só pode ser bom se
tiver a honestidade de ir ao fundo, ao céu, ao inferno, doa
o que doer”. Alexandre atingiu esse patamar.
Hilda Doolittle
Hilda Doolittle – H.D. foi uma poetisa, romancista e
memorialista estadunidense conhecida por ser membro do
grupo dos poetas imagistas, ao lado de Ezra Pound e Richard
Aldington. Nasceu em 10.09.1886, Bethlehem, Pensilvânia,
EUA e Faleceu em 27.09.1961, Zurique, Suíça .
Relatos de uma
temporada no divã
Sérgio Teles*
Hilda Doolittle é uma poetisa, romancista e memorialista
norte-americana praticamente desconhecida no Brasil.
Participou do imagismo, movimento literário de grande
impacto no mundo anglo-americano antes da 1.ª Guerra
Mundial e depois traçou uma rota própria pelos caminhos
abertos pelo modernismo. Incansável viajante, morou muitos
anos na Europa, onde se envolveu com a vanguarda artística,
privando com gente como Ezra Pound (que foi seu mentor e a
batizou de “HD”, sigla com a qual passou a assinar seus
livros), William Carlos Williams e D.H. Lawrence. Casou-se
com o poeta Richard Aldington, com quem teve uma filha, e
viveu vários relacionamentos héteros e homossexuais até
encontrar aquela que seria a companheira de sua vida, a
herdeira Annie Winifred Ellerman (“Bryher”, como gostava
de ser chamada). No Hemisfério Norte, a obra de HD foi
redescoberta nos anos 70 e 80 pelos movimentos gay e
feminista, que nela reconheceram elementos precursores das
importantes questões de gênero com as quais lidavam.
HD fez dois pequenos períodos de análise com Freud, em 1933
e 1934, e registrou sua experiência em um par de
textos, Advento e Escrito na Parede. Ambos estão reunidos
emPor Amor a Freud - Memórias de Minha Análise com
Sigmund Freud. Em nenhum deles o leitor encontra um relato
minucioso no qual possa satisfazer sua curiosidade sobre o
andamento de uma análise ou sobre a forma como Freud a
conduzia. Advento é a anotação bruta, não lapidada, feita por
HD na vigência da análise. É fragmentária, alusiva, críptica,
impossível de ser entendida. É o testemunho febril de alguém
que está, entre assustado e fascinado, descobrindo os
labirintos do sonho, das associações, das aliterações, do
conteúdo latente escondido e disfarçado, a dinâmica de seu
próprio funcionamento mental inconsciente. Denota o esforço
e o sofrimento envolvidos no trabalho de se resgatar dos
impedimentos impostos pela neurose, bem como o
renascimento da esperança de atingir a almejada meta, o
“Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo” -
já referido pelo oráculo de Delfos na Grécia antiga.
Escrito na Parede é a elaboração estética de Advento,
resultando num texto poético que bem exibe os dons literários
de HD na hábil recriação do discurso característico do
processo analítico, o fluxo não linear das associações livres.
Recheado de imagens ligadas à mitologia grega, da qual era
grande conhecedora, o texto quase nada explicita sobre sua
turbulenta e sofrida vida mental.
Com sensibilidade, HD faz uma analogia da análise com a
poesia A Canção de Mignon, de Goethe (parte da obra Os Anos
de Aprendizado de Wilhelm Meister). Ali se evoca um lugar
ideal (“Conheces o país onde florescem os limoeiros? ”), que
só pode ser alcançado com a ajuda de competente guia, no qual
o cansado viajante, após atravessar íngremes veredas e
penhascos onde mora perigoso dragão, é acolhido
amorosamente (“que te fizeram, minha pobre criança?”).
Em outro ponto, Hilda Doolittle diz que Freud “erguia dos
corações mortos e das mentes fulminadas e dos corpos
desajustados uma hoste de crianças vivas”. É uma imagem
poética que sintetiza de maneira feliz o trabalho analítico. De
fato, resgatar as “crianças vivas”, simultaneamente vítimas e
algozes, que vivem no inconsciente de cada um é uma das
tarefas de libertação e superação da psicanálise.
Por Amor a Freud... traz, além dos dois textos mencionados,
um adendo com a correspondência trocada entre Freud,
Bryher e HD. Dele consta ainda uma introdução de Elisabeth
Roudinesco, dando alguns parâmetros da teoria psicanalítica
sobre a sexualidade feminina.
*Sérgio Telles é Psicanalista e escritor, autor,
entre outros de Fragmentos clínicos de Psicanálise.
Mario Vargas Llosa
Prólogo de Cem anos
de Solidão
O mágico e o maravilhoso
O processo de construção da realidade fictícia,
empreendida por García Márquez no relato Isabel vendo
chover em Macondo e em O Enterro do Diabo, alcança
com Cem anos de solidão sua plenitude: esta novela
integra em uma síntese superior as ficções anteriores,
construindo um mundo de uma riqueza extraordinária,
esgota este mundo e se esgota com ele. Dificilmente
poderia fazer com Cem anos de solidão o que este
romance fez com os contos e romances precedentes:
reduzi-los a condição de anúncios, de parte de uma
totalidade. Cem anos de solidão é um romance total, na
linha dessas criações demencialmente ambiciosas que
competem com a realidade de igual para igual,
enfrentando-a numa imagem de uma vitalidade, vasta e
complexa qualitativamente equivalentes. Esta totalidade
se manifesta antes de tudo na natureza plural do
romance, que é, simultaneamente, coisas que se creem
antagônicas: tradicional e moderna, local e universal,
imaginária e realista. Outra expressão dessa totalidade é
sua acessibilidade ilimitada, sua faculdade de estar ao
alcance, com possibilidades distintas porém abundantes
para cada qual, do leitor inteligente e do imbecil, do
refinado que saboreia a prosa, contempla a arquitetura e
decifra os símbolos de uma ficção e do impaciente que só
entende a crua anedota. O gênio literário de nosso tempo
só é hermético, minoritário e asfixiante. Cem anos de
solidão é um dos raros casos de obra literária
contemporânea maior que todos podem entender e gozar.
Porém Cem anos de solidão é um romance total sobre
tudo porque põe em prática o utópico designo de todo
suplantador de Deus: descrever uma realidade total,
enfrentar na realidade real uma imagem que é sua
expressão e sua negação. Esta noção de totalidade, tão
escorregadia e complexa, porém tão inseparável da
vocação do romancista, não só define a grandeza de Cem
anos de solidão: da também sua chave. Trata-se de uma
novela total por sua matéria, na medida em que descreve
um mundo cerrado, desde seu nascimento até sua morte
e em todas as ordens que a compõe – o individual e o
coletivo, o legendário e o histórico, o cotidiano e o mítico
-, e por sua forma, o que a escrita e a estrutura têm, como
a matéria contida nelas, uma natureza exclusiva,
irreptível e autossuficiente...
O real imaginário
O real objetivo é uma das faces de Cem anos de solidão;
a outra, o real imaginário, tem o mesmo afã avassalador e
totalizante, e, por seu caráter chamativo e risível, é para
muitos o elemento hegemônico da matéria narrativa.
Convêm, antes de mais nada, precisar que esta divisão das
matérias narrativas em real objetivos e em real
imaginários é esquemática e que deve ser tomada com a
maior cautela: na prática, esta divisão não se dá, como
espero mostrar ao falar da forma. A matéria narrativa é
só uma, nela se confundem essas duas dimensões que
agora separamos artificialmente para mostrar a natureza
total, autossuficiente, da realidade fictícia. Martinez
Moreno levantou um inventário de prodígios em Cem
anos de solidão, e essa enumeração exaustiva de matérias
real imaginários do romance prova que sua abundancia e
importância, ainda que indubitáveis, não excedem,
contrariamente ao que se disse, ao das matérias real
objetivos que acabamos de descrever. O caráter
totalizador do imaginário na matéria de Cem anos de
solidão manifesta-se não só em seu número e volume,
sino, principalmente, em el hecho de que, como o
histórico e o social, é de filiação diversa, pertence a
distintos níveis e categorias: também a representação do
imaginário é simultaneamente vertical (abundancia,
importância) e horizontal (diferentes planos ou níveis).
Os acontecimentos e personagens imaginários
constituem (dão a impressão de) uma totalidade porque
abarcam os quatros planos que compõem o imaginário: o
mágico, o mítico-legendário, o milagroso e o fantástico.
Vou definir muito brevemente qual a diferença, em minha
opinião, estas quatro formas do imaginário, porque
penso que ela fica clara com os exemplos. Chamo mágico
ao feito imaginário provocado mediante artes secretas
por um homem (mago) dotado de poderes ou
conhecimentos extraordinários; milagroso ao feito
imaginário vinculado a um credo religioso e
supostamente decidido ou autorizado por uma divindade,
o que faz supor a existência de um mais além; mítico-
legendário ao feito imaginário que procede de uma
realidade histórica sublimada e pervertida pela
literatura, e fantástico ao feito imaginário puro, que
nasce da estrita invenção e que não é produto nem de arte,
nem da divindade, nem da tradição literária: o feito real
imaginário que ostenta como seu traço mais comum uma
soberana gratuidade.
O mágico
Nos primeiros tempos históricos (ou, melhor, durante a
pré-história) de Macondo, quando sucedem sobretudo
feitos extraordinários provocados por indivíduos com
conhecimentos e poderes fora do comum: trata-se,
principalmente, de ciganos ambulantes, que deslumbram
aos macondinos com prodígios. O grande mago
realizador de maravilhas é Melquíades, cujos poderes
podem atrair “os tachos, as frigideiras, os tenazes, e os
fogareiros” das casas e até “os pregos e os parafusos” (p.
9). Diz “possuir as chaves de Nostradamus” (p.14) e é um
expert em conhecimentos marginais e esotéricos; trazem
a alquimia a Macondo e trata, sem êxito, de persuadir a
Úrsula de “as virtudes diabólicas do zinabre” (p.15). A
Melquíades não ocorre coisas imaginárias: ele as provoca,
graças a suas artes mágicas, a esse poder sobrenatural
que lhe permite regressar da morte à vida “porque não
posso suportar a solidão” (p.62). O pobre José Arcadio
Buendía trata desesperadamente de dominar essas artes
mágicas, de adquirir esses poderes, e não os consegue:
não vai nunca mais além das realizações científicas (real
objetivas), como seu descobrimento de que a terra é
redonda (p.13) ou sua conversão em “concreto seco e
amarelado” das moedas coloniais de Úrsula (p.40). Esses
poderes mágicos os tem, por outro lado, o taciturno
armênio inventor de um xarope que o torna invisível
(p.26), e os mascates dessa tribo que haviam fabricado
“uma esteira voadora” (p.42). Não só os ciganos gozam de
poderes fora do normal, sem dúvida. Pilar Ternera os
tem, ainda que em doses moderadas: o baralho a permite
ver o futuro, mesmo sendo um futuro confuso que quase
nunca o intérprete corretamente (p.39). Petra Cotes, ao
contrário, é um agente magnifico do real imaginário, já
que seu amor “tem a virtude exasperar a natureza” e
provocar “a proliferação sobrenatural de seus animais”
(p.220).
Há que se fazer uma distinção: Melquíades, o armênio
taciturno e os ciganos da esteira voadora são agentes
deliberados e consciente do imaginário: sua capacidade
mágica é em boa parte obra deles mesmos, resultado de
artes e conhecimentos adquiridos, e é uma sabedoria que
exercitam com premeditação e cálculo. Este é também o
caso de Pilar Ternera, agente mínima do real imaginário.
Porém Petra cotes é uma agente involuntária e quase
inconsciente do imaginário: seus orgasmos propagam a
fecundidade animal sem que ela o tenha proposto e nem
sabe por que ocorre. Não é uma maga que domina a
magia: é a magia em si mesma, objeto mágico, agente
imaginário passivo. Esta é a condição de uma série de
personagens de Cem anos de solidão, que têm virtudes
mágicas, não conhecimentos mágicos, e que não podem
governar essa faculdade sobrenatural que há neles,
senão, simplesmente, padecê-la: é o caso do coronel
Aureliano Buendía e sua aptidão adivinhatória, esses
presságios que é incapaz de sistematizar (”Se
apresentavam de pronto, em uma lufada de lucidez
sobrenatural, com uma convicção absoluta e
momentânea, porém inacessível. Em ocasiões eram tão
naturais que não os identificava como presságios senão
quando se cumpriam. Outras vezes eram categóricos e
não se cumpriam. Com frequência não eram mais que
golpes vulgares de superstições”) (p.150); o de Mauricio
Babilonia, que passeia pela vida com uma nuvem de
borboletas amarelas ao seu redor (p.327), e, só por um
instante póstumo o de José Arcadio Buendía, a cuja morte
se produz “uma garoa de minúsculas flores amarelas”
(p.166). O caso de Amaranta, quem vê a morte, é distinto.
Por outro lado, os gringos da companhia têm
conhecimentos que, mais que científicos, deveríamos
chamar mágicos: “Dotados de recursos que em outra
época estiveram reservados à Divina Providência.
Modificaram o regime das chuvas, apressaram o ciclo das
colheitas, e tiraram o rio de onde sempre esteve...”
(p.261).
:
Mario Vargas LLosa em El País 24.03.2007
Cecília Meirelles
Cecília Meirelles é reconhecida hoje como uma das mais
importantes vozes líricas da literatura brasileira e das
literaturas de língua portuguesa. Seu lirismo é marcado pela
exploração sonora da língua e por movimentos rítmicos que
conferem musicalidade aos versos e, ao mesmo tempo,
ajustam-se aos movimentos da alma. O vigor das imagens, a
qualidade formal dos versos, a variabilidade das formas
poéticas (soneto, canção, epigrama, elegia...), aliados ao
tratamento filosófico dado aos temas, explicam esse lugar
especial que Cecília ocupa na história da nossa poesia.
Cecília nasce no Rio de Janeiro em 7 de novembro de 1901.
Órfã de pai e de mãe aos três anos de idade, é educada pela
avó materna, Jacintha Garcia Benevides, natural da ilha de
São Miguel, nos Açores. Essa avó exerce muita influência
sobre a sua formação, cultivando no espírito da futura
escritora, desde cedo, o interesse pela pátria portuguesa,
sobretudo os Açores, assim como pela cultura indiana e pelo
Oriente como um todo. Provavelmente é essa ascendência
açoriana que imprime no imaginário da autora o tema da
viagem como um apelo recorrente na sua produção literária,
que surge inclusive no título de uma de suas obras. Publica
o seu primeiro livro de poemas, intitulado Espectros, em 1919.
Segue-se um período de intensas atividades literárias, época
em que se encontra com um grupo de escritores que, entre
1919 e 1927, funda as revistas Árvore Nova, Terra de Sol e
Festa. Em torno da revista Festa reúnem-se autores como
Andrade Muricy, Adelino Magalhães, Tasso da Silveira e
Murillo Araújo, que formam, no Rio de Janeiro, a corrente do
Modernismo brasileiro que se convencionou chamar
“espiritualista”. O convívio de Cecília Meireles com os
intelectuais do grupo deve-se ao fato de eles apresentarem
uma proposta independente das coordenadas gerais do
movimento modernista de São Paulo e de introduzirem, na
criação, o diálogo com o pensamento filosófico. Sem responder
diretamente aos propósitos de afirmação da nacionalidade e
de inovações formais e ideológicas, o grupo ligado
à Festa pretende ampliar os limites do projeto modernista em
prol de uma arte mais universalista.
Nos anos 20, a autora publica os livros Nunca mais..., Poema
dos poemas (1923) e Baladas para El-Rei (1925), obras que
revelam a presença da cultura oriental na sua formação,
especialmente o livro de 1925. Percebe-se, também, a
repercussão do movimento simbolista sobre a produção
poética desse período, revelada na exploração da sonoridade,
nas imagens imprecisas e de tonalidade mística. Nesta época,
escreve ainda os poemas do livro Cânticos, que só serão
publicados em 1981.
Preocupada com assuntos relativos ao ensino, Cecília
trabalha para o Diário de Notícias do Rio de Janeiro (1930-
1933), escrevendo diariamente uma página sobre educação.
Essas crônicas seguem sendo publicadas em outros periódicos
cariocas. Em 1935, Cecília é convidada a lecionar Literatura
Luso-brasileira e, em seguida, Técnica e Crítica Literária na
Universidade do Distrito Federal (Rio de Janeiro), onde
permanece até 1938. O livro Viagem recebe o prêmio de poesia
Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, de 1938, sendo
publicado em Portugal em 1939. Considerado o tom
acentuadamente inovador do Modernismo, Viagem revela
uma renovação equilibrada, situando-se entre a tradição e a
modernidade. A premiação tem o efeito de consagrar
oficialmente a poesia de Cecília Meireles no Brasil e no
exterior. O livro representa o alcance da maturidade literária,
pois sua obra assume uma feição própria e singular na poesia
brasileira do século XX, justamente devido ao equilíbrio
entre o clássico e o moderno, tanto do ponto de vista formal
quanto temático.
Na seqüência de Viagem, outras publicações no âmbito da
poesia consagram definitivamente a escritora, destacando-se
as seguintes obras: Vaga música (1942), Mar absoluto e outros
poemas (1945), Retrato natural (1947), Amor em
Leonoreta (1951), Doze noturnos da Holanda e O aeronauta
(1952), Romanceiro da Inconfidência (1953), Canções (1956),
Metal rosicler (1960), Poemas escritos na Índia (1962) e
Solombra (1963). Em 1964, lança uma coletânea de poemas
para crianças, intitulada Ou isto ou aquilo, livro que inaugura
uma nova fase da poesia infantil brasileira, tornando-se um
clássico da produção poética para a infância.
Cecília Meireles faz muitas viagens ao exterior, entre elas, aos
dois países pelos quais tinha muito interesse cultural:
Portugal e Índia. O livro Poemas escritos na Índia, publicado
em 1962, é resultante de sua viagem a esse país, em 1953,
sobre o qual escreveu também um conjunto de crônicas.
Nessas publicações, a autora revela a natureza do homem
indiano, sua simplicidade e comunhão com a natureza. Em 9
de novembro de 1964, a escritora falece em sua cidade natal.
Estudiosa da literatura, inclusive a destinada à criança,
pesquisadora da tradição religiosa oriental, do folclore
açoriano e brasileiro, da filosofia ocidental, tradutora de obras
fundamentais da literatura universal, entre as quais Bodas de
sangue e Yerma, de Federico García Lorca, e Orlando, de
Virginia Woolf, Cecília Meireles participa ativamente da
cultura e da educação brasileiras do século XX. Mas a sua
produção poética ultrapassa fronteiras cronológicas,
geográficas e artísticas, e sua contribuição para a educação no
Brasil continua atual e instigante.
Texto de Ana Maria Lisboa de Mello, extraído do livro
Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles.
Entrevista de Cecília Meireles
“Tenho um vício terrível” — me confessa Cecília
Meireles, com ar de quem acumulou setenta pecados
capitais. “Meu vício é gostar de gente. Você acha que
isso tem cura? Tenho tal amor pela criatura humana,
em profundidade, que deve ser doença. ” “Em
pequena (eu era uma menina secreta, quieta, olhando
muito as coisas, sonhando) tive tremenda emoção
quando descobri as cores em estado de pureza,
sentada num tapete persa. Caminhava por dentro das
cores e inventava o meu mundo. Depois, ao olhar o
chão, a madeira, analisava os veios e via florestas e
lendas. Do mesmo jeito que via cores e florestas,
depois olhei gente. Há quem pense que meu
isolamento, meu modo de estar só (quem sabe se é
porque descendo de gente da Ilha de São Miguel em
que até se namora de uma ilha pra outra?), é distância
quando, na realidade, é a minha maneira de me
deslumbrar com as pessoas, analisar seus veios, suas
florestas. ”
Cecília é carioca. Nasceu em novembro, dia de S.
Florêncio (filha de Matilde e Carlos Alberto de
Carvalho Meireles, funcionário do Banco do Brasil),
em Haddock Lobo, na Rua São Luís. Seriam quatro
irmãos, mas nunca chegaram a ser dois sequer,
porque, mal nascia
um, o outro já tinha
morrido. Só ficou
Cecília. Perdeu a mãe
com três anos e meio,
tendo sido criada pela
avó, Jacinta Garcia
Benevides, da Ilha de
São Miguel, Açores,
descendente de gente
que andou do lado do
Infante D. Henrique. A
ela dedica Cecília:
Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos
Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia
caído…
No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma
definitiva, Modelada pela noite, pelas estrelas, pelas
minhas mãos.
Cecília Meireles: Minha primeira escola foi a Estácio
de Sá, que depois passou a Escola Normal, onde me
formei. Olhando para trás me sinto uma criança
extremamente poética. Em casa de meu padrinho,
Louzada, onde brincava, sempre silenciosa e
observando-a, via estátuas, pinturas, coleções de
pequeninos, objetos e leques em vitrinas, coisas que
me levaram a fazer o “Inventário Lírico”.
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Cecília Meireles: Vovó era uma criatura
extraordinária. Extremamente religiosa, rezava todos
os dias. E eu perguntava: “Por quem você está
rezando? ” “Por todas as pessoas que sofrem. ” Era
assim. Rezava mesmo pelos desconhecidos. A
dignidade, a elevação espiritual de minha avó
influíram muito na minha maneira de sentir os seres
e a vida.
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos
sem força,
tão paradas e frias e
mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta
mudança,
tão simples, tão certa, tão
fácil:
Em que espelho ficou
perdida a minha face?
Cecília Meireles: Uma das
coisas que mais me encantavam em minha vida de
infância era o eco que vivia em casa de minha avó. Eu
vivia procurando o meu eco. Mas tinha vergonha de
perguntar. Recolhida, tímida, deslumbrada, me
debruçava no mistério das palavras e do mundo.
Queria saber, mas tinha imenso pudor de confessar
minha ignorância.
Nós merecemos a morte,
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pelo nossa cabeça embrulhada em séculos de
sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.
Cecília Meireles: Terminada a Escola Normal, fui
lecionar o primário, ainda com um jeito de menina,
num sobrado da Avenida Rio Branco. Ali, na mesma
sala, havia duas turmas e duas professoras, a metade
voltada para cada lado. Pois as crianças, vendo-me
quase tão menina quanto elas, viraram quase todas
para mim. Sempre gostei muito de ensinar. Trabalhei
na Escola Deodoro, ali junto ao relógio da Glória. Fui
professora de Literatura da Universidade do Distrito
Federal. Criei a primeira biblioteca infantil, ali onde
era o Pavilhão Mourisco. Criança que não tivesse onde
ficar podia encontrar o livro que lhe faltava, coleção
de selos, moedas, jogos de mesa, sonhos, histórias e as
explicações de professoras prontas e atentas. Acabou,
depois de quatro anos, mas frutificou em São Paulo
onde hoje existe até biblioteca infantil para cegos.
Também ensinei História do Teatro na Fundação
Brasileira. O resto da minha atividade didática está
nas conferências em que sempre procuro transmitir
algo.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.
Cecília Meireles: Você sabe que eu tenho muito medo
da literatura que é só literatura e que não tenta
comunicar?
Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.
Cecília Meireles: Vivo constantemente com fome de
acertar. Sempre quase digo o que quero. Para
transmitir, preciso saber. Não posso arrancar tudo de
mim mesma sempre. Por isso leio, estudo. Cultura,
para mim, é emoção sempre nova. Posso passar anos
sem pisar num cinema, mas não posso deixar de ler,
deixar de ouvir minha música (prefiro a medieval),
deixar de estudar, hindi ou o hebraico, compreende?
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Cecília Meireles: Casei com vinte anos. Tenho três
filhas: Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda.
As três são bibliotecárias mas a minha biblioteca não
está fechada. Maria Fernanda você conhece como
atriz, não é mesmo? As três têm em comum uma
bondade comovente mas são de temperamentos
completamente diferentes. Tenho cinco netos. Viúva,
casei em 1940 com Heitor Grilo, um homem
admirável pela sua extraordinária fé no ser humano,
em sua ânsia de tudo elevar. Basta dizer a você que,
nesta primeira e única doença que tive e que me
segurou cinco meses, ele não arredou pé, um
momento de carinho, gesto e palavra prontos, apesar
de suas inúmeras responsabilidades e ocupações.
Conheci-o quando fui entrevistá-lo certa vez. Depois…
nunca mais o entrevistei. Entendemo-nos até calados.
No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.
Cecília Meireles: Estudei canto e violino. Abandonei.
Era preciso ganhar a vida e poesia se pode criar até
numa viagem de bonde. Mesmo nas reuniões em que
muita gente discutia eu era capaz de me ausentar em
meu mundo e construir. Aos poucos pude criar a
minha Ilha de Nanja, a São Miguel transfigurada pelo
sonho. Acho linda a continuidade humana através da
poesia. Só viajo com a Bíblia. A Bíblia é uma
biblioteca. Tem tudo: história, poesia, religião. Já
disse que, se tivesse que escolher o meu livro para
uma ilha deserta, levaria a Bíblia. Ou um dicionário.
Minha esperança perdeu seu nome…
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.
Cecília Meireles: Mas comigo aconteceu uma coisa
deliciosa, deixe-lhe contar. Neste Natal eu estava
doente em São Paulo. Pois bem. Ao voltar para esta
minha casa (Cecília vive ao lado do bondinho que sobe
pro Corcovado) encontrei cartões de gente de todos os
cantos do mundo que se lembrou de mim. De todas as
raças e religiões. Todos unidos pelo Natal. E o mais
curioso é que eu olhava um cartão e outro e dizia
comigo mesma: “Fulano talvez não combine com
Beltrano, mas eu servi de elo entre os dois. A mim eles
escreveram! ” Me fez um bem enorme aquele meu
Natal atrasado!
Na quermesse da miséria,
fiz tudo o que não devia:
se os outros se riam, ficava séria;
se ficavam sérios, me ria.
Cecília Meireles: Se eu inventei palavras? Não. Isto
nunca me preocupou. No inventar há uma certa dose
de vaidade. “Inventei. É meu”. O que me fascina é a
palavra que descubro, uma palavra antiga
abandonada e que já pertenceu a tanta gente que a
viveu e sofreu! No “Romanceiro do Rio de Janeiro”,
que estou preparando para o IV Centenário, procuro
usar, em cada capítulo, a linguagem da época.
Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve…
Cecília Meireles: Tenho amigos em toda parte. Mas
sou feito o Drummond que é tão amigo quase sem a
presença física. Esse meu jeito esquivo é porque eu
acho que cada ser humano é sagrado, compreende?
Eu sou uma criatura de longe. Não sei se me querem
mas eu quero bem a tanta gente! Sou amiga até dos
mortos. Amiga de muita gente que nem conheci. Você
não imagina quanta gente eu levo ao meu lado. E fico
emocionada quando penso como uma criatura só
recebe tanto de tantos lados, de tantas pessoas, de
tantas gerações!
Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.
Cecília Meireles: Tenho pena de ver uma palavra que
morre. Me dá logo vontade de pô-la viva de novo.
“Solombra”, meu novo livro, é uma palavra que
encontrei por acaso e que é o nome antigo de sombra.
Era o título que eu buscava e a palavra viveu de novo.
Que procuras? Tudo. Que desejas? — Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
Cecília Meireles: Cada lugar aonde chego é uma
surpresa e uma maneira diferente de ver os homens e
coisas. Viajar para mim nunca foi turismo. Jamais
tirei fotografia de país exótico. Viagem é alongamento
de horizonte humano. Na Índia foi onde me senti mais
dentro de meu mundo interior. As canções de Tagora,
que tanta gente canta como folclore, tudo na Índia me
dá uma sensação de levitar. Note que não visitei ali
nem templos nem faquires. O impacto de Israel
também foi muito forte. De um lado, aqueles homens
construindo, com entusiasmo e vibração, um país em
que brotam flores no deserto e cultura nas
universidades. Por outro lado, aquela humanidade
que vem à tona pelas escavações. Ver sair aqueles
jarros, aqueles textos sagrados, o mundo dos
profetas. Pisar onde pisou Isaías, andar onde andou
Jeremias … Visitar Nazaré, os lugares santos! A
Holanda me faz desconfiar de que devo ter parentes
antigos flamengos. Em Amsterdã, passei quinze dias
sem dormir. Me dava a impressão de que não estava
num mundo de gente. Parecia que eu vivia dentro de
gravuras. Quanto a Portugal, basta dizer que minha
avó falava como Camões. Foi ela quem me chamou a
atenção para a Índia, o Oriente: “Cata, cata, que é
viagem da Índia”, dizia ela, em linguagem náutica,
creio, quando tinha pressa de algo, chá-da-Índia,
narrativas, passado, tudo me levava, ao mesmo tempo
à Índia e a Portugal.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Cecília Meireles: A babá Pedrina me contava a história
do Palácio de Louça Vermelha. Eu achava que devia
ser muito fresco viver num palácio assim e, em
menina, já estava pronta a transformar um jarro
imenso que havia em casa em palácio, quando,
querendo escondê-lo de meus sonhos, de tanto
procurarem lugar para ocultá-lo, o partiram em mil
pedaços.
Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
— vê que nem te peço alegria.
Cecília Meireles: Viagens, folclore e idiomas são uma
espécie de constante em minha vida. Comprei livros e
discos de hebraico. Estudei hindi, sânscrito. O desejo
de ler Goethe no original me obrigou a estudar
alemão. Não estudo idiomas para falar, mas para
melhor penetrar a alma dos povos.
Cecília conhece uma meia dúzia de línguas mais.
Cecília Meireles: Meus amigos, é curioso, ou vivem
longe ou estão distantes. Minha casa já é contramão.
Gosto de estudar o que me dá conhecimento melhor
das pessoas, do mundo, da unidade. Por meio dos
idiomas e do folclore, vejo até que ponto somos todos
filhos de Deus. A passagem do mundo mágico para o
mundo lógico me encanta.
Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.
E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.
Cecília Meireles: Nunca esperei por momento algum
na vida. Vou vivendo todos os momentos da melhor
maneira que posso. Quero realizar coisas, não para
ser a autora, mas para dar-me, para contribuir em
benefício de alguém ou de alguma coisa. Quando
adoeci e tinha que repousar uma hora depois do
almoço, ficava calculando quanto poema deixava de
escrever, quanta coisa linda deixava de ler e conhecer
naquelas horas perdidas. Mas aprendi também a
renunciar. Não tenho poema predileto. Ainda não o
escrevi. A intenção é que é perfeita. Às vezes, um
poema viaja comigo muito tempo sem ser escrito. Se
não lhe dou muita importância, vai embora. Tenho
muita pena dos poemas que não escrevo. E também
muita dos que escrevo.
E minha alma, sem luz nem tenda,
passa errante, na noite má,
à procura de quem me entenda
e de quem me consolará…
Cecília Meireles: A juventude de hoje? Acho que são
meninos que não têm tempo de crescer. Saltam do
apartamento fechado para a calçada de mil
solicitações, sem armadura, sem objetivo, sem a
necessária religiosidade. A vida passa a ser uma coisa
zoológica. Muitos crescem zoologicamente. Inventam
modas, mas como não têm essência de verdade, as
modas não pegam. As frustrações crescem.
Felizmente muitos se realizam apesar de tudo. Cada
geração acredita que traz uma nova voz e uma nova
mensagem.
Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.
Cecília Meireles: A arte abstrata? Nós, pouco a pouco,
vamos caminhando para o subentendido, não é? A
arte abstrata é uma alusão. Você constrói dentro de si.
Muita gente faz coisas com nomes concretos que
geram um mundo abstrato e vice-versa.
Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.
Cecília Meireles: Tenho, nos lugares mais diferentes,
amigos à minha espera. Você já reparou que, entre
centenas, em cada país, nós temos sempre aquela
pessoa, que, sem mesmo saber, espera por nós e,
quando nos encontra, é para sempre? Por isso é que
eu gosto tanto de viajar, visitar terras que ainda não vi
e conhecer aquele amigo desconhecido que nem sabe
que eu existo, mas que é meu irmão antes de o ser.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Cecília Meireles: Educação, para mim; é botar, dentro
do indivíduo, além do esqueleto de ossos que já
possui, uma estrutura de sentimentos, um esqueleto
emocional. O entendimento na base do amor.
Em prosa Cecília dá lições de grandeza. Vejam como
descreve o barquinho Elenita: “parece uma
nuvenzinha a correr por um espelho”. E o “Anjo da
Noite”: “À noite o mundo é bonito, como se não
houvesse desacordos, aflições, ameaças. Há muitos
sonhos em cada casa. O gato volta apressado, com
certo ar de culpa”. “Chuva com Lembranças”:
“Começaram a cair uns pingos de chuva. Tão leves e
raros que nem as borboletas ainda perceberam”.
Outro: “Com estas florestas de arranha-céus que vão
crescendo, muita gente pensa que passarinho é coisa
de jardim zoológico”.
Cecília Meireles: Houve um tempo em que a minha
janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé
brilhava um grande ovo de louça azul onde costumava
pousar um pombo branco. Nos dias límpidos o pombo
parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa
ilusão maravilhosa e me sentia completamente feliz.
Mas houve épocas em que a janela abria para um canal
em que oscilava um barco carregado de flores. Outras
em que se abria para um terreiro, sobre uma cidade
de giz, para um jardim que parecia morto. Outras
vezes abre a janela e encontra um jasmineiro em flor,
nuvens espessas ou crianças que vão para a escola,
pardais que pulam pelo muro, gatos, borboletas,
marimbondos, um galo que canta, um avião que
passa. E Cecília se sente completamente feliz. E
conclui: “Mas, quando falo dessas pequenas
felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns
dizem que essas coisas não existem, outros que só
existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para
poder vê-las assim”.
Olho para Cecília encolhida em sua poltrona,
iluminando a penumbra do canto da sala. Vejo-a tão
menina olhando o solo e descobrindo na madeira
floresta e lendas, deslumbrada de azul! Uma ilha
cercada de pontes por todos os lados. Pontes para a
ternura, pontes para a poesia, pontes para a alma de
cada um. E olhando-a assim, poesia ela mesma, tão
alta e tão pura, percebo porque continua a ser a
garotinha à procura do eco, correndo por todos os
cantos e por todos os deslumbramentos, sem poder
recolher o eco da própria voz: nós somos o seu eco,
cantamos o seu canto, sem que ela perceba; somos
todos um pouco habitantes de sua Ilha de Nanja “onde
as crianças brincam com pedrinhas, areia, formigas”.
“Solombra”, a última obra de Cecília, quer dizer só
sombra. Cecília, para nós. É só luz.
Entrevista publicada na revista “Manchete”, edição nº
630, em 16 de maio de 1964. E posteriormente no livro
“Pedro Bloch Entrevista”, Bloch Editores, em 1989.
Chicos 40 - Maio 2014

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Chicos 40 - Maio 2014

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  • 2. Chicos N. 40 Maio 2014 e-zine de literatura e ideias de Cataguases – MG Capa Jorge Napoleão Editores Emerson Teixeira Cardoso José Antonio Pereira Colaboradores desta edição Alberto Acosta Antônio Jaime Antônio Perin Eltãnia André Flauzina Márcia da Silva Ronaldo Cagiano Sebastião Nozza Bielli Lotti – Slotti Fale conosco em: cataletras.chicos@gmail.com Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/ Um dedo de prosa Esta é a edição número 40 de 31 de maio de 2014. Ao artista plástico e fotógrafo Jorge Napoleão Este começo de ano foi triste para nós, faleceu o amigo e artista plástico Jorge Napoleão em 15.02.2014. Nós o homenageamos com algumas imagens dele, nossa capa e a já célebre foto que fez do Chico Peixoto na contracapa. Também, perdemos o poeta mineiro Donizete Galvão e o prosador colombiano Gabriel Garcia Marques. Quando perdemos um artista, nossa existência torna-se mais obtusa e pesada. Eles, sensíveis que são, tornam nosso caminhar mais ameno, desbrutalizam-nos de nosso cotidiano. Andaram falando dos 50 anos do golpe de 64. Em respeito aos que foram silenciados, publicamos alguns poemas produzidos em meio aquele período triste por Haroldo de Campos. Apresentamos aos nossos amigos uma interessante poeta portuguesa, Fiama Pais Brandão. Homenageamos Gabriel Garcia Marques com um texto de Mario Vargas Llosa. Em traduções de Alberto Acosta a poesia de Eugenio Conchez em português e Ascânio Lopes em espanhol. Uma ótima entrevista de Cecília Meirelles ao Pedro Bloch. E muito mais vocês encontrarão por aqui. Divirtam-se! Uma boa leitura para todos. Os Chicos
  • 3. Sumário DONIZETI GALVÃO Alguns poemas............................................................................................................................03 HAROLDO DE CAMPOS Poemas em meio a ditadura....................................................................................................08 EUGENIO CONCHEZ Ars Vivend e outros poemas traduzidos por Alberto Acosta.........................................09 EZRA POUND Canto 81.........................................................................................................................................18 ANTÔNIO PERIN Um carnaval e suas máscaras.................................................................................................20 ASCÂNIO LOPES Mi Enamorada............................................................................................................................21 FIAMA PAIS BRANDÃO Epístolas para meus medos e mais alguns poemas.........................................................22 EMERSON TEIXEIRA CARDOSO Quem tem medo do Anunciador? ........................................................................................29 JOSÉ ANTONIO PEREIRA 05 de março de 1978...................................................................................................................31 ELTÂNIA ANDRÉ Aquela menina............................................................................................................................32 SEBASTIÃO NOZZA BIELLI LOTTI Atenção aos invisíveis...............................................................................................................33 FLAUSINA MÁRCIA Filme bom....................................................................................................................................34 ANTÔNIO JAIME SOARES Todo mundo pro distrito.........................................................................................................35 JOSÉ ANTONIO PEREIRA A enfermeira................................................................................................................................36 RONALDO CAGIANO Um estreante com a segurança dos veteranos..................................................................38 HILDA DOOLITTE Sob Relatos de uma temporada no divã.............................................................................39 MARIO VARGAS LLOSA Prólogo de Cem anos de Solidão..........................................................................................40 CECÍLIA MEIRELLES Entrevista a Pedro Bloch........................................................................................................42 Imagens de Jorge Napoleão
  • 4. Donizete Galvão Donizete Galvão Falecido no dia 30 de janeiro, deste ano, aos 58 anos. Poeta mineiro, de Borda da Mata radicado em São Paulo, deixou sete livros de poesia. Confira alguns poemas extraídos dos livros A Carne e o Tempo, Mundo Mudo, Ruminações e O Homem Inacabado: Milagre Tem de haver um porto, uma praça, um caramanchão de rosas brancas, uma sombra. uma moringa d’água. por certo, tem de haver uma pinguela, um mata-burro, um canário da terra, um fogão de lenha soltando fumaça. deve haver numa curva um remanso, ceva de pássaros, canto de seriema, prata de peixes rio acima: piracema. Do livro A Carne e o Tempo (1997)
  • 5. Miolo Lembro-te mata, tenda de folhas, ninhal de minas, casulo de sombras, alcova de brotos, renda de luzes, vertigem de avencas, friagem de sapos, labirinto de cipós, manto de limos, frescor de cambraias, grafias de cascas, acridez de sumos, açúcar de flores. Recorro a todos os nomes sem nunca recuperar o frêmito de espanto, o susto da criança Inaugurando a mata. Do livro Ruminações (1999)
  • 6. Oração natural Fique atento ao ritmo, aos movimentos do peixe no anzol. Fique atento às falas das pessoas que só dizem o necessário. Fique atento aos sulcos de sal de sua face. Fique atento aos frutos tardios que pendem da memória. Fique atento às raízes que se trançam em seu coração. A atenção: forma natural de oração.
  • 7. Visita Que ela chegue sem clarins ou trombetas, entre como facho de luz pelas gretas da janela e atravesse o quarto na sua claridade. Que ela chegue inesperada, como a chuva na tarde calorenta e faça subir o odor de poeira molhada. Que ela chegue e se deite ao meu lado, sem que a perceba. Que me lave com água de fonte e me cubra com o bálsamo branco do silêncio. Do livro Mundo Mudo (2003)
  • 8. Saturação No círculo que a xícara de café deixa desenhado no pires, o grão amargo do equívoco. O olhar preso, a vida presa. Ânsia que confrange os ossos. Ninguém atura o risco do cerco. Ninguém sai dele de mãos vazias. Do livro O Homem Inacabado (2010) Donizete Galvão em uma audição do Quinta Poética na Casa das Rosas em São Paulo - SP Aroldo Pereira, Ronaldo Cagiano, Donizete Galvão e Gilberto Nable
  • 9. Haroldo de Campos Haroldo Eurico Browne de Campos nasceu em São Paulo SP 1929, onde faleceu em2003. Poeta, tradutor, ensaísta, irmão mais velho do também poeta, tradutor e ensaísta Augusto de Campos. Lançou seu primeiro livro de poesias, O Auto do Possesso, em 1950, pelo Clube de Poesia de São Paulo, ligado à chamada Geração de 45, com a qual rompe no ano seguinte. Com o irmão Augusto e o poeta e ensaísta Décio Pignatari forma o grupo Noigandres e edita a revista-livro homônima, em 1952. Em 1956, participa da organização da Exposição Nacional de Arte Concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo que, um ano depois, é montada no saguão do Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro. Em 1958, publica, em Noigandres 4, o Plano-Piloto para Poesia Concreta, novamente com seu irmão Augusto e Pignatari. Juntos, em 1965, lançam também o livro Teoria da Poesia Concreta. Defende a tese de doutorado Morfologia do Macunaíma, em 1972, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH/USP. No ano seguinte, assume a cadeira de semiótica da literatura no programa de pós-graduação em comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, onde permanece até 1989. Publica Galáxias, um de seus textos mais conhecidos, em 1984. Como tradutor de poesia, dedica- se a diversas obras, com especial destaque para os autores de vanguarda, como o poeta norte-americano Ezra Pound (1885 - 1972) e o romancista irlandês James Joyce (1882 - 1941). Sua obra valoriza a utilização de recursos tecnológicos e a interação da poesia com a música. poesia em tempo de fome fome em tempo de poesia poesia em lugar do homem nome em lugar do pronome poesia de dar o nome nomear é dar o nome nomeio o nome nomeio o homem no meio a fome nomeio a fome
  • 10. Servidão de passagem o azul é puro? o azul é pus de barriga vazia o verde é vivo? o verde é vírus de barriga vazia o amarelo é belo? o amarelo é bile de barriga vazia o vermelho é fúcsia? o vermelho é fúria de barriga vazia a poesia é pura? a poesia é para de barriga vazia
  • 11. poesia em tempo de fome poesia em tempo de fome fome em tempo de poesia poesia em lugar do homem nome em lugar do pronome poesia de dar o nome nomear é dar o nome nomeio o nome nomeio o homem no meio a fome nomeio a fome de lucro a lucro de lucro a lucro logrado de logro a logro lucrado de lado a lado lanhado de lodo a lodo largado
  • 12. sol a sal sal a sova sova a suco suco a sono sono a sangue homem senhor homem servo homem sobre homem sob homem saciado homem saqueado homem servido homem sorvo quem uísque quem urina quem feriado quem faxina quem volúpia quem vermina
  • 13. homemmoensahomemmoagem ocre acre osga asco só moagem ossomoagem sem miragem selva selvagem ocre acre osga asco só moagem ossomoagem sem miragem selva selvagem
  • 14. Eugenio Conchez Eugenio Conchez nasceu em Intendente Alvear (La Pampa, Argentina) eml 24 de agosto de 1983. Estudou Letras na Universidad Nacional de La Pampa (UNLPam) onde é professor de Literatura Moderna. No ano 2006 publicou seu livro de poemas Los salmos apócrifos. Ars vivendi Versos de Cyril Connolly Num lugar agradável sempre anelando de estar em outro, com uma mulher perfeita imaginando outra, mais perfeita ainda (como a abelha e o seu ferrão, o promíscuo abandono o que faz a sua angústia); com um mal livro inacabado começar um segundo. Fama e paz dos antigos quando uma obra bastava para uma vida; o resto era glória e repouso, falta de angústia, viver para a beleza.
  • 15. Num ensolarado país, uma casa entre oliveiras perto da água murmurosa em Ischia ou Sanary-sur-Mer, em Tívoli onde haveria uma primeira, poeirenta edição do Proust e martini gelado na casa que cheira a rosmaninho. Batatas ao rosmaninho. O dia esgotado em ansiar o que nos passa. Traduzir preguiçosamente ao Byron e o Dante com as despojadas palavras de sempre; no caderno, sóbrias listas das coisas amadas. E viver para a beleza sempre sério, sempre lúcido, pensando apenas apenas fazendo nada. “Vem – Aonde – Ao nada terrível tão só ali de onde vens as coisas amigáveis e semelhantes a ti, Os elementos. ” Traducción: Alberto Acosta
  • 16. Simplici myrto XXXVIII ao Teuco Castilla Com dizer-te que, sem coroa já as vezes perfumo-me de simples mirto nas manhãs e me assento a gastar, tibiamente palavras de família. Não com solenidade, mas serviçal trago as minhas lapiseiras ao pátio vestido mesmo como o meu pai, e o meu avô e o seu pai antes que ele. Eu era outro poeta ali, eclesiástico e pálido, jovem como são os poetas. Eu tinha palavras demais lá no sul. Não só acreditava nelas, eram quase tudo o que eu tinha necessárias, imprevistas, como pranchas na marejada. Eu era triste e a cidade e suas ventanias, mas acreditava no whisky, na repentina iluminação que as noites sempre parecem prometer, devidamente alongadas. A pantera que me descobriste ainda me condena mais, calado bicho, às suas batalhas acontecem no passado. Familiar, e obscura como nunca, as vezes parece-me ouvi-la envelhecer no irresolvido. Como cansada de batalhas que, remoto, não posso traduzir. Hoje floresceram, tranquilas, as glicinas o denso meio dia as acerca. Das minhas mãos uma uva cai no chão, roda sobe a mesa, e da sua sombra passa, para se cegar-se ao sol. Bebo com os meus deuses e as minhas técnicas, me lembro uns versos de Horácio. Sei que não te parecerá indigno de nossa arte salvar essas simples coisas. Traducción: Alberto Acosta
  • 17. M. D. XVI para Nicolás Bompadre Os lábios vermelhos, pés descalços, roçando a menina rubra como uvas passas, no bochorno desse pátio desterrado, ela dançava em Saigon. A poeira ao sol a dourava, a dançada poeira passava fechando os seus olhos. O entardecer vermelho dos trópicos a ia cansando quietamente enquanto isso dançava com ela em Saigon. Soubeste, escutaste dela nos quartos de dormir do ópio; uma menina branca no país do sol, ágil, frugal como canas no amanhecer. Imóvel a procuraste em sonos, e na vigília mutável onde envelhecias. Nunca, nunca a encontraste. Escutei falar dessa menina nos clubes, um animal fugaz que entregava-se no rio, em ritual pequeno, onde havia risos e temor. Não lhe pagavam, não lhe mentiam, e a menina não os desejava; ia com eles a um rio, barrento sobe a lua. Ela vê o terno branco, o automóvel preto, um saber sobre o ter que ela não tem. E ela sobe com o chinês silente, brilhante, sossega-se indiferente sobre o mundo cansado. Indiferente presta-se aos seus costumes, ausente em seu corpo, dourado como as canas. Nunca, nunca a viste de coxas brancas sobre o barro do Mekong. Quase ausente nas pálidas sombras Imaginaste que a fumaça fechava os seus olhos próximos, e assim, os olhos fechados, deixava-te um beijo triste, doce, a sua maninha secava a tua velha frente, a sua maninha leve
  • 18. como pétala branca de ameixeira. Haverias trocado o teu passado, pela menina de Saigon. Dançou comigo na noite de Saigon. Dançou com os costumes dum homem que sempre quis estranho, um dragão imemorial. A garota não quere ter, mais a sua mãe e uma mãe despojada, seus irmãos, despojos que nos olham dançar. Alaranjado o amanhecer de Saigon, ela ainda dançou comigo alienados pela fumaça, o silêncio, o álcool. No quarto amarelo, sufocado, dos seus costumes esse chinês lhe lava os pés, as coxas, e os ombros. As nuvens agora matam os poeirentos raios que, entrecortados na persiana, dançavam sobre a água, e o jaspe. Poeira sobre frutas muito amadurecidas, ela cheira no amor, e cala. As chuvas da monção agitam o silêncio. Não saberás, nunca saberás o que era nua no rio enquanto repenicava a chuva, o seu torso branco emergindo do agitado Mekong. Ria. Quererias já mudar o triste no amável, que em teu calor último, ela, lenta como o ópio, te vertera gotas frescas da sua boca, como chuva última, escampando. Sim, que fosse ela quem te leve a esse último rio. Não saberás as suas molhadas, afrutadas nudezes, já nunca. O seu corpo, como o ópio torrado, era um engano. Eu a toquei, a conheci, pedi palavras da sua boca. Não foi minha; seu corpo, apagando-se, não lhe trazia o meu nome. Em coloniais barcos, nos abandonou o silêncio. Eu sei por que morro. Foi jovem e ela me deu algo que não entendo. Quereria apaga-la em mim, como essas brasas se apagam, como fecharam os leopardos seus tardos olhos na noite de Saigon. Os longos dias que me ficam a trazerem ainda; incessante, como marés de ausência, me despojará. O ópio não me mata, e não a leva. O ópio, como a lembrança. Traducción: Alberto Acosta
  • 19. Ezra Pound Ezra Weston Loomis Pound – Nascido em Hailey em 30.10.1885 morto em Veneza em 01.11.1972, foi um poeta, músico e crítico literário norte americano que junto com T. S. Eliot foi uma das maiores figuras do movimento modernista da poesia do início do século XX no país norte-americano. Ele foi o motor de diversos movimentos modernistas, notadamente do Imagismo (seu líder e principal representante) e do Vorticismo. Foi também o primeiro líder do próprio modernismo na poesia em língua inglesa. Canto 81 fragmento O que amas de verdade permanece, o resto é escória O que amas de verdade não te será arrancado O que amas de verdade é tua herança verdadeira Mundo de quem, meu ou deles ou não é de ninguém? Veio o visível primeiro, depois o palpável Elísio, ainda que fosse nas câmaras do inferno, O que amas de verdade é tua herança verdadeira O que amas de verdade não te será arrancado A formiga é um centauro em seu mundo de dragões. Abaixo tua vaidade, nem coragem Nem ordem, nem graça são obras do homem, Abaixo tua vaidade, eu digo abaixo.
  • 20. Aprende com o mundo verde o teu lugar Na escala da invenção ou arte verdadeira, Abaixo tua vaidade, Paquin, abaixo! O elmo verde superou tua elegância. "Domina-te e outros te suportarão" Abaixo tua vaidade Tu és um cão surrado e largado ao granizo, Uma pega inchada sob o sol instável, Metade branca, metade negra E confundes a asa com a cauda Abaixo tua vaidade Que mesquinhos teus ódios Nutridos na mentira, Abaixo tua vaidade, Ávido em destruir, avaro em caridade, Abaixo tua vaidade, Eu digo abaixo. Mas ter feito em lugar de fazer isto não é vaidade Ter, com decência, batido Para que um Blunt abrisse Ter colhido no ar a tradição mais viva ou num belo olho antigo a flama inconquistada Isto não é vaidade. Aqui, o erro todo consiste em não ter feito. Todo: na timidez que vacilou. Tradução conjunta de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari
  • 21. Antônio Perin Antônio Perin baiano, nasceu em Itaobim, cresceu nas franjas do Meia Pataca ouvindo sapateiros, costureiras, roceiros, tecelãos contarem seus casos e suas histórias de trabalho. Se encantava com folias de reis e embriagados calangueiros em seus desafios pelos becos da infância. Em casa escutava as alucinantes histórias paterna, ouvia a avó cantando benditos em latim enquanto costurava, estranhava a emoção materna entre novelas radiofônicas e os afazeres domésticos. Um carnaval e suas máscaras Pela suja calçada da avenida vassouras de ventos sopram pó de bauxita da trilha do trem Nas cinzas do carnaval que se acabou tortos postes flamejantes mal iluminam coloridas bandeiras de plásticos atadas aos fios e cabos Ali esfomeadas criaturas humanas mascaram a fome com restos do lixo Ao final da avenida na curva dos trilhos caminha o mendigo em sua fantasia de trapos afligido por seus demônios que em redemoinhos rondam seus pensamentos como a morte rindo assombra o moribundo Ele não sabe que é seu último carnaval.
  • 22. Ascânio Lopes Ascânio Lopes Quatorzevoltas nasceu em Ubá MG) em 1906, vindo com cinco meses para Cataguases. Em 1925 foi para Belo Horizonte, onde estudou Direito. Morreu em 1929, aos 22 anos, o que decretou o fim da revista Verde. Publicou apenas Poemas cronológicos (ao lado de Enrique de Resende e Rosário Fusco). Em 1967, sua obra foi organizada por Delson Gonçalves Ferreira no livro Ascânio Lopes: vida e poesia. Também foi publicada em 1998 a antologia Ascânio, o poeta da Verde, organizada por Joaquim Branco. Em 2005, Luis Ruffato organizou e publicou Ascânio Lopes, todos os caminhos possíveis onde incluiu poemas, ficção, artigos, comentários, resenhas, além de fotos do poeta. Mi enamorada Su nombre era bestial y ella también mas casi no hablaba y sólo sabía mirar. Me gustó hice versos extensos gasté tiempo en las rimas raras y en la colocación de pronombres porque ella era normalista y le gustaba la gramática y no perdonaba [ galicismos. Mas un día ella descubrió mis versos modernos y percibió que fingía y me gustaba equivocar los pronombres y que mis sonetos eran sólo para ella. Entonces me mandó a pasear y se arregló con un poeta sincero que la comparaba a Marília y que sabía de memoria la "Cena de los Cardenales" y que chamuscaba todos los ritmos nuevos y las poesías sin geometría ni compás. Y se quedaban cínicamente amándose en el portón cuando no iban al cine a delirar con las películas [ dramáticas italianas de 12 actos. Ella me mandó a pasear. Tampoco nunca más hice sonetos. Tradução para o espanhol de Alberto Acosta
  • 23. Fiama Pais Brandão Fiama Hassa Pais Brandão – Dramaturga, tradutora e poetisa, nasceu em Lisboa em 15.08.1938, e faleceu em 19.01.2007. Crítica de teatro, estagiou no Teatro Experimental do Porto (1964), e foi, com Gastão Cruz - com quem se casaria - fundadora do grupo Teatro Hoje (1974). Traduziu vários autores como Bertolt Brecht, Antonin Artaud, Novalis e Anton Chekhov e colaborou em revistas literárias, como Seara Nova, Cadernos do Meio-Dia e Vértice, entre outras. Revelou-se com "Morfismos", no âmbito da iniciativa Poesia 61, coletânea que refletia uma tendência poética atenta à palavra, à linguagem na sua opacidade, na busca de uma expressão depurada e não discursiva. A criação poética de Fiama Pais Brandão impõe-se pela busca de uma expressão original, onde as palavras tentam evocar uma essência perdida, anterior à erosão do tempo e do uso corrente. A desconstrução das articulações do discurso e a sua metaforização provocam um estranhamento que conduz o leitor a despir a linguagem da sua convencionalidade e a entrever o acesso pela palavra pura a um tempo primordial. Fiama Pais Brandão recebeu várias distinções, entre as quais se destacam o Prémio Adolfo Casais Monteiro, 1957; o Prémio Revelação de Teatro, 1961; o Prémio Pen Clube Português de Poesia, 1985; o Grande Prémio de Poesia APE/CTT, 1996; o Prémio D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus, 1996; e o Prémio Pen Clube Português de Ficção e o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários, ambos em 2005. Epístola para os meus medos Sois: os sons roucos, a espera vã, uma perdida imagem. O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem sinto-vos, vindes ao rés da terra, como ventos baixos, poisais no peitoril. Sois muito antigos e jovens, da infância em que por vós chorava encostada a um rosto. Que saudade eu tenho, ó escuridão no poço, ó rastejar de víboras nos caniços, ó vespa que, como eu, degustaste o figo úbere. Depois, mundo maior foi a presença e a ausência, a alegria e as dores de outros que não eu. E um dia, no alto da catedral de Gaudí, chorei de horror da Queda, como os caídos anjos.
  • 24. A porta branca Por detrás desta porta, uma de todas as portas que para mim se abrem e se fecham, estou eu ou o universo que eu penso. Deste meu lado, dois olhos que vigiam os fenómenos naturais, incluindo a celeste mecânica e as sociedades humanas, sedentárias e transumantes. Mas podem os olhos fazer a sua enumeração, e pode o pensado universo infindamente ir-se, que para mim o que hoje importa é aquela olhada vaga porta. Que ela seja só como a vejo, a porta branca, com duas almofadas em recorte, lançada devagar sobre o vão do jardim, onde o gato, por uma fenda aberta pela sua pata, tenta ver-me, tão alheio a versos e a universos.
  • 25. Foz do Tejo, um país O rio não dialoga senão pela alma de quem o olha e embebeu a sua alma de olhares ribeirinhos no passado ou à flor do pensamento no futuro. É um país que fala dentro da fronte, olhando as naus, navios, barcos pesqueiros e o trilho das famintas aves pintoras de riscos negros, que perseguem o odor das redes cheias, as outrossim poéticas familiares gaivotas. É uma costa inteira de imagens de gaivotas dentro dos olhos. São bocas a pensar razões da vida, gargantas já caladas pela nascença e morte, quando entre si se vêem ou juntas olham o mar dos seus próprios dias. São cabeças velhas de labutar, entre dentes cerrados, as palavras mudas de um ofício no mar, antigas de silêncio, como se no esófago guardassem há muito a sabedoria de ir enfrentar o mar, transpor o mar, estar. Tal como um rio o mar só quer falar pela dor e alegria de alma com que o chama, há séculos na orla, um povo mudo, com as palavras presas, guturais sem fôlego, dentro de si, tão firmes no palato, articuladas na língua interior. E o mar é quieto ou bravo, e a alma tensa de uma paixão secreta, escondida atrás da boca, e sempre aberta, tal como as pálpebras diante desta água.
  • 26. Só a alma sabe falar com o mar, depois de chamar a si o Rio, no imo de cada um, recordações, de todos os que cumprem na linha da costa o seu destino. O de crianças, berços nascidos à beira-mar, aleitadas por água marinha bebida por rebanhos, alimentadas por frutos regados pela bruma. Mesmo quando petroleiros, se olharmos o mar, passam sem som na glote, para nós mesmos dizemos que o tempo já findou das caravelas outrora e dentro do nosso sangue passa o tempo de agora. Também as vacinas, fenícias áfonas no poema que as canta, sabem as formas, pelo olhar, de serem mulheres com peixes à cabeça. E os pregões que eu calo, revendo-as, eram outra língua do mar, os nomes com que nos chamam para o seu modo de levar entre as casas o mar. Mas as dores não as ecoa o mar, nem mesmo as de poetas, só as pancadas das palavras no encéfalo parecem ser voz do mar. É uma nação única de memórias do mar, que não responde senão em nós. Glórias, misérias, que guardámos por detrás do olhar lírico e da língua, a silabar dentro da boca. Nunca chamámos o mar nem ele nos chama mas está-nos no palato como estigma. Dezembro de 1997
  • 27. Roupa Aquela saia roda como o topo do moinho de pás, o que em mim confirma agora que o vento me reveste. * Quando depois do nascimento me vestiram, a roupa então em mim resplandeceu. Mas estava nua, sem cambraia ou a memória simples dela nos sentidos. Nua e solene, com a roupa alheia em tomo do meu corpo. E ignorava valor, matéria e as pompas que entregam roupas e versos ao comércio. Acreditava só que o gesto amado de me cobrirem de panos ao nascer seria a minha glória * O pequeno velo de roupa é o da imaginação. Vestiram-me para me velar, como janelas afloram nas casas ou como a palha envolve medas. As escassas vestes nas montras eram também sinais da imaginação. E a linha nas mãos da costureira assim imaginada era. * Tão devagar cosia pelo traço do giz a máquina que os pés moveram balançando quanto os meus olhos devagar seguiram o traçado dos pontos e o meu espanto de ver a ordem surgir dos riscos soltos.
  • 28. O rosto atento caía sobre o pano que pouco a pouco me tomava a forma do meu corpo tocado pela luxúria de tão belos cetins, veludos inverosímeis e, como tudo o que a memória gera, fontes de dores. * O tépido calor cobre-me por fora de tules em flor. As folhas do loureiro ridentes assemelham-se ao meu vestido de verde cassa. Agradeço, pois, às bocas de parentes os nomes ditos. * Todas as roupas usadas próprias do Verão são aquele vestido único, porque me haviam dito que ao entrar pelos olhos ele me cobria de fulgor. * Com a saia de tobralco leve passei entre as nossas hortas, águas do poço, coisas da quinta tão diversas todas. E amei cada um dos vários nomes, e também as palavras especiosas que na retrosaria designam o belo fio e aquelas que me mostravam os tecidos em sequências de alucinações novas.
  • 29. Urbanização Tudo o que vivêramos um dia fundiu-se com o que estava a ser vivido. Não na memória mas no puro espaço dos cinco sentidos. Havíamos estado no mundo, raso, um campo vazio de tojo seco. Depois, alguém urbanizou o vazio, e havia casas e habitantes sobre o tojo. E eu, que estivera sempre presente, vi a dupla configuração de um campo, ou a sós em silêncio ou narrando esse meu ver.
  • 30. Emerson Teixeira Cardoso Quem tem medo do Anunciador? Quantos podem dizer que conheceram Paulo Martins? Dos treze para catorze anos eu andava pelo Colégio Cataguases com um exemplar de A carne de Júlio Ribeiro debaixo do braço, quando o Dr. Manoel das Neves me interpelou: – Este era o livro que nós os rapazes, aqui no tempo do professor Antonio Amaro, queríamos ler. A Carne, romance naturalista de Júlio Ribeiro, foi uma das leituras mais reveladoras de minha adolescência. A leitura, para mim era importante na medida em que transcendia a mesmice do cotidiano, a banalidade da existência de um adolescente no início dos anos sessentas, sem a maturidade para se absorver as grandes novidades que por aí viriam. Bossa nova, Nova cap, Cinema novo, as Novas aventuras do Tim Tim, O cruzeiro novo enfim, tudo era novo: Brand new. Os plásticos coloridos dos heróis das revistas da Editora Ebal apareciam nos para brisas dos poucos carros que circulavam pelo entorno do colégio instigando a nossa imaginação pelo que havia de mais criativo nos cartoons vindos do outro lado do oceano. Ir ao cinema para ver Brigite Bardot era a coisa mais incerta daquelas horas incertas. Burlar a vigilância do juizado de menores, representado fidedignamente pelo Seu Panza era o que chamaríamos hoje de missão impossível. “E Deus criou a mulher” era impróprio para menores de 18 anos e os menores, adivinhe quem eram? Mas o que descobri por acaso era que por aqui, sem sede própria, um grupo de rapazes com alguns (poucos) quilômetros rodados a mais que nós outros, haviam criado um cine clube cujo nome Serguei Eisenstein, naturalmente pretendia voos mais altos no que se entendia até o momento por cinema. O cine clube exibia os filmes mais cotados pela crítica nacional e internacional. A referência para a escolha dos filmes talvez fosse o Cahier de Cinema que tinha como um dos editores Françoise Truffaut, mas àquela altura quem saberia disso? Saberíamos depois que a não ser por um Orson Welles, um Fred Zimmermann, um Griffith, o cinema americano já estava descartado. Assim como o Continental (cigarros) era a preferência nacional os jovens cineastas europeus eram os preferidos dos cineclubistas: eram os tempos da nouvelle-vague e não por acaso o primeiro filme ali exibido foi Jules et Jim (Uma mulher para dois) a mulher era Jeanne Moreau, minha diva e de todos nós e os dois do título eram: Oskar Werner e Henri Serre. O cine clube por si só já deu muito o que falar, mas o melhor estava por vir... Pensaram em fundar um centro de arte para difusão das várias modalidades de arte: artes plásticas, poesia, música, literatura, teatro, o diabo. E o pior é que fundaram mesmo. O CAC (Centro de Arte de Cataguases) era uma criação dele, o cara citado no início deste texto: Paulo Martins. O grupo tinha uma postura singular, critica que não suportava ideias conservadoras. O jornal “Evolução” vinculava seus textos escatológicos para escândalo de uma cidade para a qual a chegada da televisão constituía a maior novidade. No número 4 falando em nome do grupo, Paulo dizia coisas assim: “Daqui em diante somente criticaremos posição geral dos fenômenos; paramos de tocar em assuntos específicos, já destruídos na própria insensatez da argamassa, lentidão vergonhosa da cultura popular, participante endurecida pela sentida redução dos raciocínios, crucificada, raspada, idealizadora do que nega, rasteira enquanto permanecer sendo estabelecida por média burguesia, enjaulada, enganosa, relacionada intimamente com cópia, imitações, artigos produzidos em série, para consumo dirigido, teleguiado.” Em tudo e de tudo tinha a postura de um líder, um agente ou reagente das estruturas edificadoras das artes que a seu ver pediam ações modificadoras, rápidas, extremas, profícuas.
  • 31. Uma sala do prédio onde ficava a rádio Cataguases foi palco da exposição de um tal Isaac Monteiro, artista holandês. Os visitantes deixaram o local assustados com seu estilo novo e transgressor. Pedaços de tábuas velhas, velas e latas amassadas davam o ar do que hoje conhecemos como instalação. Condescendente leitor, você que é familiarizado com as mais hodiernas formas de arte contemporânea, saberá o que é instalação. Saberá também o que é performance. O que aconteceu pouco antes da abertura da exposição do artista holandês merece ser contado aqui: Produto do desinteresse ou ignorância do público havia na sala apenas alguns poucos visitantes que aliás, deveriam entender daquela proposta de arte tanto quanto eu entendia de mandarim. Foi quando alguém (Provavelmente, Paulo Martins) sobraçando um punhado das peças ali expostas e logo seguido dos outros companheiros desceu as escadas do velho prédio e puxou o pregão até o entorno da praça Rui Barbosa, que naquele sábado estava superlotada: Isaac Monteiro! Isaac Monteiro! Chovia, ou começava a chover e a imprevista ou improvisada manifestação dos caquistas roubou a cena. As pessoas que ali estavam, voltaram-se curiosas para aquele estranho préstito e seguiram ruidosos e histéricos de volta a galeria, e lá se acotovelaram perplexos diante dos rapazes que esboçando nervosos gestos, finalmente tentavam dar explicações possíveis quanto à natureza do evento. Com Paulo Martins era assim: Não entendia a arte que não fosse com o objetivo de transformar o indivíduo e seu meio que para si dormitavam numa realidade cultural estagnada, estática, passiva. E o Centro de Arte de Cataguases buscava intensamente uma arte baseada na experimentação. Do seu convívio no Rio com gente do cinema adquiriu a experiência necessária a realização de seu filme; uma produção toda sua, que mesmo no nome trazia a medida certa seus conceitos artísticos “O Anunciador, o homem das Tormentas. ” O elenco era formado pelos demais membros do grupo: Carlos Moura, Antônio Jaime, Haroldo Teixeira, Silvério Torres, Agenor Sereno, Mário César Cardoso, Waldelar Moreira e suas namoradas. Cataguases se via novamente em tempos de cinema. Falar desse projeto cinematográfico é lembrar dos muitos grupos ou agremiações literárias ou não que aqui surgiram nos últimos, vá lá, quarenta anos. Todos muito significativos e eficazes, capazes de inspirar nas gerações mais novas o desejo de realizações criadoras, do fazer artístico. Por isso não entendo o descaso (real ou aparente) por sua obra que a meu ver é digna de ser lembrada com uma exposição iconográfica, uma homenagem da Câmara Municipal, uma medalha de honra ou mérito. Para disfarçar essa negligencia bem que se poderia aparecer por aqui, um cine clube Paulo Martins. Afinal, ele foi o protagonista do maior movimento cultural surgido aqui no tempo em que essas atividades não eram subvencionadas pelos poderes públicos.
  • 32. José Antonio Pereira 05 de março de 1978 Morávamos, eu e alguns amigos, todos mineiros de Cataguases, num apartamento do Largo do Arouche, bem em cima de O Chefão. Foi o primeiro lugar em que morei na cidade após chegar do Rio de Janeiro. Gostava dali. O ir e vir pela São João, virar a esquina do Hotel São Rafael, de vez enquanto dava de cara com algum time de futebol saindo ou chegando do hotel, subir a Vieira de Carvalho rumo a Feira Hippie na Praça da República. Mal virava uma das esquinas e entrava no Largo, sentia-me, em minha imaginação, numa pracinha qualquer da Europa. O Dinho’s Place, o Le Casserole, havia também um restaurante húngaro que não me lembro o nome. Lá em baixo descendo para a Duque de Caxias ficava o Cine Arouche. No sentido da Rua Aurora o O Gato que ri. Perdia, prazerosamente, um bom tempo observando o carinho dos floristas arrumando e aparando as hastes de suas rosas no Mercado das Flores, bem no meio do Largo. Muitas vezes atravessava a pista, aspirava alegremente o cheiro das flores e ia olhar as curvas daquela mulher deitada em sua nudez esculpida pelo Brecheret. Naquele dia havia uma incontida alegria entre nós. Ansiosos aguardávamos o jogo do São Paulo contra o Atlético. Eu e o amigo Idigar Sena, éramos dois atleticanos convictos, ele nem tanto, por que se dividia entre o Galo e o Flamengo do Rio. Tínhamos certeza que seriamos campeões. Só que virou um dia para se esquecer, que tornou-se inesquecível. Eu já me tornara um atleticano ferrenhamente apaixonado. Além do beque Luizinho, desculpem-me, aprendi com meu pai chamar zagueiro de beque lá nas barrancas do Meia Pataca no velho campo do Flamenguinho de Cataguases. Luizinho era um beque refinado, esguio e elegante no trato com a bola. Dava gosto vê-lo retirar a bola dos atacantes, numa época em que era moda terem centroavantes fortes e trombadores. Acho que algum técnico maluco andou querendo incorporar ao nosso futebol aquelas jogadas de pura força física do futebol americano. Coisa para brutamontes. Mas o Luizinho afanava a bola do infeliz e como o velho Meneghetti, que após bater a carteira da vítima, saia com uma suavidade felina driblando espetacularmente seus perseguidores. Mas, meu ídolo mesmo, era o Reinaldo, baixinho, negro como o Luizinho e futebol atrevido. Aquele time do Galo jogava por música e ele era o Milles Davis numa inebriante Jam Session. Destoava do padrão dos centroavantes que fizeram sucesso até ali. A maioria empurradores de bolas para o barbante, alguns de uma grossura de dar dó. Idigar dizia que Reinaldo era um ponta de lança. Eu pouco me importava com as definições. Era meu ídolo, por, além de ser um genial jogador, comemorar seus gols com o braço erguido e punho cerrado, num protesto silencioso como os negros americanos Tommie Smith e John Carlos fizeram na Olimpíada do México. E, cá entre nós, futebol é um dos meios mais reacionários que temos. Imagine no meio da ditadura a CBD comandada pelo João Havelange. Aquelas comemorações despertavam a ira do regime militar pois eram claramente contrárias à ditadura e estimulava em nós o desejo de combatê-la, entre meus amigos reforçavam a convicção na busca da democracia. Pela televisão tomamos conhecimento que Reinaldo não jogaria, fora julgado na véspera por conta de uma expulsão lá no início do campeonato. Idigar, já indignado com tamanha sacanagem, esbravejava e xingava afirmando que tudo era uma armação para compensar a suspensão do Chulapa, um centroavante, desses que tinha aos montes até na várzea. Eu tinha certeza que a milicada dera mais um golpe na gente. Aquilo tinha mexido comigo, me deixara triste e apreensivo. Reinaldo fizera o absurdo número de 28 gols nos 18 jogos em que atuara. Era minha certeza de gol. O Galo chegara invicto, se fosse por pontos corridos já seria campeão a muito tempo, mas graças ao “genial” regulamento tinha apenas a vantagem de fazer a decisão em casa, não podendo nem ao menos empatar para ser campeão. Era preciso vencer. Estava preocupado. Idigar afirmava que só faltava terem comprado o juiz. Nem me dei conta de quem substituiria o craque. O jogo seguiu num morrinhento zero a zero, seguido de uma prorrogação dura de ver. Até que a agonia foi para os pênaltis. Não é que depois de tanta expectativa um tal de Joaozinho Paulista bateu um pênalti, atirando a bola lá na Lagoa da Pampulha. Vacilo atleticano, onde já se viu botar um paulista bater pênalti contra o São Paulo? Perdemos o campeonato. Putos, fomos encher a cara e afogar as magoas num boteco da Rua do Mário de Andrade, a Aurora. Depois disto nunca mais dei muita bola para o futebol.
  • 33. Eltânia André Aquela menina Toda leitura é motivada por outras leituras, não apenas o cânone, mas também as letras frugais são importantes nesse processo. Minhas influências estão condensadas no que vivi e no meu olhar sobre as coisas do mundo ─ isso que impulsiona o que escrevo; a vida. Não estão apenas nos clássicos desta e de outras gerações. Quero deixar um exemplo: estou pensando em escrever um conto sobre um caminhoneiro que, ao transportar sua carga de Minas Gerais para o Ceará, encontra nas estradas o seu passado. Não poderia pensar em Mozart ou em Villa-Lobos (minha mania de mesclar a arte) ou em qualquer outro clássico, inspiro-me no Zezo, canto brega do Ceará que ouvi repetidas vezes na casa do Tio Gelicério, que mora no interior de Minas Gerais. Trouxe vários CD’s piratas do Príncipe dos Teclados na volta de uma de suas viagens. Não li Proust aos oito anos, em francês, nem a Montanha Mágica na adolescência, ou Ulysses. Lia, sim, o que a escola exigia, mas lembro-me bem do que me caía nas mãos: os estoques de bang-bang de bolso do meu irmão mais velho. Faroestes ao som de Bad Company, Bob Dylan, Santanna – os poucos LP’s que tínhamos e que passaram pelo crivo dos meus três irmãos (novamente: literatura e música). Lembro-me da banda de blues: Peso. E do Renato Blues Boy. Naquela época, minha obrigação era arrumar a casa, pegava na vassoura e o que deveria durar uns trinta minutos vazava horas. Empolgada, sentava-me atrás da porta com receio de minha mãe abri-la, mas não conseguia parar de ler. Arriscava, aflita para saber o final. Havia muita sensualidade nas páginas e foi ali que me percebi mulher. Ao longe, ouvia a voz materna: filha, não vai acabar de varrer esta casa hoje? Anda logo. Levantava correndo, escondia o livrinho e dava as últimas vassouradas. Cinema! Nada da experiência do garotinho de “Cinema Paradiso”, filme italiano de 1988, escrito e dirigido por Giuseppe Tornatore. Num verão, de férias na casa da vó Olga em Pirapetinga, conheci o cinema, mas com outro impacto. A cidade está encravada entre os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Vovó morava na banda fluminense, em frente à casa do senhor Jardim, além de amigos. Ela trabalhava em sua casa, fazendo queijos e otras cositas na cozinha. Homem de posses, fazendas, gado, comércio, era proprietário do Cine Jardim, que ficava no lado mineiro. Deixou a ordem na portaria: os netos da Dona Olga entram sem pagar e em qualquer sessão. Rosinha, prima da minha idade, levou-me para passear no coreto da igreja, a brincadeira estava chata, então resolvemos tentar o cinema – nunca tinha ido antes. Decepção: na primeira vez, luta de Kung-Fu, a tela danificada, a sala vazia com meia dúzia de cabeças, um cheiro estranho de morte e os morcegos fazendo a festa. Noutra: o mesmo filme, a tela parecia mais danificada ainda, a sala vazia com duas pessoas, um cheiro estranho de morte e os morcegos permaneciam fazendo a festa. Pouco tempo depois, em seu lugar um armarinho se instalou. Pirapetinga nunca mais teve uma sala de cinema. Em Cataguases, minha terra natal e onde viveu Humberto Mauro, assisti a outros morcegos competindo com alguns filmes brasileiros: Mazzaropi, chanchadas. Mas foi há poucos anos que vi Titanic. Hoje o Cine Edgard, palco dos festivais de músicas, está interditado pelo Corpo de Bombeiros, esquelético e sem projeção. Entretanto, aquela menina, após o faroeste e as vassouradas, na sessão da tarde, via repetidamente na televisão os musicais de Fred Astaire, Noviça Rebelde, A Pantera Cor de Rosa, Tarzan, Jerry Lewis e outros clássicos do cinema. Outra coisa, quando digo que sou de Cataguases. As pessoas perguntam: afinal de contas o que há nas águas do Rio Pomba? Berço de importantes movimentos intelectuais e artísticos e outros arroubos vanguardistas. Mas de todos os escritores da minha terra natal o que verdadeiramente me influenciou foi meu irmão; poeta precoce, lançou apenas um livrinho tosco, com vários de seus poemas impressos em folhas soltas e distribuídos num saco de papel de padaria. Ele morreu jovem, vítima de um acidente em que uma tora de madeira o calou para sempre, quebrando-lhe o pescoço. Talvez eu tenha começado a ser escritora quando dei de cara com as perdas: a morte do irmão, daquele cinema, do bang- bang, da minha infância, daquela menina... não sei. Não sei.
  • 34. Sebastião Nozza Bielli Lotti Atenção aos invisíveis Um estudante de psicologia vestiu-se de gari e transitou por muito tempo pelo campus da universidade sem ser percebido. Passou pela cantina, circulou entre as mesas, parando próximo de onde estavam os colegas mais chegados, e nada: ninguém lhe dirigiu sequer um olhar. Imaginem o material que recolheu; dá para desenvolver uma tese. Caso de atores que se fizeram passar por moradores de rua também aconteceram e o que declararam depois foi constrangedor. Parece que Bibi Ferreira deu uma de mendiga e o Procópio, seu pai, fingiu (imagino) que não a reconheceu. Mas aí já é outro caso: uma brincadeira da versátil atriz. Jamais fui indiferente a eles (sem querer dar uma de bom moço), e até briguei com uma zeladora na rodoviária do Rio, que interrompeu o meu cochilo – eu havia perdido o ônibus da meia-noite e resolvi ficar por ali, depois de vários chopes, aguardando amanhecer para pegar o primeiro – e ao abrir os olhos, incomodado com a vassoura nos meus pés, tive a impressão de que seu rosto continha certa ironia. Sei que existe uma grande diferença entre me indispor e tratá-los com naturalidade, e o respeito que merecem, mas às vezes me considero tão igual que isso pode acontecer. Lembro-me de que nos anos setenta fiquei amigo de uma empregada doméstica; mineira, negra, quarenta anos, e procurei incentivá-la a estudar à noite e procurar esclarecimentos sobre os seus direitos trabalhistas. Tempos depois, quando a revi – não se sentava mais à noite na Praça Nossa Senhora da Paz, pois já estava estudando – ela me agradeceu, dizendo que sua vida havia melhorado bastante, apesar da lei ainda não a beneficiar, como de direito. Um garoto de rua, que era uma constante explosão de felicidade, despertou-me um afeto que hoje poderia até ser julgado como pedofilia. Ele gostava de roubar bicicletas em Ipanema e depois de curtir uma onda, colocava-as no mesmo lugar. Levei-o para morar comigo no conjugado do posto seis, fazendo-o meu ajudante na frustrada empreitada de montar uma oficina de silkscreen. Meu sócio, o Paraná, cartazista, conhecido do pessoal de teatro, que tomava umas a mais e andava cheio de nóia, pois fora torturado pela ditadura, botou tudo a perder. Toni, nordestino perdido na cidade grande, faxineiro e quebra-galho em vários afazeres, também acabou se aboletando por lá, até que desfiz o apartamento, dei um “até mais ver” pra todos e fui morar em Teresópolis. Anos depois, morando novamente no Rio, após haver saído do Amarelinho numa noite animada, esperava o ônibus, quando Ivanir, o garoto das bicicletas, então um rapaz, parou o táxi e me oferecendo carona. No trajeto até Botafogo, ele me falou que os três meses vividos em minha companhia ajudaram-no a ver bem melhor as coisas. O mesmo acontecendo com Marquinhos – que tinha a sensação de ser transparente em Ipanema – antes de voltar para a casa dos pais. No calçadão de Copacabana, o garoto de onze anos me fala que fugiu de casa no subúrbio, não só pelos maus tratos do padrasto, mas pelo medo que sentiu ante a amendoeira com várias cabeças humanas dependuradas. Criei um trabalho intitulado O Pesadelo de André. Não consigo entender como morar na rua virou a coisa mais normal do mundo. Os subalternos, em seus uniformes cinzentos, vão passando como sombras, e os excluídos, incapazes de se integrar ao sistema, continuarão a incomodar, explicitando que um montão de coisas anda errado, há muito, muito tempo.
  • 35. Flauzina Márcia Filme bom Tereza Madruga é o nome da atriz de TABU, filme português de notável expressão dirigido por Miguel Gomes e coproduzido pelo Brasil (Gullane Filmes). Somos recebidos no filme, com um “documentário” sobre desbravadores de selvas africanas, em preto e branco de filmadora antiga. Aspas em documentário, porque as imagens de desbravamento não representam conquistas (todo documentário tem essa pretensão), pois a narração mostra um homem incapaz de sobreviver à dor ter perdido sua mulher. Assistindo conosco o documentário, está Pilar, nossa protagonista, cheia de pureza. O filme, porém, não se abre em altos recursos técnicos de filmagem, continua no modelo documento, porém mais nítido e em solo urbano. Pilar exibe um pequeno cartaz no aguardo de uma jovem polonesa, que ela iria hospedar. A moça chega e diz que é amiga daquela, impedida de viajar. Pilar se preocupa, mas estava tudo bem e ela oferece ajuda para a amiga da que não pode vir. Fica óbvia a dispensa de hospedagem, por parte da moça, que se diz outra, para ficar com outros jovens em outra viagem, mas Pilar não percebe. SHAME ONU é bandeira de protesto, do qual participa Pilar... Aurora, a vizinha dela, é outra história. Santa, empregada de Aurora, é outra, não narrada, mas explícita. É um milagre, o filme conta história de variadas pessoas, de modo absolutamente não convencional, desmistifica a imagem, o documento e a história. Faz isso pedindo a Deus perdão pela tolice, nas preces da querida Pilar. Se Glauber Rocha rezasse teria feito esse filme. Ao fim e ao cabo, revela-se a história de Aurora, que tinha “sangue nas mãos”. É sangue de uma só pessoa, os outros sangues estão nas mãos de ninguém... No dia em que me vir assassinando milhões de pessoas, não mais verei filmes. SHAME ON ME. Orgulho-me desse filme, capaz de pôr no olho de um crocodilo a lente maior da arte de ver e ser vista. Isso é poesia de primeira. Tabu recebeu o Prêmio da Crítica e o Prêmio Inovação do 2 62º Festival de Berlim, em 2012.
  • 36. Antônio Jaime Todo mundo pro Distrito Em abril de 1965, o CAC (Centro de Arte de Cataguases) promoveu uma semana de artes e manhas em Nova Friburgo. Vou falar apenas das artes. Na véspera, passamos pelo Rio, onde vimos Amor em 3D, três peças do chamado teatro do absurdo, que era o que tentávamos fazer, sem o profissionalismo que vimos ali. Depois, na rua, acompanhamos Carlos Drummond de Andrade e sua Dolores, até que entraram num restaurante. Dia seguinte, subimos a serra ao encontro da turma, hospedados pela Fundação Getúlio Vargas. Levamos uns curtas-metragens do Cinema Novo e L’âge d’or, de Buñuel e Dalí, filme surrealista e anticlerical, exibido justamente num colégio de padres, o mesmo, por sinal, de onde Drummond fora expulso, décadas antes, por insubordinação. E duas peças do nosso repertório, O mestre, de Ionesco, e Peça-idéia, de Paulo Martins. Esta, um exercício de improviso sobre tema nenhum, que rendeu a Paulo, Carlos Moura e Silvério Torres bons momentos de comicidade. Meu caso era o papel principal da outra, pelo qual recebi até uma cantada de uma coroa. “Sua interpretação foi divina”, ela disse, dando-me seu endereço. Poesia correu por conta de uns surrealistas paulistas, Sérgio Lima, Cláudio Willer, Roberto Piva e Argos Machado. Pintura, a cargo de uma tal Sociedade Amigos da Holanda, do Rio, da qual nunca mais tive notícias. E música, na voz de uma cantora, também do Rio, que se dividia entre Nara, Elis e Bethânia. E deve estar na dúvida até hoje, posto que também não mais a vi ou ouvi. Curtimos adoidado aquilo tudo, inclusive a família que nos ciceroneou, um tanto ou quanto avançada para os padrões da época. Ou nós que éramos mais bobos. O bicho quase pegou no final, quando distribuímos um jornaleco mimeografado à porta da fábrica Ypu. As “otoridade” entenderam como uma ação subversiva e foi todo mundo parar no Distrito Policial. Quase todos liberados no ato, menos Paulo, Moura e eu, porque assináramos matérias no jornal consideradas ofensivas à moral e aos bons costumes. Ou seja, uns palavrões. Três dias sem poder sair da cidade até que foi do Rio um agente do Dops e nos livrou a cara. A ditadura estava ainda em seu primeiro ano, fosse depois do AI5, em 68, poderia ter sido pior. “Amigos presos, amigos sumindo assim...”, o clima era esse. E acabei contando uma das manhas, no caso, da polícia. Então, vai mais uma. Na última noite, chegou lá o marido da cantora, de surpresa. Pois ela havia partido horas antes, visivelmente apaixonada por um dos músicos que a acompanhavam. Se houve ou se não houve alguma encrenca entre eles dois, ninguém pôde até hoje explicar. Mui divertido. E nada divertida a vinda do pessoal da Fundação a Cataguases, retribuindo a visita. A começar pela peça que trouxeram, uma adaptação de O pequeno príncipe, caretice total, que os militares teriam aplaudido de pé. E não era hora de se brincar de principezinhos, até porque, enquanto estiveram aqui, o pai de um dos garotos do elenco foi deportado para a Argélia. Nome do pai: Miguel Arraes. Não vi, mas me contaram que o moço tomou um porre fenomenal. E voltei lá anos depois, com uma amiga, outras gentes, outras curtições.
  • 37. José Antonio Pereira A enfermeira Belarmino já vinha cramando, como dizia Beninha, a algum tempo de um caroço bem no meio das costas. Só que o danado dera para doer, e muito, nos últimos dias. – Ô Beninha óia esse trem aqui prá mim! Tá doendo demais da conta. Benvinda faz um muxoxo, sai andando sem dar a mínima e dizendo: – Deixa de manha coronel! Só sabe ficar cramando de um carocim atoa. Vá ao posto de saúde! Coronel, era assim, que desde o namoro Benvinda chamava Belarmino, caprichando na pronuncia. – Imagina chamar meu marido de coroné! Coroné é prá fazendeiro metido a besta. O meu é Coronel, com todas as letras da patente. Sempre que pensava no porquê daquilo tudo. Achava o nome pomposo, forte e poderoso, a cidade tinha um monte de ruas chamadas de coronel, Coronel João Duarte, Coronel Vieira, Coronel Artur Cruz e tantos outros coronéis. Gostava de imaginar seu homem viril e autoritário, sentia, sem pensar no porquê, uma pitada de prazer em ser dominada por seu homem. Quando o chamava de Belarmino ou era por raiva ou para fazer restrições ou reprimendas. Casaram a muito tempo. No começo, era aquela volúpia toda. Em seis anos o coronel a embarrigara cinco vezes. Quatro filhas depois, a primeira não vingara, morreu dois dias depois de nascer, Benvinda desistiu de dar ao coronel seu sonhado filho homem. Cuidar da casa, cozinhar, lavar e passar trouxas e mais trouxas de roupas. As roupas do coronel eram pesadas e imundas, ele trabalhava de caldeireiro na fábrica de papel. Parece que o vapor fixara nele o cheiro de lenha queimada. Ela já não suportava mais aquele cheiro, principalmente a noite quando ele cismava de fazer alguma bobice. Beninha perdera o fogo, era, já a algum tempo uma brasa dormida. E o Belarmino, também já não era lá grandes coisas, na hora agá de dar-lhe prazer, já vinha negando fogo. O coronel, já aposentado, durante algum tempo achava que as refugadas de Beninha, era puro cú-doce, por um par de anos, cismou que ela só podia tá tendo um caso com algum filadaputa qualquer. Mas acabou se dando conta que ele também já não se interessava tanto por ela. Isto depois de muito pensar e culpa-la por aquela rotina chata da vida a dois. Beninha já mostrava no corpo as marcas do tempo, vivia resmungando dores nas cadeiras, ruminando maledicências pelos cantos. E na roda do buraco na praça da estação um dia numa discussão sobre impotência sexual Belarmino disparou: – O que broxa o homem é casamento prolongado.
  • 38. No plantão do pronto socorro, depois de assinar um monte de papel, é atendido de pé no corredor por um médico que depois de perguntar para ele três vezes o seu nome finalmente vai ao caso: – Qual o seu problema? Timidamente aponta para as costas. Por ordem do médico levanta a camisa ali mesmo. – Senhor, temos aqui um cravo inflamado. Vamos retirá-lo. O médico vira para a enfermeira: – Suzi, cuide disto aqui para mim. Aplique-lhe um anti-inflamatório, enquanto atendo aquela moça passando mal ali. A enfermeira, em contraste com o distanciamento do médico era só delicadezas. – Meu bem, me acompanhe por favor! Aquele tom de voz e a delicadeza da enfermeira desconcertou o coronel. Entram numa sala de curativos. – Tire a camisa! Apontando para uma daquelas camas estreitas usadas no pronto socorro. – Sente-se aqui meu bem! Aquele segundo meu bem mexeu com o coronel. Sentado na maca, começou a olhar a enfermeira com outros olhos, até a dor já aliviava. Nem se incomodou com a picada da agulha. Quando a voz macia e meiga o traz de volta à dor. – Deite-se! Ela se aproximara e colocou com suavidade a mão em seu ombro e continuou – Você se chama Belarmino. É isto? – É! Mas pode me chamar de Mino. – Então Mino, deite-se de bruços. Belarmino prontamente atendeu a ordem. Tinha horror a hospitais, mas aquela doçura toda o derretera. Sentia- se tão seguro que fechou os olhos. – Vou te preparar para o doutor tirar o cravo. O gelo do álcool nas costas incomodava, mas, o que o reconfortava e alegrava era a leveza das mãos em suas costas. Abriu os olhos com o rosto colado ao branco da maca. E viu bem junto ao seu rosto aquele ponto onde juntam-se as curvaturas das coxas e fecham-se formando o quadril. Aspirou profundamente, tentando sentir o cheiro daquela mulher. A voz meiga – Relaxa seu Mino! A enfermeira o inebriou de vez, a fantasia o levou a imaginá-la completamente nua. Pele morena, lisa e brilhante, seios pequenos e firmes. Ela se pôs a dançar naquela sala toda branca e fria, uma sensual dança afro. Uma voz masculina o traz de volta: – O senhor como se chama? Aquela pergunta outra vez, o incomodava. Era o doutor que não fazia questão nenhuma de saber nem o nome. Não responde. A enfermeira: – Seu Mino, vamos começar! – Vai incomodar um pouco. Disse o doutor. – Vou dar um pique para purgar a inflamação. Sentiu a ponta fria do aço no corpo, mas não doeu. Chumaços de algodão eram apertados contra suas costas, ouvia o barulho deles empapados sendo atirados na lixeira. Sentiu uma dor aguda quando a pinça entrou pelas costas para a retirada do cravo. E ela se repetiu algumas vezes. Aquilo era uma tortura. A voz do doutor ecoou pela sala: – Pronto senhor! O senhor não tinha um cravo. Era meia dúzia. Uma reunião de cravos bem no meio das costas. Suzy! Combine com ele. Ele terá que fazer curativos diariamente nos próximos dias para sabermos se ficou tudo bem. Passar bem senhor... Como é mesmo o nome do senhor? - Belarmino Senhor! Respondeu irritado sem se dar conta de que o médico já estava lá fora no corredor. A enfermeira: Seu Mino! O senhor pode me procurar todos os próximos dias aqui no plantão a partir das 3 horas da tarde. Ajuda-o a vestir a camisa e carinhosamente seca a testa suada com um guardanapo de papel. Na praça, jogando buraco com os amigos, Belarmino todo vaidoso contava sua história para os amigos. Quando um deles sem a menor cerimônia perguntou: – Mas afinal, e a tal enfermeira? Rendeu alguma coisa? – Nada de nada! Com a voz alterada, num tom mais acima, continuou Belarmino. – No terceiro dia, num domingo, um calorão desgraçado, lá fui eu, todo saliente, para o hospital. Até um Lancaster, pra dar um cherim bão, passei na cara. Lá chegando quem me atendeu? Um baita dum enfermeiro negro, forte, alto prá burro. Perguntei pela Suzy e ele me despejou com a cara mais ladina que já vi na minha vida: – Ela não veio hoje! Folgou. Foi para a Parada Gay com a namorada dela.
  • 39. Ronaldo Cagiano Um estreante com a segurança dos veteranos Nos contos que integram “A mangueira da nossa infância” (Ed. Ficções, SP, 2012, 112 pgs.), de Alexandre Nobre, encontramos uma narrativa que captura os instantes do quotidiano na vida de personagens que são encontradiços na vida real. Pela lente do autor, nada escapa ao seu flagrante, os pequenos acontecimentos diários, as situações corriqueiras, o banal que muitas vezes ao largo de nossas percepções, mas que sob sua ótima adquire um acento lírico pela leitura que faz do mundo e das pessoas que o cercam. É a rua, as cidades, as pessoas, os objetos, os animais & outras situações e nuances, com suas peculiaridades e seus detalhes, que transformam-se em matéria e circunstância de sua delicada construção literária. Os contos de “A mangueira da nossa infância” (re)visitam o imaginário do autor, mas as dimensões geográfica, social, histórica e humana, flertando com uma certa cartografia interior, mergulhando nos escaninhos psicológicos, a partir do que tudo adquire uma projeção que transita do plausível ao onírico. Do seu particularíssimo observatório do homem transcende a mirada crítica, a reflexão, às vezes inflexão metafísica. A prosa de Nobre é permeada por uma linguagem sutil, sem adereços, sem contorcionismos, porém essa singeleza e cristalinidade narrativas não negligenciam a densidade dos temas que suas histórias albergam. Ele tangencia a solidão do homem contemporâneo nessa sociedade que nos insulariza e apequena; os dilemas das paixões, das perdas, dos lutos; o espelho dos nossos desatinos, em que é tênue a fronteira entre lucidez e loucura, os limites entre vida e morte, entre paixão e amor; ou a falta de dialética na convivência nessa sociedade ainda atormentada pelas misérias morais e pelo preconceito. Nesse sentido, seus contos (muitos deles premiados em importantes concursos nacionais, como os prêmios “Luiz Vilela” e “Ignácio de Loyola Brandão”) refletem sobre o mundo cão, sobre as (nossas) relações, sobre o desconforto e o despertencimento do ser nesse tempo e nesse universo povoado de inquietações. E entre o real e o imaginário, no confronto e a invenção e a memória, entre a verdade exterior e a ficção, a pulsão metafórica e o impulso poético predominam em sua prosa, conferindo- lhe uma plasticidade e uma sutileza singulares, algo não muito comuns numa certa prosa utilitarista hoje em voga em nossa literatura, escrita apenas para atender aos apetites do mercado. Alexandre não simplifica seu ofício poético, pois não se preocupa apenas em contar uma história, mas em dotar o texto de tal rigor e harmonia, pois o que conta leva em conta a arte de saber contar, o lirismo amalgamando as histórias comuns. Em contos como “Babuska”, “A mangueira da nossa infância” e “Acampamento”, por exemplo, destacam- se o talento e a versatilidade do autor, cujo projeto criativo percorre desde o diálogo à reflexão, mapeando o inconsciente pessoal e coletivo, instâncias que fornecem a Alexandre o leitmotiv de uma verdadeira f(r)icção: aquela que nos dá um soco no estômago e não nos deixa indiferentes após sua leitura. Prestem atenção nesse paulistano radicado em Ribeirão Preto, que se divide entre a literatura e a música com a mesma intensidade (guitarrista e compositor): não é um estreante promissor, mas uma realidade no cenário de nossa literatura, tão redundante de obviedades. É um nome que já nasce com o tutano dos escritores estabelecidos. Como disse Paul Auster, “um escritor só pode ser bom se tiver a honestidade de ir ao fundo, ao céu, ao inferno, doa o que doer”. Alexandre atingiu esse patamar.
  • 40. Hilda Doolittle Hilda Doolittle – H.D. foi uma poetisa, romancista e memorialista estadunidense conhecida por ser membro do grupo dos poetas imagistas, ao lado de Ezra Pound e Richard Aldington. Nasceu em 10.09.1886, Bethlehem, Pensilvânia, EUA e Faleceu em 27.09.1961, Zurique, Suíça . Relatos de uma temporada no divã Sérgio Teles* Hilda Doolittle é uma poetisa, romancista e memorialista norte-americana praticamente desconhecida no Brasil. Participou do imagismo, movimento literário de grande impacto no mundo anglo-americano antes da 1.ª Guerra Mundial e depois traçou uma rota própria pelos caminhos abertos pelo modernismo. Incansável viajante, morou muitos anos na Europa, onde se envolveu com a vanguarda artística, privando com gente como Ezra Pound (que foi seu mentor e a batizou de “HD”, sigla com a qual passou a assinar seus livros), William Carlos Williams e D.H. Lawrence. Casou-se com o poeta Richard Aldington, com quem teve uma filha, e viveu vários relacionamentos héteros e homossexuais até encontrar aquela que seria a companheira de sua vida, a herdeira Annie Winifred Ellerman (“Bryher”, como gostava de ser chamada). No Hemisfério Norte, a obra de HD foi redescoberta nos anos 70 e 80 pelos movimentos gay e feminista, que nela reconheceram elementos precursores das importantes questões de gênero com as quais lidavam. HD fez dois pequenos períodos de análise com Freud, em 1933 e 1934, e registrou sua experiência em um par de textos, Advento e Escrito na Parede. Ambos estão reunidos emPor Amor a Freud - Memórias de Minha Análise com Sigmund Freud. Em nenhum deles o leitor encontra um relato minucioso no qual possa satisfazer sua curiosidade sobre o andamento de uma análise ou sobre a forma como Freud a conduzia. Advento é a anotação bruta, não lapidada, feita por HD na vigência da análise. É fragmentária, alusiva, críptica, impossível de ser entendida. É o testemunho febril de alguém que está, entre assustado e fascinado, descobrindo os labirintos do sonho, das associações, das aliterações, do conteúdo latente escondido e disfarçado, a dinâmica de seu próprio funcionamento mental inconsciente. Denota o esforço e o sofrimento envolvidos no trabalho de se resgatar dos impedimentos impostos pela neurose, bem como o renascimento da esperança de atingir a almejada meta, o “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo” - já referido pelo oráculo de Delfos na Grécia antiga. Escrito na Parede é a elaboração estética de Advento, resultando num texto poético que bem exibe os dons literários de HD na hábil recriação do discurso característico do processo analítico, o fluxo não linear das associações livres. Recheado de imagens ligadas à mitologia grega, da qual era grande conhecedora, o texto quase nada explicita sobre sua turbulenta e sofrida vida mental. Com sensibilidade, HD faz uma analogia da análise com a poesia A Canção de Mignon, de Goethe (parte da obra Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister). Ali se evoca um lugar ideal (“Conheces o país onde florescem os limoeiros? ”), que só pode ser alcançado com a ajuda de competente guia, no qual o cansado viajante, após atravessar íngremes veredas e penhascos onde mora perigoso dragão, é acolhido amorosamente (“que te fizeram, minha pobre criança?”). Em outro ponto, Hilda Doolittle diz que Freud “erguia dos corações mortos e das mentes fulminadas e dos corpos desajustados uma hoste de crianças vivas”. É uma imagem poética que sintetiza de maneira feliz o trabalho analítico. De fato, resgatar as “crianças vivas”, simultaneamente vítimas e algozes, que vivem no inconsciente de cada um é uma das tarefas de libertação e superação da psicanálise. Por Amor a Freud... traz, além dos dois textos mencionados, um adendo com a correspondência trocada entre Freud, Bryher e HD. Dele consta ainda uma introdução de Elisabeth Roudinesco, dando alguns parâmetros da teoria psicanalítica sobre a sexualidade feminina. *Sérgio Telles é Psicanalista e escritor, autor, entre outros de Fragmentos clínicos de Psicanálise.
  • 41. Mario Vargas Llosa Prólogo de Cem anos de Solidão O mágico e o maravilhoso O processo de construção da realidade fictícia, empreendida por García Márquez no relato Isabel vendo chover em Macondo e em O Enterro do Diabo, alcança com Cem anos de solidão sua plenitude: esta novela integra em uma síntese superior as ficções anteriores, construindo um mundo de uma riqueza extraordinária, esgota este mundo e se esgota com ele. Dificilmente poderia fazer com Cem anos de solidão o que este romance fez com os contos e romances precedentes: reduzi-los a condição de anúncios, de parte de uma totalidade. Cem anos de solidão é um romance total, na linha dessas criações demencialmente ambiciosas que competem com a realidade de igual para igual, enfrentando-a numa imagem de uma vitalidade, vasta e complexa qualitativamente equivalentes. Esta totalidade se manifesta antes de tudo na natureza plural do romance, que é, simultaneamente, coisas que se creem antagônicas: tradicional e moderna, local e universal, imaginária e realista. Outra expressão dessa totalidade é sua acessibilidade ilimitada, sua faculdade de estar ao alcance, com possibilidades distintas porém abundantes para cada qual, do leitor inteligente e do imbecil, do refinado que saboreia a prosa, contempla a arquitetura e decifra os símbolos de uma ficção e do impaciente que só entende a crua anedota. O gênio literário de nosso tempo só é hermético, minoritário e asfixiante. Cem anos de solidão é um dos raros casos de obra literária contemporânea maior que todos podem entender e gozar. Porém Cem anos de solidão é um romance total sobre tudo porque põe em prática o utópico designo de todo suplantador de Deus: descrever uma realidade total, enfrentar na realidade real uma imagem que é sua expressão e sua negação. Esta noção de totalidade, tão escorregadia e complexa, porém tão inseparável da vocação do romancista, não só define a grandeza de Cem anos de solidão: da também sua chave. Trata-se de uma novela total por sua matéria, na medida em que descreve um mundo cerrado, desde seu nascimento até sua morte e em todas as ordens que a compõe – o individual e o coletivo, o legendário e o histórico, o cotidiano e o mítico -, e por sua forma, o que a escrita e a estrutura têm, como a matéria contida nelas, uma natureza exclusiva, irreptível e autossuficiente... O real imaginário O real objetivo é uma das faces de Cem anos de solidão; a outra, o real imaginário, tem o mesmo afã avassalador e totalizante, e, por seu caráter chamativo e risível, é para muitos o elemento hegemônico da matéria narrativa. Convêm, antes de mais nada, precisar que esta divisão das matérias narrativas em real objetivos e em real imaginários é esquemática e que deve ser tomada com a maior cautela: na prática, esta divisão não se dá, como espero mostrar ao falar da forma. A matéria narrativa é só uma, nela se confundem essas duas dimensões que agora separamos artificialmente para mostrar a natureza total, autossuficiente, da realidade fictícia. Martinez Moreno levantou um inventário de prodígios em Cem anos de solidão, e essa enumeração exaustiva de matérias real imaginários do romance prova que sua abundancia e importância, ainda que indubitáveis, não excedem, contrariamente ao que se disse, ao das matérias real objetivos que acabamos de descrever. O caráter totalizador do imaginário na matéria de Cem anos de solidão manifesta-se não só em seu número e volume, sino, principalmente, em el hecho de que, como o histórico e o social, é de filiação diversa, pertence a
  • 42. distintos níveis e categorias: também a representação do imaginário é simultaneamente vertical (abundancia, importância) e horizontal (diferentes planos ou níveis). Os acontecimentos e personagens imaginários constituem (dão a impressão de) uma totalidade porque abarcam os quatros planos que compõem o imaginário: o mágico, o mítico-legendário, o milagroso e o fantástico. Vou definir muito brevemente qual a diferença, em minha opinião, estas quatro formas do imaginário, porque penso que ela fica clara com os exemplos. Chamo mágico ao feito imaginário provocado mediante artes secretas por um homem (mago) dotado de poderes ou conhecimentos extraordinários; milagroso ao feito imaginário vinculado a um credo religioso e supostamente decidido ou autorizado por uma divindade, o que faz supor a existência de um mais além; mítico- legendário ao feito imaginário que procede de uma realidade histórica sublimada e pervertida pela literatura, e fantástico ao feito imaginário puro, que nasce da estrita invenção e que não é produto nem de arte, nem da divindade, nem da tradição literária: o feito real imaginário que ostenta como seu traço mais comum uma soberana gratuidade. O mágico Nos primeiros tempos históricos (ou, melhor, durante a pré-história) de Macondo, quando sucedem sobretudo feitos extraordinários provocados por indivíduos com conhecimentos e poderes fora do comum: trata-se, principalmente, de ciganos ambulantes, que deslumbram aos macondinos com prodígios. O grande mago realizador de maravilhas é Melquíades, cujos poderes podem atrair “os tachos, as frigideiras, os tenazes, e os fogareiros” das casas e até “os pregos e os parafusos” (p. 9). Diz “possuir as chaves de Nostradamus” (p.14) e é um expert em conhecimentos marginais e esotéricos; trazem a alquimia a Macondo e trata, sem êxito, de persuadir a Úrsula de “as virtudes diabólicas do zinabre” (p.15). A Melquíades não ocorre coisas imaginárias: ele as provoca, graças a suas artes mágicas, a esse poder sobrenatural que lhe permite regressar da morte à vida “porque não posso suportar a solidão” (p.62). O pobre José Arcadio Buendía trata desesperadamente de dominar essas artes mágicas, de adquirir esses poderes, e não os consegue: não vai nunca mais além das realizações científicas (real objetivas), como seu descobrimento de que a terra é redonda (p.13) ou sua conversão em “concreto seco e amarelado” das moedas coloniais de Úrsula (p.40). Esses poderes mágicos os tem, por outro lado, o taciturno armênio inventor de um xarope que o torna invisível (p.26), e os mascates dessa tribo que haviam fabricado “uma esteira voadora” (p.42). Não só os ciganos gozam de poderes fora do normal, sem dúvida. Pilar Ternera os tem, ainda que em doses moderadas: o baralho a permite ver o futuro, mesmo sendo um futuro confuso que quase nunca o intérprete corretamente (p.39). Petra Cotes, ao contrário, é um agente magnifico do real imaginário, já que seu amor “tem a virtude exasperar a natureza” e provocar “a proliferação sobrenatural de seus animais” (p.220). Há que se fazer uma distinção: Melquíades, o armênio taciturno e os ciganos da esteira voadora são agentes deliberados e consciente do imaginário: sua capacidade mágica é em boa parte obra deles mesmos, resultado de artes e conhecimentos adquiridos, e é uma sabedoria que exercitam com premeditação e cálculo. Este é também o caso de Pilar Ternera, agente mínima do real imaginário. Porém Petra cotes é uma agente involuntária e quase inconsciente do imaginário: seus orgasmos propagam a fecundidade animal sem que ela o tenha proposto e nem sabe por que ocorre. Não é uma maga que domina a magia: é a magia em si mesma, objeto mágico, agente imaginário passivo. Esta é a condição de uma série de personagens de Cem anos de solidão, que têm virtudes mágicas, não conhecimentos mágicos, e que não podem governar essa faculdade sobrenatural que há neles, senão, simplesmente, padecê-la: é o caso do coronel Aureliano Buendía e sua aptidão adivinhatória, esses presságios que é incapaz de sistematizar (”Se apresentavam de pronto, em uma lufada de lucidez sobrenatural, com uma convicção absoluta e momentânea, porém inacessível. Em ocasiões eram tão naturais que não os identificava como presságios senão quando se cumpriam. Outras vezes eram categóricos e não se cumpriam. Com frequência não eram mais que golpes vulgares de superstições”) (p.150); o de Mauricio Babilonia, que passeia pela vida com uma nuvem de borboletas amarelas ao seu redor (p.327), e, só por um instante póstumo o de José Arcadio Buendía, a cuja morte se produz “uma garoa de minúsculas flores amarelas” (p.166). O caso de Amaranta, quem vê a morte, é distinto. Por outro lado, os gringos da companhia têm conhecimentos que, mais que científicos, deveríamos chamar mágicos: “Dotados de recursos que em outra época estiveram reservados à Divina Providência. Modificaram o regime das chuvas, apressaram o ciclo das colheitas, e tiraram o rio de onde sempre esteve...” (p.261). : Mario Vargas LLosa em El País 24.03.2007
  • 43. Cecília Meirelles Cecília Meirelles é reconhecida hoje como uma das mais importantes vozes líricas da literatura brasileira e das literaturas de língua portuguesa. Seu lirismo é marcado pela exploração sonora da língua e por movimentos rítmicos que conferem musicalidade aos versos e, ao mesmo tempo, ajustam-se aos movimentos da alma. O vigor das imagens, a qualidade formal dos versos, a variabilidade das formas poéticas (soneto, canção, epigrama, elegia...), aliados ao tratamento filosófico dado aos temas, explicam esse lugar especial que Cecília ocupa na história da nossa poesia. Cecília nasce no Rio de Janeiro em 7 de novembro de 1901. Órfã de pai e de mãe aos três anos de idade, é educada pela avó materna, Jacintha Garcia Benevides, natural da ilha de São Miguel, nos Açores. Essa avó exerce muita influência sobre a sua formação, cultivando no espírito da futura escritora, desde cedo, o interesse pela pátria portuguesa, sobretudo os Açores, assim como pela cultura indiana e pelo Oriente como um todo. Provavelmente é essa ascendência açoriana que imprime no imaginário da autora o tema da viagem como um apelo recorrente na sua produção literária, que surge inclusive no título de uma de suas obras. Publica o seu primeiro livro de poemas, intitulado Espectros, em 1919. Segue-se um período de intensas atividades literárias, época em que se encontra com um grupo de escritores que, entre 1919 e 1927, funda as revistas Árvore Nova, Terra de Sol e Festa. Em torno da revista Festa reúnem-se autores como Andrade Muricy, Adelino Magalhães, Tasso da Silveira e Murillo Araújo, que formam, no Rio de Janeiro, a corrente do Modernismo brasileiro que se convencionou chamar “espiritualista”. O convívio de Cecília Meireles com os intelectuais do grupo deve-se ao fato de eles apresentarem uma proposta independente das coordenadas gerais do movimento modernista de São Paulo e de introduzirem, na criação, o diálogo com o pensamento filosófico. Sem responder diretamente aos propósitos de afirmação da nacionalidade e de inovações formais e ideológicas, o grupo ligado à Festa pretende ampliar os limites do projeto modernista em prol de uma arte mais universalista. Nos anos 20, a autora publica os livros Nunca mais..., Poema dos poemas (1923) e Baladas para El-Rei (1925), obras que revelam a presença da cultura oriental na sua formação, especialmente o livro de 1925. Percebe-se, também, a repercussão do movimento simbolista sobre a produção poética desse período, revelada na exploração da sonoridade, nas imagens imprecisas e de tonalidade mística. Nesta época, escreve ainda os poemas do livro Cânticos, que só serão publicados em 1981. Preocupada com assuntos relativos ao ensino, Cecília trabalha para o Diário de Notícias do Rio de Janeiro (1930- 1933), escrevendo diariamente uma página sobre educação. Essas crônicas seguem sendo publicadas em outros periódicos cariocas. Em 1935, Cecília é convidada a lecionar Literatura Luso-brasileira e, em seguida, Técnica e Crítica Literária na Universidade do Distrito Federal (Rio de Janeiro), onde permanece até 1938. O livro Viagem recebe o prêmio de poesia Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, de 1938, sendo publicado em Portugal em 1939. Considerado o tom acentuadamente inovador do Modernismo, Viagem revela uma renovação equilibrada, situando-se entre a tradição e a modernidade. A premiação tem o efeito de consagrar oficialmente a poesia de Cecília Meireles no Brasil e no exterior. O livro representa o alcance da maturidade literária, pois sua obra assume uma feição própria e singular na poesia brasileira do século XX, justamente devido ao equilíbrio entre o clássico e o moderno, tanto do ponto de vista formal quanto temático. Na seqüência de Viagem, outras publicações no âmbito da poesia consagram definitivamente a escritora, destacando-se as seguintes obras: Vaga música (1942), Mar absoluto e outros poemas (1945), Retrato natural (1947), Amor em Leonoreta (1951), Doze noturnos da Holanda e O aeronauta (1952), Romanceiro da Inconfidência (1953), Canções (1956), Metal rosicler (1960), Poemas escritos na Índia (1962) e Solombra (1963). Em 1964, lança uma coletânea de poemas para crianças, intitulada Ou isto ou aquilo, livro que inaugura uma nova fase da poesia infantil brasileira, tornando-se um clássico da produção poética para a infância. Cecília Meireles faz muitas viagens ao exterior, entre elas, aos dois países pelos quais tinha muito interesse cultural: Portugal e Índia. O livro Poemas escritos na Índia, publicado em 1962, é resultante de sua viagem a esse país, em 1953, sobre o qual escreveu também um conjunto de crônicas. Nessas publicações, a autora revela a natureza do homem indiano, sua simplicidade e comunhão com a natureza. Em 9 de novembro de 1964, a escritora falece em sua cidade natal. Estudiosa da literatura, inclusive a destinada à criança, pesquisadora da tradição religiosa oriental, do folclore açoriano e brasileiro, da filosofia ocidental, tradutora de obras fundamentais da literatura universal, entre as quais Bodas de sangue e Yerma, de Federico García Lorca, e Orlando, de Virginia Woolf, Cecília Meireles participa ativamente da cultura e da educação brasileiras do século XX. Mas a sua produção poética ultrapassa fronteiras cronológicas, geográficas e artísticas, e sua contribuição para a educação no Brasil continua atual e instigante. Texto de Ana Maria Lisboa de Mello, extraído do livro Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles.
  • 44. Entrevista de Cecília Meireles “Tenho um vício terrível” — me confessa Cecília Meireles, com ar de quem acumulou setenta pecados capitais. “Meu vício é gostar de gente. Você acha que isso tem cura? Tenho tal amor pela criatura humana, em profundidade, que deve ser doença. ” “Em pequena (eu era uma menina secreta, quieta, olhando muito as coisas, sonhando) tive tremenda emoção quando descobri as cores em estado de pureza, sentada num tapete persa. Caminhava por dentro das cores e inventava o meu mundo. Depois, ao olhar o chão, a madeira, analisava os veios e via florestas e lendas. Do mesmo jeito que via cores e florestas, depois olhei gente. Há quem pense que meu isolamento, meu modo de estar só (quem sabe se é porque descendo de gente da Ilha de São Miguel em que até se namora de uma ilha pra outra?), é distância quando, na realidade, é a minha maneira de me deslumbrar com as pessoas, analisar seus veios, suas florestas. ” Cecília é carioca. Nasceu em novembro, dia de S. Florêncio (filha de Matilde e Carlos Alberto de Carvalho Meireles, funcionário do Banco do Brasil), em Haddock Lobo, na Rua São Luís. Seriam quatro irmãos, mas nunca chegaram a ser dois sequer, porque, mal nascia um, o outro já tinha morrido. Só ficou Cecília. Perdeu a mãe com três anos e meio, tendo sido criada pela avó, Jacinta Garcia Benevides, da Ilha de São Miguel, Açores, descendente de gente que andou do lado do Infante D. Henrique. A ela dedica Cecília: Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído… No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva, Modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos. Cecília Meireles: Minha primeira escola foi a Estácio de Sá, que depois passou a Escola Normal, onde me formei. Olhando para trás me sinto uma criança extremamente poética. Em casa de meu padrinho, Louzada, onde brincava, sempre silenciosa e observando-a, via estátuas, pinturas, coleções de pequeninos, objetos e leques em vitrinas, coisas que me levaram a fazer o “Inventário Lírico”. Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Cecília Meireles: Vovó era uma criatura extraordinária. Extremamente religiosa, rezava todos os dias. E eu perguntava: “Por quem você está rezando? ” “Por todas as pessoas que sofrem. ” Era assim. Rezava mesmo pelos desconhecidos. A dignidade, a elevação espiritual de minha avó influíram muito na minha maneira de sentir os seres e a vida. Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face? Cecília Meireles: Uma das coisas que mais me encantavam em minha vida de infância era o eco que vivia em casa de minha avó. Eu vivia procurando o meu eco. Mas tinha vergonha de perguntar. Recolhida, tímida, deslumbrada, me debruçava no mistério das palavras e do mundo.
  • 45. Queria saber, mas tinha imenso pudor de confessar minha ignorância. Nós merecemos a morte, porque somos humanos e a guerra é feita pelas nossas mãos, pelo nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra, por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens que trazemos por dentro, e ficam sem explicação. Cecília Meireles: Terminada a Escola Normal, fui lecionar o primário, ainda com um jeito de menina, num sobrado da Avenida Rio Branco. Ali, na mesma sala, havia duas turmas e duas professoras, a metade voltada para cada lado. Pois as crianças, vendo-me quase tão menina quanto elas, viraram quase todas para mim. Sempre gostei muito de ensinar. Trabalhei na Escola Deodoro, ali junto ao relógio da Glória. Fui professora de Literatura da Universidade do Distrito Federal. Criei a primeira biblioteca infantil, ali onde era o Pavilhão Mourisco. Criança que não tivesse onde ficar podia encontrar o livro que lhe faltava, coleção de selos, moedas, jogos de mesa, sonhos, histórias e as explicações de professoras prontas e atentas. Acabou, depois de quatro anos, mas frutificou em São Paulo onde hoje existe até biblioteca infantil para cegos. Também ensinei História do Teatro na Fundação Brasileira. O resto da minha atividade didática está nas conferências em que sempre procuro transmitir algo. Minhas mãos ainda estão molhadas do azul das ondas entreabertas, e a cor que escorre de meus dedos colore as areias desertas. Cecília Meireles: Você sabe que eu tenho muito medo da literatura que é só literatura e que não tenta comunicar? Ando à procura de espaço para o desenho da vida. Em números me embaraço e perco sempre a medida. Se penso encontrar saída, em vez de abrir um compasso, protejo-me num abraço e gero uma despedida. Cecília Meireles: Vivo constantemente com fome de acertar. Sempre quase digo o que quero. Para transmitir, preciso saber. Não posso arrancar tudo de mim mesma sempre. Por isso leio, estudo. Cultura, para mim, é emoção sempre nova. Posso passar anos sem pisar num cinema, mas não posso deixar de ler, deixar de ouvir minha música (prefiro a medieval), deixar de estudar, hindi ou o hebraico, compreende? Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: — mais nada. Cecília Meireles: Casei com vinte anos. Tenho três filhas: Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda. As três são bibliotecárias mas a minha biblioteca não está fechada. Maria Fernanda você conhece como atriz, não é mesmo? As três têm em comum uma bondade comovente mas são de temperamentos completamente diferentes. Tenho cinco netos. Viúva, casei em 1940 com Heitor Grilo, um homem admirável pela sua extraordinária fé no ser humano, em sua ânsia de tudo elevar. Basta dizer a você que, nesta primeira e única doença que tive e que me segurou cinco meses, ele não arredou pé, um momento de carinho, gesto e palavra prontos, apesar de suas inúmeras responsabilidades e ocupações. Conheci-o quando fui entrevistá-lo certa vez. Depois… nunca mais o entrevistei. Entendemo-nos até calados. No fio da respiração, rola a minha vida monótona, rola o peso do meu coração. Cecília Meireles: Estudei canto e violino. Abandonei. Era preciso ganhar a vida e poesia se pode criar até numa viagem de bonde. Mesmo nas reuniões em que muita gente discutia eu era capaz de me ausentar em meu mundo e construir. Aos poucos pude criar a minha Ilha de Nanja, a São Miguel transfigurada pelo sonho. Acho linda a continuidade humana através da poesia. Só viajo com a Bíblia. A Bíblia é uma biblioteca. Tem tudo: história, poesia, religião. Já disse que, se tivesse que escolher o meu livro para uma ilha deserta, levaria a Bíblia. Ou um dicionário. Minha esperança perdeu seu nome… Fechei meu sonho, para chamá-la. A tristeza transfigurou-me como o luar que entra numa sala. Cecília Meireles: Mas comigo aconteceu uma coisa deliciosa, deixe-lhe contar. Neste Natal eu estava doente em São Paulo. Pois bem. Ao voltar para esta minha casa (Cecília vive ao lado do bondinho que sobe pro Corcovado) encontrei cartões de gente de todos os cantos do mundo que se lembrou de mim. De todas as raças e religiões. Todos unidos pelo Natal. E o mais curioso é que eu olhava um cartão e outro e dizia comigo mesma: “Fulano talvez não combine com Beltrano, mas eu servi de elo entre os dois. A mim eles escreveram! ” Me fez um bem enorme aquele meu Natal atrasado! Na quermesse da miséria, fiz tudo o que não devia: se os outros se riam, ficava séria; se ficavam sérios, me ria.
  • 46. Cecília Meireles: Se eu inventei palavras? Não. Isto nunca me preocupou. No inventar há uma certa dose de vaidade. “Inventei. É meu”. O que me fascina é a palavra que descubro, uma palavra antiga abandonada e que já pertenceu a tanta gente que a viveu e sofreu! No “Romanceiro do Rio de Janeiro”, que estou preparando para o IV Centenário, procuro usar, em cada capítulo, a linguagem da época. Basta-me um pequeno gesto, feito de longe e de leve, para que venhas comigo e eu para sempre te leve… Cecília Meireles: Tenho amigos em toda parte. Mas sou feito o Drummond que é tão amigo quase sem a presença física. Esse meu jeito esquivo é porque eu acho que cada ser humano é sagrado, compreende? Eu sou uma criatura de longe. Não sei se me querem mas eu quero bem a tanta gente! Sou amiga até dos mortos. Amiga de muita gente que nem conheci. Você não imagina quanta gente eu levo ao meu lado. E fico emocionada quando penso como uma criatura só recebe tanto de tantos lados, de tantas pessoas, de tantas gerações! Como tenho a testa sombria, derrame luz na minha testa. Deixe esta ruga, que me empresta um certo ar de sabedoria. Cecília Meireles: Tenho pena de ver uma palavra que morre. Me dá logo vontade de pô-la viva de novo. “Solombra”, meu novo livro, é uma palavra que encontrei por acaso e que é o nome antigo de sombra. Era o título que eu buscava e a palavra viveu de novo. Que procuras? Tudo. Que desejas? — Nada. Viajo sozinha com o meu coração. Não ando perdida, mas desencontrada. Levo o meu rumo na minha mão. Cecília Meireles: Cada lugar aonde chego é uma surpresa e uma maneira diferente de ver os homens e coisas. Viajar para mim nunca foi turismo. Jamais tirei fotografia de país exótico. Viagem é alongamento de horizonte humano. Na Índia foi onde me senti mais dentro de meu mundo interior. As canções de Tagora, que tanta gente canta como folclore, tudo na Índia me dá uma sensação de levitar. Note que não visitei ali nem templos nem faquires. O impacto de Israel também foi muito forte. De um lado, aqueles homens construindo, com entusiasmo e vibração, um país em que brotam flores no deserto e cultura nas universidades. Por outro lado, aquela humanidade que vem à tona pelas escavações. Ver sair aqueles jarros, aqueles textos sagrados, o mundo dos profetas. Pisar onde pisou Isaías, andar onde andou Jeremias … Visitar Nazaré, os lugares santos! A Holanda me faz desconfiar de que devo ter parentes antigos flamengos. Em Amsterdã, passei quinze dias sem dormir. Me dava a impressão de que não estava num mundo de gente. Parecia que eu vivia dentro de gravuras. Quanto a Portugal, basta dizer que minha avó falava como Camões. Foi ela quem me chamou a atenção para a Índia, o Oriente: “Cata, cata, que é viagem da Índia”, dizia ela, em linguagem náutica, creio, quando tinha pressa de algo, chá-da-Índia, narrativas, passado, tudo me levava, ao mesmo tempo à Índia e a Portugal. Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada. Cecília Meireles: A babá Pedrina me contava a história do Palácio de Louça Vermelha. Eu achava que devia ser muito fresco viver num palácio assim e, em menina, já estava pronta a transformar um jarro imenso que havia em casa em palácio, quando, querendo escondê-lo de meus sonhos, de tanto procurarem lugar para ocultá-lo, o partiram em mil pedaços. Traze-me um pouco das sombras serenas que as nuvens transportam por cima do dia! Um pouco de sombra, apenas, — vê que nem te peço alegria. Cecília Meireles: Viagens, folclore e idiomas são uma espécie de constante em minha vida. Comprei livros e discos de hebraico. Estudei hindi, sânscrito. O desejo de ler Goethe no original me obrigou a estudar alemão. Não estudo idiomas para falar, mas para melhor penetrar a alma dos povos. Cecília conhece uma meia dúzia de línguas mais. Cecília Meireles: Meus amigos, é curioso, ou vivem longe ou estão distantes. Minha casa já é contramão. Gosto de estudar o que me dá conhecimento melhor das pessoas, do mundo, da unidade. Por meio dos idiomas e do folclore, vejo até que ponto somos todos filhos de Deus. A passagem do mundo mágico para o mundo lógico me encanta. Eu deixo aroma até nos meus espinhos ao longe, o vento vai falando de mim. E por perder-me é que vão me lembrando, por desfolhar-me é que não tenho fim. Cecília Meireles: Nunca esperei por momento algum na vida. Vou vivendo todos os momentos da melhor maneira que posso. Quero realizar coisas, não para ser a autora, mas para dar-me, para contribuir em benefício de alguém ou de alguma coisa. Quando adoeci e tinha que repousar uma hora depois do almoço, ficava calculando quanto poema deixava de escrever, quanta coisa linda deixava de ler e conhecer naquelas horas perdidas. Mas aprendi também a renunciar. Não tenho poema predileto. Ainda não o escrevi. A intenção é que é perfeita. Às vezes, um
  • 47. poema viaja comigo muito tempo sem ser escrito. Se não lhe dou muita importância, vai embora. Tenho muita pena dos poemas que não escrevo. E também muita dos que escrevo. E minha alma, sem luz nem tenda, passa errante, na noite má, à procura de quem me entenda e de quem me consolará… Cecília Meireles: A juventude de hoje? Acho que são meninos que não têm tempo de crescer. Saltam do apartamento fechado para a calçada de mil solicitações, sem armadura, sem objetivo, sem a necessária religiosidade. A vida passa a ser uma coisa zoológica. Muitos crescem zoologicamente. Inventam modas, mas como não têm essência de verdade, as modas não pegam. As frustrações crescem. Felizmente muitos se realizam apesar de tudo. Cada geração acredita que traz uma nova voz e uma nova mensagem. Permite que eu volte o meu rosto para um céu maior que este mundo, e aprenda a ser dócil no sonho como as estrelas no seu rumo. Cecília Meireles: A arte abstrata? Nós, pouco a pouco, vamos caminhando para o subentendido, não é? A arte abstrata é uma alusão. Você constrói dentro de si. Muita gente faz coisas com nomes concretos que geram um mundo abstrato e vice-versa. Aquilo que ontem cantava já não canta. Morreu de uma flor na boca: não do espinho na garganta. Cecília Meireles: Tenho, nos lugares mais diferentes, amigos à minha espera. Você já reparou que, entre centenas, em cada país, nós temos sempre aquela pessoa, que, sem mesmo saber, espera por nós e, quando nos encontra, é para sempre? Por isso é que eu gosto tanto de viajar, visitar terras que ainda não vi e conhecer aquele amigo desconhecido que nem sabe que eu existo, mas que é meu irmão antes de o ser. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, — não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Cecília Meireles: Educação, para mim; é botar, dentro do indivíduo, além do esqueleto de ossos que já possui, uma estrutura de sentimentos, um esqueleto emocional. O entendimento na base do amor. Em prosa Cecília dá lições de grandeza. Vejam como descreve o barquinho Elenita: “parece uma nuvenzinha a correr por um espelho”. E o “Anjo da Noite”: “À noite o mundo é bonito, como se não houvesse desacordos, aflições, ameaças. Há muitos sonhos em cada casa. O gato volta apressado, com certo ar de culpa”. “Chuva com Lembranças”: “Começaram a cair uns pingos de chuva. Tão leves e raros que nem as borboletas ainda perceberam”. Outro: “Com estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente pensa que passarinho é coisa de jardim zoológico”. Cecília Meireles: Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul onde costumava pousar um pombo branco. Nos dias límpidos o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e me sentia completamente feliz. Mas houve épocas em que a janela abria para um canal em que oscilava um barco carregado de flores. Outras em que se abria para um terreiro, sobre uma cidade de giz, para um jardim que parecia morto. Outras vezes abre a janela e encontra um jasmineiro em flor, nuvens espessas ou crianças que vão para a escola, pardais que pulam pelo muro, gatos, borboletas, marimbondos, um galo que canta, um avião que passa. E Cecília se sente completamente feliz. E conclui: “Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim”. Olho para Cecília encolhida em sua poltrona, iluminando a penumbra do canto da sala. Vejo-a tão menina olhando o solo e descobrindo na madeira floresta e lendas, deslumbrada de azul! Uma ilha cercada de pontes por todos os lados. Pontes para a ternura, pontes para a poesia, pontes para a alma de cada um. E olhando-a assim, poesia ela mesma, tão alta e tão pura, percebo porque continua a ser a garotinha à procura do eco, correndo por todos os cantos e por todos os deslumbramentos, sem poder recolher o eco da própria voz: nós somos o seu eco, cantamos o seu canto, sem que ela perceba; somos todos um pouco habitantes de sua Ilha de Nanja “onde as crianças brincam com pedrinhas, areia, formigas”. “Solombra”, a última obra de Cecília, quer dizer só sombra. Cecília, para nós. É só luz. Entrevista publicada na revista “Manchete”, edição nº 630, em 16 de maio de 1964. E posteriormente no livro “Pedro Bloch Entrevista”, Bloch Editores, em 1989.