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Chicos
Outubro 2015
e-zine de literatura e ideias
de Cataguases – MG
Capa
Editores
Emerson Teixeira Cardoso
José Antonio Pereira
Fotografia
Vicente Costa
Ilustrações
Altamir Soares
Colaboradores desta edição
Antônio Jaime Soares
Antônio Perin
Fernando Abritta
Flausina Márcia da Silva
Iacyr Anderson Freitas
Luiz Ruffato
Ronaldo Cagiano
Fale conosco em:
cataletras.chicos@gmail.com
Visite-nos em:
http://chicoscataletras.blogspot.com/
Um dedo de prosa
Esta, é a nossa edição 44.
Este é um ano, até aqui, de muita violência, muita gritaria sem rumo,
vereadores imbecis e iletrados atacando Simone de Beauvoir. Paris
aparece nas TVs como cenário de filmes daquele moço fortão austro-
americano que virou governador da Califórnia, e já no seu segundo fil-
me era o capanga do gângster Augustine em O Perigoso Adeus. O cri-
minoso vazamento da Samarco arrasa Bento Rodrigues, distrito de
Mariana, repetindo numa escala infinitamente maior - de lama - o
ocorrido aqui pertinho de nós, em Miraí. Ano para não ser esqueci-
do pelas nossas incompetências. Para nós é o Ano Asnático.
Luiz Ruffato mantém um blog chamado Lendo os Clássicos, onde es-
creve sobre os mesmos. Nos permitiu republicar aqui suas reflexões.
Publicamos o texto de estréia do blog.
Quem esteve, a convite do Rogério Torres, em Cataguases foi o poeta
Iacyr Anderson Freitas, tivemos uma bela tarde de ótima conversa e
muita poesia. Poeta a gente homenageia mostrando sua poesia.
Ronaldo Cagiano, além da resenha sobre o livro de Caco Ishak , tra-
duz o poeta argentino Osvaldo Picardo.
Fernando Abritta participou da “{+ POIESIS} – Exposição Internacio-
nal de Arte Postal” com os poemas visuais que estão nesta edição.
Emerson tirou da estante uma preciosidade de Manuel Bandeira e
apresentamos para vocês uma crônica do livro Flauta de papel.
O Antônio Jaime nos autorizou compartilhar com vocês um dos rela-
tos de viagens mais interessantes que já lemos.
Em Clips - Publicamos notas, que consideramos importantes e que
pretendemos em edições futuras retomar.
Agradecemos ao Antônio Jaime Soares a trabalhosa revisão desta edi-
ção.
Divirtam-se!
Os Chicos
18.11.1930 - 20.08.2014
N. 44
Sumário
IACYR ANDERSON FREITAS
Regresso e outros poemas 04
FERNANDO ABRITTA
Poemas Visuais 17
FLAUSINA MÁRCIA DA SILVA
Tango 21
ANTÔNIO PERIN
Fragmentos amorosos 24
OSVALDO PICARDO
Vida de poesia e outros poemas 26
MANUEL BANDEIRA
José de Abreu Albano 29
JOSÉ ANTONIO PEREIRA
O Noviço 31
EMERSON TEIXEIRA CARDOSO
Diários de navegação 33
LUIZ RUFFATO
Lendo os clássicos 34
JOSÉ ANTONIO PEREIRA
A ponte que falava latim. . 35
RONALDO CAGIANO
Geografia do caos numa prosa dilacerante 36
ANTÔNIO JAIME SOARES
Europoraí 38
CLIPS
Algumas notas 50
Chicos 44
Iacyr Anderson Freitas
Nasceu em Patrocínio do Muriaé - MG. Mora em Juiz de Fora - MG.
Mestre em Teoria Literária pela UFJF. Publicou vários livros de poe-
sia, ensaio literário e prosa, com vários prêmios no Brasil e no exteri-
or. Sua obra encontra-se publicada em várias línguas e países como
Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Itá-
lia, Portugal, Venezuela e outros. Publicou, em poesia, entre outros,
Verso e palavra (1982), Pedra-Minas (1984) Colagem de bordo & ou-
tros poemas (1986), Outurvo (1987)
R e g r e s s o
E r a p r e c i s o e s t a r a q u i
p a r a t o c a r
o q u e r e s t a a i n d a d e s t a t a r d e ,
c o m s e u s q u i n t a i s , s u a s c a s a s ,
e a m e s m a e s e m p r e i n ú t i l
r e v e l a ç ã o .
L e m b r a s s e o a n o , o m i n u t o
q u e , v i s t o a g o r a d e s t e s c a m p o s ,
i n u n d a o c h ã o d a s a l a , i n u m e r á v e l ?
S o b t a i s a r c a d a s , n e s t e s f l a n c o s
d e p e d r a e c a l , e r g u e r a m u m c a s a r i o , u m a e s t a ç ã o
q u e e x s u r g e d o c a s c a l h o
c o m o c o i s a v i v a , q u e t o c a d a f o s s e
p e l o s o l h o s , n u m a s s o m o .
E m b a r c a d o u r o s d e c a f é
( e s c o a n d o m a i s q u e o s u m o ,
m a i s q u e a v e r t i g e m , m a i s q u e o s o s s o s
r e s s e q u i d o s d e a s s o m b r o e p ó ,
a t é u m p o r t o
j á p e r d i d o d e s e u p o s t o ) e m b a r c a m a g o r a
a p á t i n a
i n t u m e s c i d a d e s t a t a r d e .
Chicos 44
Chicos 44
F o i - m e i n ú t i l e s t a r a q u i
n e s t e q u i n t a l ,
d i a n t e
d e c o i s a s m o r t a s h á m u i t o
– h á m u i t o i n t o l e r á v e i s .
I n ú t i l p a l a v r a , i n ú t i l a l e t r a
q u e a t r a v e s s a
e s t e a l q u e i r e m í n i m o d o t e m p o
p a r a f u n d a r o u t r a i n s t â n c i a , l u m e
q u e t a m b é m e s g o t a - s e d e f l o r i r
e n o u t r o e m b a r c a d o u r o
s e a r r e m e s s a .
E sobre o deserto
c o n d e n a ç ã o p r i m e i r a : c a r r e g a r
o s d e s p o j o s d e s t a t a r d e , a r r a s t á - l a
p a r a f o r a d o t e m p o ,
e n t e r r á - l a o n d e n ã o h a j a e s c a p e .
c o m o o s q u e b u s c a m n o a l f o r j e ,
e n t r e s e r p e s , o a l i m e n t o d e s e u s m o r t o s ,
t a m b é m o f e r t a r e i m e u c o r p o
à s f i g u r a ç õ e s d a c h u v a e d o t r ó p i c o ,
t a m b é m p o d e r e i u n g i r
a s c a r t i l a g e n s n u l a s d e s e u n o m e .
e s o b r e o d e s e r t o
e s o b r e o s d e s p o j o s d e t u d o
o q u e r e s t o u d a t a r d e e m s e u t r a n s p o r t e
p e r m a n e c e a m e s m a b u s c a ,
i n c e s s a n t e , d e u m a t e r r a m a i s
p r o f u n d a e g a s t a , c a d a d i a m a i s d i s t a n t e .
Chicos 44
Décimo Mirante
M e d i r e m t u d o , d o c h ã o q u e s e a l a r g a ,
o b o s q u e e o m u r o , o q u i n t a l s e m a l a r d e ,
a l e m b r a n ç a n a b o c a , e t ã o a m a r g a ,
t ã o t e r r í v e l , q u e d e l a o s o l n ã o g u a r d e
r a s t r o o u n o t í c i a . O n e g r u m e , a á r i a
d e p r i v a ç õ e s e a u s ê n c i a s q u e m e i n v a d e .
A p a i x ã o m a i o r , e m a i s o r d i n á r i a ,
q u e a r m a e m m i m t a m a n h a b r u t a l i d a d e .
M e d i r e m t u d o o v e r ã o q u e m e e n f a d a :
s e u s c e l e i r o s , s e u s m o i n h o s , s e u s b o i s .
U m a h i s t ó r i a v i v i d a e n ã o c o n t a d a .
H á d o i s c a m i n h o s , t ã o - s o m e n t e d o i s .
A g o r a u r g e a m a r a v i d a , e m a i s n a d a .
T u d o o q u e d e s c o n h e ç o v e m d e p o i s .
Chicos 44
João Cabral e os rios
S o u b e s t e q u e u m l e i t o s e c o d e r i o
d e t o d o n u n c a s e e n c o n t r a v a z i o ,
q u e h á n e s s e l e i t o a n u d e z , t u d i s s e s t e ,
q u e s e a u m e n t a q u a n d o o v e r ã o a v e s t e ,
q u e u m r i o s ó e s t á v a z i o q u a n d o
d e s i m e s m o , e s t a n q u e , e l e f o r s e c a n d o ,
q u e u m r i o s e r á s e m p r e g r a n d e e m n ó s ,
q u a n d o o s o u b e r m o s s e m n a s c e n t e o u f o z .
S ó t u c o m p r e e n d e s t e , a m i g o , q u e u m r i o ,
e m b o r a s e c o , n u n c a e s t á v a z i o .
Chicos 44
U m t o d o p o r t á t i l
A F e r n a n d o F i o r e s e
D e M i n a s h e r d a m o s o q u e n ã o s e o f e r e c e
e m t e s t a m e n t o , u n s m i n é r i o s q u e s ã o m i m o s
a o c o n t r á r i o , t o d a a l i ç ã o , m u d a d a e m p r e c e ,
d o i n t e r d i t o q u e n o s a l c a n ç a o n d e f u g i m o s .
D e M i n a s h e r d a m o s a l g o q u e n ã o e x i s t e .
U m a c a s a p r o i b i d a , u m d o m i n g o d e R a m o s
e n t r e m u r o s , o r i s c o d e u m a n o i t e e m r i s t e .
A l g o q u e n u n c a é b a g a g e m , q u a n d o v i a j a m o s .
Chicos 44
M e m o ra b l i a – Po e m a n º 1 4
v o n t a d e d e c h a m a r m i n h a i n f â n c i a
e o t r e m q u e p e r d i
n a e s t a ç ã o d e c a i a p ó
b a d a l a r o v e l h o s i n o
e c o n v o c a r a p a r e n t a l h a
a g o r a p a r e m d e e s c o n d e - e s c o n d e
o t r e m c o m g r a n d e e s t a l o
m e u a v ô f e r r o v i á r i o s u a
m u l h e r d o n a d i v a
o s t i o s t o d o s e m f e s t a
§ v o n t a d e m a i s s e m t a m a n h o e s s a
d e s e g u r a r
o q u e n ã o c e s s a
Chicos 44
E n t r e v e r o j á v i s t o
C i d a d e s n ã o s e f a z e m
c o m n e n h u m i m p r o v i s o .
O q u e p a r e c e v a g o
t e v e t r a ç o p r e c i s o .
N ã o e x i s t e s u r p r e s a ,
a c a s o o u a c i d e n t e .
S ó a j u s t a m e d i d a ,
m e l h o r s e i n c o n s c i e n t e .
S ó o f l u x o , a r o t i n a
d e e n t r e v e r o j á v i s t o
e d e l e r e t i r a r
a t é o ú l t i m o c i s t o .
A s p e s s o a s n ã o f u n d a m
a s c i d a d e s q u e a l i n h a m :
f a z e m - n a s c o m o b a r r o
q u e e l a s m e s m a s c o n t i n h a m .
Chicos 44
N o r e t ra t o
T o d a a f a m í l i a s e e s p r e m e
n o r e t r a t o
a o l a d o d o o r a t ó r i o .
A n i n h a e s t á d e v e s t i d o n o v o
e l a ç o d e f i t a n o c a b e l o .
J o s é s u r g e d a t r e v a ,
e n f i m l ú c i d o e b a r b e a d o .
F i l i n t o c o n t i n u a b ê b a d o .
L a n i n h a , e s s a n i n g u é m c o n v e n c e ,
p e r m a n e c e d e m a l c o m a v i d a ,
c o m o s e m p r e .
V ô C h i c o n ã o p e r d e a e s p e r a n ç a
d e f a z e r a s p a z e s c o m a b e n g a l a .
D e q u e b r a , s e m q u e o v e j a m o s ,
l i m p a o c o l d r e c o m a f l a n e l a .
J o ã o n ã o e s c o n d e
s u a d í v i d a c o m o f a r m a c ê u t i c o .
Z u l e i c a p a r e c e a i n d a m a i s m a g r a ,
d e c o q u e a l t o
e l u v a s m u i t o b r a n c a s .
O s n e t o s f a z e m e s f o r ç o
p a r a q u e o r e t r a t o n ã o a t r a p a l h e
a f e s t a . B i l i c o j á e s t a v a m o r t o
a n t e s q u e e n t r a s s e n a f o t o
o s e u r á d i o d e e s t i m a ç ã o .
M a n o l o n ã o q u i s s a b e r d e p o s t e r i d a d e .
A c o n t r a g o s t o , c o m p a r e c e c o m a b a n q u e t a
f e i t a e m s u a o f i c i n a
n o s t e m p o s d a g r a n d e g u e r r a .
Chicos 44
D o n a C o t a t a m b é m f u g i u p e l a p o r t a d o s f u n -
d o s ,
m a s a r r u m o u b e m a r r u m a d o
o j a r r o d e f l o r e s
e p o r i s s o e s t á n o r e t r a t o .
A n d r é d e u m ã o d e c a l n a p a r e d e
e L i c o , v e r n i z b r i l h a n t e
n a c r i s t a l e i r a .
É d e C a t i t a a m a r i n h a
q u e s e v ê à e s q u e r d a ( d e l a ,
q u e m o r r e u a f o g a d a , u n h a s f e r i n d o
d e c r u p e o c r u c i f i x o ,
s e m n u n c a t e r v i s t o
u m a r é s t i a q u a l q u e r d e m a r ) .
À e s q u e r d a , c o m m o l d u r a d o A n d r a d a ,
e s s e m e s m o
q u e a l e g o u c r i s e d e a s m a
e f u g i u c o m a c o s t u r e i r a .
S o l a n a r e p e t e o c o l a r d e p é r o l a s ,
a g o r a n o c o l o
d a f i l h a m a i s m o ç a .
H e r m e n g a r d a b o r d o u a c o r t i n a d e o r g a n d i .
T o d a a f a m í l i a e s t á n o r e t r a t o .
A t é o A r l i n d o , a q u e l e s o n s o ,
q u e c o l o u a p o r c e l a n a
q u e s e v ê a o c e n t r o .
M e s m o o s q u e n ã o q u i s e r a m o u n ã o p u d e r a m
c o m p a r e c e r
e s t ã o a l i , t o d o s , n o s t r i n q u e s , f o t o g r a f a -
d o s .
S e j a d e e s g u e l h a o u d e e s t a l o .
P o r i s s o
é d e l e i
n e s t a c a s a
r e v e r e n c i á - l o .
Chicos 44
Chicos 44
Dona Bertália
M u l h e r a s s i m n u n c a s e v i u
d e t ã o r i c a .
E r a a d o n a d o l u g a r .
M a n d a v a e d e s m a n d a v a
c o m l u v a s d e p e l i c a .
M a r c a v a a t é a h o r a d a m i s s a
e d a b o t i c a .
Q u e e r a s e m p r e a h o r a
i n c e r t a
e m q u e p e l a i g r e j a e l a a d e n t r a v a .
F r a n z i n a m a s e r e t a
c o m s e u c a s a c o d e p e l e
g a n h o d u m a e s l a v a .
O p r o b l e m a e r a o c a l o r
q u e n ã o p a u s a v a .
C a l o r d o s d i a b o s
q u e p o u c o o b e d e c i a
e m t e r r a o n d e s ó e l a m a n d a v a
e q u e a c a b a v a m a r c a n d o t a m b é m
a h o r a e m q u e
t o d a m i s s a e m p a c a v a .
H o r a d e l e v a r D o n a B e r t á l i a
p r a c a s a
j á m u i t o p á l i d a d e t r a n s p i r a r
s o b o c a s a c o e m b r a s a .
Chicos 44
Equação
Para Luiz Ruffato
a q u e s t ã o :
s e r o u n ã o
s e r
f e l i z
e m d e m a n d a
d e s s e c á l c u l o
m e f i z
c o n t a s e c o n t a s
s o m a t ó r i o s
v i s
a t é d e s i s t i r
d o i n a c e s s í v e l
x
Chicos 44
Chicos 44
Fernando Abritta
Nasceu em Cataguases - MG, nativo de Cataguarino, Cataguases - MG,
em 1950. Reside em Juiz de Fora - MG. Tem dois livros publicados
pela Lei Murilo Mendes de Juiz de fora - umÁrvore e O Caso da Menina
que Perdeu a Voz, e Uma Verde História pela Lei Ascânio Lopes de Ca-
taguases em parceria com Joaquim Branco, um e-book - Relâmpago. E
os inéditos MulaSemCabeça e A Árvore do Esquecimento.
Outras participações: Grupo 13–RJ (1971); Expoética–RJ (1973); TO-
TEM (1975 a 1977); Jornal DE FATO (1977); Jornal TABU (1977);
Expoética–Natal-RN ( 1977); Arte de Rua-Brusque–SC (1978); jornal
A REPÚBLICA-Natal–RN (1978); Expoética–80-Cataguases-MG
(1980); Cataguases-Cartazes (2014)
Chicos 44
Chicos 44
“{+ POIESIS} – Exposição Internacional de Arte Postal” é constituída de obras de 72 au-
tores de 19 países, que apresentam seus poemas visuais no sistema da Arte Postal e integra
a programação do XXIII Congresso Brasileiro de Poesia, que neste 2015 comemora seu ju-
bileu de 25 anos, consolidando-se como um dos mais significativos eventos de poesia em
território brasileiro. A curadoria da mostra conta com a supervisão de Ademir Antônio
Bacca, coordenador geral do congresso, e de Artur Gomes, coordenador de Literatura. Na
mostra, serão homenageados o poetaAlmandrade (BA), por sua trajetória nacional e inter-
nacional com a Poesia Visual e a Arte Postal, além do sarau Um Brinde à Poesia (RJ), que
tem oportunizado a apresentação da poesia visual contemporânea. Após o período exposi-
tivo a mostra terá uma versão na Internet. De acordo com o curador da mostra, o escritor e
artista visual brasileiro Tchello d’Barros, a exposição “é um projeto que visa reunir duas
vertentes instigantes da chamada poesia experimental, promovendo o encontro dos poe-
mas visuais com o sistema da Arte Postal”.
Chicos 44
“{+ POIESIS} – Exposição Internacional de Arte Postal”
INTERFACES DA POESIA VISUAL COM A
ARTE POSTAL
por Tchello d’Barros*
’’Poesia é... brincar com as palavras’’
José Paulo Paes
{+ POIESIS} apresenta o possível diálogo entre
a linguagem da Poesia Visual e o sistema da Arte
Postal, estabelecendo um espaço específico - o Car-
tão Postal - como acesso ao leitor/visualizador dos
poemas visuais. Esse hibridismo, essa interação,
são características que sempre estiveram presentes
tanto na tradição da Poesia Visual quanto nas in-
ventivas redes de trocas de Cartões Postais, supor-
te que tem abrigado criações visuais nas mais vari-
adas técnicas e conceitos. Não será exagero lem-
brar que muitos(as) autores(as) transitam nestes
dois segmentos que ora se tocam, ora se (com)
fundem.
Qual o lugar ideal da Poesia Visual na contem-
poraneidade? Podemos apontar os livros, jornais
culturais, exposições, Internet e mídias digitais,
além dos hibridismos nas Artes Visuais e outras
linguagens, mas antes de tudo talvez possamos
considerar que possa ser o lugar de qualquer
(bom) poema: onde possa causar reações estéticas,
onde possa comunicar. O poema visual é um sobre-
vivente de nossa turbulenta passagem para a pós-
modernidade, abriu seu espaço na era digital, cru-
zou a linha do novo milênio, chegou aos nossos di-
as reinventando-se sempre mais, transgressor, crí-
tico e político. E não veio apenas para ficar, mas
para ampliar seu arco temático, seja pelo viés do
humor, seja pela crítica mordaz nas abordagens
dos grandes temas da humanidade, desde tensões
geopolíticas, desníveis socioeconômicos, as rela-
ções humanas, até aspectos inusitados do cotidia-
no.
A Arte Postal – Arte Correo, Mail Art - por sua
vez amplia suas redes de trocas simbólicas para to-
dos os continentes, aumentando cada vez mais
seus adeptos, e, para além das mostras coletivas,
potencializa seus públicos de forma exponencial
nos meios virtuais. De uma forma estrutural, ou
de sistema, percebemos a Arte Postal, mais viva do
que nunca, ampliando suas relações de troca de es-
tesias e tráfico de alumbramentos em redes cada
vez mais amplas, em nossa sociedade global, num
intercâmbio de obras livres das amarras acadêmi-
cas, das demandas de mercado e do engessamento
institucional.
Atenderam ao Chamado desta {+POIESIS} 72
artistas de 19 países, apresentando propostas de
veiculação de suas criações em Poesia Visual, no
suporte da Arte Postal, ou seja, Cartões Postais
contendo poemas visuais de tema livre, com técni-
cas variadas, como desenho, pintura, colagem, in-
fogravura, fotografia, reprografia, origamis, cali-
grafia, técnicas mistas, selos autorais e carimbos
personalizados. E a diversificação se amplia nos es-
tilos das imagens bem como nas temáticas dessas
obras em que cada Cartão Postal possui elementos
de manufatura que os tornam únicos, em contra-
ponto com a cultura de massa em que nossa socie-
dade está inserida.
Provocar relações entre a Poesia Visual e a Ar-
te Postal no cenário brasileiro e internacional; esti-
mular a presença dessas linguagens e suportes nos
meios culturais; e tensionar aspectos conceituais
para uma possível reflexão ou debate, são alguns
pontos de partida desta mostra {+ POIESIS}. E,
ainda que se possa pensar também no aspecto da
difusão de ambas as categorias em território brasi-
leiro, é também uma forma de oportunizar mais
opções, seja para quem quer adentrar esse sistema
com suas criações, seja apenas para quem ama a
poesia em todas as suas vertentes.
Rio de Janeiro (RJ), Brasil - setembro 2015
*Tchello d’Barros é Escritor,
Artista Visual e Curador
Artistas:
ALEMANHA: HORST TRESS – MALTE SONNENFELD |
ARGENTINA: ADRIAN DORADO – ANA VERÓNICA SU-
ÁREZ – CLAUDIA LIGORRIA - MARIA FERNANDA DE
BROUSSAIS – CLAUDIO MANGIFESTA – MADO RESNIK
– MARCELA PERAL – MATIAS YGIELKA – OMAROMAR
– RAQUEL GOCIOL – SILVIA RAQUEL BONDER | AUS-
TRÁLIA: ANNEKE BAETEN | BÉLGICA: LUC FIERENS -
RENAAT RAMON - SVEN STAELENS | BRA-
SIL: ALEXANDRE DACOSTA – ALMANDRADE – BRU-
NA BERGER – CARMEM SALAZAR – CONSTANÇA LU-
CAS – FERNANDO ABRITTA – GIL JORGE – GLÓRIA W.
OLIVEIRA DE SOUZA – GUSTAVO JERONIMO – HUGO
PONTES – JOAQUIM BRANCO – KAILA LIPP – MARGA
MONTEIRO – TCHELLO D'BARROS – TEREZA YA-
MASHITA – YAN BRAZ | CANADÁ: KATYE O'BRIEN |
COLÔMBIA: TULIO RESTREPO | DINAMAR-
CA: MARINA SALMASO - VICTOR VIDAL | ESPA-
NHA: CORPORACIÓN SEMIÓTICA GALEGA – FERRAN
DESTEMPLE - JOSÉ L. CAMPAL – PIERRE D. LA |
EUA: ARAM SAROYAN – JOHN BENNET – REID WOOD
– STEVE DALACHINSKY | HUNGRIA: MÁRTON KOP-
PÁNY | ITÁLIA: ANGELA CAPORASO – CINZIA FARINA
– CRISTIANO CAGGIULA - FRANCESCO APRILE – GUI-
DO CAPUANO – JIMMY RIVOLTELLA – MASSIMO CON-
CU – MAYA LOPEZ MURO – ORONZO LIUZZI – ROSSA-
NA BUCCI – VIRGÍNIA MILICI | JAPÃO: ANÔNIMO –
KEICHI NAKAMURA – NICHOLA ORLICK | MÉXI-
CO: JOSÉ LUIS ALCALDE SOBERANES | POLÔ-
NIA: MIRON TEE | PORTUGAL: AVELINO ROCHA –
BRUNO MINISTRO – MARIA JOSÉ SILVA, MIZÉ - MÁ-
RIO LISBOA DUARTE – NUNO MIGUEL NEVES | SUÍ-
ÇA: BRUNO SCHLATTER – DARKO VULIC | TURQUIA:
MERAL AGAR – TURKAN ELÇI | URUGUAI: CLEMENTE
PADIN
Chicos 44
Flausina Márcia
Nasceu em Cataguases - MG, mora em Belo Horizonte– MG, onde tra-
balhou na Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou, entre ou-
tros: Vagalume (2002), Sua Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Decli-
ves (2014).
T a n g o
Cartórios não registram legados tais como, deixo minha dor, deixo meu amor, deixo minha ale-
gria. Nisso pensa Natália, ensimesmada, com um sorriso leve de rosto inteiro, incapacitado de se defun-
tar.
Em vez de alô, diz meus pêsames ao serviço de ofertas bancárias por telefone, corrigidos, educa-
damente, para o corriqueiro dessas ocasiões: não estou interessada.
Interrupções, eis a vida! Saboreia Natália seu achado filosófico.
Agora, sem saber em que ponto está da vida, ela quer tirar véus, descobrir o segredo da loucura,
de outros legados vinda.
“É como se a mente saísse de série”, diz Estaphanie Montoya, em seus nove anos de idade, no
livro Casa das Estrelas, de Javier Naranjo.
Pronto, o mundo está pronto para ela, pode ser encontrada nas falhas. Nem sempre, diria seu
irmão Haroldo.
- Muita gente estudiosa conversou com ela e desgostou dela.
Eu mesmo, com trinta e três anos de uma vida sem grandes aventuras, pois nem crucificado fo-
ra, sabia das coisas caídas em esquecimento. Sofria de invalidez, mas via a invalidez dos outros também.
Encontrei, certa vez, um poema dela e achei a pior coisa do mundo.
Natália acredita que pior coisa do mundo já é alguma coisa, pois anda meio sem mundo. Quando se diz
que os jovens têm o mundo pela frente, pode-se concluir que os velhos têm o mundo para traz.
Dentro do mundo, com o mundo dentro, quem¿ Dançarinos talvez, de todas as idades.
Sinto decepcioná-los, caros leitores, esses dois não chegam a um encontro ou desencontro com as devi-
das personificações de uma história. São um pretexto apenas para dançar com a palavra amor.
Do amor, pouco tenho
são contas de um colar
topázio único, guardado
minha caixa de belezas.
Do amor, tenho quase nada
foi tanta gente, tudo, tudo
indecifrável, incoerente
tanto, tanto, tanto carne.
Do amor, quase nada
faltou-me, sobrou gente
do meu amor.
Chicos 44
Cataguases
S ã o o s o i t i s ,
s e r á o r i o , s e r á
a p o n t e v e l h a
o o l h o m á g i c o
H u m b e r t o ¿
S ã o o s p o e t a s
s e r á a a r t e , s e r á
m i n h a f a m í l i a
a v o z a t e n t a
R o s á r i o ¿
S ã o o s s o r r i s o s
t r a n s e u n t e s
i n d e f i n i d o s
a p a i s a g e m
p a r a l e l e p í p e d o s ¿
S ã o a s p e s s o a s
s e r á a f a l a , s e r á
o q u i a b o r u i m
c a r o , s e m q u e b r a
E l a d i s s e ¿
O u v i s i m , é
p r o x i m i d a d e
d a s g e n t e s .
Sete é um azar
D e n t r o e f o r a d e l a
D o m i n g o
F u t e b o l n o r á d i o
M i s s a d a t a r d e
A n o i t e c e c o m
V ã s e g u n d a - f e i r a
P a r a o u t r o d o m i n g o
É d i a m e l a n c ó l i c o
N ã o m a t a a u l a , n e m
Tr a b a l h o , c r i s t o m e u
Q u e s e m a n a m a i s i n g l e s a .
M i n h a s e m a n a t e m q u e t e r
Va g a b u n d a g e m n a s e g u n d a
Te r ç a d e l a m e n t a r t a r e f a s
Q u a r t a d e f i c a r a t ô n i t a
Q u i n t a d e t o r c e r p r o g a l o
S e x t a d e j á g a n h o u e
S á b a d o .
Chicos 44
Chicos 44
Existência -1985 - Manabu Mabe
Antônio Perin
Baiano, nasceu em Itaobim - MG, cresceu nas franjas do Meia - Pata-
ca ouvindo sapateiros, costureiras, roceiros, tecelões contarem seus
casos e suas histórias de trabalho. Se encantava com folias de reis e
embriagados calangueiros em seus desafios pelos becos da infância.
Em casa escutava as alucinantes histórias paterna, ouvia a avó negra
cantando benditos em latim enquanto costurava, estranhava a emo-
ção materna entre novelas radiofônicas e os afazeres domésticos.
O repentista me disse:
N ã o b o r d o v e r s o s
r a b i s c o s a l m a s r e b u s c a d a s
N ã o c a n t o a l e g r i a s
a a l e g r i a s e v i v ê n c i a
C h o r o o s o l u ç o d o s e m u d e c i d o s
E c o o u o s i l ê n c i o d o s s u r d o s
S o u a l a g r i m a d o c e g o d i a n t e d a l u z
S o n h o o p e s a d e l o d o m o r i b u n d o .
Fragmento amoroso 1
N a l i n h a t o r t a d a v i d a
u m v e r s o e s c r e v i
c â n t i c o q u e n t e e t e r n o
c a l o r f e b r i l d e p a i x ã o
l e v e z a d e c o r p o n a n q u i m
e r a o a b r i r d a s a l m a s
a c a s a l a d a s n o i n v e r n o
p i e g a s , c o m o m i n h a f é
M a s a i n d a a s s i m u m v e r s o .
Chicos 44
Fragmento amoroso - 2
L i - t e u m v e r s o
d e p r o n o m e ú n i c o
l i n h a d e q u e m d e c a i
v e r m e l h o p a s s i o n a l
s a n g r a d e d o r
e x p l o d e d e a m o r .
F i z - t e u m v e r s o
d e v e r b o ú n i c o
v e l h o e s u r r a d o
b r a n c o e m o c i o n a l
e s t a n c a a d o r
e m b r i a g a o a m o r
T e a m o !
Fragmento amoroso - 3
O p e i t o a r d e , a c a b e ç a e x p l o d e
O f í g a d o i m p l o d e o c o r a ç ã o
A h c o r a ç ã o ! N ã o c i c a t r i z a n u n c a .
B a n g b o o m b a n g A t o p o é t i c o ?
S e m v i d a o a m o r é i n d o l o r .
Chicos 44
Osvaldo Picardo
Nasceu em Mar del Plata em 1955, professor de literatura na Univer-
sidade Nacional de Mar del Plata. Editor da revista La Pecera e dire-
tor da Eudem Editora, é poeta, crítico, ensaísta e tradutor. Entre suas
obras, destacam-se: Apenas en el mundo (1988), Dejar sin ventanas la
verdad (1993), Quis, quid, ubi – Poemas de Quintiliano (1997), Una
complicidad que sobrevive (2001), Pasiones de la línea (Poemas de Nico-
lás de Cusa, 2008), Mar del Plata seguido de Otros Lugares y Viajes
(2012) e 21 gramos (2014). Organizou a coletânea Primer mapa de poe-
sia argentina (2000) e traduziu em parceria com F. Scelzo e E. Moore
The love poemas, de James Laughin (2001).
Vida de poesia
N ã o é s e n ã o u m e x a g e r o
p e l o q u e m e n t i m o s e m u m a b i o g r a f i a ,
“ u m t e r r e m o t o c o n t í n u o o u u m a f e b r e e t e r n a ” .
Q u e m p o d e r i a e m t a l e s t a d o , p o r e x e m p l o ,
a m a r r a r o s c a d a r ç o s d o s s a p a t o s , l a v a r
o â n u s t a n t o c o m o o r o s t o
e c u s p i r n a m á c o n s c i ê n c i a
c o m a q u a l s e e s c r e v e a i n j u s t i ç a ?
O s p e r s o n a g e n s d a p o e s i a
n ã o e s t ã o n o s p o e m a s q u e t e m o s f e i t o .
S ã o o p o e t a d e s e s s e n t a a n o s
q u e , s e g u n d o G i a n u z z i ,
“ i n c o r p o r a a é p o c a d e s u a i n j ú r i a ”
m a s t a m b é m a s l o u q u i n h a s a n g u s t i a d a s
q u e t e a c o r d a m n a m a d r u g a d a ;
e o d e l i c a d o S u f e r n o a o q u a l C a t u l o
c r i t i c a v a c o m u m a r a r a c o m p a i x ã o .
S e m f a l a r d o s b ê b a d o s d e A l e x a n d e r B l o x
q u e “ a c r e d i t a m q u e d e u s o t r o u x e a q u i
p a r a b e i j a r o v e n t o e a n e v e … ”
N ã o b a s t a a b r i r o L i v r o d a P o e s i a
e l e r e m p ú b l i c o . A l u z n ã o é s u f i c i e n t e .
E s t á e m o u t r a p a r t e , e n o s a b a n d o n a
n a m e s a , d i a n t e d e u m a v e r d a d e i l e g í v e l . .
Tradução: Ronaldo Cagiano
Chicos 44
A mão de Deus
D i e s t r o a q u e l e n v o l v e r c o n d i e s t r a p l a n t a l a p e l o t a q u e h u y e ,
c o m p e n s a n d o c o n l o s p i e s e l o f i c i o d e l a s m a n o s …
( A s t r o n o m i c o n d e M a n i l i o A n t í o c o , c i r c a s . I d . C )
A b o l a e s c a p a c o m a p o u c a e l e g â n c i a
d e u m a c a b e ç a d e c a p i t a d a , r o m p e
c o m a s l e i s d a t r a n q u i l i d a d e e c o m o s b o n s m o d o s .
P o d e r i a s e r u m d o m i n g o , à t a r d e
c o m r u a s v a z i a s e s i l ê n c i o s d e p á s s a r o s .
P o d e r i a s e r e m q u a l q u e r p a r t e ,
e m q u a l q u e r t e m p o , e v e n t o p á t r i o
e / o u c i r c o r o m a n o . M a s s ó f o i
e m u m l u g a r e e m u m m o m e n t o . A c o i s a é
q u e o s a l t o a i n d a e s t á n o a r ,
n a e x a u s t ã o f i n a l d e u m m ú s c u l o
c o n t r a í d o p o r u m a g u e r r a e u m a d e r r o t a .
N o s e x t o m i n u t o n a s c e u ,
d e u m e m p a t e n o s e g u n d o t e m p o .
e n a o v a ç ã o s i l e n c i a d a , M a r a d o n a
s e e l e v a s o b r e o i n g l ê s .
D e p o i s f o i o u t r o d i a , a p e n a s s a i u o s o l
e s e f a l o u d a f r a u d e e a t é d e d e u s .
Tradução: Ronaldo Cagiano
Chicos 44
México, Junho de 1986
P e r d o n a m e , e s t a b a n m u y r i c a s ,
t a n d u l c e s y t a n f r i a .
W i l l i a m C . W i l l i a m
E s t e g o s t o n a b o c a
e n t r e á c i d o e a l g o d o c e d e u m a a m e i x a
n ã o f o i i g u a l a o d e h á m a i s d e t r ê s m i l a n o s ?
U m n ã o s a b e c o m o e x p l i c a r f i n a l m e n t e
o q u e r e s t a d o i n c h a d o a r r e d o n d a m e n t o
c o m q u e p r e e n c h e u s u a m ã o
n e m e s s e d u r o d e s e j o d e d u r a r
q u e r e s i s t e n a c ó p i a d e s u a c a r n e p o d r e .
U m a a m e i x a r o x a , q u a s e n e g r a
N ã o é c a p a z d e c o n t e r o u n i v e r s o .
N ã o p o d e r á f a z e r c o m q u e n a d a m u d e .
E s s e g o s t o é u m a c o n t í n u a p a u s a
e m q u e t r o p e ç a m a c u l p a e o p e r d ã o .
Tradução: Ronaldo Cagiano
Chicos 44
Haroldo de Campos, poeta da “transcriação”
Manuel Bandeira
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu em Reci-
fe, 19.04.1986 e faleceu no Rio de Janeiro, 13.10.1968. Poeta, crítico
literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro.
Tem-se que Bandeira faça parte da geração de 1922 da literatura mo-
derna brasileira, sendo seu poema Os Sapos o abre-alas da Semana de
Arte Moderna de 1922. Com escritores como João Cabral de Melo Ne-
to, Paulo Freire, Gilberto Freyre, Clarice Lispector (ucraniana que se
dizia pernambucana, por ter morado em Recife) e Joaquim Nabuco,
entre outros, representa o melhor da produção literária do Estado
de Pernambuco.
U m a n o i t e d e s t a s , c o n v e r s a v a e u c o m o
m e u a m i g o L u í s A n í b a l e n ã o m e l e m b r o m a i s
c o m o a c o n v e r s a r e c a i u e m J o s é d e A b r e u
A l b a n o . P o u c a g e n t e c o n h e c e r á ê s s e n o m e .
F o i u m h o m e m e s t r a n h o , t o c a d o d e l o u c u r a ,
q u e d e i x o u u n s p o u c o s p o e m a s d e i n s p i r a ç ã o
d o c e m e n t e m e l a n c ó l i c a e g r a n d e p e r f e i ç ã o d e
f o r m a . E r a p a r a ê l e u m p o n t o d e h o n r a s ó
e s c r e v e r e m l i n g u a g e m q u i n h e n t i s t a , p o i s a
d o s e u t e m p o l h e a p r e c i a d e u m a v u l g a r i d a d e
i n d i g n a d a p o e s i a .
L e m b r o - m e d e o t e r v i s t o
v á r i a s v e z e s n a L i v r a r i a G a r n i e r :
b a i x o , m e i o g o r d o , b a r b a n e g r a
c e r r a d a , m o n ó c u l o , o l h a r
p e n e t r a n t e , a n d a v a s e m p r e m e t i d o
n u m a s o b r e c a s a c a p r e t a e c h a p é u
d e f e l t r o m o l e . L e m b r o - m e d e o
t e r v i s t o u m a t a r d e c o n t e s t a r o
q u e l h e d i z i a J o ã o R i b e i r o : –
“ N ã o d i g a t o l i c e s , J o ã o R i b e i r o !
N ã o d i g a t o l i c e s ! ” F i q u e i
e s t u p e f a t o c o m a l i b e r d a d e
d a q u e l a s p a l a v r a s , p o r q u e J o ã o
R i b e i r o , q u e e r a m e u m e s t r e n o
P e d r o I I , m e e n t u p i a d e r e s p e i t o .
O r a , L u í s A n í b a l p r i v a r a c o m
o p o e t a e m P a r i s , o n d e J o s é
A l b a n o v i v e u l o n g o s a n o s . A
f a m í l i a m a n d a v a r e g u l a r m e n t e
u m a b o a m e s a d a a o e x p a t r i a d o .
M a s ê s t e e s b a n j a v a o d i n h e i r o e m
p o u c o s d i a s e p a s s a v a o r e s t o d o m ê s e m
q u a s e m i s é r i a . L á j á n ã o u s a v a a
s o b r e c a s a c a : a d o t o u u m a e s p é c i e d e b l u s a d e
v e l u d o c ô r d e c a s t a n h a e n ã o d i s p e n s a v a a s
l u v a s , q u e e r a m p r e t a s e d e t ã o s u r r a d a s
d e i x a v a m p a s s a r a s p o n t a s d o s d e d o s .
C o m o s e a r r a n j a v a A l b a n o p a r a v i v e r
d e p o i s d e a c a b a d a a m e s a d a ? P r o c u r a v a o s
p a t r í c i o s r e c é m - c h e g a d o s e p r o p u n h a - l h e s
( n ã o p e d i a , n ã o e r a m e n d i g o ! ) s u b s c r e v e s s e m
a p r ó x i m a e d i ç ã o d e s u a s o b r a s p o é t i c a s
c o m p l e t a s .
– Q u a n t o é ? I n d a g a v a o n o v o
s u b s c r i t o r , i m p r e s s i o n a d o p e l o a s p e c t o
i n s ó l i t o d o v i s i t a n t e .
– T r e z e n t o s f r a n c o s !
N a q u e l e t e m p o e r a u m s ô c o n a b ô c a d o
e s t ô m a g o . M a s A l b a n o a c u d i a c o m a a r n i c a : –
N ã o é n e c e s s á r i o p a g a r d e s d e l o g o t ô d a a
i m p o r t â n c i a : o s r . D á u m a p a r c e l a p o r c o n t a
e e u v o l t a r e i a p r o c u r á - l o à m e d i d a q u e a
i m p r e s s ã o d o l i v r o p r o g r i d a .
A l b a n o s a í a c o m u m a n o t a d e c i n q u e n t a
f r a n c o s e i a j a n t a r e m r e s t a u r a n t e c a r o . N o
d i a s e g u i n t e e s t a v a d e n o v o e m a p e r t o s .
– P o r q u e f a z i s s o ? P e r g u n t o u - l h e u m a
v e z G r a ç a A r a n h a . A o q u e o p o e t a
r e s p o n d e u c o m i m e n s a d i g n i d a d e :
– N u m a s o c i e d a d e b e m o r g a n i z a d a o s
p o e t a s t e r i a m d i r e i t o a o n é c t a r !
D e u m a f e i t a c h e g o u a P a r i s u m p a u l i s t a
m u i t o r i c o c h a m a d o C o n c e i ç ã o . A l b a n o
i n d a g o u d e L u í s A n í b a l : – Ê s s e s r . C o n c e i ç ã o
c o m p r e e n d e p o e s i a ?
O m e u a m i g o , q u e v i a o e s t a d o
d e p e n ú r i a d o p o e t a , e n ã o p o d i a n o
m o m e n t o s o c o r r ê - l o , n ã o t e v e
d ú v i d a e m a f i r m a r q u e s i m . O
p a u l i s t a s e h o s p e d a r a n o m e l h o r
h o t e l d e P a r i s n a q u e l e t e m p o , o
C l a r i d g e . A l b a n o d i r i g i u - s e p a r a l á
e d e c l a r o u c o m ê n f a s e a o p o r t e i r o : -
V e n h o v i s i t a r o s r . C o n c e i ç ã o . O
h o m e m o l h o u - o d e s c o n f i a d o e
t e l e f o n o u p a r a o a p a r t a m e n t o d o
h ó s p e d e . A n u n c i o u “ m r A l b a n ô ” .
S u c e d i a q u e o c o r r e s p o n d e n t e d o s r .
C o n c e i ç ã o e m P a r i s e r a u m f r a n c ê s
d e n o m e A l b a n e l . E o r i c a ç o
r e s p o n d e u c o m e f u s ã o a o p o r t e i r o
q u e f i z e s s e s u b i r i m e d i a t a m e n t e o
v i s i t a n t e . I m a g i n e m a g o r a a
s u r p r ê s a d o s r . C o n c e i ç ã o q u a n d o
l h e e n t r o u p e l o q u a r t o n ã o a l b a n e l ,
m a s A l b a n o , o n o s s o J o s é d e A b r e u A l b a n o ,
p r o p o n d o - l h e a s u b s c r i ç ã o d e s u a s o b r a s
p o é t i c a s c o m p l e t a s , p r e ç o t r e z e n t o s f r a n c o s !
M a i o r , p o r é m , f o i a s u r p r ê s a d o p r ó p r i o
p o e t a a o r e c e b e r d o b o m C o n c e i ç ã o a
i m p o r t â n c i a i n t e g r a l , c o i s a q u e n u n c a d a n t e s
l h e h a v i a a c o n t e c i d o !
D e s t a v e z o p o e t a f o i p a s s a r d o i s d i a s e m
D e a u v i l l e , a p r a i a m a i s e l e g a n t e d e F r a n ç a :
o s p o e t a s t ê m d i r e i t o a o n é t a r !
M a s e u n ã o e s t o u b a t e n d o a m á q u i n a e s t a
c r ô n i c a p a r a c o n t a r o s e x p e d i e n t e s d e J o s é
A l b a n o e m p a r i s , e x p e d i e n t e s e m q u e n ã o
h a v i a – é p r e c i s o q u e s e n o t e – n e n h u m
e s p í r i t o d e t r a p a ç a : o p o e t a e r a u m h o m e m
d i g n o e a l t i v o : a c r e d i t a v a c â n d i d a m e n t e n a
f u t u r a e d i ç ã o d e s e u s p o e m a s . E s t o u
e s c r e v e n d o s ô b r e e l e p o r q u e L u í s A n í b a l m e
r e v e l o u t e r e n t r e o s s e u s p a p é i s u m p o e m a d e
A l b a n o q u e j u l g a v a i n é d i t o . L i o s v e r s o s e
m e p a r e c e r a m d e u m a g r a n d e b e l e z a .
José de Abreu Albano
Chicos 44
A m é r i c o F a c ó ,
q u e e r a a m i g o
d o p o e t a , é q u e
p o d e r á d i z e r s e
s ã o r e a l m e n t e
i n é d i t o s .
I n t i t u l a m - s e
“ Tr i u n f o ” e s ó
p o r a í j á s e
p o d e a d v i n h a r
a f e i ç ã o e
s a b o r
p e t r a r q u i s t a
d ê l e s . D e s c r e v e
A l b a n o e m
t e r c e t o s
p r i m o r o s o s –
o s m a i s p u r o s
q u e e s c r e v e u – a v i s ã o d e u m c o r t e j o d e
V ê n u s , o n d e l h e a p a r e c e a b e m - a m a d a , a
q u e m f a l a :
A h n ã o m e d e i x e s n u n c a a n d a r s ò z i n h o
M a s d á - m e s e m p r e , e m a f l i ç ã o
t a m a n h a ,
U m p o u c o d e c o n s ô l o e d e c a r i n h o .
Ó m e u s o n h o d e a m o r , t u m e
a c o m p a n h a
P o r e s t a v i d a , à s v ê z e s t ã o e s c u r a ,
P o r e s t a v i d a , à s v ê z e s t ã o e s t r a n h a .
A q u i n ã o p o s s o d e i x a r d e p a r a r u m
p o u c o , p o r q u e j á e s t o u o u v i n d o A u g u s t o
F r e d e r i c o S c h m i d t d i z e r c o m o v i d o : –
Q u e b e l e z a ! ( R e a l m e n t e , q u e p r o f u n -
d i d a d e d e m i s t é r i o e s e n t i m e n t o n e s t e
s i m p l e s v e r s o : “ P o r e s t a v i d a , à s v ê z e s
t ã o e s t r a n h a ” ! )
A m u s a c o n s o l a o p o e t a n a m e s m a
m a r a v i l h o s a t e r z a r i m a e s ã o e s t a s a s
s u a s ú l t i m a s p a l a v r a s :
E e m b o r a a g e n t e h u m a n a t e n ã o l o u v e ,
H á s d e v i v e r c o n t e n t e , c o n h e c e n d o
Q u e P o l í m n i a t e i n s p i r a e A p o l o t e
o u v e .
E o p o e m a a c a b a :
‘ A s s i m f a l o u a f l a m a e m q u e m e a c e n d o
D e n t r o d o C o r a ç ã o i a a u m e n t a n d o
E n q u a n t o a d o c e v o z i a g e m e n d o .
E e l a q u e d e C u p i d o s e g u e o m a n d o ,
C o r t o u n o b o s q u e o s r a m o s d u r a d o u r o s
E c o ’ u m s o r r i s o m i l a g r o s o e b r a n d o
M e c o r o o u d e m i r t o s e d e l o u r o s . ”
H á q u e m d i g a f a l a n d o d o p o e t a : –
P o b r e A l b a n o !
E u n ã o d i g o . P o b r e , c o i s a n e n h u m a !
J o s é d e A b r e u A l b a n o f o i u m a l t í s s i m o
p o e t a , e s c r e v e u u m d o s m a i s b e l o s
s o n e t o s d a l í n g u a p o r t u g u ê s a e d e t ô d a s
a s l í n g u a s , v i v e u p e r f e i t a m e n t e f e l i z
d e n t r o d o s e u s o n h o , n a l o u c u r a q u e
D e u s l h e d e u e n a m i s é r i a q u e f o i a
c r i a ç ã o d e s u a p r ó p r i a m ã o p e r d u l á r i a .
E m F l a u t a d e P a p e l *
* L i v r o d e c r ô n i c a s d e 1 9 5 7 , o n d e
M a n u e l B a n d e i r a n a p á g i n a 7 a d v e r t e :
“ A s m i n h a s C r ô n i c a s d a P r o v í n c i a d o
B r a s i l , c u j a e d i ç ã o , q u e é d e 1 9 3 6 , s e
a c h a v a d e h á m u i t o e s g o t a d a , n ã o
m e r e c e r i a m r e i m p r e s s ã o : a l g u m a c o i s a
d e l a s f o i a p r o v e i t a d a e m o u t r o s
l i v r o s , c o m o , p o r e x e m p l o , o q u e s e
r e f e r i a a O u r o P r e t o e a o A l e i j a d i n h o ;
m u i t a o u t r a p e r d e u a o p o r t u n i d a d e .
D e c i d i , p o i s , r e e d i t a r a p e n a s o q u e
n e l a s m e p a r e c e u m e n o s c a d u c o ,
j u n t a n d o - l h e n u m e r o s a s c r ô n i c a s
e s c r i t a s p o s t e r i o r m e n t e , a m a i o r i a
p a r a o J o r n a l d o B r a s i l . . . . ”
Chicos 44
José Antonio Pereira
Nasceu em Cataguases - MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras
crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia-Pataca (2013).
O noviço
I b r a h i m c h e g o u n a q u e l e l u g a r e j o
m e i o a c o n t r a g o s t o ; s o n h a r a d e s e n -
v o l v e r s u a c a r r e i r a n u m a c i d a d e m e -
d i a n a , m a i s c o n t e m p o r â n e a , m a i s
a b e r t a à s s u a s i d e i a s d e j o v e m q u e
t i n h a u m a c e r t a a d m i r a ç ã o p e l a r e -
v o l u ç ã o d e c o s t u m e s e m p r e e n d i d a
p e l o s d e s u a g e r a ç ã o . A f i n a l , g o s t a -
v a d e r o c k , d o s c a b e l o s c o m p r i d o s
h i p p i e s , d a s i d e i a s d e S a r t r e e S i -
m o n e d e B e a u v o i r , à s e s c o n d i d a s l e -
r a a t r i l o g i a r o s a - c r u c i f i c a ç ã o d e
H e n r i M i l l e r , e m p r e s t a d a d e a l g u n s
a m i g o s , t i d o s p e l a s u a f a m í l i a c o m o
m á s c o m p a n h i a s . C a i r n u m a c i d a -
d e p e q u e n a e c o n s e r v a d o r a a t é o ú l -
t i m o f i o d e c a b e l o , n ã o e s t a v a e m
s e u s p l a n o s . N ã o t i n h a j e i t o , a h i e -
r a r q u i a e r a r í g i d a e q u e m f i z e r a a
o p ç ã o p e l a c a r r e i r a f o r a e l e . R e c l a -
m a r , n e m c o m o b i s p o a d i a n t a r i a .
L á s e f o i . A i n d a n a r u a a o i n d a g a r
s o b r e a l o c a l i z a ç ã o d a i g r e j a e s t r a -
n h a v a a s r e s p o s t a s , - C ê é o n o v o
a j u d a n t e d o O e s p a n h o l ? N o s s a , v o -
c ê é t ã o d i f e r e n t e d o O e s p a n h o l .
D e d u z i u l o g o e m q u e e m p r e i t a d a e s -
t a v a s e m e t e n d o . A p r e s e n t o u - s e
a o s e u n o v o l í d e r o C ô n e g o J a v i e r .
O i m p r e s s i o n o u f o r t e m e n t e o p o b r e
h o m e m . E n t r e a s m u i t a s i n f o r m a -
ç õ e s q u e j á o b t i v e r a , s o b r e o p a d r e ,
o l u g a r e j o e s e u s m o r a d o r e s , s a b i a
q u e , a p e s a r d o s o b r e n o m e e s p a n h o l ,
o c ô n e g o e r a u m g a l e g o q u e n a s c e r a
p o r t u g u ê s . Ó r f ã o a o s d o i s a n o s , m i -
g r o u c o m o s t i o s p a r a B r a s i l . A l -
g u n s , q u e r e n d o p a r e c e r m a i s í n t i -
m o s o c h a m a v a m p e l o p r i m e i r o n o -
m e , o u t r o s s e r e f e r i a m a e l e c o m o
G a l e g ã o , s e m n e m s a b e r e m p o r q u ê .
M a s a m a i o r i a s i m p l e s m e n t e o t r a t a -
v a , n a s u r d i n a , d e O e s p a n h o l . N i n -
g u é m t i n h a o t o p e t e d e d i r i g i r - s e a
e l e n e s t e s t e r m o s . F i g u r a s o t u r n a ,
a r q u e a d o p e l a i d a d e , o r e l h a s d e
a b a n o , r o s t o t r a n s f i g u r a d o p e l a s e s -
p i n h a s , c r a v o s d a a d o l e s c ê n c i a e a
c o r r o s i v a a ç ã o d o t e m p o . N o m e i o
d a c a r a g o r d a , u m n a r i z e n o r m e e
a v e r m e l h a d o , a q u e l a s o l h e i r a s n e -
g r a s v i n c a d a s p o r p á l p e b r a s c a í d a s
f o r m a v a m u m a i m a g e m d e i n q u i s i -
d o r m e d i e v a l . E x a l a v a u m c h e i r o e m
q u e p a r e c i a m m i s t u r a r - s e v e l a , i n -
c e n s o , g u a r d a - r o u p a v e l h o e u m a p i -
t a d a d e n a f t a l i n a . A q u e l a f i g u r a
t o d a n e g r a c o x e a v a p e l a s r u a s a b a -
f a d a s d a c i d a d e ; s o b r e a c a b e ç a u m
c h a p é u d e f e l t r o c o m a b a l a r g a p r e -
t o , a r r a s t a n d o u m g r a n d e g u a r d a -
c h u v a p r e t o c o m u m g r o s s o c a b o d e
p i n h o - d e - r i g a , q u e a s v e z e s u s a v a
c o m o e s c o r a d o c o r p o , u m a f r á g i l
b e n g a l a p a r a c o r p o t ã o p e s a d o .
N o p r i m e i r o c o n t a t o , a p r i m e i r a
t r o m b a d a . – R a p a z , e s t e s s ã o m o d o s
d e s e a p r e s e n t a r ? – C o m o a s s i m , s e -
n h o r ? – E s t a s r o u p a s , o r a p o i s ! –
M a s f o r a d o c o n t e x t o d e m i n h a s
o b r i g a ç õ e s , s e m p r e m e v e s t i a s s i m .
– A q u i n ã o ! T e r á s d e s e v e s t i r c o m
d i s t i n ç ã o . – S e m p r e u s e i c a m i s e t a s
e j e a n s . – E t e m m a i s , e s s a s p o r -
c a r i a s q u e u s a s n o s p é s , n e m p e n -
s a r . U s a r á s s a p a t o s p r e t o s e b e m
e n g r a x a d o s . – M a s n ã o o s t e n h o ,
m e u s e n h o r ! U s o f r a n c i s c a n a s s a n -
d á l i a s , n ã o u s o s a p a t o s . – S i m p l e s ,
c o m p r e - o s .
Chicos 44
N e s t a r u a , q u e d e s c e a q u i e m f r e n -
t e d a i g r e j a , t e m u m a s a p a t a r i a . A
S a p a t a r i a d o S e u T e l ê , p r o c u r e - o
e m m e u n o m e , e l e t e c o n s e g u i r á u m
p a r u s a d o , p o r u m b o m p r e ç o .
E l á s e f o i O e s p a n h o l a r r a s t a n d o
s u a r a b u g i c e p e l a c a s a a f o r a , l a r -
g a n d o o r e c é m - c h e g a d o s o z i n h o n a
p o r t a d a s a l a . S e m p r e c i o s a m e n t e
c o n t r o l a d o p e l o O e s p a n h o l , t i n h a
m e d o d e p e r d e r o c o n t r o l e s o b r e
s e u s f i é i s , o n o v i ç o i n i c i a s e u t r a -
b a l h o n a p a r o q u i a . R e s i d i n d o c o m
o c h e f e , n a c a s a p a r o q u i a l , n ã o s e
s e n t i a n e m u m p o u c o à v o n t a d e ,
n a q u e l a c a s a s o t u r n a . A p ó s a l g u n s
d i a s , a q u e l e a r p e s a d o e c o n s e r v a -
d o r d a c a s a c o m e ç o u a i n c o m o d á -
l o . O e s p a n h o l r a l h a v a p o r q u a l -
q u e r c o i s a . O t r a b a l h o p a s t o r a l e r a
o u t r a c h a t i c e . S e n t i a - s e c o n s t r a n -
g i d o e m s e n t a r n u m c o n f e s s i o n á r i o ,
o u v i r a q u e l e m o n t e d e p e c a d i l h o s ,
t o d o s p e q u e n o s e i n g ê n u o s d e s l i -
z e s , c o i s a s p e r f e i t a m e n t e n o r m a i s
e n a t u r a i s n o e n t r e c h o q u e s d a s r e -
l a ç õ e s h u m a n a s . M a s , o q u e i n c o -
m o d a v a m u i t o e r a m a l g u n s a t o s d e
v i o l ê n c i a . N ã o s e s e n t i a n a d a b e m ,
t e n t a v a c o n v e n c e r o p e c a d o r a b u s -
c a r a s a u t o r i d a d e s . C o n s i d e r a v a
a q u i l o m u i t o a l é m d e u m p e c a d o
c o n t r a a f é , m a s u m c r i m e c o n t r a
d i r e i t o s b á s i c o s d o s e r h u m a n o .
C o i s a i n a c e i t á v e l p a r a q u e m s e d i -
z i a c r i s t ã o .
A t é o d i a e m q u e a t e n d e u u m c i r -
c u n s p e c t o c i d a d ã o . E s t e c o n f e s s o u
u m a e s p é c i e d e f e t i c h e q u e p r o v o -
c a v a i m e n s o p r a z e r , m a s s u b m e t i a
s u a e s p o s a a d o r e a d e i x a v a b a s -
t a n t e d e p r i m i d a . – S a b e c o m o é !
E l a é m i n h a e s p o s a , t e m q u e c u m -
p r i r s u a s o b r i g a ç õ e s d e m u l h e r . –
O s e n h o r n ã o p r e c i s a d e u m a c o n -
f i s s ã o . P r e c i s a d e u m m é d i c o . I s t o
é d o e n ç a ! A r e s p o s t a p r o v o c o u a i r a
d o c i d a d ã o q u e a b r u p t a m e n t e l e -
v a n t o u d o c o n f e s s i o n á r i o e f o i à
p r o c u r a d e O e s p a n h o l . O p e q u e n o
p o t e n t a d o , f a z e n d e i r o , c o m e r c i a n t e
d o n o d o a r m a z é m , v i a c a d e r n e t a d e
f i a d o c o n t r o l a v a q u a s e t o d a a p o -
p u l a ç ã o , b a t e u à p o r t a d e J a v i e r r e -
c l a m a n d o a c i n t o s a m e n t e d o n o v i ç o ,
s e u s m o d o s e a p e t u l â n c i a d e m a n -
d á - l o p r o c u r a r u m m é d i c o . – O n d e
j á s e v i u u m m o l e q u e d e s t e s m e
d e s r e s p e i t a r d e s t a f o r m a . O s e -
n h o r , D o m A n t ô n i o , t e m q u e e n q u a -
d r a r e s t e p i r r a l h o . M e l h o r a i n d a ,
m a n d e - o e m b o r a d a q u i . A s s u n t o s
d e a l c o v a , p a d r e J a v i e r , é n o m á x i -
m o u m p e c a d o . N u n c a , m a s n u n c a
m e s m o é u m a d o e n ç a . P a d r e J a v i -
e r j á p e r c e b i a q u e o s v e n t o s d a m o -
d e r n i d a d e t r a z i d o p e l o j o v e m c h o -
c a v a m - s e c o m a q u e l a u r d i d u r a q u e
e l e t e c e r a a o l o n g o d o t e m p o . E l e
e r a c o n s e l h e i r o d o s h o m e n s p a r a
t o d o s o s a s s u n t o s ; c o n t r o l a v a t o d o s
o s m o r a d o r e s a o d e t e r , v i a c o n f i s -
s õ e s , o s s e g r e d o s d e t o d o s . E x e r c i a
e s t e p o d e r s o b r e t o d o s s e m n e n h u m
c o n s t r a n g i m e n t o . V i r o u - s e p a r a o
c o m e r c i a n t e e d i s p a r o u : – O l h a
a q u i , ô J o a q u i m ! V o c ê s a b e m u i t o
b e m q u e o q u e v o c ê f a z é p e r v e r s ã o
p u r a . E u a n d o p a s s a n d o d o s l i m i t e s
d a t o l e r â n c i a r e l i g i o s a p a r a r e m i r
t e u s p e c a d o s . V o u c o n v e r s a r c o m o
I b r a h i m , m a s v o c ê t e m q u e t o m a r
j e i t o . – N u n c a m a i s c o n f e s s o c o m
e l e ! A l i á s , e l e n e m a q u i v a i f i c a r .
D a n d o d e o m b r o s o d o n o d o a r m a -
z é m d e s p e d e - s e d o O e s p a n h o l . S e
d i r i g e p a r a a p o r t a . – P a s s a l á e m
c a s a p r a u m c a f é ? L a n ç a u m c í n i c o
o l h a r p a r a o v e l h o p a d r e , c o n h e c e -
d o r q u e é d e s u a s f r a q u e z a s e , m a -
q u i a v é l i c o , c o n t i n u a . – V á l á q u e
t e c o n t o c o m o é a m u l h e r d o f a r m a -
c ê u t i c o . S a í c o m e l a !
O d e s t i n o d e I b r a h i m j á e s t á s e l a -
d o . O e s p a n h o l s ó v a i e s p e r a r a
m e l h o r o p o r t u n i d a d e p a r a a n u n c i á -
l o .
Chicos 44
Emerson Teixeira Cardoso
Nasceu em Cataguases - MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de
A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de
Thomas Herdy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Esti-
lete (1967), mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e
Trem Azul (1997).
Diários de Navegação
D i z - n o s u m c r í t i c o n a d a
i n g ê n u o d e n o s s a n a c i o n a l i d a d e q u e
n e n h u m d e n o s s o s a u t o r e s p o d e s e r
a p r e c i a d o s e m r e s e r v a s , e q u e n e -
n h u m d e l e s p o d e s e c o m p a r a r a u m
F l a u b e r t o u D i c k e n s . N ã o h á a í n e -
n h u m e x a g e r o s e p e n s a r m o s q u e n e -
n h u m d e n o s s o s p e r í o d o s l i t e r á r i o s
s e c o m p a r a m a o R e n a s c i m e n t o n a
I t á l i a o u a o R o m a n t i s m o n a F r a n ç a .
A l g u é m p o d e r i a c o n t e s t a r i s t o ?
M a s , n o a l h e a m e n t o à g l ó r i a , n o
d e s p r e n d i m e n t o , e s s e m e s m o c r í t i c o
n o s m o s t r a q u e n o p r i m i t i m i s m o d e
n o s s a s l e t r a s e s s e s n o s s o s e s c r i t o -
r e s b u r o c r a t a s t i v e r a m l a m p e j o s d e
g r a n d e s p o e t a s . I s s o , m e i o s é c u l o
a n t e s d e n o s s o c é l e b r e j e s u í t a e s c r e -
v e r n a a r e i a o s v e r s o s à v i r g e m :
“ c o r d e i r i n h a m a n s a ” [ . . . ]
O u t r o s p o d e r i a m a f i r m a r q u e e s -
s e s a u t o r e s , é c l a r o q u e m e r e f i r o
a o s v i a j a n t e s e m s e u s f a m o s o s d i á -
r i o s d e n a v e g a ç ã o , s e n d o o m a i s n o -
t á v e l d e l e s P e r o V a z d e C a m i n h a ,
n ã o e r a m b r a s i l e i r o s , m a s é i n e g á v e l
q u e t a i s o b r a s n a s c e r a m e m n o s s a s
á g u a s e v e r s a v a m s o b r e n o s s a s c o i -
s a s e n o s s a g e n t e .
C o m p o r m e n o r e s t o p o g r á f i c o s e
n o t a s d e h u m o r p r e c e d e u a e s t e , o u -
t r o i n c i p i e n t e h i s t o r i a d o r P e r o L o -
p e s d e S o u s a . S e u s u c e s s o r r e s p o n d e
p o r t e r s i d o t a m b é m a l é m d e p o e t a o
m a i s a n t i g o p r e c u r s o r d e n o s s o t e a -
t r o c o m s e u s a u t o s m o r a l i z a d o r e s .
M a n o e l d e N ó b r e g a f o i o u t r o j e -
s u í t a q u e r e l a t o u d a d o s b a s t a n t e p i -
t o r e s c o s s o b r e “ o g e n t i o d o s e r t ã o ” ,
“ o s d e g r e d a d o s ” , “ a s p r e g a ç õ e s ” e
b a t i s m o s . G a r a t u j a d o s à s p r e s s a s ,
s e m p r e m e d i t a ç ã o d e e s t i l o e r a m h o -
m e n s d e l e t r a s q u e d e s c o n h e c i a m a s
d e f o r m a ç õ e s p r o f i s s i o n a i s d a
“ g r a n d e l e t t r e r i e ” .
E n a d a m a i s c a t i v a n t e q u e e s s a
i n g e n u i d a d e , e s s a s i m p l i c i d a d e p a r a
q u e m a l i t e r a t u r a n ã o c o n s t i t u í a u m
m e i o e n ã o u m f i m .
N o q u e s i t o e p i s t o l a r , a s r i c a s
c a r t a s d e d o c u m e n t o s f o l c l ó r i c o s
e m b o r a d e s t i t u í d a s d e p a t e n t e s t i -
n h a m o s o l h o s b e m a b e r t o s p a r a q u e
h a v i a a o r e d o r d e s i .
F i n a l m e n t e G a n d a v o , q u e f o i
a m i g o d e C a m õ e s , c o m q u a l i d a d e s d e
n a t u r a l i s t a e g r a d a ç õ e s d e r e c e n s e a -
d o r , l o u v o u o n o s s o c l i m a , n o s s a
f a u n a d e s p e r t a n d o e m o ç õ e s p a n t e í s -
t a s .
A í n o s f i n a i s d o p r i m e i r o q u a r t e l
d o s é c u l o X V I I o u v i u - s e a p r i m e i r a
v o z a u t e n t i c a m e n t e n o s s a . V o z b r a -
s i l e i r a e b e m r e p r e s e n t a t i v a d o s f i -
l h o s d e s t a t e r r a : F r e i V i c e n t e d e
S a l v a d o r .
S u a m í m i c a é v i v a z c o m o a d e u m
“ c a n t a s t o r i e ” n a p o l i t a n o : d i z o c é l e -
b r e c r í t i c o e h i s t o r i a d o r .
A n t e s d e p ô r o p o n t o f i n a l n e s t a s
m a l a l i n h a v a d a s l i n h a s d e v o d i z e r
q u e e s t e s c o n c e i t o s a p r e s e n t a d o s
a q u i e m C h i c o s p o r e s t e m o d e s t o e s -
c r i b a e s t ã o e m E v o l u ç ã o d a P r o s a
B r a s i l e i r a , e d i t a d a l á n o s a n o s t r i n -
t a . S e u a u t o r é o e x c e l e n t e , A g r i p i -
n o G r i e c o .
N o t a d a R e d a ç ã o
A g r i p i n o G r i e c o
n a s c e u e m P a r a í b a d o
S u l - R J e m o r r e u n o
R i o d e J a n e i r o - R J
1 9 7 3 . C r í t i c o l i t e r á r i o ,
p o e t a , c o n t i s t a , t r a d u -
t o r , j o r n a l i s t a . F i l h o
d o s i t a l i a n o s P a s c o a l
G r i e c o e R o s a C o v e l l o
G r i e c o , p r o v e n i e n t e s d e
B a s i l i c a t a . E m 1 9 0 6 ,
m u d a - s e p a r a o R i o d e
J a n e i r o e c o m e ç a a c a r -
r e i r a d e f u n c i o n á r i o p ú -
b l i c o n a C e n t r a l d o B r a -
s i l . E s t r é i a n a l i t e r a t u -
r a c o m u m a o b r a d e p o -
e s i a , Â n f o r a s , e m 1 9 1 0 ,
e t r ê s a n o s d e p o i s c o m
u m c o n j u n t o d e c o n t o s
i n t i t u l a d o E s t á t u a s M u t i l a d a s . D e 1 9 1 3 a t é 1 9 2 0 d e d i c a -
s e i n t e i r a m e n t e à l e i t u r a d e a u t o r e s c l á s s i c o s e r o m â n t i -
c o s s e m n a d a p u b l i c a r . A p a r t i r d e e n t ã o e s c r e v e c o l u -
n a s l i t e r á r i a s e m p e q u e n o s j o r n a i s e r e v i s t a s a t é s e r
c o n v i d a d o p e l o c r í t i c o T r i s t ã o d e A t a í d e a s u b s t i t u í - l o
e m O J o r n a l , e m q u e e s t r é i a c o m a r t i g o s o b r e o p o e -
t a G r e g ó r i o d e M a t o s . E e s s e s s e u s p r i m e i r o s a r t i g o s
s ã o r e u n i d o s e m F e t i c h e s e F a n t o c h e s , d e 1 9 2 1 ,
e C a ç a d o r d e S í m b o l o s , d e 1 9 2 3 . E m s u a s c o l u n a s t o r n a -
s e t a m b é m g r a n d e d e f e n s o r d a o b r a d o p o e t a C a s t r o A l -
v e s . S u a i m p o r t â n c i a n o m e i o l i t e r á r i o , d o i n í c i o d a d é -
c a d a d e 1 9 2 0 à d é c a d a d e 1 9 5 0 , e s t á d i r e t a m e n t e l i g a d a
a o f a t o d e p e r m a n e c e r t o d o e s s e t e m p o e s c r e v e n d o d i a r i -
a m e n t e e m i m p o r t a n t e s j o r n a i s , c o m s u a s c o l u n a s c a r a c -
t e r i z a d a s p e l o e c l e t i s m o e p e l o t o m p o l ê m i c o e s a t í r i c o ,
t r a t a n d o d e e s c r i t o r e s b r a s i l e i r o s , e s t r a n g e i r o s e l a n ç a -
m e n t o s . E m c o m e m o r a ç ã o a o c e n t e n á r i o d e s e u n a s c i -
m e n t o , e m 1 9 8 8 , é l a n ç a d o o v o l u m e G r a l h a s e P a v õ e s ,
c o m o r g a n i z a ç ã o d o f i l h o D o n a t e l l o G r i e c o , q u e t r a z
a p o n t a m e n t o s i n é d i t o s e s c r i t o s e m p e q u e n a s t i r a s d e p a -
p e l e e n c o n t r a d o s e m c a i x a s d e s a p a t o .
Chicos 44
Luiz Ruffato
Nasceu em Cataguases - MG, reside em São Paulo - SP. Entre tantas
obras de sua autoria destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou
o Troféu APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e
o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o
tornou um escritor reconhecido no país. Em 2011 concluiu o proje-
to Inferno Provisório, com a publicação do romance Domingos Sem Deus,
iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005, composto por cinco livros
sobre o operariado brasileiro.
Lendo os Clássicos
Este, que é o único romance de
Poe, mostra a poderosa imaginação do au-
tor. Escrito em primeira pessoa, trata-se de
uma mescla de aventura e terror, gêneros
que, embora já existissem antes, ganharam
com ele roupagem nova. Filho de comerci-
antes de Nantucket, importante porto bale-
eiro situado na costa leste dos Estados Uni-
dos, Pym é um jovem entediado em sua ci-
dade, desejoso de ganhar os mares. Sua
sorte muda quando embarca clandestina-
mente no barco do capitão Barnard, pai de
seu amigo Augustus. O que deveria ser
uma expedição de pesca à baleia transfor-
ma-se em um relato que vai do mais extre-
mado realismo ao mais desvairado fantásti-
co. Ao longo da narrativa, Pym descreve
motins, rebeliões, pirataria, e até uma cena
terrível de canibalismo. Após uma série pe-
ripécias, ele e um marujo chamado Peters,
únicos sobreviventes de um naufrágio, são
reembarcados no navio Jane Guy, que ul-
trapassa todas as fronteiras conhecidas dos
Mares do Sul, para além do Círculo Polar
Antártico, onde sobrevivem tribos selva-
gens em mundos primitivos. Poe inova ter-
minando a narrativa de Pym in media res -
ou seja, abruptamente. O ponto fraco do
livro é o uso exagerado da linguagem técni-
ca marítima, que serve para provocar a
sensação de verossimilhança, mas torna a
leitura arrastada.
Avaliação: Bom
Julho de 2015
h t t p : / / l e n d o o s c l a s s i c o s l u i z r u f f a t o . b l o g s p o t . c o m . b r /
A narrativa de Arthur de Gordon Pym (1838)
Edgar Allan Poe (1809 - 1849)
Tradução de José Marcos Mariani de Macedo
São Paulo: Cosac Naify, 2010, 312 páginas
Chicos 44
José Antonio Pereira
Nasceu em Cataguases - MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras crôni-
cas (2006) e Fantasias de Meia-Pataca (2013).
A ponte que falava latim
“Toda ponte é passagem, mas foi também trampolim
para muitos rapazes, moças não, darem mergulho no
rio, exibir façanhas e lavar a alma.
"Ícones" não contam uma história, nós contamos.”
Flausina Márcia da Silva
A ponte, do meu ir e vir, era a Ponte
Nova. Um horror arquitetônico malcuidado;
feia, suja, desprezada, mesmo assim, intensa-
mente utilizada por todos para quase tudo. Era
por ela, que ônibus lotados de operários os con-
duziam rumo aos seus empregos de menor va-
lia; por ela corria-se, de todas as formas, com os
doentes em suas dores e sofrimentos. Era uma
estrutura de concreto ligando uma barranca a
outra do Rio Pomba, que me conduzia ao mundo
para além do mundo dos mortos.
Ao cruzar a Ponte Nova, rumo aos muitos mun-
dos por onde andei, sempre lançava um olhar
desconfiado para a imponente silhueta metálica
cruzando o rio mais acima. A Ponte Velha era no
meu imaginário, desde a infância, uma espécie
de Portal que ligava dois mundos, de um lado o
mundo dos vivos do outro o dos mortos e sepa-
rando os dois, as águas do rio.
Ainda no colo de minha mãe, crescia acompa-
nhando procissões e enterros em que analfabe-
tos (eu também era) pranteavam: Salve, Regina,
mater misericordiae, vita, dulcedo, et spes nos-
tra, salve. Ad te clamamus, exsules filii Evae.
Ad te suspiramus, gementes et flentes in hac la-
crimarum valle. Eu nem falar sabia, mas o la-
tim rondava meus ouvidos.
A primeira vez que atravessei a velha ponte,
com certeza foi num cortejo fúnebre. Acho que
foi no enterro do velho Antônio Vicente, meu
avô. Provavelmente, no colo do meu pai, já que
minha mãe deveria estar dividindo seus prantos
com os de minha avó. Nem poderia me dar con-
ta do diálogo da ponte com meu avô: Revertere
ad me suscipiam te.
Cruzei a Ponte Velha, pela última vez num corte-
jo fúnebre, já adulto. Era o enterro do meu pai,
outro Antônio. Já não havia mais ladainhas nem
o Credo in unum Deum, Patem onipotentem fac-
torem... do funeral do meu avô, não se usava
mais. Apenas o murmúrio de conhecidos e ami-
gos da família que detalhavam, para os recém-
chegados, como ocorrera o seu falecimento; ou-
tros lamentavam a queda do preço da arroba de
boi... Distante disto, eu no meio da ponte imagi-
nava que as águas que corriam sob o corpo dele,
eram as águas do rio Lete. Doravante ele esque-
cerá a hipocrisia de alguns que o acompanham.
Esquecerá Cataguases, Itaobim, o rio Jequiti-
nhonha, o rio Meia-Pataca... Tudo ficará do lado
de lá. Acabamos de cruzar a ponte, ergo a cabeça
e olho para trás.
A ponte tenta um último diálogo: Pacifisucne est
ingressus tuus?
Chicos 44
Ronaldo Cagiano
Nasceu nem Cataguases - MG e reside em São Paulo - SP.
Publica, regularmente, artigos e criticas literárias em diversos jornais e revis-
tas do país e do exterior. Entre os vários já publicados destacam-se: Palavra
Engajada (poesia 1989) Exílio (poesia 1990) Palavracesa (poesia 1994) Canção
dentro da noite (poesia 1999) Dezembro indigesto (contos 2001) Concerto para arra-
nha-céus (contos 2004) Dicionário de pequenas solidões (contos 2006) O sol nas feri-
das (poesia 2011) Moenda de silêncios (novela em parceria com Whisner Fraga
2012).
E m l i t e r a t u r a , o b o m - m o c i s m o
e o p o l í t i c a ( o u s e r i a l i t e r a r i a m e n -
t e ? ) c o r r e t o n ã o c o n v e n c e m e c o s t u -
m a m r e v e l a r e s c r i t o r e s q u e t r a z e m à
b a i l a s e m p r e o m a i s d o m e s m o , c o n -
v e r t i d o à s b e n e s s e s d o m e r c a d o e d i t o -
r i a l . A v e r d a d e i r a l i t e r a t u r a , p a r a
m i m , é a q u e l a q u e p r o v o -
c a i m p a c t o . Q u e n ã o s e j a
a p e n a s c a u d a t á r i a o u
e m u l a ç ã o d e u m a r u p t u r a
f o r m a l q u e , m u i t a s v e z e s
r e d u n d a n o v a z i o e n a f a l -
t a d e c o n t e ú d o , m a s , p r i -
m o r d i a l m e n t e , a q u e s e
f i r m a n o q u e a n a r r a t i v a
t e m d e v i s c e r a l e i n q u i e -
t a n t e , t a n t o n o p l a n o t e -
m á t i c o q u a n t o n a c o n s -
t r u ç ã o d a p r ó p r i a a t m o s -
f e r a .
É n e s s e p a t a -
m a r – o d a n e g a ç ã o d a s
c o n v e n ç õ e s e d a p r ó p r i a
a f e t a ç ã o , m o d i s m o s e r o -
t u l a ç õ e s d e q u a l q u e r n a -
t u r e z a – q u e s i t u o o n o v o
l i v r o d e C a c o I s h a k , “ E u
c o w b o y ” ( E d . O i t o e M e i o ,
R i o , 2 0 1 5 ) . A m e u v e r , e s -
s a o b r a a n d a n a c o n t r a -
m ã o d e t u d o o q u e v e m
s e n d o p u b l i c a d o a t u a l -
m e n t e n o B r a s i l e m t e r -
m o s d e f i c ç ã o e q u e m u i -
t a s v e z e s j á c h e g a c o m o p a c o t e s a c r a -
l i z a d o p o r c e r t a c r í t i c a d e e n c o m e n -
d a , r e c e b e n d o o i n c e n s o d o c o n s e n s o ,
m a s q u e , n o f r i g i r d o s o v o s , v a m o s
p e r c e b e r q u e n ã o r e s i s t e a u m e s c r u -
t í n i o , a u m m e r g u l h o m a i s p r o f u n d o
d o l e i t o r e a t é d a c r í t i c a s i n c e r a .
“ E u , c o w b o y ” t r a n s i t a
n u m u n i v e r s o e m q u e a r u p t u r a s e d á ,
r e p i t o , n ã o p e l a d e m o l i ç ã o d a f o r m a ,
m a s p e l a p u n g ê n c i a d e u m a a g u d a c a -
t a r s e e x i s t e n c i a l q u e i r r o m p e v u l c â -
n i c a d a s v o z e s d e u m n a r r a d o r t ã o c a -
ó t i c o , q u e c o a b i t a c o m I s h a k /
K a d d i s h , o t e m p ( l ) o d o s p e r d e d o r e s .
B i f u r c a d o s , a t a l h a d o s s e m s e u s d i l e -
m a s í n t i m o s e m e t a f í s i c o s , p e r d i d o s
n o l a b i r i n t o d e s e u s q u e s t i o n a m e n t o s
f i l o s ó f i c o s e o u t r a s i n f l e x õ e s c é t i c a s ,
o q u e l e m o s é s o b r e v i d a ( s ) t r a n s c o r -
r e n d o e n t r e o d i l a c e r a m e n t o e a f r u s -
t r a ç ã o . É o r o m a n c e s o c o - n o -
e s t ô m a g o , a q u e l e q u e n ã o n o s d e i x a
s a i r i n d i f e r e n t e s c o m o l e i t o r e s , m u i -
t o m e n o s i l e s o s c o m o c r i a t u r a .
N ã o s e d e v e c r e d i -
t a r e s s e r e b u l i ç o à l i n g u a -
g e m , p o r q u e C a c o I s h a k
n ã o é u m a u t o r a f e i t o à s
e s t r i p u l i a s v e r b a i s , p o i s
s u a n a r r a t i v a n ã o p r e s c i n -
d e d e q u a l q u e r a p e l o à
v a n g u a r d i c e o u i n v e n c i o n i -
c e s . M e s m o n a l i n e a r i d a d e
c o m q u e e s c r e v e , o a u t o r
i n s u f l a u m a d i c ç ã o p r e d o -
m i n a n t e m e n t e f r a g m e n t á -
r i a n a q u i l o q u e é p e r c e b i -
d o c o m o i n t e r s e ç ã o d e v á -
r i o s m o d o s d e o l h a r , p e n -
s a r , d i s c o r r e r & d i a l o g a r
s o b r e o c a o s e a a r i d e z q u e
n o s r o d e i a m , p o n t o c r u c i a l
e d e i n s u r g ê n c i a d e u m
n a r r a d o r e m p e r m a n e n t e
e s t a d o d e d e s a s s o s s e g o .
I s h a k d i a l o g a c o m
a m o d e r n i d a d e e a t r a d i -
ç ã o , s e u t e x t o h í b r i d o e s t á
p o v o a d o d e r e f e r e n c i a i s
e s t é t i c o s , e m q u e o f l e r t e
c o m í c o n e s d a c u l t u r a p o p
e / o u u n i v e r s a l g e r a u m
d i s c u r s o q u e n ã o a t e n u a n o s s a s d ú v i -
d a s , p e l o c o n t r á r i o a s a t u a l i z a e s u -
g e r e r e f l e x ã o c r í t i c a s o b r e o q u o t i d i -
a n o e o d e s m a n t e l a m e n t o d a c i v i l i z a -
ç ã o a r b i t r á r i a d o c o n s u m o e d a m a s s
m e d i a . U m n e c e s s á r i o v ô m i t o l i t e r á -
r i o e c o n c e i t u a l c o n t r a e s s e m u n d o
f e t i c h i z a d o p e l o d e u s m e r c a d o , q u a n -
d o t u d o n ã o p a s s a d e v e r n i z e e t i q u e -
t a c o i s i f i c a n d o t u d o e t o d o s .
N a a b e r t u r a d o r o m a n c e ,
o n a r r a d o r C a r l o s K a d d i s h ( a q u i a r e -
f e r ê n c i a b e a t n i k n ã o é a l e a t ó r i a , m a s
a f i r m a ç ã o d o p r o j e t o d o a u t o r n a c o n -
f i g u r a ç ã o d e s e u e s t i l o m a r c a n t e e
q u e b e b e n a s f o n t e s d o i n c o n f o r m i s -
m o ) , n o s d á a s p i s t a s p a r a o n d e q u e r
l e v a r o l e i t o r .
Geografia do caos numa prosa dilacerante
Chicos 44
N o c a u t e a n d o - n o s c o m u m a p r o -
s a a o m e s m o t e m p o r a d i c a l , m a s d e
u m a p o é t i c a c o n t u n d ê n c i a , s i n a l i z a
q u e , a p e s a r d o s e s c o m b r o s e c i n z a s
d e u m a r e a l i d a d e f í s i c a , g e o g r á f i c a
o u p s i c o l ó g i c a e x t r e m a d a n o s 2 7
c a p í t u l o s d o l i v r o , a i n d a p o d e m o s
s a i r d a e s c u r i d ã o d o t ú n e l r e v e l a d o
“ n a e s p e r a n ç a d e o d i a r u m p o u c o
m e n o s a h u m a n i d a d e ” .
“ E u , c o w b o y ” é u m l i v r o o u s a d o
e i n o v a d o r , p o r é m r e n o v a d o e m
s e u s a s p e c t o s , p e c u l i a r i d a d e s e s u -
t i l e z a s d e n t r o d a p r ó p r i a t r a d i ç ã o
n a r r a t i v a , c h a c o a l h a n d o o r o m a n c e
b u r g u ê s o c i d e n t a l , p o r i s s o m a n t é m
- s e a t u a l , c o n t e m p o r â n e o e c o m g a -
n a s d e m a r c a r s e u e s p a ç o n e s s e c e -
n á r i o d e l i t e r a t u r a r e p e t i t i v a e m o -
n o c ó r d i c a q u e t e m v i c e j a d o p o r a í .
N e s s a e x p e r i ê n c i a c r i a t i v a , o a u t o r
t r a t o u d e d i l e m a s q u e c o m p õ e m o
c a l e i d o s c ó p i c o v i v e n c i a l d e q u a l -
q u e r s e r e h á u m f l e r t e c o m a m e t a -
l i n g u a g e m e a i n t e r t e x t u a l i d a d e
m u i t o f o r t e s , c o n f e r i n d o à o b r a
u m a p a r t i c u l a r i d a d e p o l i f ô n i c a .
V a m o s e n c o n t r a r n e s s a g e o g r a -
f i a d e n s a , t e n s a , c a ó t i c a e d i l a c e -
r a n t e u m n a r r a d o r p e r d i d o , m a s e m
b u s c a d e u m s e n t i d o o u d e u m a d i -
r e ç ã o . T u d o i s s o a p a r t i r d a v i s ã o
a l u c i n a d a e r e f l e x i v a d e K a d d i s h
q u e , d e s e u p r o m o n t ó r i o , o b s e r v a n -
d o o m i c r o c o s m o d e B e l é m , r e g u r -
g i t a a l e m b r a n ç a d a i n f â n c i a e a
m e m ó r i a d e o u t r o s t e m p o s , p a r a
e x o r c i z a r s e u s f a n t a s m a s n a m e d i -
d a e m q u e t o c a e m s e n t i m e n t o s , p a -
r a d o x o s e c o n f l i t o s . D a í o c a r á t e r
h u m a n o e a t e m p o r a l d e s s a s d e a m -
b u l a ç õ e s , p o r q u e s ã o p e n s a m e n t o s
e s e n t i m e n t o s e n c o n t r a d i ç o s e m
q u a l q u e r l u g a r e é p o c a n o m u n d o .
E s e n ã o h á u m f i o c o n d u t o r o u u m
l i a m e , o q u e j u n t a a s p o n t a s d e s s e
n o v e l o s ã o o s e l e m e n t o s q u e d e t e r -
m i n a m a s f r a t u r a s d e s s a s v i d a s :
c r i s e d e i d a d e , v i a g e n s i n t e r r o m p i -
d a s , p a t e r n i d a d e a c i d e n t a l e o
a m o r e v i d a q u e p o d e r i a m t e r s i d o
e n ã o f o r a m . O s a t a l h o s d o p e r c u r -
s o e a s g u e r r a s s i l e n c i o s a s d e c a d a
u m n e s s e s t r a j e t o s q u e g u a r d a m
a n a l o g i a c o m o b r a s p a r a d i g m á t i c a s
( c o m o “ O n t h e R o a d ” , “ P e r g u n t e a o
p ó ” e “ O a p a n h a d o r n o s c a m p o s d e
c e n t e i o ” ) , a m a l g a m a d o p o r u m e s -
p e c t r o b u k o w s k i a n o q u e d á o t o m
e s c a t o l ó g i c o a u m a h i s t ó r i a q u e a s -
s i m i l a t a m b é m u m a c e r t a r i q u e z a
i m a g é t i c a e d e r e s i s t ê n c i a t í p i c a
d e u m a c e n o g r a f i a p a s o l i n i a n a .
E s t a m o s m e s m o d i a n t e d e u m
r o m a n c e - d e p o i m e n t o , d e u m a n a r -
r a t i v a - t e s t e m u n h o , d e c o n f i s s õ e s
g e r a c i o n a i s , c o m o u m r i o f r e n é t i c o
e i n v e n c í v e l q u e c a r r e g a o s a t r i t o s
e d e t r i t o s d a s m a i s r e c ô n d i t a s n a -
v e g a ç õ e s d o s e r n a c o n t r a c o r r e n t e
d e s e u s p r ó p r i o s d e l í r i o s .
E i s a o b r a r e v e r b e r a n d o a s i d i -
o s s i n c r a s i a s e p e r p l e x i d a d e s d e u m
p e r s o n a g e m ( e t a m b é m d e u m a u -
t o r ) q u e l e v a a o p a r o x i s m o t a n t o a
l i n g u a g e m q u a n t o o s e u d e s a l e n t o
d i a n t e d a s t r u c a g e n s d e s s e m o n d o
c a n e q u e a í e s t á :
“ S e m p r e m e s e n t i u m f o r a s t e i -
r o . A p r e n d i a m e c o m p o r t a r c o m o
u m . A m e s a f a r c o m o u m . N e m s o t a -
q u e e u t i n h a . M a i s f á c i l p a r a m i m .
N ã o e s c o l h e r . ( . . . ) C o n t i n u o a n -
d a n d o c o m o s m e s m o s f r u s t r a d o s
d e s e m p r e e s ó p o r q u e e u m e s i n t o
b e m a o l a d o d e l e s . O p r a z e r d e e m -
p u r r a r p o r e m p u r r a r . E u t a m b é m ,
u m f r u s t r a d o . ( . . . ) C o n d e n a d o s à
l i b e r d a d e , a c a b a m o s t o d o s j u n t o s e
p e r d i d o s , p r e s o s n o m e s m o b a r c o .
N ã o d á p r a s i m p l e s m e n t e e s t a c i o -
n a r u m b a r c o n o a c o s t a m e n t o e e s -
p e r a r a t e m p e s t a d e p a s s a r . O c u r s o
s e g u e . O f l u x o s e g u e . A v i d a d e v e
s e g u i r . T o d o s j u n t o s e p e r d i d o s ,
p r e s o s n o m e s m o b a r c o . E u , l o s e r
d e s d e o p a r t o . U m m o l e q u e b r a n c o
a g u a d o , c r i a d o a l e i t e c o m p e r a ,
t u d o p r a d a r c e r t o n a v i d a s e g u n d o
e s s e m u n d i n h o m a c h i s t a d e m e r d a ,
m a s c a l h e i d e s e r l o s e r . B r a n c o . E
h o m e m . S ó m a i s u m f r a c a s s a d o . ”
C a c o I s h a k c o n s t r u i u u m a s e n -
s í v e l , p o r é m a v a s s a l a d o r a m e t á f o r a
d a i n s u l a r i d a d e q u e m u i t a s v e z e s é
s i n t o m a d a r e a l i d a d e c o n t e m p o r â -
n e a , t ã o v i r t u a l e i s e n t a d o “ s e r ” ,
i m p o n d o a t r a g é d i a i n d i v i d u a l ( o u
c o l e t i v a ) d e s s a d e s c o n f o r t a n t e c e r -
t e z a d e n o s s e n t i r m o s s e m p r e d e s -
l o c a d o s , p e r d e d o r e s o u f o r a s t e i r o s ,
e s t r a n g e i r o s d e n ó s m e s m o s .
E u c o w b o y ” n ã o é m a i s u m l i v r o
n o c e n á r i o r e q u e n t a d o d a f i c ç ã o
n a c i o n a l , é o b r a p r o v o c a t i v a e q u e
i n s t a u r a u m s e n t i d o n ã o a p e n a s e s -
t é t i c o , m a s u m a p r e o c u p a ç ã o é t i c a
c o m o d e s t i n o d o p r ó p r i o s e r . C o -
m o d i s s s e K a f k a n u m a c a r t a a u m
a m i g o , ' ' S e o l i v r o q u e e s t a m o s l e n -
d o n ã o n o s d e s p e r t a c o m o u m p u -
n h o q u e m a r t e l a n o s s o c r â n i o , p a r a
q u e l ê - l o ? ' ' N e c e s s á r i o s , d i z e l e ,
s ã o ' ' o s l i v r o s q u e s e a b a t e m s o b r e
n ó s c o m o a d e s g r a ç a , c o m o a m o r t e
d e a l g u é m q u e a m a m o s m a i s d o q u e
a n ó s m e s m o s ' ' . A s s i m n o s f a z s e n -
t i r e s s e l i v r o h e c a t o m b e d e C a c o
I s h a k
E s c r i t o r , t r a d u t o r e j o r n a l i s t a ,
m e s t r e e m e p i s t e m o l o g i a d a C o m u -
n i c a ç ã o p e l a U S P , C a c o I s h a k n a s -
c e u e m G o i â n i a , m u d o u - s e a o s c i n -
c o a n o s p a r a B e l é m e r e s i d e a t u a l -
m e n t e e m S ã o P a u l o . É a u t o r d e
“ D o s v e r s o s f a n d a n g o s o u a m á r e -
p u t a ç ã o d e u m e s t u l t o e m p o l v o r o -
s a ” ( 2 0 0 6 ) e “ N ã o p r e c i s a d i z e r e u
t a m b é m ” ( E d . 7 L e t r a s ) , 2 0 1 3 ) , t e m
p u b l i c a d o e m d i v e r s o s j o r n a i s , s u -
p l e m e n t o s , p l a t a f o r m a s e r e v i s t a s ,
e n t r e o s q u a i s “ P o e s i a S e m -
p r e ” ( B i b l i o t e c a N a c i o n a l ) ; “ L e t r a s
n a R e d e ” ( c u r a d o r i a d e H e l o í s a B u -
a r q u e d e H o l l a n d a , B r u n a B e b e r e
O m a r S a l o m ã o ) ; “ R u í d o e L i t e r a t u -
r a ” , “ N a T á b u a ” e “ O r q u e s t r a L i t e -
r á r i a ” , t e n d o a i n d a o r g a n i z a d o c o m
A n d r é C z a r n o b a i a p r i m e i r a g a l e r i a
v i r t u a l b r a s i l e i r a , b a i x o . c a l ã o
( 2 0 0 7 - 2 0 1 0 ) , v o l t a d a à a r t e u r b a n a
e a o l o w b r o w .
Chicos 44
Antônio Jaime Soares
Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.
Já foi redator de publicidade. Poeta e cronista publicou Pedra que não
quebra (2011)
€uroporaí
Parte 1: Espanha; Parte 2: Itália; Parte 3: Inglaterra e França
Entusiasmei-me como um imbecil.
Jean-Paul Sartre
Entrei em Paris a pé. Se alguém duvidar, que aguarde a terceira parte deste diário de um pas-
sageiro de primeira viagem (maio-junho/1985). Bem sei que é jeca falar de lugar onde só se esteve uma vez,
entanto, José Antonio Pereira quis veicular na Chicos, e justificou: “Acho legal publicar o teu relato. Tem a
sinceridade e a honestidade da primeira viagem, não arrota sabedoria”. Foram apenas dez cidades, em qua-
tro países e aquilo é muito mais do que digo e pode não ser bem assim, mas é por aí. Europoraí. Há uma
possibilidade de voltar lá e isso também é jeca, no entender de pessoas que vão à hora que bem entendem.
Não obstante, dizem que a primeira impressão é a que fica. Fique o registro.
Antônio Jaime Soares
Chicos 44
Madri − Toledo
...voz métrica de pedra
tal como, cristalizada,
surge Madri a quem chega.
João Cabral de Melo Neto pode estar se referin-
do a uns prédios marrom-avermelhados, velhinhos em
folha, que vou lambendo com os olhos. O ônibus lo-
go chega ao terminal, encimado por um espelho d’á-
gua caindo pros lados. Moderno, sem adornos, na Pla-
za de Colón, belo contraste com os prédios antigos.
Um mero estacionamento de ônibus, feito obra de ar-
te. Táxi pro centro e o motorista pergunta: “És brisilai-
ro?”. Portuga, ele, claro. Digo que sim, apenas, fingin-
do naturalidade. Razão: carrego todo o meu rico di-
nheirinho, passagem e passaporte; sem eles, estarei
mais perdido que cachorro que cai de caminhão de
mudança.
E mais prédios antigos e modernos no Paseo de
Recoletos, monumental avenida. Os modernos, acredi-
to, substituem os que foram bombardeados nas úl-
timas guerras, da mesma altura, obedecendo ao gaba-
rito, palavra esquecida no Brasil, vítima, como quase
todos os países, do complexo de Manhattan; voltarei
ao assunto. Logo, logo, a Gran Vía, danada de bonita,
com aquele jeitão de cartão postal, o coração bate mais
forte, mal acreditando no que o rodeia.
E, cheio de expectativa, entra na cidade velha
propriamente dita, velha tinindo de nova, pois bem
cuidada. A Puerta del Sol, conhecida desde meu pri-
meiro livro de geografia. O hotel a mim reservado é
logo atrás. “Señor Suarez?” – pergunta o recepcio-
nista. Será que sou eu mesmo? – indago ao espelho,
beliscando as bochechas pra ter certeza de que é real
essa coisa toda. É sim. Venezianas, maçanetas, abajur,
tipo hotel da Lapa, uma Lapa passada a limpo. E vou
correr atrás.
Puerta del Sol e marquise, na Gran Vía
Chicos 44
Pelo jeito, toda a população tomou conta das ruas,
em plena tarde de sábado, momento em que o centro
das cidades brasileiras vira um deserto. Gente alegre,
bem vestida e bem nutrida. A música estrangeira da fa-
la. As mulheres (europeias, em geral) usam saias, o que
as faz mais femininas e elegantes. Os homens, meio
atarracadinhos, bundinha estufada de toureiro. Tam-
bém uns tipos meio anões, que remetem a certas pintu-
ras, que verei depois, no Museu do Prado.
Mil fantasias na cabeça, Espanha de óperas e ope-
retas, castelos e castanholas, entanto, Madri não é por
aí, é mais de carne e osso, portanto, melhor. Lojas mui
sofisticadas e entro na maior, El Corte Inglés, dez anda-
res que vendem de um tudo, pra comprar gêneros de
primeira necessidade: uísque, presunto, queijo, pão e vi
-nho. Comer no hotel, enquanto não me familiarizo
com a cidade. E volto a ela.
Subo a Calle de Preciados até a Gran Vía, teatros e
cinemas, a Broadwayzinha deles, fantástica. Ruelas
aconchegantes em volta, barzinhos nos trinques, bem
como alguns casais e seus drinques. Cada esquina ace-
na com outra mais bonita, os restaurantes exalando
cheiro de comida feita com aceite de olivo. Numa des-
sas, sinto que existe algo por detrás dos prédios, atra-
vesso uma arcada e dou de cara com o, até agora, pra
mim, maior espetáculo da Terra, a Plaza Mayor.
Arcada e prédio da Plaza Mayor
Plaza Mayor: “... um belo conjunto de edifícios
com telhados em ardósia, arcos, lustres, sacadas e jane-
las cuja atmosfera teatral tem uma personalidade muito
castelhana. Tudo acontecia aqui na Madri antiga: toura-
das, execuções, cortejos e julgamentos da Inquisição Es-
panhola e seus criativos espetáculos de tortura”. Criati-
vos espetáculos de tortura, é inconcebível, pô! Em nome
de Deus. Ou Deu$. E é numa igreja antiquíssima que
entro a seguir. Missa ao som de órgão, esculturas de an-
jos “voando” pra cúpula, puro alumbramento, mas não
perdoo seu passado torturante. Que não passou, por
exemplo, ao não admitir o uso prudente de uma simples
camisinha.
Volto à Puerta, nove horas da tarde, o sol ainda bem al-
to. Eu, porém, down, down, down, pois não dormi du-
rante a viagem (receio de pisar pela primeira vez, sozi-
nho, em terra estrangeira. Fuso horário também conta).
Depois do jantar, vi o filme de bordo e ouvi duas vezes
Carmen, a ópera, completa. Lá pelas tantas vi uma bola
de fogo num mar de areia, o sol brotando no Saara. De-
pois, plantações de oliveiras, encarreiradinhas, feito pés
de café, montanhas cobertas de gelo, tudo novidade pro
zé mané aqui. No aeroporto, seguindo dica de Carlos
Torres Moura, troquei dólares e comprei passagem pro
ônibus. Aqui, porém, somos honestos até prova em con-
trário: não tem roleta nem trocador, eu teria que enfiar o
ticket numa maquininha, mas não sabia e viajei de gra-
ça. Se um fiscal me pegasse... O ônibus, a estrada, multi-
nacionais ajardinadas dos dois lados, tudo bem leve e
suave.
No rádio do hotel, Mania de você, de Rita Lee, instru-
mental. No gênero pop, neste momento, seria melhor
Spanish Harlem, com The Mamas and The Papas.
Chicos 44
€
Dormi duas noites em uma e, por ser do-
mingo, o Prado fecha ao meio-dia e só reabre
na terça. Pois bem, fico até quarta, sem Prado é
que não fico. Bebo vinho em jejum, feito um
europeu de boa cepa. Chove adoidado e ainda
assim vou bater pernas. Entro numa cafeteria e
peço apenas café, guardando o apetite pra da-
qui a pouco e cair de boca na grande variedade,
sobretudo, de frutos do mar. Tudo em cima do
balcão, a descoberto, sem mosquitos, e a vigi-
lância é cerrada. Conversam, riem, brincam
com os fregueses, mas só depois de deixarem
impecavelmente limpos o último prato, talher
ou taça (não usam copos “americanos” como os
nossos), enxugando com um pano branco e con-
ferindo a limpeza contra a luz.
A gente se encanta e ao mesmo tempo, se
espanta. Por exemplo, numa capa de revista,
Marisol, garota prodígio do cinema água com
açúcar do tempo da ditadura, e já deve ser avó.
Em outra, María del Carmen, filha do
“Generalissimo Franco, caudillo de España, por
la gracia de Dios”, ele se dizia. Nada a ver com
a Espanha atual. Fosse tudo assim, seria o caso
lembrar Caetano Veloso: “...nem a sanha arra-
nha o carro, nem o sarro arranha a Espanha”.
Também automóveis cujo forro dos bancos imi-
ta pele de zebra, cobra, tigre, leopardo e outros
bichos. Mais brega, um “oscar” nas vitrines,
Para la mejor madre, por estar perto o dia das
mães. Compro o Guía del ócio, revista de bolso
com a programação cultural da semana. Desta-
que pra casas de flamenco, dançarinas trepando
nas tamancas, bem como samba, feijoada, caipi-
rinha e mulatas. Anúncio de show com Caetano
e Bethânia.
Volto à cafeteria e peço um conhaque, pra
esquentar o peito, espalhar o sangue. E um pra-
tinho de polvo, lula, camarão, acompanhados
de pão e azeitonas pretas enormes, nadando em
azeite. Com vinho. Não servem a taça direta-
mente sobre o balcão, mas numa toalhinha fel-
puda, pra não pingar na roupa do freguês, as-
sim como não nos entregam o troco na mão,
sim, num pratinho. Requintes que, no Rio, só
vi em lugares tipo Antonio’s (capaz de reunir,
em mesas separadas, por exemplo, Martha Ro-
cha, Walther Moreira Salles e Mick Jaeger),
aqui, descem ao nível do povão, entre o qual
me incluo. Satisfeito, solto uma mineirice:
“Ê vida triste, amargurada, desgraçada de
boa!”.
E vou me esgueirando por entre as bagas
da chuva, guiado pelo Guía del ócio. Passo pelo
Teatro de la Opera, que mal vejo, até a Plaza de
Oriente: enorme, bonita, jardins antológicos e
abriga o Palacio Real, antigua residencia de los
reies de España. Aberto à visitação, mas reser-
vado, em parte, pra hospedar Ronald e Nancy
Reagan, polícia em tudo que é canto, vou lá,
não. Gosto de ir descobrindo tudo por mim
mesmo, em longas caminhadas, porém, debaixo
de chuva, o jeito é entrar numa excursão: largas
avenidas, a Cidade Universitária, sem maior in-
teresse, Casa do Campo, vasto bosque, que per-
mite observar a flora e alguma fauna.
À chuva, de outros pássaros,
então revela os traços:
de pássaro da Europa
ganha então a cor nódoa,
cor galinácea, suja...
João Cabral acertou na mosca, tem pa-
pagaiada aqui, não, a natureza é tímida, ainda
que tudo florido, posto que é primavera, e as
árvores parecem desenhadas numa prancheta.
O atual palácio dos reis, de aparência mais mo-
desta, rio Manzanares, Calle de Segovia,
“típica del Madrid viejo, el Madrid del 600”,
diz o motorista. Paseo del Prado, o Prado, Par-
que del Retiro, estádio do Real Madrid, Plaza
de Toros, em estilo mourisco, vista e revista em
filmes como Sangue e areia. Hoje tem tourada,
mas nem se me pagarem quero ver um bovi-
cídio. Já vi assassinarem boi, porco, cabrito, ga-
linha, tatu, porém, pra comer, sem requintes de
sadismo. Uma mosca, das grandes, no ônibus,
primeiro inseto que vejo aqui.
Chicos 44
O clima pede bebida e será pra já, na varanda de um
bar, espiando o gramado da Puerta, um capim que só
vi antes numa pracinha na plataforma da estação de
Cataguases (cadê a nossa?). Esfria e mudo pra outro,
um boteco, tocado pelo casal de proprietários-garçons-
faxineiros, pois empregado aqui ganha o que merece e
patrão tem que pegar no pesado, se não for rico. Pu-
xam conversa, perguntam se estou gostando. Cito o
slogan atual da cidade: “Madrid, claro que sí”. A mul-
tidão voltou às ruas. No rádio, Tom Jobim, ao piano:
“Vou te contar...”.
Início da Gran Vía e jardins do Prado
Excursão a Toledo, a 70 quilômetros de
Madri. Cidade, aqui, acabou, acabou
(cristalizada), sem aquele cinturão de miséria
em volta. Portanto, saímos da urbe e caímos no
campo. A região é Castela, na meseta, o planal-
to central deles. Uma ou outra aldeia na ampli-
dão expondo produtos, em geral, cerâmica,
plantações de oliveiras, árvores isoladas ou em
pequenos bosques. Vazio panorâmico.
É uma paisagem em largura,
de qualquer lado infinita.
João Cabral, de novo. E a Idade Média, em
Toledo, que tem origens visigodas, romanas,
judias, mouras e cristãs. As últimas três
“aprenderam” a conviver com tolerância, diz
um livro. Entanto, estive numa sinagoga que
foi muçulmana e hoje é católica. O pai de Feli-
pe II teria lhe dito que pra preservar o poder,
mantivesse a capital em Toledo; pra expandi-lo,
mudasse pra Lisboa; e se quisesse perdê-lo, fos-
se pra Madrid. Não deu outra. Nas lojas, elmos,
armaduras, lanças e espadas, pra quem qui-ser
se fantasiar de Dom Quixote. A metalurgia é
uma tradição, cidade guerreira, amuralhada,
“Glória de Espanha”, disse Miguel de Cer-
vantes. Praticamente, parou no tempo e vive
mais em função do turismo.
Rua típica de Toledo , interior da catedral e muralhas milenares
Chicos 44
Catedral, aqueduto romano e monastério
Sobe e desce ladeira até a catedral e aí,
um valor mais alto se alevanta: o gótico é o
esplendor em pedra. Hostes angelicais convi-
dando a entrar e hordas de demônios (gárgu-
las) fugindo ante a “magnificência do verbo
divino”. Por dentro, belas combinações de luz
e sombra, tudo bordado em pedra. Na sacris-
tia, salão de reuniões, bancos com marcas de
bumbuns de tanto os padres se sentarem ali,
eternas confabulações. Num pátio interno,
verdura de folhas enormes, cheiro agradável
de mato molhado. A sala dos tesouros, relí-
quias em ouro e pedras preciosas, de valor in-
calculável. Depois, monastério de San Juan de
los Reyes, todo forrado, rendilhado, floreado
em mármore, do teto ao chão. Entanto, serviu
como estrebaria pros cavalos do exército inva-
sor de Napoleão Bonaparte.
No burburinho das ladeiras apinhadas
de turistas, línguas diversas, uma toledana,
mantilha preta nos ombros, “quentando” sol,
tranquila feito gente da roça. Em outra igreja,
O enterro do conde de Orgaz, painel de El Gre-
co, o pintor de Toledo. Comecei a
“desfigurar” meu gosto em pintura através
dele, com um ensaio de Aldous Huxley. Em-
bora mantivesse da Grécia o bidimensionalis-
mo, e talvez por isso, seus quadros têm um
quê de arte moderna, a partir de Cézanne. Em
excursão de meio-dia, só metade da cidade, e
vemos o Alcazar de longe. Em compensação,
perdemos um tempão numa oficina de damas-
quinos, joias de ouro incrustadas de pedras,
técnica que os ibéricos aprenderam com os fe-
nícios, executadas à vista do freguês. Joia, po-
rém, não faz meus olhos brilharem.
Fico espiando a meseta. O Tejo, transpa-
rente, aqui ainda estreito, vai dar aquele rio-
zão que deságua em Lisboa. Vontade de ir lá,
mas Portugal não está no roteiro, infelizmen-
te. Pego no chão uma pedrinha pra levar de
lembrança e um cão de guarda vem e lambe
minha mão, até que desisto dela. Os turistas
saem, finalmente. Céu limpíssimo, poluído
num trecho pela feia fumaça que sobe de uma
siderúrgica. Logo em seguida, um baita arco-
íris, o maior e mais colorido que já vi, devido
à amplidão, sem aqueles morros de Minas e
Rio, bonitos, mas opressivos. E a classe média
só fotografa e volta ao blá-blá-blá. Um casal
jovem, brasileiro, ao meu lado, só carícias.
Entramos em Madri por outra estrada, é bom
variar.
Ao Banco de España, trocar dólares, já fe-
chou. O comércio, também, la hora de la si-
esta, até por volta de las cinco de la tarde. Por
isso, varam a noite nas ruas. Meu calo de esti-
mação (todo ano, nesta época, volta a in-
comodar) me leva a uma farmácia que me leva
à infância, o cheiro das farmácias de antanho,
manipulação de remédios, nem tudo aqui é
imposto pelas multinacionais. Lembro Seu
Nestor da farmácia dizer que era do tempo em
que todas tinham horta, pra preparação de
medicamentos. Outras voltas à infância: o ca-
sario, letreiros, objetos, mobiliário, vidro de
tinta Parker Quinck igual ao que eu usava,
vontade de comprar. O cheiro da tinta era gos-
toso, como o de goma arábica, que também
dever ter aqui.
Chicos 44
€
O Prado, tão esp’rado. Começo pelo térreo e
me empapuço de Goya, grande, mas há maiores
na própria Espanha, não fosse a pintura uma
das marcas do país, tanto que o rei leva uma ex-
posição aonde quer que vá. E Murillo, e Zurba-
rán, e Ribera. Deste, gosto especialmente quan-
do pinta crianças pobres, uma delas aleijada, e
rindo. Acima de todos, Diego Velázquez, inclu-
sive, Las meninas, sua obra-prima. João Cabral
dizia que toda a pintura italiana não vale um
bom Velázquez. Entendo, observando o seu Ba-
co (foto ao centro, abaixo), andrógino, quase
uma criança. O toque “espanhol” são os campo-
neses, rudes e sem glamour.
E pintores e quadros de todo tempo e lu-
gar, de forma que dá pra ficar uma vida no Pra-
do ou qualquer outro grande museu; algumas
horas, contudo, já deixaram minhas pernas em
frangalhos. Largo os quadros pra lá e persigo
uns quadris, um bumbum fenomenal, dentro de
calças de veludo castanho. Ao lado do Prado, a
Academia, onde vejo Guernica, de Picasso, e ou-
tros espanhóis deste século. Vale lembrar que a
Espanha entrou no século vinte com o pé direi-
to, com Picasso, Juan Gris, Dalí, García Lorca,
Buñuel, Manuel de Falla, pra citar os mais co-
nhecidos. Também Rússia e Alemanha. Então,
cada uma teve sua ditadura e todo aquele van-
guardismo virou passadismo, artistas presos,
mortos, expatriados. Décadas perdidas levam
séculos pra se recuperar. Daí a Espanha viver
das glórias de seu “siglo de oro” (1580-1680 + ou
-), que deu Gongora, Cervantes, Lope de Veja,
Tirso de Molina, Quevedo, Alarcón, Calderón,
Gracián, aqueles pintores etc.
Nas ruas, cheiro de flores, que me fazem
espirrar, é pólen, a primavera dando o ar da gra-
ça. Flor de todo jeito, em todo canto e lugar, jar-
dins muito bem cuidados, só falta aparecer Sari-
ta Montiel, cantando La violetera. E acho graça
nenhuma no porteiro de um hotel de luxo, de
fraque e cartola, cor cáqui, e luvas brancas, co-
mo que saído de um livro de história, quiçá, do
baile da Ilha Fiscal.
Chicos 44
Calmamente, observo uma minifeira de li-
vros no Paseo de Recoletos, no que passa a ga-
lope uma turba ensandecida, vestindo camisas
do PCE, gritando slogans e queimando bandei-
ras dos Estados Unidos e da Espanha que deco-
ram as ruas pra passagem de Reagan. Protesto
contra os poderosos, depois de décadas amorda-
çados pelo fascista Francisco Franco. Agora, “a
sanha arranha o carro”. No metrô, rasgando car-
tazes, quebrando vitrines. Na Puerta, derruban-
do lixeiras e o que mais encontram de proprie-
dade pública, respeitando a privada. Primeira
manifestação do gênero que vejo, pois, moran-
do em cidade pequena, não assisti nem partici-
pei das revoltas estudantis de fins dos anos 60,
sobretudo, no centro do Rio.
Outra confusão envolvendo uns africanos,
em trajes típicos, que vendem elefantinhos de
madeira à porta do El Corte Inglés. Na Gran
Vía, uma mulher segura outra pela gola-goela e
se esgoela, alegando que roubou sua bolsa, até
que vem a polícia. Pode sobrar pra mim, melhor
ir me afastando e procurar outra área, rever lu-
gares, a Plaza Mayor, por exemplo. Mais tarde,
no boteco que já conheço, e me conhecem, a si-
tuação também não está muito boa: um cara de-
siste de beber o que pediu e diz que não vai pa-
gar. A dona se encrespa, feito um galo de briga:
– No quieres pagar porque estás de tontería.
Toleré tontería todo el día, no toleraré más. Pe-
ro tu pagarás. Sí, a mí tu pagarás. Se no pagares
a mí, pagarás en la policía. Javier, llame la poli-
cía.
Mulher tem mais força na língua do que boi
no cangote – diziam as antigas senhoras minei-
ras, tanto que ele despeja o cálice na pia, paga e
sai de fininho. Passado o incidente, Javier e a
esposa conversam comigo. “Lamentam” que eu
me vá amanhã, eu também. Madri me pegou de
jeito, até por ser minha primeira namorada eu-
ropéia. Devidamente brindada com uma garrafa
de xerez na caminhada da tarde, agora, chope,
que dilui mais rápido, tendo eu que acordar ce-
do, amanhã. De novo, a amolação de arrumar
mala, aeroporto etc. e tal. Recolho-me por volta
de meia-noite, mas vou deixar todo mudo valo-
rizando a madrugada.
€
De táxi pro aeroporto. Saio da cidade por
um trecho ainda não visto, prédios modernos,
envidraçados, refletindo os raios do sol nascen-
te, o que me traz à memória O sol também se le-
vanta, romance de Ernest Hemingway que ter-
mina a esta hora, aqui mesmo, dentro de um tá-
xi. No filme, quem viaja é Ava Gardner, “o mais
belo animal do mundo”, segundo Jean Cocteau,
e que se identificou por demais com a Espanha,
mais precisamente, com os toureiros espanhóis.
Ave, Ava!
Chicos 44
Barcelona
Dizem que há castelos daqueles de El
Cid nesta rota, mas, avião cheio, eu, no meio,
nada apriceio. Pego o livro A poesia no Brasil,
que trouxe pra ler caso batesse saudade da mi-
nha terra, que tem palmeiras onde canta o sa-
biá. Neca de saudade, o que não me impede a
leitura e desperta uma voz lusitana ao meu la-
do: “De que parte do Brasil tu és?”. Trata-se
de um português, a cara de Mário Andreazza,
morou no Rio e ganhou muito dinheiro lá,
vendendo carros importados pro pessoal do
Iate Clube. Vem de Lisboa e vai a Barcelona
pro salão do automóvel. Convida-me a apare-
cer por lá e me desconvido, dizendo que meu
interesse por máquinas é apenas de ordem
prática. Ele aponta o livro e diz: “Está-se a
veire”.
De trem, pro centro. Uma área industrial-
portuária abandonada me deixa péssima im-
pressão, imagino, contudo, que aqui será
construída a vila olímpica, pois Barcelona se-
rá a sede dos jogos em 1992. O hotel fica a um
pulo da casa que Gaudí construiu pro seu me-
cenas, o conde Güell. Logo na esquina, Las
Ramblas, a avenida mais doida que já vi. Lou-
ras de cabelo verde, negras de cabelo azul,
gaiolas, pássaros, punks, vasos, flores, feira
de livros, números de circo, de teatro, dançari-
nos, músicos, mímicos, estátuas vivas, até
gente como a gente.
Patisserie de 1820, loja de guarda-chuvas, estátua viva e seu esqueleto
Subo até a Plaza de la Catalunya, prédios
sextavados nas esquinas (em metade da cida-
de, vejo no mapa), volto, pego a beira-mar e
entro no Bairro Gótico. O gótico pra valer, que
só vi na catedral de Toledo, aqui se esfrega na
cara da gente. Procuro a catedral daqui e en-
contro a igreja de Santa María del Mar, mais
bonita, fechada pra obras. A outra é perto e,
de novo, deparo-me com todo aquele mistério,
um bonito pátio interno, chafarizes e, os que
pegam sol, cobertos de musgo. Pedras talha-
das no tempo dos gregos, fundadores da cida-
de, há 3.000 anos.
.
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  • 1.
  • 2. Chicos Outubro 2015 e-zine de literatura e ideias de Cataguases – MG Capa Editores Emerson Teixeira Cardoso José Antonio Pereira Fotografia Vicente Costa Ilustrações Altamir Soares Colaboradores desta edição Antônio Jaime Soares Antônio Perin Fernando Abritta Flausina Márcia da Silva Iacyr Anderson Freitas Luiz Ruffato Ronaldo Cagiano Fale conosco em: cataletras.chicos@gmail.com Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/ Um dedo de prosa Esta, é a nossa edição 44. Este é um ano, até aqui, de muita violência, muita gritaria sem rumo, vereadores imbecis e iletrados atacando Simone de Beauvoir. Paris aparece nas TVs como cenário de filmes daquele moço fortão austro- americano que virou governador da Califórnia, e já no seu segundo fil- me era o capanga do gângster Augustine em O Perigoso Adeus. O cri- minoso vazamento da Samarco arrasa Bento Rodrigues, distrito de Mariana, repetindo numa escala infinitamente maior - de lama - o ocorrido aqui pertinho de nós, em Miraí. Ano para não ser esqueci- do pelas nossas incompetências. Para nós é o Ano Asnático. Luiz Ruffato mantém um blog chamado Lendo os Clássicos, onde es- creve sobre os mesmos. Nos permitiu republicar aqui suas reflexões. Publicamos o texto de estréia do blog. Quem esteve, a convite do Rogério Torres, em Cataguases foi o poeta Iacyr Anderson Freitas, tivemos uma bela tarde de ótima conversa e muita poesia. Poeta a gente homenageia mostrando sua poesia. Ronaldo Cagiano, além da resenha sobre o livro de Caco Ishak , tra- duz o poeta argentino Osvaldo Picardo. Fernando Abritta participou da “{+ POIESIS} – Exposição Internacio- nal de Arte Postal” com os poemas visuais que estão nesta edição. Emerson tirou da estante uma preciosidade de Manuel Bandeira e apresentamos para vocês uma crônica do livro Flauta de papel. O Antônio Jaime nos autorizou compartilhar com vocês um dos rela- tos de viagens mais interessantes que já lemos. Em Clips - Publicamos notas, que consideramos importantes e que pretendemos em edições futuras retomar. Agradecemos ao Antônio Jaime Soares a trabalhosa revisão desta edi- ção. Divirtam-se! Os Chicos 18.11.1930 - 20.08.2014 N. 44
  • 3. Sumário IACYR ANDERSON FREITAS Regresso e outros poemas 04 FERNANDO ABRITTA Poemas Visuais 17 FLAUSINA MÁRCIA DA SILVA Tango 21 ANTÔNIO PERIN Fragmentos amorosos 24 OSVALDO PICARDO Vida de poesia e outros poemas 26 MANUEL BANDEIRA José de Abreu Albano 29 JOSÉ ANTONIO PEREIRA O Noviço 31 EMERSON TEIXEIRA CARDOSO Diários de navegação 33 LUIZ RUFFATO Lendo os clássicos 34 JOSÉ ANTONIO PEREIRA A ponte que falava latim. . 35 RONALDO CAGIANO Geografia do caos numa prosa dilacerante 36 ANTÔNIO JAIME SOARES Europoraí 38 CLIPS Algumas notas 50 Chicos 44
  • 4. Iacyr Anderson Freitas Nasceu em Patrocínio do Muriaé - MG. Mora em Juiz de Fora - MG. Mestre em Teoria Literária pela UFJF. Publicou vários livros de poe- sia, ensaio literário e prosa, com vários prêmios no Brasil e no exteri- or. Sua obra encontra-se publicada em várias línguas e países como Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Itá- lia, Portugal, Venezuela e outros. Publicou, em poesia, entre outros, Verso e palavra (1982), Pedra-Minas (1984) Colagem de bordo & ou- tros poemas (1986), Outurvo (1987) R e g r e s s o E r a p r e c i s o e s t a r a q u i p a r a t o c a r o q u e r e s t a a i n d a d e s t a t a r d e , c o m s e u s q u i n t a i s , s u a s c a s a s , e a m e s m a e s e m p r e i n ú t i l r e v e l a ç ã o . L e m b r a s s e o a n o , o m i n u t o q u e , v i s t o a g o r a d e s t e s c a m p o s , i n u n d a o c h ã o d a s a l a , i n u m e r á v e l ? S o b t a i s a r c a d a s , n e s t e s f l a n c o s d e p e d r a e c a l , e r g u e r a m u m c a s a r i o , u m a e s t a ç ã o q u e e x s u r g e d o c a s c a l h o c o m o c o i s a v i v a , q u e t o c a d a f o s s e p e l o s o l h o s , n u m a s s o m o . E m b a r c a d o u r o s d e c a f é ( e s c o a n d o m a i s q u e o s u m o , m a i s q u e a v e r t i g e m , m a i s q u e o s o s s o s r e s s e q u i d o s d e a s s o m b r o e p ó , a t é u m p o r t o j á p e r d i d o d e s e u p o s t o ) e m b a r c a m a g o r a a p á t i n a i n t u m e s c i d a d e s t a t a r d e . Chicos 44
  • 5. Chicos 44 F o i - m e i n ú t i l e s t a r a q u i n e s t e q u i n t a l , d i a n t e d e c o i s a s m o r t a s h á m u i t o – h á m u i t o i n t o l e r á v e i s . I n ú t i l p a l a v r a , i n ú t i l a l e t r a q u e a t r a v e s s a e s t e a l q u e i r e m í n i m o d o t e m p o p a r a f u n d a r o u t r a i n s t â n c i a , l u m e q u e t a m b é m e s g o t a - s e d e f l o r i r e n o u t r o e m b a r c a d o u r o s e a r r e m e s s a .
  • 6. E sobre o deserto c o n d e n a ç ã o p r i m e i r a : c a r r e g a r o s d e s p o j o s d e s t a t a r d e , a r r a s t á - l a p a r a f o r a d o t e m p o , e n t e r r á - l a o n d e n ã o h a j a e s c a p e . c o m o o s q u e b u s c a m n o a l f o r j e , e n t r e s e r p e s , o a l i m e n t o d e s e u s m o r t o s , t a m b é m o f e r t a r e i m e u c o r p o à s f i g u r a ç õ e s d a c h u v a e d o t r ó p i c o , t a m b é m p o d e r e i u n g i r a s c a r t i l a g e n s n u l a s d e s e u n o m e . e s o b r e o d e s e r t o e s o b r e o s d e s p o j o s d e t u d o o q u e r e s t o u d a t a r d e e m s e u t r a n s p o r t e p e r m a n e c e a m e s m a b u s c a , i n c e s s a n t e , d e u m a t e r r a m a i s p r o f u n d a e g a s t a , c a d a d i a m a i s d i s t a n t e . Chicos 44
  • 7. Décimo Mirante M e d i r e m t u d o , d o c h ã o q u e s e a l a r g a , o b o s q u e e o m u r o , o q u i n t a l s e m a l a r d e , a l e m b r a n ç a n a b o c a , e t ã o a m a r g a , t ã o t e r r í v e l , q u e d e l a o s o l n ã o g u a r d e r a s t r o o u n o t í c i a . O n e g r u m e , a á r i a d e p r i v a ç õ e s e a u s ê n c i a s q u e m e i n v a d e . A p a i x ã o m a i o r , e m a i s o r d i n á r i a , q u e a r m a e m m i m t a m a n h a b r u t a l i d a d e . M e d i r e m t u d o o v e r ã o q u e m e e n f a d a : s e u s c e l e i r o s , s e u s m o i n h o s , s e u s b o i s . U m a h i s t ó r i a v i v i d a e n ã o c o n t a d a . H á d o i s c a m i n h o s , t ã o - s o m e n t e d o i s . A g o r a u r g e a m a r a v i d a , e m a i s n a d a . T u d o o q u e d e s c o n h e ç o v e m d e p o i s . Chicos 44
  • 8. João Cabral e os rios S o u b e s t e q u e u m l e i t o s e c o d e r i o d e t o d o n u n c a s e e n c o n t r a v a z i o , q u e h á n e s s e l e i t o a n u d e z , t u d i s s e s t e , q u e s e a u m e n t a q u a n d o o v e r ã o a v e s t e , q u e u m r i o s ó e s t á v a z i o q u a n d o d e s i m e s m o , e s t a n q u e , e l e f o r s e c a n d o , q u e u m r i o s e r á s e m p r e g r a n d e e m n ó s , q u a n d o o s o u b e r m o s s e m n a s c e n t e o u f o z . S ó t u c o m p r e e n d e s t e , a m i g o , q u e u m r i o , e m b o r a s e c o , n u n c a e s t á v a z i o . Chicos 44
  • 9. U m t o d o p o r t á t i l A F e r n a n d o F i o r e s e D e M i n a s h e r d a m o s o q u e n ã o s e o f e r e c e e m t e s t a m e n t o , u n s m i n é r i o s q u e s ã o m i m o s a o c o n t r á r i o , t o d a a l i ç ã o , m u d a d a e m p r e c e , d o i n t e r d i t o q u e n o s a l c a n ç a o n d e f u g i m o s . D e M i n a s h e r d a m o s a l g o q u e n ã o e x i s t e . U m a c a s a p r o i b i d a , u m d o m i n g o d e R a m o s e n t r e m u r o s , o r i s c o d e u m a n o i t e e m r i s t e . A l g o q u e n u n c a é b a g a g e m , q u a n d o v i a j a m o s . Chicos 44
  • 10. M e m o ra b l i a – Po e m a n º 1 4 v o n t a d e d e c h a m a r m i n h a i n f â n c i a e o t r e m q u e p e r d i n a e s t a ç ã o d e c a i a p ó b a d a l a r o v e l h o s i n o e c o n v o c a r a p a r e n t a l h a a g o r a p a r e m d e e s c o n d e - e s c o n d e o t r e m c o m g r a n d e e s t a l o m e u a v ô f e r r o v i á r i o s u a m u l h e r d o n a d i v a o s t i o s t o d o s e m f e s t a § v o n t a d e m a i s s e m t a m a n h o e s s a d e s e g u r a r o q u e n ã o c e s s a Chicos 44
  • 11. E n t r e v e r o j á v i s t o C i d a d e s n ã o s e f a z e m c o m n e n h u m i m p r o v i s o . O q u e p a r e c e v a g o t e v e t r a ç o p r e c i s o . N ã o e x i s t e s u r p r e s a , a c a s o o u a c i d e n t e . S ó a j u s t a m e d i d a , m e l h o r s e i n c o n s c i e n t e . S ó o f l u x o , a r o t i n a d e e n t r e v e r o j á v i s t o e d e l e r e t i r a r a t é o ú l t i m o c i s t o . A s p e s s o a s n ã o f u n d a m a s c i d a d e s q u e a l i n h a m : f a z e m - n a s c o m o b a r r o q u e e l a s m e s m a s c o n t i n h a m . Chicos 44
  • 12. N o r e t ra t o T o d a a f a m í l i a s e e s p r e m e n o r e t r a t o a o l a d o d o o r a t ó r i o . A n i n h a e s t á d e v e s t i d o n o v o e l a ç o d e f i t a n o c a b e l o . J o s é s u r g e d a t r e v a , e n f i m l ú c i d o e b a r b e a d o . F i l i n t o c o n t i n u a b ê b a d o . L a n i n h a , e s s a n i n g u é m c o n v e n c e , p e r m a n e c e d e m a l c o m a v i d a , c o m o s e m p r e . V ô C h i c o n ã o p e r d e a e s p e r a n ç a d e f a z e r a s p a z e s c o m a b e n g a l a . D e q u e b r a , s e m q u e o v e j a m o s , l i m p a o c o l d r e c o m a f l a n e l a . J o ã o n ã o e s c o n d e s u a d í v i d a c o m o f a r m a c ê u t i c o . Z u l e i c a p a r e c e a i n d a m a i s m a g r a , d e c o q u e a l t o e l u v a s m u i t o b r a n c a s . O s n e t o s f a z e m e s f o r ç o p a r a q u e o r e t r a t o n ã o a t r a p a l h e a f e s t a . B i l i c o j á e s t a v a m o r t o a n t e s q u e e n t r a s s e n a f o t o o s e u r á d i o d e e s t i m a ç ã o . M a n o l o n ã o q u i s s a b e r d e p o s t e r i d a d e . A c o n t r a g o s t o , c o m p a r e c e c o m a b a n q u e t a f e i t a e m s u a o f i c i n a n o s t e m p o s d a g r a n d e g u e r r a . Chicos 44
  • 13. D o n a C o t a t a m b é m f u g i u p e l a p o r t a d o s f u n - d o s , m a s a r r u m o u b e m a r r u m a d o o j a r r o d e f l o r e s e p o r i s s o e s t á n o r e t r a t o . A n d r é d e u m ã o d e c a l n a p a r e d e e L i c o , v e r n i z b r i l h a n t e n a c r i s t a l e i r a . É d e C a t i t a a m a r i n h a q u e s e v ê à e s q u e r d a ( d e l a , q u e m o r r e u a f o g a d a , u n h a s f e r i n d o d e c r u p e o c r u c i f i x o , s e m n u n c a t e r v i s t o u m a r é s t i a q u a l q u e r d e m a r ) . À e s q u e r d a , c o m m o l d u r a d o A n d r a d a , e s s e m e s m o q u e a l e g o u c r i s e d e a s m a e f u g i u c o m a c o s t u r e i r a . S o l a n a r e p e t e o c o l a r d e p é r o l a s , a g o r a n o c o l o d a f i l h a m a i s m o ç a . H e r m e n g a r d a b o r d o u a c o r t i n a d e o r g a n d i . T o d a a f a m í l i a e s t á n o r e t r a t o . A t é o A r l i n d o , a q u e l e s o n s o , q u e c o l o u a p o r c e l a n a q u e s e v ê a o c e n t r o . M e s m o o s q u e n ã o q u i s e r a m o u n ã o p u d e r a m c o m p a r e c e r e s t ã o a l i , t o d o s , n o s t r i n q u e s , f o t o g r a f a - d o s . S e j a d e e s g u e l h a o u d e e s t a l o . P o r i s s o é d e l e i n e s t a c a s a r e v e r e n c i á - l o . Chicos 44
  • 14. Chicos 44 Dona Bertália M u l h e r a s s i m n u n c a s e v i u d e t ã o r i c a . E r a a d o n a d o l u g a r . M a n d a v a e d e s m a n d a v a c o m l u v a s d e p e l i c a . M a r c a v a a t é a h o r a d a m i s s a e d a b o t i c a . Q u e e r a s e m p r e a h o r a i n c e r t a e m q u e p e l a i g r e j a e l a a d e n t r a v a . F r a n z i n a m a s e r e t a c o m s e u c a s a c o d e p e l e g a n h o d u m a e s l a v a . O p r o b l e m a e r a o c a l o r q u e n ã o p a u s a v a . C a l o r d o s d i a b o s q u e p o u c o o b e d e c i a e m t e r r a o n d e s ó e l a m a n d a v a e q u e a c a b a v a m a r c a n d o t a m b é m a h o r a e m q u e t o d a m i s s a e m p a c a v a . H o r a d e l e v a r D o n a B e r t á l i a p r a c a s a j á m u i t o p á l i d a d e t r a n s p i r a r s o b o c a s a c o e m b r a s a .
  • 15. Chicos 44 Equação Para Luiz Ruffato a q u e s t ã o : s e r o u n ã o s e r f e l i z e m d e m a n d a d e s s e c á l c u l o m e f i z c o n t a s e c o n t a s s o m a t ó r i o s v i s a t é d e s i s t i r d o i n a c e s s í v e l x
  • 17. Chicos 44 Fernando Abritta Nasceu em Cataguases - MG, nativo de Cataguarino, Cataguases - MG, em 1950. Reside em Juiz de Fora - MG. Tem dois livros publicados pela Lei Murilo Mendes de Juiz de fora - umÁrvore e O Caso da Menina que Perdeu a Voz, e Uma Verde História pela Lei Ascânio Lopes de Ca- taguases em parceria com Joaquim Branco, um e-book - Relâmpago. E os inéditos MulaSemCabeça e A Árvore do Esquecimento. Outras participações: Grupo 13–RJ (1971); Expoética–RJ (1973); TO- TEM (1975 a 1977); Jornal DE FATO (1977); Jornal TABU (1977); Expoética–Natal-RN ( 1977); Arte de Rua-Brusque–SC (1978); jornal A REPÚBLICA-Natal–RN (1978); Expoética–80-Cataguases-MG (1980); Cataguases-Cartazes (2014)
  • 19. Chicos 44 “{+ POIESIS} – Exposição Internacional de Arte Postal” é constituída de obras de 72 au- tores de 19 países, que apresentam seus poemas visuais no sistema da Arte Postal e integra a programação do XXIII Congresso Brasileiro de Poesia, que neste 2015 comemora seu ju- bileu de 25 anos, consolidando-se como um dos mais significativos eventos de poesia em território brasileiro. A curadoria da mostra conta com a supervisão de Ademir Antônio Bacca, coordenador geral do congresso, e de Artur Gomes, coordenador de Literatura. Na mostra, serão homenageados o poetaAlmandrade (BA), por sua trajetória nacional e inter- nacional com a Poesia Visual e a Arte Postal, além do sarau Um Brinde à Poesia (RJ), que tem oportunizado a apresentação da poesia visual contemporânea. Após o período exposi- tivo a mostra terá uma versão na Internet. De acordo com o curador da mostra, o escritor e artista visual brasileiro Tchello d’Barros, a exposição “é um projeto que visa reunir duas vertentes instigantes da chamada poesia experimental, promovendo o encontro dos poe- mas visuais com o sistema da Arte Postal”.
  • 20. Chicos 44 “{+ POIESIS} – Exposição Internacional de Arte Postal” INTERFACES DA POESIA VISUAL COM A ARTE POSTAL por Tchello d’Barros* ’’Poesia é... brincar com as palavras’’ José Paulo Paes {+ POIESIS} apresenta o possível diálogo entre a linguagem da Poesia Visual e o sistema da Arte Postal, estabelecendo um espaço específico - o Car- tão Postal - como acesso ao leitor/visualizador dos poemas visuais. Esse hibridismo, essa interação, são características que sempre estiveram presentes tanto na tradição da Poesia Visual quanto nas in- ventivas redes de trocas de Cartões Postais, supor- te que tem abrigado criações visuais nas mais vari- adas técnicas e conceitos. Não será exagero lem- brar que muitos(as) autores(as) transitam nestes dois segmentos que ora se tocam, ora se (com) fundem. Qual o lugar ideal da Poesia Visual na contem- poraneidade? Podemos apontar os livros, jornais culturais, exposições, Internet e mídias digitais, além dos hibridismos nas Artes Visuais e outras linguagens, mas antes de tudo talvez possamos considerar que possa ser o lugar de qualquer (bom) poema: onde possa causar reações estéticas, onde possa comunicar. O poema visual é um sobre- vivente de nossa turbulenta passagem para a pós- modernidade, abriu seu espaço na era digital, cru- zou a linha do novo milênio, chegou aos nossos di- as reinventando-se sempre mais, transgressor, crí- tico e político. E não veio apenas para ficar, mas para ampliar seu arco temático, seja pelo viés do humor, seja pela crítica mordaz nas abordagens dos grandes temas da humanidade, desde tensões geopolíticas, desníveis socioeconômicos, as rela- ções humanas, até aspectos inusitados do cotidia- no. A Arte Postal – Arte Correo, Mail Art - por sua vez amplia suas redes de trocas simbólicas para to- dos os continentes, aumentando cada vez mais seus adeptos, e, para além das mostras coletivas, potencializa seus públicos de forma exponencial nos meios virtuais. De uma forma estrutural, ou de sistema, percebemos a Arte Postal, mais viva do que nunca, ampliando suas relações de troca de es- tesias e tráfico de alumbramentos em redes cada vez mais amplas, em nossa sociedade global, num intercâmbio de obras livres das amarras acadêmi- cas, das demandas de mercado e do engessamento institucional. Atenderam ao Chamado desta {+POIESIS} 72 artistas de 19 países, apresentando propostas de veiculação de suas criações em Poesia Visual, no suporte da Arte Postal, ou seja, Cartões Postais contendo poemas visuais de tema livre, com técni- cas variadas, como desenho, pintura, colagem, in- fogravura, fotografia, reprografia, origamis, cali- grafia, técnicas mistas, selos autorais e carimbos personalizados. E a diversificação se amplia nos es- tilos das imagens bem como nas temáticas dessas obras em que cada Cartão Postal possui elementos de manufatura que os tornam únicos, em contra- ponto com a cultura de massa em que nossa socie- dade está inserida. Provocar relações entre a Poesia Visual e a Ar- te Postal no cenário brasileiro e internacional; esti- mular a presença dessas linguagens e suportes nos meios culturais; e tensionar aspectos conceituais para uma possível reflexão ou debate, são alguns pontos de partida desta mostra {+ POIESIS}. E, ainda que se possa pensar também no aspecto da difusão de ambas as categorias em território brasi- leiro, é também uma forma de oportunizar mais opções, seja para quem quer adentrar esse sistema com suas criações, seja apenas para quem ama a poesia em todas as suas vertentes. Rio de Janeiro (RJ), Brasil - setembro 2015 *Tchello d’Barros é Escritor, Artista Visual e Curador Artistas: ALEMANHA: HORST TRESS – MALTE SONNENFELD | ARGENTINA: ADRIAN DORADO – ANA VERÓNICA SU- ÁREZ – CLAUDIA LIGORRIA - MARIA FERNANDA DE BROUSSAIS – CLAUDIO MANGIFESTA – MADO RESNIK – MARCELA PERAL – MATIAS YGIELKA – OMAROMAR – RAQUEL GOCIOL – SILVIA RAQUEL BONDER | AUS- TRÁLIA: ANNEKE BAETEN | BÉLGICA: LUC FIERENS - RENAAT RAMON - SVEN STAELENS | BRA- SIL: ALEXANDRE DACOSTA – ALMANDRADE – BRU- NA BERGER – CARMEM SALAZAR – CONSTANÇA LU- CAS – FERNANDO ABRITTA – GIL JORGE – GLÓRIA W. OLIVEIRA DE SOUZA – GUSTAVO JERONIMO – HUGO PONTES – JOAQUIM BRANCO – KAILA LIPP – MARGA MONTEIRO – TCHELLO D'BARROS – TEREZA YA- MASHITA – YAN BRAZ | CANADÁ: KATYE O'BRIEN | COLÔMBIA: TULIO RESTREPO | DINAMAR- CA: MARINA SALMASO - VICTOR VIDAL | ESPA- NHA: CORPORACIÓN SEMIÓTICA GALEGA – FERRAN DESTEMPLE - JOSÉ L. CAMPAL – PIERRE D. LA | EUA: ARAM SAROYAN – JOHN BENNET – REID WOOD – STEVE DALACHINSKY | HUNGRIA: MÁRTON KOP- PÁNY | ITÁLIA: ANGELA CAPORASO – CINZIA FARINA – CRISTIANO CAGGIULA - FRANCESCO APRILE – GUI- DO CAPUANO – JIMMY RIVOLTELLA – MASSIMO CON- CU – MAYA LOPEZ MURO – ORONZO LIUZZI – ROSSA- NA BUCCI – VIRGÍNIA MILICI | JAPÃO: ANÔNIMO – KEICHI NAKAMURA – NICHOLA ORLICK | MÉXI- CO: JOSÉ LUIS ALCALDE SOBERANES | POLÔ- NIA: MIRON TEE | PORTUGAL: AVELINO ROCHA – BRUNO MINISTRO – MARIA JOSÉ SILVA, MIZÉ - MÁ- RIO LISBOA DUARTE – NUNO MIGUEL NEVES | SUÍ- ÇA: BRUNO SCHLATTER – DARKO VULIC | TURQUIA: MERAL AGAR – TURKAN ELÇI | URUGUAI: CLEMENTE PADIN
  • 21. Chicos 44 Flausina Márcia Nasceu em Cataguases - MG, mora em Belo Horizonte– MG, onde tra- balhou na Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou, entre ou- tros: Vagalume (2002), Sua Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Decli- ves (2014). T a n g o Cartórios não registram legados tais como, deixo minha dor, deixo meu amor, deixo minha ale- gria. Nisso pensa Natália, ensimesmada, com um sorriso leve de rosto inteiro, incapacitado de se defun- tar. Em vez de alô, diz meus pêsames ao serviço de ofertas bancárias por telefone, corrigidos, educa- damente, para o corriqueiro dessas ocasiões: não estou interessada. Interrupções, eis a vida! Saboreia Natália seu achado filosófico. Agora, sem saber em que ponto está da vida, ela quer tirar véus, descobrir o segredo da loucura, de outros legados vinda. “É como se a mente saísse de série”, diz Estaphanie Montoya, em seus nove anos de idade, no livro Casa das Estrelas, de Javier Naranjo. Pronto, o mundo está pronto para ela, pode ser encontrada nas falhas. Nem sempre, diria seu irmão Haroldo. - Muita gente estudiosa conversou com ela e desgostou dela. Eu mesmo, com trinta e três anos de uma vida sem grandes aventuras, pois nem crucificado fo- ra, sabia das coisas caídas em esquecimento. Sofria de invalidez, mas via a invalidez dos outros também. Encontrei, certa vez, um poema dela e achei a pior coisa do mundo. Natália acredita que pior coisa do mundo já é alguma coisa, pois anda meio sem mundo. Quando se diz que os jovens têm o mundo pela frente, pode-se concluir que os velhos têm o mundo para traz. Dentro do mundo, com o mundo dentro, quem¿ Dançarinos talvez, de todas as idades. Sinto decepcioná-los, caros leitores, esses dois não chegam a um encontro ou desencontro com as devi- das personificações de uma história. São um pretexto apenas para dançar com a palavra amor. Do amor, pouco tenho são contas de um colar topázio único, guardado minha caixa de belezas. Do amor, tenho quase nada foi tanta gente, tudo, tudo indecifrável, incoerente tanto, tanto, tanto carne. Do amor, quase nada faltou-me, sobrou gente do meu amor.
  • 22. Chicos 44 Cataguases S ã o o s o i t i s , s e r á o r i o , s e r á a p o n t e v e l h a o o l h o m á g i c o H u m b e r t o ¿ S ã o o s p o e t a s s e r á a a r t e , s e r á m i n h a f a m í l i a a v o z a t e n t a R o s á r i o ¿ S ã o o s s o r r i s o s t r a n s e u n t e s i n d e f i n i d o s a p a i s a g e m p a r a l e l e p í p e d o s ¿ S ã o a s p e s s o a s s e r á a f a l a , s e r á o q u i a b o r u i m c a r o , s e m q u e b r a E l a d i s s e ¿ O u v i s i m , é p r o x i m i d a d e d a s g e n t e s .
  • 23. Sete é um azar D e n t r o e f o r a d e l a D o m i n g o F u t e b o l n o r á d i o M i s s a d a t a r d e A n o i t e c e c o m V ã s e g u n d a - f e i r a P a r a o u t r o d o m i n g o É d i a m e l a n c ó l i c o N ã o m a t a a u l a , n e m Tr a b a l h o , c r i s t o m e u Q u e s e m a n a m a i s i n g l e s a . M i n h a s e m a n a t e m q u e t e r Va g a b u n d a g e m n a s e g u n d a Te r ç a d e l a m e n t a r t a r e f a s Q u a r t a d e f i c a r a t ô n i t a Q u i n t a d e t o r c e r p r o g a l o S e x t a d e j á g a n h o u e S á b a d o . Chicos 44
  • 24. Chicos 44 Existência -1985 - Manabu Mabe Antônio Perin Baiano, nasceu em Itaobim - MG, cresceu nas franjas do Meia - Pata- ca ouvindo sapateiros, costureiras, roceiros, tecelões contarem seus casos e suas histórias de trabalho. Se encantava com folias de reis e embriagados calangueiros em seus desafios pelos becos da infância. Em casa escutava as alucinantes histórias paterna, ouvia a avó negra cantando benditos em latim enquanto costurava, estranhava a emo- ção materna entre novelas radiofônicas e os afazeres domésticos. O repentista me disse: N ã o b o r d o v e r s o s r a b i s c o s a l m a s r e b u s c a d a s N ã o c a n t o a l e g r i a s a a l e g r i a s e v i v ê n c i a C h o r o o s o l u ç o d o s e m u d e c i d o s E c o o u o s i l ê n c i o d o s s u r d o s S o u a l a g r i m a d o c e g o d i a n t e d a l u z S o n h o o p e s a d e l o d o m o r i b u n d o . Fragmento amoroso 1 N a l i n h a t o r t a d a v i d a u m v e r s o e s c r e v i c â n t i c o q u e n t e e t e r n o c a l o r f e b r i l d e p a i x ã o l e v e z a d e c o r p o n a n q u i m e r a o a b r i r d a s a l m a s a c a s a l a d a s n o i n v e r n o p i e g a s , c o m o m i n h a f é M a s a i n d a a s s i m u m v e r s o .
  • 25. Chicos 44 Fragmento amoroso - 2 L i - t e u m v e r s o d e p r o n o m e ú n i c o l i n h a d e q u e m d e c a i v e r m e l h o p a s s i o n a l s a n g r a d e d o r e x p l o d e d e a m o r . F i z - t e u m v e r s o d e v e r b o ú n i c o v e l h o e s u r r a d o b r a n c o e m o c i o n a l e s t a n c a a d o r e m b r i a g a o a m o r T e a m o ! Fragmento amoroso - 3 O p e i t o a r d e , a c a b e ç a e x p l o d e O f í g a d o i m p l o d e o c o r a ç ã o A h c o r a ç ã o ! N ã o c i c a t r i z a n u n c a . B a n g b o o m b a n g A t o p o é t i c o ? S e m v i d a o a m o r é i n d o l o r .
  • 26. Chicos 44 Osvaldo Picardo Nasceu em Mar del Plata em 1955, professor de literatura na Univer- sidade Nacional de Mar del Plata. Editor da revista La Pecera e dire- tor da Eudem Editora, é poeta, crítico, ensaísta e tradutor. Entre suas obras, destacam-se: Apenas en el mundo (1988), Dejar sin ventanas la verdad (1993), Quis, quid, ubi – Poemas de Quintiliano (1997), Una complicidad que sobrevive (2001), Pasiones de la línea (Poemas de Nico- lás de Cusa, 2008), Mar del Plata seguido de Otros Lugares y Viajes (2012) e 21 gramos (2014). Organizou a coletânea Primer mapa de poe- sia argentina (2000) e traduziu em parceria com F. Scelzo e E. Moore The love poemas, de James Laughin (2001). Vida de poesia N ã o é s e n ã o u m e x a g e r o p e l o q u e m e n t i m o s e m u m a b i o g r a f i a , “ u m t e r r e m o t o c o n t í n u o o u u m a f e b r e e t e r n a ” . Q u e m p o d e r i a e m t a l e s t a d o , p o r e x e m p l o , a m a r r a r o s c a d a r ç o s d o s s a p a t o s , l a v a r o â n u s t a n t o c o m o o r o s t o e c u s p i r n a m á c o n s c i ê n c i a c o m a q u a l s e e s c r e v e a i n j u s t i ç a ? O s p e r s o n a g e n s d a p o e s i a n ã o e s t ã o n o s p o e m a s q u e t e m o s f e i t o . S ã o o p o e t a d e s e s s e n t a a n o s q u e , s e g u n d o G i a n u z z i , “ i n c o r p o r a a é p o c a d e s u a i n j ú r i a ” m a s t a m b é m a s l o u q u i n h a s a n g u s t i a d a s q u e t e a c o r d a m n a m a d r u g a d a ; e o d e l i c a d o S u f e r n o a o q u a l C a t u l o c r i t i c a v a c o m u m a r a r a c o m p a i x ã o . S e m f a l a r d o s b ê b a d o s d e A l e x a n d e r B l o x q u e “ a c r e d i t a m q u e d e u s o t r o u x e a q u i p a r a b e i j a r o v e n t o e a n e v e … ” N ã o b a s t a a b r i r o L i v r o d a P o e s i a e l e r e m p ú b l i c o . A l u z n ã o é s u f i c i e n t e . E s t á e m o u t r a p a r t e , e n o s a b a n d o n a n a m e s a , d i a n t e d e u m a v e r d a d e i l e g í v e l . . Tradução: Ronaldo Cagiano
  • 27. Chicos 44 A mão de Deus D i e s t r o a q u e l e n v o l v e r c o n d i e s t r a p l a n t a l a p e l o t a q u e h u y e , c o m p e n s a n d o c o n l o s p i e s e l o f i c i o d e l a s m a n o s … ( A s t r o n o m i c o n d e M a n i l i o A n t í o c o , c i r c a s . I d . C ) A b o l a e s c a p a c o m a p o u c a e l e g â n c i a d e u m a c a b e ç a d e c a p i t a d a , r o m p e c o m a s l e i s d a t r a n q u i l i d a d e e c o m o s b o n s m o d o s . P o d e r i a s e r u m d o m i n g o , à t a r d e c o m r u a s v a z i a s e s i l ê n c i o s d e p á s s a r o s . P o d e r i a s e r e m q u a l q u e r p a r t e , e m q u a l q u e r t e m p o , e v e n t o p á t r i o e / o u c i r c o r o m a n o . M a s s ó f o i e m u m l u g a r e e m u m m o m e n t o . A c o i s a é q u e o s a l t o a i n d a e s t á n o a r , n a e x a u s t ã o f i n a l d e u m m ú s c u l o c o n t r a í d o p o r u m a g u e r r a e u m a d e r r o t a . N o s e x t o m i n u t o n a s c e u , d e u m e m p a t e n o s e g u n d o t e m p o . e n a o v a ç ã o s i l e n c i a d a , M a r a d o n a s e e l e v a s o b r e o i n g l ê s . D e p o i s f o i o u t r o d i a , a p e n a s s a i u o s o l e s e f a l o u d a f r a u d e e a t é d e d e u s . Tradução: Ronaldo Cagiano
  • 28. Chicos 44 México, Junho de 1986 P e r d o n a m e , e s t a b a n m u y r i c a s , t a n d u l c e s y t a n f r i a . W i l l i a m C . W i l l i a m E s t e g o s t o n a b o c a e n t r e á c i d o e a l g o d o c e d e u m a a m e i x a n ã o f o i i g u a l a o d e h á m a i s d e t r ê s m i l a n o s ? U m n ã o s a b e c o m o e x p l i c a r f i n a l m e n t e o q u e r e s t a d o i n c h a d o a r r e d o n d a m e n t o c o m q u e p r e e n c h e u s u a m ã o n e m e s s e d u r o d e s e j o d e d u r a r q u e r e s i s t e n a c ó p i a d e s u a c a r n e p o d r e . U m a a m e i x a r o x a , q u a s e n e g r a N ã o é c a p a z d e c o n t e r o u n i v e r s o . N ã o p o d e r á f a z e r c o m q u e n a d a m u d e . E s s e g o s t o é u m a c o n t í n u a p a u s a e m q u e t r o p e ç a m a c u l p a e o p e r d ã o . Tradução: Ronaldo Cagiano
  • 29. Chicos 44 Haroldo de Campos, poeta da “transcriação” Manuel Bandeira Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu em Reci- fe, 19.04.1986 e faleceu no Rio de Janeiro, 13.10.1968. Poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro. Tem-se que Bandeira faça parte da geração de 1922 da literatura mo- derna brasileira, sendo seu poema Os Sapos o abre-alas da Semana de Arte Moderna de 1922. Com escritores como João Cabral de Melo Ne- to, Paulo Freire, Gilberto Freyre, Clarice Lispector (ucraniana que se dizia pernambucana, por ter morado em Recife) e Joaquim Nabuco, entre outros, representa o melhor da produção literária do Estado de Pernambuco. U m a n o i t e d e s t a s , c o n v e r s a v a e u c o m o m e u a m i g o L u í s A n í b a l e n ã o m e l e m b r o m a i s c o m o a c o n v e r s a r e c a i u e m J o s é d e A b r e u A l b a n o . P o u c a g e n t e c o n h e c e r á ê s s e n o m e . F o i u m h o m e m e s t r a n h o , t o c a d o d e l o u c u r a , q u e d e i x o u u n s p o u c o s p o e m a s d e i n s p i r a ç ã o d o c e m e n t e m e l a n c ó l i c a e g r a n d e p e r f e i ç ã o d e f o r m a . E r a p a r a ê l e u m p o n t o d e h o n r a s ó e s c r e v e r e m l i n g u a g e m q u i n h e n t i s t a , p o i s a d o s e u t e m p o l h e a p r e c i a d e u m a v u l g a r i d a d e i n d i g n a d a p o e s i a . L e m b r o - m e d e o t e r v i s t o v á r i a s v e z e s n a L i v r a r i a G a r n i e r : b a i x o , m e i o g o r d o , b a r b a n e g r a c e r r a d a , m o n ó c u l o , o l h a r p e n e t r a n t e , a n d a v a s e m p r e m e t i d o n u m a s o b r e c a s a c a p r e t a e c h a p é u d e f e l t r o m o l e . L e m b r o - m e d e o t e r v i s t o u m a t a r d e c o n t e s t a r o q u e l h e d i z i a J o ã o R i b e i r o : – “ N ã o d i g a t o l i c e s , J o ã o R i b e i r o ! N ã o d i g a t o l i c e s ! ” F i q u e i e s t u p e f a t o c o m a l i b e r d a d e d a q u e l a s p a l a v r a s , p o r q u e J o ã o R i b e i r o , q u e e r a m e u m e s t r e n o P e d r o I I , m e e n t u p i a d e r e s p e i t o . O r a , L u í s A n í b a l p r i v a r a c o m o p o e t a e m P a r i s , o n d e J o s é A l b a n o v i v e u l o n g o s a n o s . A f a m í l i a m a n d a v a r e g u l a r m e n t e u m a b o a m e s a d a a o e x p a t r i a d o . M a s ê s t e e s b a n j a v a o d i n h e i r o e m p o u c o s d i a s e p a s s a v a o r e s t o d o m ê s e m q u a s e m i s é r i a . L á j á n ã o u s a v a a s o b r e c a s a c a : a d o t o u u m a e s p é c i e d e b l u s a d e v e l u d o c ô r d e c a s t a n h a e n ã o d i s p e n s a v a a s l u v a s , q u e e r a m p r e t a s e d e t ã o s u r r a d a s d e i x a v a m p a s s a r a s p o n t a s d o s d e d o s . C o m o s e a r r a n j a v a A l b a n o p a r a v i v e r d e p o i s d e a c a b a d a a m e s a d a ? P r o c u r a v a o s p a t r í c i o s r e c é m - c h e g a d o s e p r o p u n h a - l h e s ( n ã o p e d i a , n ã o e r a m e n d i g o ! ) s u b s c r e v e s s e m a p r ó x i m a e d i ç ã o d e s u a s o b r a s p o é t i c a s c o m p l e t a s . – Q u a n t o é ? I n d a g a v a o n o v o s u b s c r i t o r , i m p r e s s i o n a d o p e l o a s p e c t o i n s ó l i t o d o v i s i t a n t e . – T r e z e n t o s f r a n c o s ! N a q u e l e t e m p o e r a u m s ô c o n a b ô c a d o e s t ô m a g o . M a s A l b a n o a c u d i a c o m a a r n i c a : – N ã o é n e c e s s á r i o p a g a r d e s d e l o g o t ô d a a i m p o r t â n c i a : o s r . D á u m a p a r c e l a p o r c o n t a e e u v o l t a r e i a p r o c u r á - l o à m e d i d a q u e a i m p r e s s ã o d o l i v r o p r o g r i d a . A l b a n o s a í a c o m u m a n o t a d e c i n q u e n t a f r a n c o s e i a j a n t a r e m r e s t a u r a n t e c a r o . N o d i a s e g u i n t e e s t a v a d e n o v o e m a p e r t o s . – P o r q u e f a z i s s o ? P e r g u n t o u - l h e u m a v e z G r a ç a A r a n h a . A o q u e o p o e t a r e s p o n d e u c o m i m e n s a d i g n i d a d e : – N u m a s o c i e d a d e b e m o r g a n i z a d a o s p o e t a s t e r i a m d i r e i t o a o n é c t a r ! D e u m a f e i t a c h e g o u a P a r i s u m p a u l i s t a m u i t o r i c o c h a m a d o C o n c e i ç ã o . A l b a n o i n d a g o u d e L u í s A n í b a l : – Ê s s e s r . C o n c e i ç ã o c o m p r e e n d e p o e s i a ? O m e u a m i g o , q u e v i a o e s t a d o d e p e n ú r i a d o p o e t a , e n ã o p o d i a n o m o m e n t o s o c o r r ê - l o , n ã o t e v e d ú v i d a e m a f i r m a r q u e s i m . O p a u l i s t a s e h o s p e d a r a n o m e l h o r h o t e l d e P a r i s n a q u e l e t e m p o , o C l a r i d g e . A l b a n o d i r i g i u - s e p a r a l á e d e c l a r o u c o m ê n f a s e a o p o r t e i r o : - V e n h o v i s i t a r o s r . C o n c e i ç ã o . O h o m e m o l h o u - o d e s c o n f i a d o e t e l e f o n o u p a r a o a p a r t a m e n t o d o h ó s p e d e . A n u n c i o u “ m r A l b a n ô ” . S u c e d i a q u e o c o r r e s p o n d e n t e d o s r . C o n c e i ç ã o e m P a r i s e r a u m f r a n c ê s d e n o m e A l b a n e l . E o r i c a ç o r e s p o n d e u c o m e f u s ã o a o p o r t e i r o q u e f i z e s s e s u b i r i m e d i a t a m e n t e o v i s i t a n t e . I m a g i n e m a g o r a a s u r p r ê s a d o s r . C o n c e i ç ã o q u a n d o l h e e n t r o u p e l o q u a r t o n ã o a l b a n e l , m a s A l b a n o , o n o s s o J o s é d e A b r e u A l b a n o , p r o p o n d o - l h e a s u b s c r i ç ã o d e s u a s o b r a s p o é t i c a s c o m p l e t a s , p r e ç o t r e z e n t o s f r a n c o s ! M a i o r , p o r é m , f o i a s u r p r ê s a d o p r ó p r i o p o e t a a o r e c e b e r d o b o m C o n c e i ç ã o a i m p o r t â n c i a i n t e g r a l , c o i s a q u e n u n c a d a n t e s l h e h a v i a a c o n t e c i d o ! D e s t a v e z o p o e t a f o i p a s s a r d o i s d i a s e m D e a u v i l l e , a p r a i a m a i s e l e g a n t e d e F r a n ç a : o s p o e t a s t ê m d i r e i t o a o n é t a r ! M a s e u n ã o e s t o u b a t e n d o a m á q u i n a e s t a c r ô n i c a p a r a c o n t a r o s e x p e d i e n t e s d e J o s é A l b a n o e m p a r i s , e x p e d i e n t e s e m q u e n ã o h a v i a – é p r e c i s o q u e s e n o t e – n e n h u m e s p í r i t o d e t r a p a ç a : o p o e t a e r a u m h o m e m d i g n o e a l t i v o : a c r e d i t a v a c â n d i d a m e n t e n a f u t u r a e d i ç ã o d e s e u s p o e m a s . E s t o u e s c r e v e n d o s ô b r e e l e p o r q u e L u í s A n í b a l m e r e v e l o u t e r e n t r e o s s e u s p a p é i s u m p o e m a d e A l b a n o q u e j u l g a v a i n é d i t o . L i o s v e r s o s e m e p a r e c e r a m d e u m a g r a n d e b e l e z a . José de Abreu Albano
  • 30. Chicos 44 A m é r i c o F a c ó , q u e e r a a m i g o d o p o e t a , é q u e p o d e r á d i z e r s e s ã o r e a l m e n t e i n é d i t o s . I n t i t u l a m - s e “ Tr i u n f o ” e s ó p o r a í j á s e p o d e a d v i n h a r a f e i ç ã o e s a b o r p e t r a r q u i s t a d ê l e s . D e s c r e v e A l b a n o e m t e r c e t o s p r i m o r o s o s – o s m a i s p u r o s q u e e s c r e v e u – a v i s ã o d e u m c o r t e j o d e V ê n u s , o n d e l h e a p a r e c e a b e m - a m a d a , a q u e m f a l a : A h n ã o m e d e i x e s n u n c a a n d a r s ò z i n h o M a s d á - m e s e m p r e , e m a f l i ç ã o t a m a n h a , U m p o u c o d e c o n s ô l o e d e c a r i n h o . Ó m e u s o n h o d e a m o r , t u m e a c o m p a n h a P o r e s t a v i d a , à s v ê z e s t ã o e s c u r a , P o r e s t a v i d a , à s v ê z e s t ã o e s t r a n h a . A q u i n ã o p o s s o d e i x a r d e p a r a r u m p o u c o , p o r q u e j á e s t o u o u v i n d o A u g u s t o F r e d e r i c o S c h m i d t d i z e r c o m o v i d o : – Q u e b e l e z a ! ( R e a l m e n t e , q u e p r o f u n - d i d a d e d e m i s t é r i o e s e n t i m e n t o n e s t e s i m p l e s v e r s o : “ P o r e s t a v i d a , à s v ê z e s t ã o e s t r a n h a ” ! ) A m u s a c o n s o l a o p o e t a n a m e s m a m a r a v i l h o s a t e r z a r i m a e s ã o e s t a s a s s u a s ú l t i m a s p a l a v r a s : E e m b o r a a g e n t e h u m a n a t e n ã o l o u v e , H á s d e v i v e r c o n t e n t e , c o n h e c e n d o Q u e P o l í m n i a t e i n s p i r a e A p o l o t e o u v e . E o p o e m a a c a b a : ‘ A s s i m f a l o u a f l a m a e m q u e m e a c e n d o D e n t r o d o C o r a ç ã o i a a u m e n t a n d o E n q u a n t o a d o c e v o z i a g e m e n d o . E e l a q u e d e C u p i d o s e g u e o m a n d o , C o r t o u n o b o s q u e o s r a m o s d u r a d o u r o s E c o ’ u m s o r r i s o m i l a g r o s o e b r a n d o M e c o r o o u d e m i r t o s e d e l o u r o s . ” H á q u e m d i g a f a l a n d o d o p o e t a : – P o b r e A l b a n o ! E u n ã o d i g o . P o b r e , c o i s a n e n h u m a ! J o s é d e A b r e u A l b a n o f o i u m a l t í s s i m o p o e t a , e s c r e v e u u m d o s m a i s b e l o s s o n e t o s d a l í n g u a p o r t u g u ê s a e d e t ô d a s a s l í n g u a s , v i v e u p e r f e i t a m e n t e f e l i z d e n t r o d o s e u s o n h o , n a l o u c u r a q u e D e u s l h e d e u e n a m i s é r i a q u e f o i a c r i a ç ã o d e s u a p r ó p r i a m ã o p e r d u l á r i a . E m F l a u t a d e P a p e l * * L i v r o d e c r ô n i c a s d e 1 9 5 7 , o n d e M a n u e l B a n d e i r a n a p á g i n a 7 a d v e r t e : “ A s m i n h a s C r ô n i c a s d a P r o v í n c i a d o B r a s i l , c u j a e d i ç ã o , q u e é d e 1 9 3 6 , s e a c h a v a d e h á m u i t o e s g o t a d a , n ã o m e r e c e r i a m r e i m p r e s s ã o : a l g u m a c o i s a d e l a s f o i a p r o v e i t a d a e m o u t r o s l i v r o s , c o m o , p o r e x e m p l o , o q u e s e r e f e r i a a O u r o P r e t o e a o A l e i j a d i n h o ; m u i t a o u t r a p e r d e u a o p o r t u n i d a d e . D e c i d i , p o i s , r e e d i t a r a p e n a s o q u e n e l a s m e p a r e c e u m e n o s c a d u c o , j u n t a n d o - l h e n u m e r o s a s c r ô n i c a s e s c r i t a s p o s t e r i o r m e n t e , a m a i o r i a p a r a o J o r n a l d o B r a s i l . . . . ”
  • 31. Chicos 44 José Antonio Pereira Nasceu em Cataguases - MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia-Pataca (2013). O noviço I b r a h i m c h e g o u n a q u e l e l u g a r e j o m e i o a c o n t r a g o s t o ; s o n h a r a d e s e n - v o l v e r s u a c a r r e i r a n u m a c i d a d e m e - d i a n a , m a i s c o n t e m p o r â n e a , m a i s a b e r t a à s s u a s i d e i a s d e j o v e m q u e t i n h a u m a c e r t a a d m i r a ç ã o p e l a r e - v o l u ç ã o d e c o s t u m e s e m p r e e n d i d a p e l o s d e s u a g e r a ç ã o . A f i n a l , g o s t a - v a d e r o c k , d o s c a b e l o s c o m p r i d o s h i p p i e s , d a s i d e i a s d e S a r t r e e S i - m o n e d e B e a u v o i r , à s e s c o n d i d a s l e - r a a t r i l o g i a r o s a - c r u c i f i c a ç ã o d e H e n r i M i l l e r , e m p r e s t a d a d e a l g u n s a m i g o s , t i d o s p e l a s u a f a m í l i a c o m o m á s c o m p a n h i a s . C a i r n u m a c i d a - d e p e q u e n a e c o n s e r v a d o r a a t é o ú l - t i m o f i o d e c a b e l o , n ã o e s t a v a e m s e u s p l a n o s . N ã o t i n h a j e i t o , a h i e - r a r q u i a e r a r í g i d a e q u e m f i z e r a a o p ç ã o p e l a c a r r e i r a f o r a e l e . R e c l a - m a r , n e m c o m o b i s p o a d i a n t a r i a . L á s e f o i . A i n d a n a r u a a o i n d a g a r s o b r e a l o c a l i z a ç ã o d a i g r e j a e s t r a - n h a v a a s r e s p o s t a s , - C ê é o n o v o a j u d a n t e d o O e s p a n h o l ? N o s s a , v o - c ê é t ã o d i f e r e n t e d o O e s p a n h o l . D e d u z i u l o g o e m q u e e m p r e i t a d a e s - t a v a s e m e t e n d o . A p r e s e n t o u - s e a o s e u n o v o l í d e r o C ô n e g o J a v i e r . O i m p r e s s i o n o u f o r t e m e n t e o p o b r e h o m e m . E n t r e a s m u i t a s i n f o r m a - ç õ e s q u e j á o b t i v e r a , s o b r e o p a d r e , o l u g a r e j o e s e u s m o r a d o r e s , s a b i a q u e , a p e s a r d o s o b r e n o m e e s p a n h o l , o c ô n e g o e r a u m g a l e g o q u e n a s c e r a p o r t u g u ê s . Ó r f ã o a o s d o i s a n o s , m i - g r o u c o m o s t i o s p a r a B r a s i l . A l - g u n s , q u e r e n d o p a r e c e r m a i s í n t i - m o s o c h a m a v a m p e l o p r i m e i r o n o - m e , o u t r o s s e r e f e r i a m a e l e c o m o G a l e g ã o , s e m n e m s a b e r e m p o r q u ê . M a s a m a i o r i a s i m p l e s m e n t e o t r a t a - v a , n a s u r d i n a , d e O e s p a n h o l . N i n - g u é m t i n h a o t o p e t e d e d i r i g i r - s e a e l e n e s t e s t e r m o s . F i g u r a s o t u r n a , a r q u e a d o p e l a i d a d e , o r e l h a s d e a b a n o , r o s t o t r a n s f i g u r a d o p e l a s e s - p i n h a s , c r a v o s d a a d o l e s c ê n c i a e a c o r r o s i v a a ç ã o d o t e m p o . N o m e i o d a c a r a g o r d a , u m n a r i z e n o r m e e a v e r m e l h a d o , a q u e l a s o l h e i r a s n e - g r a s v i n c a d a s p o r p á l p e b r a s c a í d a s f o r m a v a m u m a i m a g e m d e i n q u i s i - d o r m e d i e v a l . E x a l a v a u m c h e i r o e m q u e p a r e c i a m m i s t u r a r - s e v e l a , i n - c e n s o , g u a r d a - r o u p a v e l h o e u m a p i - t a d a d e n a f t a l i n a . A q u e l a f i g u r a t o d a n e g r a c o x e a v a p e l a s r u a s a b a - f a d a s d a c i d a d e ; s o b r e a c a b e ç a u m c h a p é u d e f e l t r o c o m a b a l a r g a p r e - t o , a r r a s t a n d o u m g r a n d e g u a r d a - c h u v a p r e t o c o m u m g r o s s o c a b o d e p i n h o - d e - r i g a , q u e a s v e z e s u s a v a c o m o e s c o r a d o c o r p o , u m a f r á g i l b e n g a l a p a r a c o r p o t ã o p e s a d o . N o p r i m e i r o c o n t a t o , a p r i m e i r a t r o m b a d a . – R a p a z , e s t e s s ã o m o d o s d e s e a p r e s e n t a r ? – C o m o a s s i m , s e - n h o r ? – E s t a s r o u p a s , o r a p o i s ! – M a s f o r a d o c o n t e x t o d e m i n h a s o b r i g a ç õ e s , s e m p r e m e v e s t i a s s i m . – A q u i n ã o ! T e r á s d e s e v e s t i r c o m d i s t i n ç ã o . – S e m p r e u s e i c a m i s e t a s e j e a n s . – E t e m m a i s , e s s a s p o r - c a r i a s q u e u s a s n o s p é s , n e m p e n - s a r . U s a r á s s a p a t o s p r e t o s e b e m e n g r a x a d o s . – M a s n ã o o s t e n h o , m e u s e n h o r ! U s o f r a n c i s c a n a s s a n - d á l i a s , n ã o u s o s a p a t o s . – S i m p l e s , c o m p r e - o s .
  • 32. Chicos 44 N e s t a r u a , q u e d e s c e a q u i e m f r e n - t e d a i g r e j a , t e m u m a s a p a t a r i a . A S a p a t a r i a d o S e u T e l ê , p r o c u r e - o e m m e u n o m e , e l e t e c o n s e g u i r á u m p a r u s a d o , p o r u m b o m p r e ç o . E l á s e f o i O e s p a n h o l a r r a s t a n d o s u a r a b u g i c e p e l a c a s a a f o r a , l a r - g a n d o o r e c é m - c h e g a d o s o z i n h o n a p o r t a d a s a l a . S e m p r e c i o s a m e n t e c o n t r o l a d o p e l o O e s p a n h o l , t i n h a m e d o d e p e r d e r o c o n t r o l e s o b r e s e u s f i é i s , o n o v i ç o i n i c i a s e u t r a - b a l h o n a p a r o q u i a . R e s i d i n d o c o m o c h e f e , n a c a s a p a r o q u i a l , n ã o s e s e n t i a n e m u m p o u c o à v o n t a d e , n a q u e l a c a s a s o t u r n a . A p ó s a l g u n s d i a s , a q u e l e a r p e s a d o e c o n s e r v a - d o r d a c a s a c o m e ç o u a i n c o m o d á - l o . O e s p a n h o l r a l h a v a p o r q u a l - q u e r c o i s a . O t r a b a l h o p a s t o r a l e r a o u t r a c h a t i c e . S e n t i a - s e c o n s t r a n - g i d o e m s e n t a r n u m c o n f e s s i o n á r i o , o u v i r a q u e l e m o n t e d e p e c a d i l h o s , t o d o s p e q u e n o s e i n g ê n u o s d e s l i - z e s , c o i s a s p e r f e i t a m e n t e n o r m a i s e n a t u r a i s n o e n t r e c h o q u e s d a s r e - l a ç õ e s h u m a n a s . M a s , o q u e i n c o - m o d a v a m u i t o e r a m a l g u n s a t o s d e v i o l ê n c i a . N ã o s e s e n t i a n a d a b e m , t e n t a v a c o n v e n c e r o p e c a d o r a b u s - c a r a s a u t o r i d a d e s . C o n s i d e r a v a a q u i l o m u i t o a l é m d e u m p e c a d o c o n t r a a f é , m a s u m c r i m e c o n t r a d i r e i t o s b á s i c o s d o s e r h u m a n o . C o i s a i n a c e i t á v e l p a r a q u e m s e d i - z i a c r i s t ã o . A t é o d i a e m q u e a t e n d e u u m c i r - c u n s p e c t o c i d a d ã o . E s t e c o n f e s s o u u m a e s p é c i e d e f e t i c h e q u e p r o v o - c a v a i m e n s o p r a z e r , m a s s u b m e t i a s u a e s p o s a a d o r e a d e i x a v a b a s - t a n t e d e p r i m i d a . – S a b e c o m o é ! E l a é m i n h a e s p o s a , t e m q u e c u m - p r i r s u a s o b r i g a ç õ e s d e m u l h e r . – O s e n h o r n ã o p r e c i s a d e u m a c o n - f i s s ã o . P r e c i s a d e u m m é d i c o . I s t o é d o e n ç a ! A r e s p o s t a p r o v o c o u a i r a d o c i d a d ã o q u e a b r u p t a m e n t e l e - v a n t o u d o c o n f e s s i o n á r i o e f o i à p r o c u r a d e O e s p a n h o l . O p e q u e n o p o t e n t a d o , f a z e n d e i r o , c o m e r c i a n t e d o n o d o a r m a z é m , v i a c a d e r n e t a d e f i a d o c o n t r o l a v a q u a s e t o d a a p o - p u l a ç ã o , b a t e u à p o r t a d e J a v i e r r e - c l a m a n d o a c i n t o s a m e n t e d o n o v i ç o , s e u s m o d o s e a p e t u l â n c i a d e m a n - d á - l o p r o c u r a r u m m é d i c o . – O n d e j á s e v i u u m m o l e q u e d e s t e s m e d e s r e s p e i t a r d e s t a f o r m a . O s e - n h o r , D o m A n t ô n i o , t e m q u e e n q u a - d r a r e s t e p i r r a l h o . M e l h o r a i n d a , m a n d e - o e m b o r a d a q u i . A s s u n t o s d e a l c o v a , p a d r e J a v i e r , é n o m á x i - m o u m p e c a d o . N u n c a , m a s n u n c a m e s m o é u m a d o e n ç a . P a d r e J a v i - e r j á p e r c e b i a q u e o s v e n t o s d a m o - d e r n i d a d e t r a z i d o p e l o j o v e m c h o - c a v a m - s e c o m a q u e l a u r d i d u r a q u e e l e t e c e r a a o l o n g o d o t e m p o . E l e e r a c o n s e l h e i r o d o s h o m e n s p a r a t o d o s o s a s s u n t o s ; c o n t r o l a v a t o d o s o s m o r a d o r e s a o d e t e r , v i a c o n f i s - s õ e s , o s s e g r e d o s d e t o d o s . E x e r c i a e s t e p o d e r s o b r e t o d o s s e m n e n h u m c o n s t r a n g i m e n t o . V i r o u - s e p a r a o c o m e r c i a n t e e d i s p a r o u : – O l h a a q u i , ô J o a q u i m ! V o c ê s a b e m u i t o b e m q u e o q u e v o c ê f a z é p e r v e r s ã o p u r a . E u a n d o p a s s a n d o d o s l i m i t e s d a t o l e r â n c i a r e l i g i o s a p a r a r e m i r t e u s p e c a d o s . V o u c o n v e r s a r c o m o I b r a h i m , m a s v o c ê t e m q u e t o m a r j e i t o . – N u n c a m a i s c o n f e s s o c o m e l e ! A l i á s , e l e n e m a q u i v a i f i c a r . D a n d o d e o m b r o s o d o n o d o a r m a - z é m d e s p e d e - s e d o O e s p a n h o l . S e d i r i g e p a r a a p o r t a . – P a s s a l á e m c a s a p r a u m c a f é ? L a n ç a u m c í n i c o o l h a r p a r a o v e l h o p a d r e , c o n h e c e - d o r q u e é d e s u a s f r a q u e z a s e , m a - q u i a v é l i c o , c o n t i n u a . – V á l á q u e t e c o n t o c o m o é a m u l h e r d o f a r m a - c ê u t i c o . S a í c o m e l a ! O d e s t i n o d e I b r a h i m j á e s t á s e l a - d o . O e s p a n h o l s ó v a i e s p e r a r a m e l h o r o p o r t u n i d a d e p a r a a n u n c i á - l o .
  • 33. Chicos 44 Emerson Teixeira Cardoso Nasceu em Cataguases - MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Esti- lete (1967), mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997). Diários de Navegação D i z - n o s u m c r í t i c o n a d a i n g ê n u o d e n o s s a n a c i o n a l i d a d e q u e n e n h u m d e n o s s o s a u t o r e s p o d e s e r a p r e c i a d o s e m r e s e r v a s , e q u e n e - n h u m d e l e s p o d e s e c o m p a r a r a u m F l a u b e r t o u D i c k e n s . N ã o h á a í n e - n h u m e x a g e r o s e p e n s a r m o s q u e n e - n h u m d e n o s s o s p e r í o d o s l i t e r á r i o s s e c o m p a r a m a o R e n a s c i m e n t o n a I t á l i a o u a o R o m a n t i s m o n a F r a n ç a . A l g u é m p o d e r i a c o n t e s t a r i s t o ? M a s , n o a l h e a m e n t o à g l ó r i a , n o d e s p r e n d i m e n t o , e s s e m e s m o c r í t i c o n o s m o s t r a q u e n o p r i m i t i m i s m o d e n o s s a s l e t r a s e s s e s n o s s o s e s c r i t o - r e s b u r o c r a t a s t i v e r a m l a m p e j o s d e g r a n d e s p o e t a s . I s s o , m e i o s é c u l o a n t e s d e n o s s o c é l e b r e j e s u í t a e s c r e - v e r n a a r e i a o s v e r s o s à v i r g e m : “ c o r d e i r i n h a m a n s a ” [ . . . ] O u t r o s p o d e r i a m a f i r m a r q u e e s - s e s a u t o r e s , é c l a r o q u e m e r e f i r o a o s v i a j a n t e s e m s e u s f a m o s o s d i á - r i o s d e n a v e g a ç ã o , s e n d o o m a i s n o - t á v e l d e l e s P e r o V a z d e C a m i n h a , n ã o e r a m b r a s i l e i r o s , m a s é i n e g á v e l q u e t a i s o b r a s n a s c e r a m e m n o s s a s á g u a s e v e r s a v a m s o b r e n o s s a s c o i - s a s e n o s s a g e n t e . C o m p o r m e n o r e s t o p o g r á f i c o s e n o t a s d e h u m o r p r e c e d e u a e s t e , o u - t r o i n c i p i e n t e h i s t o r i a d o r P e r o L o - p e s d e S o u s a . S e u s u c e s s o r r e s p o n d e p o r t e r s i d o t a m b é m a l é m d e p o e t a o m a i s a n t i g o p r e c u r s o r d e n o s s o t e a - t r o c o m s e u s a u t o s m o r a l i z a d o r e s . M a n o e l d e N ó b r e g a f o i o u t r o j e - s u í t a q u e r e l a t o u d a d o s b a s t a n t e p i - t o r e s c o s s o b r e “ o g e n t i o d o s e r t ã o ” , “ o s d e g r e d a d o s ” , “ a s p r e g a ç õ e s ” e b a t i s m o s . G a r a t u j a d o s à s p r e s s a s , s e m p r e m e d i t a ç ã o d e e s t i l o e r a m h o - m e n s d e l e t r a s q u e d e s c o n h e c i a m a s d e f o r m a ç õ e s p r o f i s s i o n a i s d a “ g r a n d e l e t t r e r i e ” . E n a d a m a i s c a t i v a n t e q u e e s s a i n g e n u i d a d e , e s s a s i m p l i c i d a d e p a r a q u e m a l i t e r a t u r a n ã o c o n s t i t u í a u m m e i o e n ã o u m f i m . N o q u e s i t o e p i s t o l a r , a s r i c a s c a r t a s d e d o c u m e n t o s f o l c l ó r i c o s e m b o r a d e s t i t u í d a s d e p a t e n t e s t i - n h a m o s o l h o s b e m a b e r t o s p a r a q u e h a v i a a o r e d o r d e s i . F i n a l m e n t e G a n d a v o , q u e f o i a m i g o d e C a m õ e s , c o m q u a l i d a d e s d e n a t u r a l i s t a e g r a d a ç õ e s d e r e c e n s e a - d o r , l o u v o u o n o s s o c l i m a , n o s s a f a u n a d e s p e r t a n d o e m o ç õ e s p a n t e í s - t a s . A í n o s f i n a i s d o p r i m e i r o q u a r t e l d o s é c u l o X V I I o u v i u - s e a p r i m e i r a v o z a u t e n t i c a m e n t e n o s s a . V o z b r a - s i l e i r a e b e m r e p r e s e n t a t i v a d o s f i - l h o s d e s t a t e r r a : F r e i V i c e n t e d e S a l v a d o r . S u a m í m i c a é v i v a z c o m o a d e u m “ c a n t a s t o r i e ” n a p o l i t a n o : d i z o c é l e - b r e c r í t i c o e h i s t o r i a d o r . A n t e s d e p ô r o p o n t o f i n a l n e s t a s m a l a l i n h a v a d a s l i n h a s d e v o d i z e r q u e e s t e s c o n c e i t o s a p r e s e n t a d o s a q u i e m C h i c o s p o r e s t e m o d e s t o e s - c r i b a e s t ã o e m E v o l u ç ã o d a P r o s a B r a s i l e i r a , e d i t a d a l á n o s a n o s t r i n - t a . S e u a u t o r é o e x c e l e n t e , A g r i p i - n o G r i e c o . N o t a d a R e d a ç ã o A g r i p i n o G r i e c o n a s c e u e m P a r a í b a d o S u l - R J e m o r r e u n o R i o d e J a n e i r o - R J 1 9 7 3 . C r í t i c o l i t e r á r i o , p o e t a , c o n t i s t a , t r a d u - t o r , j o r n a l i s t a . F i l h o d o s i t a l i a n o s P a s c o a l G r i e c o e R o s a C o v e l l o G r i e c o , p r o v e n i e n t e s d e B a s i l i c a t a . E m 1 9 0 6 , m u d a - s e p a r a o R i o d e J a n e i r o e c o m e ç a a c a r - r e i r a d e f u n c i o n á r i o p ú - b l i c o n a C e n t r a l d o B r a - s i l . E s t r é i a n a l i t e r a t u - r a c o m u m a o b r a d e p o - e s i a , Â n f o r a s , e m 1 9 1 0 , e t r ê s a n o s d e p o i s c o m u m c o n j u n t o d e c o n t o s i n t i t u l a d o E s t á t u a s M u t i l a d a s . D e 1 9 1 3 a t é 1 9 2 0 d e d i c a - s e i n t e i r a m e n t e à l e i t u r a d e a u t o r e s c l á s s i c o s e r o m â n t i - c o s s e m n a d a p u b l i c a r . A p a r t i r d e e n t ã o e s c r e v e c o l u - n a s l i t e r á r i a s e m p e q u e n o s j o r n a i s e r e v i s t a s a t é s e r c o n v i d a d o p e l o c r í t i c o T r i s t ã o d e A t a í d e a s u b s t i t u í - l o e m O J o r n a l , e m q u e e s t r é i a c o m a r t i g o s o b r e o p o e - t a G r e g ó r i o d e M a t o s . E e s s e s s e u s p r i m e i r o s a r t i g o s s ã o r e u n i d o s e m F e t i c h e s e F a n t o c h e s , d e 1 9 2 1 , e C a ç a d o r d e S í m b o l o s , d e 1 9 2 3 . E m s u a s c o l u n a s t o r n a - s e t a m b é m g r a n d e d e f e n s o r d a o b r a d o p o e t a C a s t r o A l - v e s . S u a i m p o r t â n c i a n o m e i o l i t e r á r i o , d o i n í c i o d a d é - c a d a d e 1 9 2 0 à d é c a d a d e 1 9 5 0 , e s t á d i r e t a m e n t e l i g a d a a o f a t o d e p e r m a n e c e r t o d o e s s e t e m p o e s c r e v e n d o d i a r i - a m e n t e e m i m p o r t a n t e s j o r n a i s , c o m s u a s c o l u n a s c a r a c - t e r i z a d a s p e l o e c l e t i s m o e p e l o t o m p o l ê m i c o e s a t í r i c o , t r a t a n d o d e e s c r i t o r e s b r a s i l e i r o s , e s t r a n g e i r o s e l a n ç a - m e n t o s . E m c o m e m o r a ç ã o a o c e n t e n á r i o d e s e u n a s c i - m e n t o , e m 1 9 8 8 , é l a n ç a d o o v o l u m e G r a l h a s e P a v õ e s , c o m o r g a n i z a ç ã o d o f i l h o D o n a t e l l o G r i e c o , q u e t r a z a p o n t a m e n t o s i n é d i t o s e s c r i t o s e m p e q u e n a s t i r a s d e p a - p e l e e n c o n t r a d o s e m c a i x a s d e s a p a t o .
  • 34. Chicos 44 Luiz Ruffato Nasceu em Cataguases - MG, reside em São Paulo - SP. Entre tantas obras de sua autoria destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou um escritor reconhecido no país. Em 2011 concluiu o proje- to Inferno Provisório, com a publicação do romance Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005, composto por cinco livros sobre o operariado brasileiro. Lendo os Clássicos Este, que é o único romance de Poe, mostra a poderosa imaginação do au- tor. Escrito em primeira pessoa, trata-se de uma mescla de aventura e terror, gêneros que, embora já existissem antes, ganharam com ele roupagem nova. Filho de comerci- antes de Nantucket, importante porto bale- eiro situado na costa leste dos Estados Uni- dos, Pym é um jovem entediado em sua ci- dade, desejoso de ganhar os mares. Sua sorte muda quando embarca clandestina- mente no barco do capitão Barnard, pai de seu amigo Augustus. O que deveria ser uma expedição de pesca à baleia transfor- ma-se em um relato que vai do mais extre- mado realismo ao mais desvairado fantásti- co. Ao longo da narrativa, Pym descreve motins, rebeliões, pirataria, e até uma cena terrível de canibalismo. Após uma série pe- ripécias, ele e um marujo chamado Peters, únicos sobreviventes de um naufrágio, são reembarcados no navio Jane Guy, que ul- trapassa todas as fronteiras conhecidas dos Mares do Sul, para além do Círculo Polar Antártico, onde sobrevivem tribos selva- gens em mundos primitivos. Poe inova ter- minando a narrativa de Pym in media res - ou seja, abruptamente. O ponto fraco do livro é o uso exagerado da linguagem técni- ca marítima, que serve para provocar a sensação de verossimilhança, mas torna a leitura arrastada. Avaliação: Bom Julho de 2015 h t t p : / / l e n d o o s c l a s s i c o s l u i z r u f f a t o . b l o g s p o t . c o m . b r / A narrativa de Arthur de Gordon Pym (1838) Edgar Allan Poe (1809 - 1849) Tradução de José Marcos Mariani de Macedo São Paulo: Cosac Naify, 2010, 312 páginas
  • 35. Chicos 44 José Antonio Pereira Nasceu em Cataguases - MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras crôni- cas (2006) e Fantasias de Meia-Pataca (2013). A ponte que falava latim “Toda ponte é passagem, mas foi também trampolim para muitos rapazes, moças não, darem mergulho no rio, exibir façanhas e lavar a alma. "Ícones" não contam uma história, nós contamos.” Flausina Márcia da Silva A ponte, do meu ir e vir, era a Ponte Nova. Um horror arquitetônico malcuidado; feia, suja, desprezada, mesmo assim, intensa- mente utilizada por todos para quase tudo. Era por ela, que ônibus lotados de operários os con- duziam rumo aos seus empregos de menor va- lia; por ela corria-se, de todas as formas, com os doentes em suas dores e sofrimentos. Era uma estrutura de concreto ligando uma barranca a outra do Rio Pomba, que me conduzia ao mundo para além do mundo dos mortos. Ao cruzar a Ponte Nova, rumo aos muitos mun- dos por onde andei, sempre lançava um olhar desconfiado para a imponente silhueta metálica cruzando o rio mais acima. A Ponte Velha era no meu imaginário, desde a infância, uma espécie de Portal que ligava dois mundos, de um lado o mundo dos vivos do outro o dos mortos e sepa- rando os dois, as águas do rio. Ainda no colo de minha mãe, crescia acompa- nhando procissões e enterros em que analfabe- tos (eu também era) pranteavam: Salve, Regina, mater misericordiae, vita, dulcedo, et spes nos- tra, salve. Ad te clamamus, exsules filii Evae. Ad te suspiramus, gementes et flentes in hac la- crimarum valle. Eu nem falar sabia, mas o la- tim rondava meus ouvidos. A primeira vez que atravessei a velha ponte, com certeza foi num cortejo fúnebre. Acho que foi no enterro do velho Antônio Vicente, meu avô. Provavelmente, no colo do meu pai, já que minha mãe deveria estar dividindo seus prantos com os de minha avó. Nem poderia me dar con- ta do diálogo da ponte com meu avô: Revertere ad me suscipiam te. Cruzei a Ponte Velha, pela última vez num corte- jo fúnebre, já adulto. Era o enterro do meu pai, outro Antônio. Já não havia mais ladainhas nem o Credo in unum Deum, Patem onipotentem fac- torem... do funeral do meu avô, não se usava mais. Apenas o murmúrio de conhecidos e ami- gos da família que detalhavam, para os recém- chegados, como ocorrera o seu falecimento; ou- tros lamentavam a queda do preço da arroba de boi... Distante disto, eu no meio da ponte imagi- nava que as águas que corriam sob o corpo dele, eram as águas do rio Lete. Doravante ele esque- cerá a hipocrisia de alguns que o acompanham. Esquecerá Cataguases, Itaobim, o rio Jequiti- nhonha, o rio Meia-Pataca... Tudo ficará do lado de lá. Acabamos de cruzar a ponte, ergo a cabeça e olho para trás. A ponte tenta um último diálogo: Pacifisucne est ingressus tuus?
  • 36. Chicos 44 Ronaldo Cagiano Nasceu nem Cataguases - MG e reside em São Paulo - SP. Publica, regularmente, artigos e criticas literárias em diversos jornais e revis- tas do país e do exterior. Entre os vários já publicados destacam-se: Palavra Engajada (poesia 1989) Exílio (poesia 1990) Palavracesa (poesia 1994) Canção dentro da noite (poesia 1999) Dezembro indigesto (contos 2001) Concerto para arra- nha-céus (contos 2004) Dicionário de pequenas solidões (contos 2006) O sol nas feri- das (poesia 2011) Moenda de silêncios (novela em parceria com Whisner Fraga 2012). E m l i t e r a t u r a , o b o m - m o c i s m o e o p o l í t i c a ( o u s e r i a l i t e r a r i a m e n - t e ? ) c o r r e t o n ã o c o n v e n c e m e c o s t u - m a m r e v e l a r e s c r i t o r e s q u e t r a z e m à b a i l a s e m p r e o m a i s d o m e s m o , c o n - v e r t i d o à s b e n e s s e s d o m e r c a d o e d i t o - r i a l . A v e r d a d e i r a l i t e r a t u r a , p a r a m i m , é a q u e l a q u e p r o v o - c a i m p a c t o . Q u e n ã o s e j a a p e n a s c a u d a t á r i a o u e m u l a ç ã o d e u m a r u p t u r a f o r m a l q u e , m u i t a s v e z e s r e d u n d a n o v a z i o e n a f a l - t a d e c o n t e ú d o , m a s , p r i - m o r d i a l m e n t e , a q u e s e f i r m a n o q u e a n a r r a t i v a t e m d e v i s c e r a l e i n q u i e - t a n t e , t a n t o n o p l a n o t e - m á t i c o q u a n t o n a c o n s - t r u ç ã o d a p r ó p r i a a t m o s - f e r a . É n e s s e p a t a - m a r – o d a n e g a ç ã o d a s c o n v e n ç õ e s e d a p r ó p r i a a f e t a ç ã o , m o d i s m o s e r o - t u l a ç õ e s d e q u a l q u e r n a - t u r e z a – q u e s i t u o o n o v o l i v r o d e C a c o I s h a k , “ E u c o w b o y ” ( E d . O i t o e M e i o , R i o , 2 0 1 5 ) . A m e u v e r , e s - s a o b r a a n d a n a c o n t r a - m ã o d e t u d o o q u e v e m s e n d o p u b l i c a d o a t u a l - m e n t e n o B r a s i l e m t e r - m o s d e f i c ç ã o e q u e m u i - t a s v e z e s j á c h e g a c o m o p a c o t e s a c r a - l i z a d o p o r c e r t a c r í t i c a d e e n c o m e n - d a , r e c e b e n d o o i n c e n s o d o c o n s e n s o , m a s q u e , n o f r i g i r d o s o v o s , v a m o s p e r c e b e r q u e n ã o r e s i s t e a u m e s c r u - t í n i o , a u m m e r g u l h o m a i s p r o f u n d o d o l e i t o r e a t é d a c r í t i c a s i n c e r a . “ E u , c o w b o y ” t r a n s i t a n u m u n i v e r s o e m q u e a r u p t u r a s e d á , r e p i t o , n ã o p e l a d e m o l i ç ã o d a f o r m a , m a s p e l a p u n g ê n c i a d e u m a a g u d a c a - t a r s e e x i s t e n c i a l q u e i r r o m p e v u l c â - n i c a d a s v o z e s d e u m n a r r a d o r t ã o c a - ó t i c o , q u e c o a b i t a c o m I s h a k / K a d d i s h , o t e m p ( l ) o d o s p e r d e d o r e s . B i f u r c a d o s , a t a l h a d o s s e m s e u s d i l e - m a s í n t i m o s e m e t a f í s i c o s , p e r d i d o s n o l a b i r i n t o d e s e u s q u e s t i o n a m e n t o s f i l o s ó f i c o s e o u t r a s i n f l e x õ e s c é t i c a s , o q u e l e m o s é s o b r e v i d a ( s ) t r a n s c o r - r e n d o e n t r e o d i l a c e r a m e n t o e a f r u s - t r a ç ã o . É o r o m a n c e s o c o - n o - e s t ô m a g o , a q u e l e q u e n ã o n o s d e i x a s a i r i n d i f e r e n t e s c o m o l e i t o r e s , m u i - t o m e n o s i l e s o s c o m o c r i a t u r a . N ã o s e d e v e c r e d i - t a r e s s e r e b u l i ç o à l i n g u a - g e m , p o r q u e C a c o I s h a k n ã o é u m a u t o r a f e i t o à s e s t r i p u l i a s v e r b a i s , p o i s s u a n a r r a t i v a n ã o p r e s c i n - d e d e q u a l q u e r a p e l o à v a n g u a r d i c e o u i n v e n c i o n i - c e s . M e s m o n a l i n e a r i d a d e c o m q u e e s c r e v e , o a u t o r i n s u f l a u m a d i c ç ã o p r e d o - m i n a n t e m e n t e f r a g m e n t á - r i a n a q u i l o q u e é p e r c e b i - d o c o m o i n t e r s e ç ã o d e v á - r i o s m o d o s d e o l h a r , p e n - s a r , d i s c o r r e r & d i a l o g a r s o b r e o c a o s e a a r i d e z q u e n o s r o d e i a m , p o n t o c r u c i a l e d e i n s u r g ê n c i a d e u m n a r r a d o r e m p e r m a n e n t e e s t a d o d e d e s a s s o s s e g o . I s h a k d i a l o g a c o m a m o d e r n i d a d e e a t r a d i - ç ã o , s e u t e x t o h í b r i d o e s t á p o v o a d o d e r e f e r e n c i a i s e s t é t i c o s , e m q u e o f l e r t e c o m í c o n e s d a c u l t u r a p o p e / o u u n i v e r s a l g e r a u m d i s c u r s o q u e n ã o a t e n u a n o s s a s d ú v i - d a s , p e l o c o n t r á r i o a s a t u a l i z a e s u - g e r e r e f l e x ã o c r í t i c a s o b r e o q u o t i d i - a n o e o d e s m a n t e l a m e n t o d a c i v i l i z a - ç ã o a r b i t r á r i a d o c o n s u m o e d a m a s s m e d i a . U m n e c e s s á r i o v ô m i t o l i t e r á - r i o e c o n c e i t u a l c o n t r a e s s e m u n d o f e t i c h i z a d o p e l o d e u s m e r c a d o , q u a n - d o t u d o n ã o p a s s a d e v e r n i z e e t i q u e - t a c o i s i f i c a n d o t u d o e t o d o s . N a a b e r t u r a d o r o m a n c e , o n a r r a d o r C a r l o s K a d d i s h ( a q u i a r e - f e r ê n c i a b e a t n i k n ã o é a l e a t ó r i a , m a s a f i r m a ç ã o d o p r o j e t o d o a u t o r n a c o n - f i g u r a ç ã o d e s e u e s t i l o m a r c a n t e e q u e b e b e n a s f o n t e s d o i n c o n f o r m i s - m o ) , n o s d á a s p i s t a s p a r a o n d e q u e r l e v a r o l e i t o r . Geografia do caos numa prosa dilacerante
  • 37. Chicos 44 N o c a u t e a n d o - n o s c o m u m a p r o - s a a o m e s m o t e m p o r a d i c a l , m a s d e u m a p o é t i c a c o n t u n d ê n c i a , s i n a l i z a q u e , a p e s a r d o s e s c o m b r o s e c i n z a s d e u m a r e a l i d a d e f í s i c a , g e o g r á f i c a o u p s i c o l ó g i c a e x t r e m a d a n o s 2 7 c a p í t u l o s d o l i v r o , a i n d a p o d e m o s s a i r d a e s c u r i d ã o d o t ú n e l r e v e l a d o “ n a e s p e r a n ç a d e o d i a r u m p o u c o m e n o s a h u m a n i d a d e ” . “ E u , c o w b o y ” é u m l i v r o o u s a d o e i n o v a d o r , p o r é m r e n o v a d o e m s e u s a s p e c t o s , p e c u l i a r i d a d e s e s u - t i l e z a s d e n t r o d a p r ó p r i a t r a d i ç ã o n a r r a t i v a , c h a c o a l h a n d o o r o m a n c e b u r g u ê s o c i d e n t a l , p o r i s s o m a n t é m - s e a t u a l , c o n t e m p o r â n e o e c o m g a - n a s d e m a r c a r s e u e s p a ç o n e s s e c e - n á r i o d e l i t e r a t u r a r e p e t i t i v a e m o - n o c ó r d i c a q u e t e m v i c e j a d o p o r a í . N e s s a e x p e r i ê n c i a c r i a t i v a , o a u t o r t r a t o u d e d i l e m a s q u e c o m p õ e m o c a l e i d o s c ó p i c o v i v e n c i a l d e q u a l - q u e r s e r e h á u m f l e r t e c o m a m e t a - l i n g u a g e m e a i n t e r t e x t u a l i d a d e m u i t o f o r t e s , c o n f e r i n d o à o b r a u m a p a r t i c u l a r i d a d e p o l i f ô n i c a . V a m o s e n c o n t r a r n e s s a g e o g r a - f i a d e n s a , t e n s a , c a ó t i c a e d i l a c e - r a n t e u m n a r r a d o r p e r d i d o , m a s e m b u s c a d e u m s e n t i d o o u d e u m a d i - r e ç ã o . T u d o i s s o a p a r t i r d a v i s ã o a l u c i n a d a e r e f l e x i v a d e K a d d i s h q u e , d e s e u p r o m o n t ó r i o , o b s e r v a n - d o o m i c r o c o s m o d e B e l é m , r e g u r - g i t a a l e m b r a n ç a d a i n f â n c i a e a m e m ó r i a d e o u t r o s t e m p o s , p a r a e x o r c i z a r s e u s f a n t a s m a s n a m e d i - d a e m q u e t o c a e m s e n t i m e n t o s , p a - r a d o x o s e c o n f l i t o s . D a í o c a r á t e r h u m a n o e a t e m p o r a l d e s s a s d e a m - b u l a ç õ e s , p o r q u e s ã o p e n s a m e n t o s e s e n t i m e n t o s e n c o n t r a d i ç o s e m q u a l q u e r l u g a r e é p o c a n o m u n d o . E s e n ã o h á u m f i o c o n d u t o r o u u m l i a m e , o q u e j u n t a a s p o n t a s d e s s e n o v e l o s ã o o s e l e m e n t o s q u e d e t e r - m i n a m a s f r a t u r a s d e s s a s v i d a s : c r i s e d e i d a d e , v i a g e n s i n t e r r o m p i - d a s , p a t e r n i d a d e a c i d e n t a l e o a m o r e v i d a q u e p o d e r i a m t e r s i d o e n ã o f o r a m . O s a t a l h o s d o p e r c u r - s o e a s g u e r r a s s i l e n c i o s a s d e c a d a u m n e s s e s t r a j e t o s q u e g u a r d a m a n a l o g i a c o m o b r a s p a r a d i g m á t i c a s ( c o m o “ O n t h e R o a d ” , “ P e r g u n t e a o p ó ” e “ O a p a n h a d o r n o s c a m p o s d e c e n t e i o ” ) , a m a l g a m a d o p o r u m e s - p e c t r o b u k o w s k i a n o q u e d á o t o m e s c a t o l ó g i c o a u m a h i s t ó r i a q u e a s - s i m i l a t a m b é m u m a c e r t a r i q u e z a i m a g é t i c a e d e r e s i s t ê n c i a t í p i c a d e u m a c e n o g r a f i a p a s o l i n i a n a . E s t a m o s m e s m o d i a n t e d e u m r o m a n c e - d e p o i m e n t o , d e u m a n a r - r a t i v a - t e s t e m u n h o , d e c o n f i s s õ e s g e r a c i o n a i s , c o m o u m r i o f r e n é t i c o e i n v e n c í v e l q u e c a r r e g a o s a t r i t o s e d e t r i t o s d a s m a i s r e c ô n d i t a s n a - v e g a ç õ e s d o s e r n a c o n t r a c o r r e n t e d e s e u s p r ó p r i o s d e l í r i o s . E i s a o b r a r e v e r b e r a n d o a s i d i - o s s i n c r a s i a s e p e r p l e x i d a d e s d e u m p e r s o n a g e m ( e t a m b é m d e u m a u - t o r ) q u e l e v a a o p a r o x i s m o t a n t o a l i n g u a g e m q u a n t o o s e u d e s a l e n t o d i a n t e d a s t r u c a g e n s d e s s e m o n d o c a n e q u e a í e s t á : “ S e m p r e m e s e n t i u m f o r a s t e i - r o . A p r e n d i a m e c o m p o r t a r c o m o u m . A m e s a f a r c o m o u m . N e m s o t a - q u e e u t i n h a . M a i s f á c i l p a r a m i m . N ã o e s c o l h e r . ( . . . ) C o n t i n u o a n - d a n d o c o m o s m e s m o s f r u s t r a d o s d e s e m p r e e s ó p o r q u e e u m e s i n t o b e m a o l a d o d e l e s . O p r a z e r d e e m - p u r r a r p o r e m p u r r a r . E u t a m b é m , u m f r u s t r a d o . ( . . . ) C o n d e n a d o s à l i b e r d a d e , a c a b a m o s t o d o s j u n t o s e p e r d i d o s , p r e s o s n o m e s m o b a r c o . N ã o d á p r a s i m p l e s m e n t e e s t a c i o - n a r u m b a r c o n o a c o s t a m e n t o e e s - p e r a r a t e m p e s t a d e p a s s a r . O c u r s o s e g u e . O f l u x o s e g u e . A v i d a d e v e s e g u i r . T o d o s j u n t o s e p e r d i d o s , p r e s o s n o m e s m o b a r c o . E u , l o s e r d e s d e o p a r t o . U m m o l e q u e b r a n c o a g u a d o , c r i a d o a l e i t e c o m p e r a , t u d o p r a d a r c e r t o n a v i d a s e g u n d o e s s e m u n d i n h o m a c h i s t a d e m e r d a , m a s c a l h e i d e s e r l o s e r . B r a n c o . E h o m e m . S ó m a i s u m f r a c a s s a d o . ” C a c o I s h a k c o n s t r u i u u m a s e n - s í v e l , p o r é m a v a s s a l a d o r a m e t á f o r a d a i n s u l a r i d a d e q u e m u i t a s v e z e s é s i n t o m a d a r e a l i d a d e c o n t e m p o r â - n e a , t ã o v i r t u a l e i s e n t a d o “ s e r ” , i m p o n d o a t r a g é d i a i n d i v i d u a l ( o u c o l e t i v a ) d e s s a d e s c o n f o r t a n t e c e r - t e z a d e n o s s e n t i r m o s s e m p r e d e s - l o c a d o s , p e r d e d o r e s o u f o r a s t e i r o s , e s t r a n g e i r o s d e n ó s m e s m o s . E u c o w b o y ” n ã o é m a i s u m l i v r o n o c e n á r i o r e q u e n t a d o d a f i c ç ã o n a c i o n a l , é o b r a p r o v o c a t i v a e q u e i n s t a u r a u m s e n t i d o n ã o a p e n a s e s - t é t i c o , m a s u m a p r e o c u p a ç ã o é t i c a c o m o d e s t i n o d o p r ó p r i o s e r . C o - m o d i s s s e K a f k a n u m a c a r t a a u m a m i g o , ' ' S e o l i v r o q u e e s t a m o s l e n - d o n ã o n o s d e s p e r t a c o m o u m p u - n h o q u e m a r t e l a n o s s o c r â n i o , p a r a q u e l ê - l o ? ' ' N e c e s s á r i o s , d i z e l e , s ã o ' ' o s l i v r o s q u e s e a b a t e m s o b r e n ó s c o m o a d e s g r a ç a , c o m o a m o r t e d e a l g u é m q u e a m a m o s m a i s d o q u e a n ó s m e s m o s ' ' . A s s i m n o s f a z s e n - t i r e s s e l i v r o h e c a t o m b e d e C a c o I s h a k E s c r i t o r , t r a d u t o r e j o r n a l i s t a , m e s t r e e m e p i s t e m o l o g i a d a C o m u - n i c a ç ã o p e l a U S P , C a c o I s h a k n a s - c e u e m G o i â n i a , m u d o u - s e a o s c i n - c o a n o s p a r a B e l é m e r e s i d e a t u a l - m e n t e e m S ã o P a u l o . É a u t o r d e “ D o s v e r s o s f a n d a n g o s o u a m á r e - p u t a ç ã o d e u m e s t u l t o e m p o l v o r o - s a ” ( 2 0 0 6 ) e “ N ã o p r e c i s a d i z e r e u t a m b é m ” ( E d . 7 L e t r a s ) , 2 0 1 3 ) , t e m p u b l i c a d o e m d i v e r s o s j o r n a i s , s u - p l e m e n t o s , p l a t a f o r m a s e r e v i s t a s , e n t r e o s q u a i s “ P o e s i a S e m - p r e ” ( B i b l i o t e c a N a c i o n a l ) ; “ L e t r a s n a R e d e ” ( c u r a d o r i a d e H e l o í s a B u - a r q u e d e H o l l a n d a , B r u n a B e b e r e O m a r S a l o m ã o ) ; “ R u í d o e L i t e r a t u - r a ” , “ N a T á b u a ” e “ O r q u e s t r a L i t e - r á r i a ” , t e n d o a i n d a o r g a n i z a d o c o m A n d r é C z a r n o b a i a p r i m e i r a g a l e r i a v i r t u a l b r a s i l e i r a , b a i x o . c a l ã o ( 2 0 0 7 - 2 0 1 0 ) , v o l t a d a à a r t e u r b a n a e a o l o w b r o w .
  • 38. Chicos 44 Antônio Jaime Soares Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave. Já foi redator de publicidade. Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra (2011) €uroporaí Parte 1: Espanha; Parte 2: Itália; Parte 3: Inglaterra e França Entusiasmei-me como um imbecil. Jean-Paul Sartre Entrei em Paris a pé. Se alguém duvidar, que aguarde a terceira parte deste diário de um pas- sageiro de primeira viagem (maio-junho/1985). Bem sei que é jeca falar de lugar onde só se esteve uma vez, entanto, José Antonio Pereira quis veicular na Chicos, e justificou: “Acho legal publicar o teu relato. Tem a sinceridade e a honestidade da primeira viagem, não arrota sabedoria”. Foram apenas dez cidades, em qua- tro países e aquilo é muito mais do que digo e pode não ser bem assim, mas é por aí. Europoraí. Há uma possibilidade de voltar lá e isso também é jeca, no entender de pessoas que vão à hora que bem entendem. Não obstante, dizem que a primeira impressão é a que fica. Fique o registro. Antônio Jaime Soares
  • 39. Chicos 44 Madri − Toledo ...voz métrica de pedra tal como, cristalizada, surge Madri a quem chega. João Cabral de Melo Neto pode estar se referin- do a uns prédios marrom-avermelhados, velhinhos em folha, que vou lambendo com os olhos. O ônibus lo- go chega ao terminal, encimado por um espelho d’á- gua caindo pros lados. Moderno, sem adornos, na Pla- za de Colón, belo contraste com os prédios antigos. Um mero estacionamento de ônibus, feito obra de ar- te. Táxi pro centro e o motorista pergunta: “És brisilai- ro?”. Portuga, ele, claro. Digo que sim, apenas, fingin- do naturalidade. Razão: carrego todo o meu rico di- nheirinho, passagem e passaporte; sem eles, estarei mais perdido que cachorro que cai de caminhão de mudança. E mais prédios antigos e modernos no Paseo de Recoletos, monumental avenida. Os modernos, acredi- to, substituem os que foram bombardeados nas úl- timas guerras, da mesma altura, obedecendo ao gaba- rito, palavra esquecida no Brasil, vítima, como quase todos os países, do complexo de Manhattan; voltarei ao assunto. Logo, logo, a Gran Vía, danada de bonita, com aquele jeitão de cartão postal, o coração bate mais forte, mal acreditando no que o rodeia. E, cheio de expectativa, entra na cidade velha propriamente dita, velha tinindo de nova, pois bem cuidada. A Puerta del Sol, conhecida desde meu pri- meiro livro de geografia. O hotel a mim reservado é logo atrás. “Señor Suarez?” – pergunta o recepcio- nista. Será que sou eu mesmo? – indago ao espelho, beliscando as bochechas pra ter certeza de que é real essa coisa toda. É sim. Venezianas, maçanetas, abajur, tipo hotel da Lapa, uma Lapa passada a limpo. E vou correr atrás. Puerta del Sol e marquise, na Gran Vía
  • 40. Chicos 44 Pelo jeito, toda a população tomou conta das ruas, em plena tarde de sábado, momento em que o centro das cidades brasileiras vira um deserto. Gente alegre, bem vestida e bem nutrida. A música estrangeira da fa- la. As mulheres (europeias, em geral) usam saias, o que as faz mais femininas e elegantes. Os homens, meio atarracadinhos, bundinha estufada de toureiro. Tam- bém uns tipos meio anões, que remetem a certas pintu- ras, que verei depois, no Museu do Prado. Mil fantasias na cabeça, Espanha de óperas e ope- retas, castelos e castanholas, entanto, Madri não é por aí, é mais de carne e osso, portanto, melhor. Lojas mui sofisticadas e entro na maior, El Corte Inglés, dez anda- res que vendem de um tudo, pra comprar gêneros de primeira necessidade: uísque, presunto, queijo, pão e vi -nho. Comer no hotel, enquanto não me familiarizo com a cidade. E volto a ela. Subo a Calle de Preciados até a Gran Vía, teatros e cinemas, a Broadwayzinha deles, fantástica. Ruelas aconchegantes em volta, barzinhos nos trinques, bem como alguns casais e seus drinques. Cada esquina ace- na com outra mais bonita, os restaurantes exalando cheiro de comida feita com aceite de olivo. Numa des- sas, sinto que existe algo por detrás dos prédios, atra- vesso uma arcada e dou de cara com o, até agora, pra mim, maior espetáculo da Terra, a Plaza Mayor. Arcada e prédio da Plaza Mayor Plaza Mayor: “... um belo conjunto de edifícios com telhados em ardósia, arcos, lustres, sacadas e jane- las cuja atmosfera teatral tem uma personalidade muito castelhana. Tudo acontecia aqui na Madri antiga: toura- das, execuções, cortejos e julgamentos da Inquisição Es- panhola e seus criativos espetáculos de tortura”. Criati- vos espetáculos de tortura, é inconcebível, pô! Em nome de Deus. Ou Deu$. E é numa igreja antiquíssima que entro a seguir. Missa ao som de órgão, esculturas de an- jos “voando” pra cúpula, puro alumbramento, mas não perdoo seu passado torturante. Que não passou, por exemplo, ao não admitir o uso prudente de uma simples camisinha. Volto à Puerta, nove horas da tarde, o sol ainda bem al- to. Eu, porém, down, down, down, pois não dormi du- rante a viagem (receio de pisar pela primeira vez, sozi- nho, em terra estrangeira. Fuso horário também conta). Depois do jantar, vi o filme de bordo e ouvi duas vezes Carmen, a ópera, completa. Lá pelas tantas vi uma bola de fogo num mar de areia, o sol brotando no Saara. De- pois, plantações de oliveiras, encarreiradinhas, feito pés de café, montanhas cobertas de gelo, tudo novidade pro zé mané aqui. No aeroporto, seguindo dica de Carlos Torres Moura, troquei dólares e comprei passagem pro ônibus. Aqui, porém, somos honestos até prova em con- trário: não tem roleta nem trocador, eu teria que enfiar o ticket numa maquininha, mas não sabia e viajei de gra- ça. Se um fiscal me pegasse... O ônibus, a estrada, multi- nacionais ajardinadas dos dois lados, tudo bem leve e suave. No rádio do hotel, Mania de você, de Rita Lee, instru- mental. No gênero pop, neste momento, seria melhor Spanish Harlem, com The Mamas and The Papas.
  • 41. Chicos 44 € Dormi duas noites em uma e, por ser do- mingo, o Prado fecha ao meio-dia e só reabre na terça. Pois bem, fico até quarta, sem Prado é que não fico. Bebo vinho em jejum, feito um europeu de boa cepa. Chove adoidado e ainda assim vou bater pernas. Entro numa cafeteria e peço apenas café, guardando o apetite pra da- qui a pouco e cair de boca na grande variedade, sobretudo, de frutos do mar. Tudo em cima do balcão, a descoberto, sem mosquitos, e a vigi- lância é cerrada. Conversam, riem, brincam com os fregueses, mas só depois de deixarem impecavelmente limpos o último prato, talher ou taça (não usam copos “americanos” como os nossos), enxugando com um pano branco e con- ferindo a limpeza contra a luz. A gente se encanta e ao mesmo tempo, se espanta. Por exemplo, numa capa de revista, Marisol, garota prodígio do cinema água com açúcar do tempo da ditadura, e já deve ser avó. Em outra, María del Carmen, filha do “Generalissimo Franco, caudillo de España, por la gracia de Dios”, ele se dizia. Nada a ver com a Espanha atual. Fosse tudo assim, seria o caso lembrar Caetano Veloso: “...nem a sanha arra- nha o carro, nem o sarro arranha a Espanha”. Também automóveis cujo forro dos bancos imi- ta pele de zebra, cobra, tigre, leopardo e outros bichos. Mais brega, um “oscar” nas vitrines, Para la mejor madre, por estar perto o dia das mães. Compro o Guía del ócio, revista de bolso com a programação cultural da semana. Desta- que pra casas de flamenco, dançarinas trepando nas tamancas, bem como samba, feijoada, caipi- rinha e mulatas. Anúncio de show com Caetano e Bethânia. Volto à cafeteria e peço um conhaque, pra esquentar o peito, espalhar o sangue. E um pra- tinho de polvo, lula, camarão, acompanhados de pão e azeitonas pretas enormes, nadando em azeite. Com vinho. Não servem a taça direta- mente sobre o balcão, mas numa toalhinha fel- puda, pra não pingar na roupa do freguês, as- sim como não nos entregam o troco na mão, sim, num pratinho. Requintes que, no Rio, só vi em lugares tipo Antonio’s (capaz de reunir, em mesas separadas, por exemplo, Martha Ro- cha, Walther Moreira Salles e Mick Jaeger), aqui, descem ao nível do povão, entre o qual me incluo. Satisfeito, solto uma mineirice: “Ê vida triste, amargurada, desgraçada de boa!”. E vou me esgueirando por entre as bagas da chuva, guiado pelo Guía del ócio. Passo pelo Teatro de la Opera, que mal vejo, até a Plaza de Oriente: enorme, bonita, jardins antológicos e abriga o Palacio Real, antigua residencia de los reies de España. Aberto à visitação, mas reser- vado, em parte, pra hospedar Ronald e Nancy Reagan, polícia em tudo que é canto, vou lá, não. Gosto de ir descobrindo tudo por mim mesmo, em longas caminhadas, porém, debaixo de chuva, o jeito é entrar numa excursão: largas avenidas, a Cidade Universitária, sem maior in- teresse, Casa do Campo, vasto bosque, que per- mite observar a flora e alguma fauna. À chuva, de outros pássaros, então revela os traços: de pássaro da Europa ganha então a cor nódoa, cor galinácea, suja... João Cabral acertou na mosca, tem pa- pagaiada aqui, não, a natureza é tímida, ainda que tudo florido, posto que é primavera, e as árvores parecem desenhadas numa prancheta. O atual palácio dos reis, de aparência mais mo- desta, rio Manzanares, Calle de Segovia, “típica del Madrid viejo, el Madrid del 600”, diz o motorista. Paseo del Prado, o Prado, Par- que del Retiro, estádio do Real Madrid, Plaza de Toros, em estilo mourisco, vista e revista em filmes como Sangue e areia. Hoje tem tourada, mas nem se me pagarem quero ver um bovi- cídio. Já vi assassinarem boi, porco, cabrito, ga- linha, tatu, porém, pra comer, sem requintes de sadismo. Uma mosca, das grandes, no ônibus, primeiro inseto que vejo aqui.
  • 42. Chicos 44 O clima pede bebida e será pra já, na varanda de um bar, espiando o gramado da Puerta, um capim que só vi antes numa pracinha na plataforma da estação de Cataguases (cadê a nossa?). Esfria e mudo pra outro, um boteco, tocado pelo casal de proprietários-garçons- faxineiros, pois empregado aqui ganha o que merece e patrão tem que pegar no pesado, se não for rico. Pu- xam conversa, perguntam se estou gostando. Cito o slogan atual da cidade: “Madrid, claro que sí”. A mul- tidão voltou às ruas. No rádio, Tom Jobim, ao piano: “Vou te contar...”. Início da Gran Vía e jardins do Prado Excursão a Toledo, a 70 quilômetros de Madri. Cidade, aqui, acabou, acabou (cristalizada), sem aquele cinturão de miséria em volta. Portanto, saímos da urbe e caímos no campo. A região é Castela, na meseta, o planal- to central deles. Uma ou outra aldeia na ampli- dão expondo produtos, em geral, cerâmica, plantações de oliveiras, árvores isoladas ou em pequenos bosques. Vazio panorâmico. É uma paisagem em largura, de qualquer lado infinita. João Cabral, de novo. E a Idade Média, em Toledo, que tem origens visigodas, romanas, judias, mouras e cristãs. As últimas três “aprenderam” a conviver com tolerância, diz um livro. Entanto, estive numa sinagoga que foi muçulmana e hoje é católica. O pai de Feli- pe II teria lhe dito que pra preservar o poder, mantivesse a capital em Toledo; pra expandi-lo, mudasse pra Lisboa; e se quisesse perdê-lo, fos- se pra Madrid. Não deu outra. Nas lojas, elmos, armaduras, lanças e espadas, pra quem qui-ser se fantasiar de Dom Quixote. A metalurgia é uma tradição, cidade guerreira, amuralhada, “Glória de Espanha”, disse Miguel de Cer- vantes. Praticamente, parou no tempo e vive mais em função do turismo. Rua típica de Toledo , interior da catedral e muralhas milenares
  • 43. Chicos 44 Catedral, aqueduto romano e monastério Sobe e desce ladeira até a catedral e aí, um valor mais alto se alevanta: o gótico é o esplendor em pedra. Hostes angelicais convi- dando a entrar e hordas de demônios (gárgu- las) fugindo ante a “magnificência do verbo divino”. Por dentro, belas combinações de luz e sombra, tudo bordado em pedra. Na sacris- tia, salão de reuniões, bancos com marcas de bumbuns de tanto os padres se sentarem ali, eternas confabulações. Num pátio interno, verdura de folhas enormes, cheiro agradável de mato molhado. A sala dos tesouros, relí- quias em ouro e pedras preciosas, de valor in- calculável. Depois, monastério de San Juan de los Reyes, todo forrado, rendilhado, floreado em mármore, do teto ao chão. Entanto, serviu como estrebaria pros cavalos do exército inva- sor de Napoleão Bonaparte. No burburinho das ladeiras apinhadas de turistas, línguas diversas, uma toledana, mantilha preta nos ombros, “quentando” sol, tranquila feito gente da roça. Em outra igreja, O enterro do conde de Orgaz, painel de El Gre- co, o pintor de Toledo. Comecei a “desfigurar” meu gosto em pintura através dele, com um ensaio de Aldous Huxley. Em- bora mantivesse da Grécia o bidimensionalis- mo, e talvez por isso, seus quadros têm um quê de arte moderna, a partir de Cézanne. Em excursão de meio-dia, só metade da cidade, e vemos o Alcazar de longe. Em compensação, perdemos um tempão numa oficina de damas- quinos, joias de ouro incrustadas de pedras, técnica que os ibéricos aprenderam com os fe- nícios, executadas à vista do freguês. Joia, po- rém, não faz meus olhos brilharem. Fico espiando a meseta. O Tejo, transpa- rente, aqui ainda estreito, vai dar aquele rio- zão que deságua em Lisboa. Vontade de ir lá, mas Portugal não está no roteiro, infelizmen- te. Pego no chão uma pedrinha pra levar de lembrança e um cão de guarda vem e lambe minha mão, até que desisto dela. Os turistas saem, finalmente. Céu limpíssimo, poluído num trecho pela feia fumaça que sobe de uma siderúrgica. Logo em seguida, um baita arco- íris, o maior e mais colorido que já vi, devido à amplidão, sem aqueles morros de Minas e Rio, bonitos, mas opressivos. E a classe média só fotografa e volta ao blá-blá-blá. Um casal jovem, brasileiro, ao meu lado, só carícias. Entramos em Madri por outra estrada, é bom variar. Ao Banco de España, trocar dólares, já fe- chou. O comércio, também, la hora de la si- esta, até por volta de las cinco de la tarde. Por isso, varam a noite nas ruas. Meu calo de esti- mação (todo ano, nesta época, volta a in- comodar) me leva a uma farmácia que me leva à infância, o cheiro das farmácias de antanho, manipulação de remédios, nem tudo aqui é imposto pelas multinacionais. Lembro Seu Nestor da farmácia dizer que era do tempo em que todas tinham horta, pra preparação de medicamentos. Outras voltas à infância: o ca- sario, letreiros, objetos, mobiliário, vidro de tinta Parker Quinck igual ao que eu usava, vontade de comprar. O cheiro da tinta era gos- toso, como o de goma arábica, que também dever ter aqui.
  • 44. Chicos 44 € O Prado, tão esp’rado. Começo pelo térreo e me empapuço de Goya, grande, mas há maiores na própria Espanha, não fosse a pintura uma das marcas do país, tanto que o rei leva uma ex- posição aonde quer que vá. E Murillo, e Zurba- rán, e Ribera. Deste, gosto especialmente quan- do pinta crianças pobres, uma delas aleijada, e rindo. Acima de todos, Diego Velázquez, inclu- sive, Las meninas, sua obra-prima. João Cabral dizia que toda a pintura italiana não vale um bom Velázquez. Entendo, observando o seu Ba- co (foto ao centro, abaixo), andrógino, quase uma criança. O toque “espanhol” são os campo- neses, rudes e sem glamour. E pintores e quadros de todo tempo e lu- gar, de forma que dá pra ficar uma vida no Pra- do ou qualquer outro grande museu; algumas horas, contudo, já deixaram minhas pernas em frangalhos. Largo os quadros pra lá e persigo uns quadris, um bumbum fenomenal, dentro de calças de veludo castanho. Ao lado do Prado, a Academia, onde vejo Guernica, de Picasso, e ou- tros espanhóis deste século. Vale lembrar que a Espanha entrou no século vinte com o pé direi- to, com Picasso, Juan Gris, Dalí, García Lorca, Buñuel, Manuel de Falla, pra citar os mais co- nhecidos. Também Rússia e Alemanha. Então, cada uma teve sua ditadura e todo aquele van- guardismo virou passadismo, artistas presos, mortos, expatriados. Décadas perdidas levam séculos pra se recuperar. Daí a Espanha viver das glórias de seu “siglo de oro” (1580-1680 + ou -), que deu Gongora, Cervantes, Lope de Veja, Tirso de Molina, Quevedo, Alarcón, Calderón, Gracián, aqueles pintores etc. Nas ruas, cheiro de flores, que me fazem espirrar, é pólen, a primavera dando o ar da gra- ça. Flor de todo jeito, em todo canto e lugar, jar- dins muito bem cuidados, só falta aparecer Sari- ta Montiel, cantando La violetera. E acho graça nenhuma no porteiro de um hotel de luxo, de fraque e cartola, cor cáqui, e luvas brancas, co- mo que saído de um livro de história, quiçá, do baile da Ilha Fiscal.
  • 45. Chicos 44 Calmamente, observo uma minifeira de li- vros no Paseo de Recoletos, no que passa a ga- lope uma turba ensandecida, vestindo camisas do PCE, gritando slogans e queimando bandei- ras dos Estados Unidos e da Espanha que deco- ram as ruas pra passagem de Reagan. Protesto contra os poderosos, depois de décadas amorda- çados pelo fascista Francisco Franco. Agora, “a sanha arranha o carro”. No metrô, rasgando car- tazes, quebrando vitrines. Na Puerta, derruban- do lixeiras e o que mais encontram de proprie- dade pública, respeitando a privada. Primeira manifestação do gênero que vejo, pois, moran- do em cidade pequena, não assisti nem partici- pei das revoltas estudantis de fins dos anos 60, sobretudo, no centro do Rio. Outra confusão envolvendo uns africanos, em trajes típicos, que vendem elefantinhos de madeira à porta do El Corte Inglés. Na Gran Vía, uma mulher segura outra pela gola-goela e se esgoela, alegando que roubou sua bolsa, até que vem a polícia. Pode sobrar pra mim, melhor ir me afastando e procurar outra área, rever lu- gares, a Plaza Mayor, por exemplo. Mais tarde, no boteco que já conheço, e me conhecem, a si- tuação também não está muito boa: um cara de- siste de beber o que pediu e diz que não vai pa- gar. A dona se encrespa, feito um galo de briga: – No quieres pagar porque estás de tontería. Toleré tontería todo el día, no toleraré más. Pe- ro tu pagarás. Sí, a mí tu pagarás. Se no pagares a mí, pagarás en la policía. Javier, llame la poli- cía. Mulher tem mais força na língua do que boi no cangote – diziam as antigas senhoras minei- ras, tanto que ele despeja o cálice na pia, paga e sai de fininho. Passado o incidente, Javier e a esposa conversam comigo. “Lamentam” que eu me vá amanhã, eu também. Madri me pegou de jeito, até por ser minha primeira namorada eu- ropéia. Devidamente brindada com uma garrafa de xerez na caminhada da tarde, agora, chope, que dilui mais rápido, tendo eu que acordar ce- do, amanhã. De novo, a amolação de arrumar mala, aeroporto etc. e tal. Recolho-me por volta de meia-noite, mas vou deixar todo mudo valo- rizando a madrugada. € De táxi pro aeroporto. Saio da cidade por um trecho ainda não visto, prédios modernos, envidraçados, refletindo os raios do sol nascen- te, o que me traz à memória O sol também se le- vanta, romance de Ernest Hemingway que ter- mina a esta hora, aqui mesmo, dentro de um tá- xi. No filme, quem viaja é Ava Gardner, “o mais belo animal do mundo”, segundo Jean Cocteau, e que se identificou por demais com a Espanha, mais precisamente, com os toureiros espanhóis. Ave, Ava!
  • 46. Chicos 44 Barcelona Dizem que há castelos daqueles de El Cid nesta rota, mas, avião cheio, eu, no meio, nada apriceio. Pego o livro A poesia no Brasil, que trouxe pra ler caso batesse saudade da mi- nha terra, que tem palmeiras onde canta o sa- biá. Neca de saudade, o que não me impede a leitura e desperta uma voz lusitana ao meu la- do: “De que parte do Brasil tu és?”. Trata-se de um português, a cara de Mário Andreazza, morou no Rio e ganhou muito dinheiro lá, vendendo carros importados pro pessoal do Iate Clube. Vem de Lisboa e vai a Barcelona pro salão do automóvel. Convida-me a apare- cer por lá e me desconvido, dizendo que meu interesse por máquinas é apenas de ordem prática. Ele aponta o livro e diz: “Está-se a veire”. De trem, pro centro. Uma área industrial- portuária abandonada me deixa péssima im- pressão, imagino, contudo, que aqui será construída a vila olímpica, pois Barcelona se- rá a sede dos jogos em 1992. O hotel fica a um pulo da casa que Gaudí construiu pro seu me- cenas, o conde Güell. Logo na esquina, Las Ramblas, a avenida mais doida que já vi. Lou- ras de cabelo verde, negras de cabelo azul, gaiolas, pássaros, punks, vasos, flores, feira de livros, números de circo, de teatro, dançari- nos, músicos, mímicos, estátuas vivas, até gente como a gente. Patisserie de 1820, loja de guarda-chuvas, estátua viva e seu esqueleto Subo até a Plaza de la Catalunya, prédios sextavados nas esquinas (em metade da cida- de, vejo no mapa), volto, pego a beira-mar e entro no Bairro Gótico. O gótico pra valer, que só vi na catedral de Toledo, aqui se esfrega na cara da gente. Procuro a catedral daqui e en- contro a igreja de Santa María del Mar, mais bonita, fechada pra obras. A outra é perto e, de novo, deparo-me com todo aquele mistério, um bonito pátio interno, chafarizes e, os que pegam sol, cobertos de musgo. Pedras talha- das no tempo dos gregos, fundadores da cida- de, há 3.000 anos. .