SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 166
Baixar para ler offline
ALIENAÇÃOE LIBERDADE
ESCRITOS PSIQUIÁTRICOS
FRANTZ FANON
TRADUÇÃO
SEBASTIÃO NASCIMENTO
ORGANIZAÇÃO
JEAN KHALFAE ROBERT ]. C. YOUNG
ubu
APRESENTAÇÃO
Fanon: uma filosofia para reexistir
Renato Noguera
INTRODU!
Fanon,psiquiatra revolucionário
Jean Khalfa
[NSOBREPSIQUIÁTRICA
A internação diurnanapsiquiatria: valore limites(1)
A internação diurnanapsiquiatria: valore limites (2)
Sobre uma tentativa de readaptação de uma paciente com epilepsia morfeica e
transtornos de natureza grave
Nota sobre as técnicas terapêuticas do sono com condicionamento e controle
eletroencefalográfico
O fenômenoda agitação no meio psiquiátrico: consideraçõesgerais,significado
psicopatológico
Estudobiológico da ação do citrato de lítio nas crises maníacas
Apropósito de um caso de espasmo de torção
Primeirostestes do meprobamatoinjetável nos estados hipocondríacos
[2] DIMENSÕES SOCIAIS DO SOFRIMENTO PSIQUICO
A socioterapia numaala de homens muçulmanos:dificuldades metodológicas
Avida cotidiana nos douars
Introduçãoaostranstornosda sexualidade do norte-africano
Aspectosatuais da assistência mentalna Argélia
Considerações etnopsiquiátricas
Condutas confessionais na África do Norte (1)
Condutas confessionais na África do Norte (2)
Atitude do muçulmano magrebino diante da loucura
O TaT em mulheres muçulmanas: sociologia da percepção e da imaginação
[3] curso DE PSICOPATOLOGIA SOCIAL E OUTROS TEXTOS
Traço de união
Encontro entre a sociedade e a psiquiatria
[4] TESE DE EXERCICIO
Um caso de doençade Friedreich com delírio de possess
heredodegeneração espinocerebela
Sobre o autor
APRESENTAÇÃO
FANON: UMAFILOSOFIA PARA REEXISTIR
RENATO NOGUERA
Em 1951, aos 25 anos de idade, o martinicano Frantz Fanon escreveu Essai sur la désaliênation du
Noir [Ensaio sobre a desalienação do negro],seu trabalho de conclusão do curso de medicina na
área depsiquiatria. A comissão julgadora não o aprovou, ponderando que umestudo clínico seria
mais adequado. Essa reprovação diz muito mais sobre a universidade francesa do que sobre o
candidato, que reagiu apresentando outra tese em pouco tempo.
que esse episódio revela? Antes de mais nada, que o estreitamento cognitivo da academia
francesa dosanos 1950 impediu devir à tona um trabalho autêntico de tema urgente incômodo.
Fanon lançava mão de um repertório criativo e de umaestratégia de sobrevivência típica de pes-
soas negras em contextos de colonização e de opressão racial. Ele precisou se adaptar e serein-
ventar e chegar aoslimites da exaustão para ser aceito. Num prazo curtíssimo — duas semanas -,
ele submeteu à banca umanovatese, Alterações mentais, modificações de caráter, distárbios psíquicos
déficitintelectual na heredodegeneração espinocerebelar: um caso de doença de Friedreich com delírio
de possessão. Na arguição, Fanon, extremamente articulado,rebateu as objeções com segurança e
erudição.
Em 1952, parte ca tese reprovada foi revisada e publicada sob o título Pele negra, máscaras
brancas, livro que se tornou um marco doséculo xx para estudosde relações étnico-raciais, ra-
cismo, colonização, descolonização, antirracismo, abusos psiquiátricos e interfaces entre estudos
dasubjetividadee da política. Fanon faz uma análisecrítica do projeto colonialracista, examinando
seus dispositivos de “vendas” de máscaras brancas para incluir as populações negras norol do
“mundocivilizado”.
Fanon procurou o intelectual e ativista político francês Francis Jeanson, um dos editoresda re-
vista Les Temps Modemes — lançada em outubro de 1945, a publicação davavoz a intelectuais que
discutiam filosofia, política, arte e cultura no período do pós-guerra. O filósofo martinicano queria
pleitear que sua obra fosse resenhada na revista e pedir uma sugestão de um nome para prefaciar
seu livro. Jeanson acabouporaproximá-lo de Jean-Paul Sartre, que prefaciou Pele negra, máscaras
brancas e, mais tarde, em 1961, Os condenados da terra. Coubeao autorestreante a honra deter sido
introduzido pelo mais célebrefilósofo francês de seu tempo.
NaEuropa,a recepção da obra foi sintomática: como que o que mais chamoua atenção dos
intelectuais não foi o conteúdo da obra, mas à autoria do prefácio? Sartre desfrutava de grande po
pularidade, sem dúvida, noentanto por que nãose falava do livro? Ele estaria sendo desprezado
em razãode seu autor ser um homem negro nascido na Martinica?
A análise da filósofa alemã Hannah Arendt, por exemplo,ressaltou certa glamourização da vio-
lência no pensamento de Fanon. À violência tornaa política impossível,1 sustenta ela, que vê na
argumentação do autor umadefesa da violência revolucionária —queArendt desaprova como estra-
tégia política
Pois bem, uma leitura detida de Fanon não revelaria outra coisa? Nãose trata exatamente de
propora violência, mas de compreender quea colonização é um sistema predatório a violência
faz parte de sua dinâmica. Arendt, bem como outros comentadores, em suacrítica, não percebeu
que, para Fanon,a violência é (uma forma defazer)política. A modernidade ocidental perpetrada
pela Europa seria indissociável da violência, direcionadacontra a colônia, gente não branca — con-
tra gente bárbara e incivilizada. Não setrata de endossara violência cu propô-la, e sim de constatar
suarealidade. Tanto que, em Os condenados da terra, ela é vista como umelemento desintoxicante
para quem sofre a opressão colonial. Enfim, a violência escraviza ou iberta? Naintrodução de Pele
regra, máscaras brancas, Fanon dá umapista:
Porque escrever esta obra? Ninguém me pediu que o fizesse.
Muito menos aqueles queela interpela
E então? Então eu respondocalmamente que existem imbecis demais neste mundo. E tendo
dito isso, compete a mim demonstrá-o.
Rumo à um novo humanismo..?
novo humanismo não encampa violência essencial porquefaz parte daresistência anticolonial. A
violência não é um fm em si. O perigotanto da opressão colonial quanto da resistência antico-
lonial é sucumbir à adicção. A metrópole quer o controle da colônia. não pretendedestruí-lainte
gralmente, mas extrair suas riquezas naturais e exploraro trabalho,fazendo das pessoassuas ferra-
mentas. A colônia pretendese libertar, virar as costas para a metrópole gerir seu destino. Para a
metrópole, o risco da violência é exterminar a colônia. Para a colônia, o perigo é ter seu projeto de
liberdade inviabilizado pelo fato de ela só saber viver sobo regime daviolência.
A invocação “O corpo meu, faz sempre de mim um homem quequestional”, presente em Pele
negra, máscaras brancas, abre caminho para uma metáfora. A metrópole é o corpo,a colônia é o
coro da outro A relação entre esses comos conhece apenas a língua da vinlência Além do id
oma,a violência é umasubstância quevicia. A metrópole só pode perdurar por meio daviolência; a
colonização é a expressão político-econômica e social dessa relação. O corpo adicto da colônia
agoniza enquanto a metrópole goza. A violência anticolonial de Fanon não seria um capricho, mas
umantídoto dialético contra a perversidade do gozo canalha da metrópole.
Leitor de Hegel, Fanon entendea dialética como um processo detese, antítese e síntese, quan-
do então nasceria um novo momento. Ora,a violência da metrópole tem como antítese a violência
revolucionária da colônia. E o resultado pode ser a descolonização. A violência da colônia não é
uma antipolítica; é, sim,a língua nativa da metrópolee a formacomo esta faz política. O fim da vio-
lência só pode ocorrer com a demolição das fronteiras entre metrópole e colônia: isso que Fanon
argumenta tanto em Oscondenados da terra como em LAn v de la révolution algérienne[Ano v da
Revolução Argelina], publicado em 1959, dois anos antes de sua morte. Mas essaquestão já está
em Pele negra, máscaras brancas, quando o filósofo insiste que a retirada das máscaras brancas
constitui o ponto de partida para as pessoas negras superarem osefeitos do racismo. Se o humano
é sinônimo de branco, restaria às pessoas negras buscar essa máscara. A colonização é racista, o
racismoé colonial, um alimenta o outro.
análise do racismoincluias estruturas da colonização,além da psicopatologia. O contato de
uma pessoa negra com o mundo branco já a prejudica: “Umacriança negra, normal, tendo cres-
cido no seio de uma família normal, ficará anormal ao menor contato com o mundo branco”? Para
Fanon, o racismo é determinadohistoricamente e funciona para a opressão sistemática de um
povo, uma opressão quepassa por instâncias políticas, jurídicas, econômicas e psicológicas. A
práxis revolucionária é um antídoto. Ou seja, uma organização política que promovaa destituição
do poderracista colonial pode expulsarcolonizadordasestruturas do poder.
Masexiste outra dimensão do racismoque não podeser combatida pelas armas. As patologias
psicológicas decorrentes de um mundobranco produzido como único e verdadeiro acabam por
importranstornos de outra ordem às pessoasnegras. O branco colonizado pode escaparaos olha-
res do branco colonizadore, mediante uma “boa educação”, estabelecer um d álogo com a metrá-
pole. O homem negro, por sua vez, não pode fingir; mesmo que use umaeficiente “máscara bran-
ca”, ele se denuncia à primeiravista. O racismoé “epidérmico” — essa “epidermização da inferi-
oridade”que recai sobre as pessoas negras é um dos aspectos ressaltados por Fanon. O racismo é
umsistema quefacilita a exploração por meio da identificação de gente “civilizada”e “incivilizada”.
Para à metrápole branca, esse modo de situar as populações é mais fácil uma vez que evidente
racismo antinegro difere de outros racismos. Sartre disse que um judeu podenegar sua
condição.! Se uma mulher branca cigana do Leste Europeu usar as roupas certas, pode se disfarçar
numa multidão branca. Quando setrata de uma pessoa negra, não é necessário verificar sobre-
nomeou buscar um código cultural disfarçado: a negritude está sempre anunciada na pele,está na
cara.
A práxis revolucionária pela descolonização da periferia do capitalismoé um aspecto dafilo-
sofia de Fanon que ganhou muito destaque. Noentanto, sem se esquivar da centralidade do tema
na obra do autor, há outros aspectos marcadamente relevantes em seu pensamento. resistência
nãose dá somente pela luta armada, pois a colonização não é apenas política e social: tem uma
natureza profunda e silenciosa, apresenta raízes psicológicas que não se deixam enxergar a olho
À primeira vista poderia parecer que o fim da colonização política libertaria a subjetividade. As
contribuições do primeiro livro do autor, porém, ajudam entenderoutra coisa. A subjetividade —
aqui compreendida de modo amplo comoo aparelho psíquico, modos depensar, de sentir e de
desejar — fica comprometida a despeito das bandeiras hasteadas e dos hinos entoados. O veneno
da colonização não se expurga meramente com a saída dastropas francesas daArgélia
Outra questão importante é a recepção de Fanon no Brasil. De modogeral, o martinicanopropôs
umdeslocamento da Europa: não mais o centro filosófico, pol ico, econômico e cultural do pla-
neta, mas umasimples província. Tal transposição ajudou a enviesar a recepção de sua obra no
contexto europeu. Todavia, no Brasil da década de 1950, a situação era ainda maisgrave. O pensa-
mento de Fanon nem ecoou no mundo acadêmico brasileiro, que parecia desconhecer seu tra-
balho. O difícil acesso às publicações poderia ser umahipótese razoável para explicar esse silên-
cio, porém isso não corresponderia à realidade. Naquele momento, no país, cinco intelectuais que
pensavam as relações étnico-raciais — Clóvis Moura, Florestan Fernandes, Octavio lanni, Roger
Bastide e Sérgio Milliet — não ignoravam a existência de Frantz Fanon, embora de 1952 a 1960 ne-
nhum deles tenha publicado umalinha sequer sobre o filósofo martnicano, comoatesta o cuida-
doso levantamento bibliográfico feito pelo sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães:
Qual seria o motivo daindiferença desses intelectuais brancos em relação a Fanon? Bem, na-
quela época, influência manásta inseria a questão racial no contexto daluta de classes. O racismo
não era necessariamente visto como um sistemaà parte da opressão social. Embora Fanondesse
muita importância à dominação econômica, ele privilegiava o enredo racial, que à luta de classes
não podia suplantar ou subsumir. Dealgum modo,osestudos das relações étnico-raciais,coorde-
nados principalmente por Bastide e Fernandes, não trabalhavam o racismo como uma categoria
totalmente independente das questões de classe social
Em 2008, Guimarães publicou o artigo “A recepção de Fanon no Brasil e a identidadenegra”,
trabalho útil para entender por quea obra do filósofo só passou a ser comentada entre nós depois
davinda de Jean-Pau Sartre e de Simone de Beauvoir ao país, em agosto e setembro de 1960. Não
é de estranhar que tenha sido a visita dos intelectuais franceses a chancelar Fanon?Seu nomepas-
sou a ser ouvido depois da chegada do casal, ainda que não tenha sido temade nenhuma de suas
palestras no Rio de Janeiro, São Paulo, Ouro Preto, Salvador, Recife, Belo Horizonte, Fortaleza,
Porto Alegre, Belém = Manaus. Os escritos de Sartre e de Beauvoir foram o foco daatenção dos
acadêmicos brasileiros.
Não surpreende que um pensadorbranco francês dealgum modoprecisasse referendar Fanon:
o racismoé resposta essa equação. Somente com a leitura do prefácio de Sartre à obra Pele
negra, máscaras brancas surgiram os primeiros comentários sobre o autor entre nós. O minucioso
balanço que o cientista social Mário Augusto Medeirosda Silvas fez da recepção crítica de Fanon,
de 1960 até o final do século xx, nosajuda entender como o impacto doautor foi mais intenso
no movimento social negro brasileiro. Não é equivocadodizer quefoi o ativismo negro antirracista
que o recebeu de braçosabertos.
Em 1956, o artista visual « ativista negro Wilson Tibério participou do | Congresso de Escritores e
Artistas Negros, realizado na Sorbonne, em Paris. Três anosdepois, a segunda edição do con-
gresso, realizada em Roma, contou com participação do intelectual ativista Geraldo Campos de
Oliveira, representante da Associação Cultural do Negro (AcN), fundada em 1954. A ACN foi um
grupoinfluente que, por dentro daprodução antirracista e anticolonial do continente africano, do
Caribe e dos Estados Unidos, impulsionou a interlocução afro-atlântica. Promovendoo diálogo
com organizações em nível internacional, o grupo, cujos ativistas conheciam Fanon, contribuiu
para mantervivo o ativismonegro antirraciasta brasileiro
Décadas depois, nos anos 1980, o Movimento Negro Unificado (MNU),entre outros, indicava
obras de Fanon nabibliografia de formação deativistas. Ou seja, parte doativismo negro brasileiro
já mantinha contato com o pensamento fanoniano. Na academia, porém, a primeira tese de
doutorado sobre o autor só foi defendida em 2013 (Fanon, o reconhecimento do negro e o novo huma-
nismo: horizontes descoloniais da tecnologia) por Ivo Pereira de Queiroz, na UniversidadeTecnológica
Federal do Paraná (UTFPR). Passados dois anos, Deivison Mendes Faustino (Deivison Nkosi)
defendeu na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) a tese de doutorado Por que Fanon, por
que agora?: Frantz Fanon e osfanonismosno Brasil. Ambos são negros e comprometidos com o ati-
vismo antirracista. De lá para cá, multiplicaram-se ostrabalhos sobreo pensamento fanoniano.
O levantamento de Medeirosda Silva revela que foram osativistas negrosos primeiros a recep-
cionar a obra nopaís. Mesmo no âmbito da academia, foi porintermédio de intelectuais negros
engajados noantirracismo que os estudos fanonianos floresceram mais efetivamente, em parti-
cular aqueles associados aos temas da descolonização e do antirracismo. Sobo impacto do pensa-
mento de Fanon e em busca deferramentas teóricas para pensar a sociedade brasileira e seu ra-
cismo estrutural, osintelectuais negros e negras fizeram com que a obra do filósofo circulasse
amplamente
Em 2018, Faustino publicou um livro fundamental: Frantz Fancn: Um revolucionário particu-
larmente negro, no qual ele desenvolve umatese muito especial que o filósofo explanasobretudo
no primeiro livro. Tendopor tema a sociogênese do racismo, Faustino dialoga com muitos auto-
res. Mostra como Stuart Hall e Lewis Gordon, por exemplo,iluminam a trajetória do filósofo, cujo
leque de interrogações atravessadas por uma ânsia revolucionária de descolonização antirracista
do mundotodo deixou profundas marcas na academia. E concorda com a comentadora Sylvia
Wiynter, que ressalta o princípio sociogênico do pensamento de Fanon? Em Pele negra, máscaras
brancas, as questões mais candentes dizem respeito à sociogenia, pois tratam de subjetividade,
identidade, processos de identificação e cultura. Enquanto a sociogenia é um fenômenocentral
para analisar o racismo e a colonização,o sociodiagnóstico enterga a colonização como um fenô-
menohistórico-social
Se a fenomenologia existencialista, o mandsmo e a psicanálise foram referências caras a Fanon,
a diversidade cultural negra foi muito marcante em seusescritos e trabalhospsiquiátricos. Mesmo
na condição de leitor de psicanálise, Fanon relativiza aspectos certrais da teoria freudiana, por
exemplo, o complexo de Édipo — como “coisa de branco”, é praticamente isso que ele diz em Pele
negra, máscaras brancas: “Queiramos ou não, o complexo deÉdipo está longe dever a luz entre os
negros”£ Em seu conhecido O mal-estar na civilização, Freud apresenta a neurose como consti-
tutiva da condição humana. Porém,para Fanon,psiquiatra comoseucolega austríaco,ela não é,
e poressa razão ele prefere falar em psicopatologia. A psicanálise sai de cena, cedendo espaço a
uma psicopatologia cue se serve de elementos psicanalíicos
Fanon recorre à sociogênese de todos osfenômenos. Nas sociedades africanas e noscontextos
negros afrodiaspóricos, a dinâmica social não é marcadapelos mesmoscódigosjudaico-cristãos,
pelos mesmos mitos de fundação. A subjetividade branca comporta o complexo de Édipo, mas os
contextos africanos são historicamente, de modogeral, matrifocais? Por razões culturais, no
“âmbitodas populações negras — e algo semelhante poderiaser dito dos povos originários da Amé-
rica —, não encontramos terreno fértil para o florescimento de dromes e dedistúrbiosfrequentes
e estruturais naprovíncia Europa, em seuprojeto da modernidadeocidental
As diferençasculturais não podem ser desprezadas, a existência do mundo branco antinegro
impõe distúrbios à população negra em estado decolonização. Numa atmosfera racista, o auto
ódio passa a ser a única oportunidade de se tornar um ser humano. Pensando em termos de psi-
copatologia, a colonização, mais que um envenenamento político,é, sobretudo, uma intoxicação
psíquica. Contra o caráter brutalmente té ico dacolonização racista, Fanon levanta a voz e defende
o uso de armas. Seu clamoré pelalibertação negra na África e no mundo.
Não custa repetir que, emboraasanálises de Fanon tenham se concentrado nalibertação doconti
nente africano e de todos os povos colonizados,isso não querdizer que seu pensamento possa ser
reduzido a essa temática; sua relevância, assim como suaatualidade, ultrapassaas reflexões do
contexto histórico dedescolonização dos anos 1950. Sua obra inclui, além de Pele negra, máscaras
brancas (1952), LAn v de la révolution algérienne (1959),Os condenados da terra (1961), Pourla Révo-
lution africaine: Ecrits polítiques [Rumo à revolução africana: Escritos políticos] (1964), crits sur
Faliênation et la liberté Escritos sobre alienação e liberdade] (2015), do qual faz parte esteAlienação
liberdade: Escritos peiquiátricos, e um conjunto de textos publicados na França na segunda década
do século xx1, que retratam a ampla vocação do filósofo, psiquiatra e ativista da descolonização
para conectar política e subjetividade.
Para analisar o racismo, não basta situá-lo como um fenômeno individual, ontogênico, tam-
pouco como uma característica universal da espécie,flogênica:
Freud, por meio dapsicanálise, exigiu que se levasse em conta o fatorindividual. Ele substituiu
umatese filogenética pela perspectiva ontogenética. Veremosquea alienação do negro nãoé
uma questãoindividual. Além da filogenia e da ontogenia, existe a sociogenia 10
Segundoa perspectiva sociogênica, o racismo integra um complexo sócio-histórico que está na
base da formação da subjetividade, no núcleo da cisão colonial que determina quem está fora e
quem está dentro. A colonização divide o mundo em duas partes: em uma,vive o colonizador, a
régua, o cânone, a imagem da humanidade, o branco; em outra, o inverso, o negativo. Se Fanon
nosfala da revolução e ficou bastante conhecido poressediscurso, ele ressalva que nenhuma
revolução podeacontecer sem descolonização do pensamento. Ele seria, pois, um precursor da-
quilo que hoje chamamos de desintoxicação das subjetividades colonzadas.
E se o assunto é subjetividade, não há como não endossar a tese de que as questões psicana-
Ííticas estão em todo o pensamento fanoniano — é o que defende Stuart Hall no artigo“The After-
life ofFrantz Fanon: Why Fanon? Why Now? Why Black Skin, White Masks?”[A vida pós-morte de
Frantz Fanon: Por que Fanon? Por que agora? Por que pele negra, máscaras brancas?) Outro tra-
balho vigoroso e incontornável é o já mencionado Frantz Fanon: Um revolucionário particularmente
negro, de Deivison Mendes Faustino. Ambos os autores discutem como a colonização das sub-
jetividades produz patologias, temaqueatravessa Ecrits sur Faliénation et la liberié, e desenvolvem
tópicosda sociogênese dessefenômeno do racismo.
desejo é um dos pontos de partida deste Alienação e liberdade: Escritospsiquiátricos. Tomando
a subjetividade comofio condutor, livro politiza a sanidade, agora sinônimode liberdade. O res-
tabelecimento dasanidade não deixa deser um projeto político. A ligaçãoentre a dimensãohistó-
rica e político-social, por um lado,e a psíquica, por outro, € inescapável. E aqui Fanonexplicita a
questão queatravessa radicalmente toda sua obra: a aspiração à liberdade. A denúncia insistente
de métodos antiéticos de tratamentopsiquiátrico é recorrente, seja na crítica ao choque, seja na
denúncia de abordagens não exatamente clínicas, que reproduzem racismo. Seu faro filosófico
não o distancia do empenho em elaborar uma escrita mais clínica—as especulações e o espírito re-
volucionário estão presentes de algum modoe, de certa forma, politizam trabalhopsiquiátrico.
Donode um repertório vasto, o autor nosoferece a descrição de situações socioterápicas. Ele
aponta, entre outros, a falta de humildadedo etnocentrismo, uma característica incorporadaa uma
psiquiatria que não consegue escutar. A diversidade cultural não pode ser tomada como loucura. A
colonização infantilizou discursos e práticas em toda África e nas populações negras em todas as
regiões do mundo, muitas vezes deixandoa internaçãopsiquiátrica como única saída. Alienação e
liberdade tece críticas a situações escandalosas, como a necessidadedeintérpretes para médicose
enfermeiros em hospitais psiquiátricos naArgélia. Se um argelino, ou qualquer outro africano,
trabalhasse em um hospital francês, o domínio da língua seria o primeiro requisito para sua admis-
são na instituição A metrápole não «ente necescidade de fazer nenhum esforçopara se aproximar
da colônia. O paciente argelino não precisa ser compreendido, sua cultura não é considerada. O
hospital psiquiátrico não é exatamente uma instância de recuperação da sanidade mental, mas de
assimilação.
Para além dos efeitos políticos dacolonização, há as consequênciaspsíquicas. Alienação e liber-
dade possui um mérito quedeve serressaltado, ou seja,a obra propõe uma leitura política do hos-
pital psiquiátrico e uma analogia entre as ações do psiquiatra e do colonizador diante da “loucura”
do paciente / colonizado. Se umapessoa nasce em umaterra explorada,sua sanidadejá está em
risco —a colonizaçãopode acarretar baixa autoestimaou outras percepções de siigualmente nefas-
tas. A toxicidade do sistema político se expressa sob as mais diversas formas de opressão psico-
lógica, e umadelas éprojeto manicomial. Fanon nos convida a clamarpela recuperação da sani-
dade e, ao mesmotempo,nosintima a buscar a liberdade. Liberdade e sanidade andam juntas.
A experiênciaclínica doescritor deixou marcas cruciais em seu trajeto intelectual: sejao reco-
nhecimento de que o mundo branco adoece as pessoas negras,seja a identificação deque a cultura
hegemonicamente cristã do colonizador transforma em paciente o muçulmano colonizado. Nos
dois casos, cotidianodo hospital psiquiátrico apresenta estudos de casos que ajudam a desenhar
sua narrativa. É possível afirmar uma “psicopolítica”em sua obra,ainda que o termo seja extem-
porâneo a seu pensamento. Atoxicidade da colonização é uma política enraizadano psiquismo. Os
escritos a seguir mostramqueo filósofo e psiquiatra enxergou na loucura um clamorporliberdade.
RENATO NOGUERA é doutor em filosofia, professor e pesquisador da Universidade Federal
Rural do Rio deJaneiro (urRRj)
INTRODUÇÃO
FANON,PSIQUIATRA REVOLUCIONÁRIO
JEAN KeaLea
Ostrabalhospsiquiátricos de Frantz Fanon costumam ser mencionados quando se comentam as
passagens de seus livros sobre os efeitos psicológicos da colonização, mas esses textos, escritos
entre 1951 e 1960,paralelamente à sua obra política e o longo de sua carreira profissional de neu-
ropsiquiatra, são pouco estudados em si ou pelo que dizem a respeito da evolução de seu pensa-
mento. Há muitas razõespara isso: sua natureza técnica, o interesse nunca desmentido de Fanon
porterapias hoje frequentemente desacreditadas, como eletrochoques ou comasinsul icos (méto-
dos que ele praticava e sobre os quais escreveu artigos científicos) ou, ainda, seus experimentos
com os neurolépticos de primeira geração. Alguns também se incomodam com o fato deele subor-
dinara psicanálise a uma abordagem neuropsiquiátrica mais geral, ao menos quando a considera
deum ponto devista clínico. Além disso, a riqueza e o impacto da obra política são tais, para uma
vida tão curta, queé difícil acreditar queeletenha tido tempopara produzir também uma obra cien-
tífica de algumaimportância. No entanto,ao lê-los em paralelo logo fica claro que obra política
encontra sua forma eseusfundamentosteóricos na obra científica
Fanon,aliás, se considerava antes de tudo psiquiatra e poucas vezes interrompeu sua prática
clínica, fosse na Frarça, na Argélia ou na Tu a. Se a psiquiatria constituísse apenas uma ativi-
dadeprofissional apertada de seus interesses principais, ele decerto teria aberto um daqueles con-
sultórios particulares que floresciam na época! Ora, ele privilegiou a clínica hospitalar, realizou
pesquisas originais, que apresentou em congressos, publicou-as,dirigiu trabalhos universitários e
exerceu um impacto considerável sobre a vocação e a carreira de internos e enfermeiros — o que
muito cedo lhe granjeou a reputação de médico que revolucionava a prática dominante. Seus textos
de psiquiatria contêm preciosas reflexões flosóficas, etnológicas, epistemológicas e jurídicas. Em
termosde psiquiatria e de neurologia, remetem aos debates mais interessantes da área, e isso du-
rante um período apaixonante de redefinição febril da disciplina. Também merecem ser estudados,
se quisermos compreender o pensamento do autorna íntegra. Tendo reunido diversos de seus
escritos políticos sobo título Pourla Révolution africaine [Rumo à revolução africana],o editor Fran-
cois Maspero chamou atenção para esse corpus de documentos, observando que, ao mesmo
tempo que redige seustextos políticos, Fanon
realiza um notáveltrabalho médico,inovador em todos os aspectos, profunda e visceralmente
próximo de seus doentes, em quem vê,acimade tudo, as vítimas do sistema que combate Fle
acumula as anotações clínicas e as análises sobre osfenômenos da alienação colonialista vista
através das doenças mentais; também explora astradições locais e suas relações com a coloni-
zação. Esse material capital está intacto, mas também disperso, e esperamos poder reunilo
num volume à parte?
A obra científica de Fanon parte de uma reflexãofundamental sobre a especificidade dapsiquiatria
emrelação à neurologia, temade sua tese de medicina, defendida em 1951. Ele publicou em se-
guidaartigos sobre os tratamentos neuropsiquiátricos que havia testado e seuslimites, e depois
orientou-se para uma abordagem socioterapêutica cujas dificuldades logo o levaram a estudar o
papel crucial da cultura no desenvolvimento das doenças mentais. Fanon recusou desde o início
qualquer naturalização das doenças mentais e rejeitaria com veemência aquelas que a etnopsi-
quiatria colonial, essencialmente biologizante e racista, havia inventado e encarnado na estrutura
dos hospitais fundados antes da guerra, em especial o de BlidaJoinvlle, na Argélia. Elaborou,
nessa ocasião, umaabordagem quefez dele um dos pioneiros da etnopsiquiatria moderna. Porfim,
afastou-se da socioterapia ou terapia institucional para criar um serviço de tratamento mental fora
do hospital psiquiátrico e propor um modelo paraas futuras instituições de saúde mental
Atesefundadora de 1951 sobre as “alterações mentais”
Seu primeiro texto importante é a tese de exercício em psiquiatria defendida em Lyon, em novem-
bro de1951,para atuar como médico - ele tinhaentão 26 anos de idade3 Essa tese costuma ser
apresentada como um trabalho técnico produzidoàs pressas com o fim de obter umaqualificação
no lugar de Pele negra, rmscuras bruna, consideradoinaceitável corno Lal, pur ter sido redigida de
“um ponto devista demasiado subjetivo.é Fanonapresenta um motivodiferente:
Quando começamos este livro, surgido no final de nossos estudos em medicina, pensávamos
em defendê-lo comotese. Mas depois a dialética exigiu que tomássemosposições mais refor-
gadas. Embora, de qualquer modo,tivéssemosabordadoa alienação psíquica donegro, não
poderíamosomitir certos elementos que, embora de natureza psicológica, engendravamefei-
tos relativosàs outras ciências
Essa dialética é a da psiquiatria e da sociologia, da subjetividade e dahistória, e Fanon havia
destacadodesde a incradução:
Reagindocontra a tendência constitucionalista em psicologia do fim doséculo x1x, Freud, por
meio dapsicanálise, exigiu que fosse levado em consideração o fatorindividual. Ele substituiu
a tese filogenética pela perspectiva ontogenética. Veremos quea alienação do negro nãoé ape-
nasuma questão individual. Ao ladoda filogenia « da ontogenia, há a sociogenia5
Fanon, que nãohesitava nem um pouco em se posicionar na esteira defiliações ilustres, desde o
começo teve consciência do que viriam a constituira força e a modemidadede seu pensamento
político: tomar a noção de alienação num sentidoforte, articulando essas três dimensões. Para
isso, ainda era preciso provar quea alienação não pode se reduzir a distúrbios da constituição
orgânica ou da história individual, fora de qualquer vínculo social. Tal é o objeto da tese de psiqui
atria “estrita”, texto que é preciso levar a sério, tanto em si mesmocomo em sua conexão funda-
mental com seus outros trabalhos, pelas razões indicadas a seguir.
Emprimeiro lugar, o caso médico objeto da tese — uma doença neurológica hereditária muitas.
vezes, mas nem sempre, acompanhada desintomaspsiquiátricos, eles próprios variáveis — é o de
uma paciente obsenada cuidadosamente e por um longo período. Fanon estudava num depar-
tamento de orientação neurológica e, portanto,tinha à sua disposição os recursos necessários para
examinar o problema das relações entre causalidade neurológica e causalidade psiquiátrica. Su-
pondo que essa doença lhe ofereceria umachave para o problema, ele examinou todosos casos
recentes, tanto na literatura médica desde o século xix quanto nas clínicas próximas, tendo por
objetivo explícito provar empiricamente a insuficiência do reducionismoorganicista ainda domi-
nante napsiquiatria do pré-guerra. Portanto, a resolução desse problema inicial pode ser consi-
derada uma preconcição teórica para seus trabalhosrelativos ao impacto dosfatores sociais e
culturais sobre o desenvolvimento das doenças mentais e, em consequência, para seu pensamento
posterior sobre a alienação.
Em segundolugar, Fanon indica em vários pontos importantes da tese as orientações futuras
de seu próprio percursoprofissional e intelectual. Sobre a natureza da neuropsiquiatria e as fun-
ções respectivas do neurologista e dopsiquiatra,ele declara: “longe de proporumasolução — cre-
mos ser necessário para isso uma vidade estudose de observações”? Naparte consagradaà re-
cusa do atomismo e das localizações cerebrais pelos psicólogos da Gestalitheorie (teoria
psicológica da forma), notando a insistência do psiquiatra e médico suíço Constantin von Mona-
kow (1853-1930) no tempo como fator crucial no desenvolvimento das doenças mentais, em opo-
sição à localização espacial das lesões cerebrais,a tese anuncia uma obra futura, provavelmente
Pele negra, máscaras brancas, publicadapouco depoi “Teremos ocasião, numaobra em que vimos
trabalhando há algum tempo, de abordaro problemada história sob a perspectiva psicanalítica e
ontológica. Mostraremosentão que a história consiste na valorização sistemática dos complexos
coletivos” 3
Fanontinhalido Jacques Lacan com muita atenção,talvez sob a influência de Maurice Merleau-
Ponty cujos cursos frequentava 2 Consagrando uma seção de sua tese à teoria lacaniana de uma
psicogênese pura da loucura (que ele opõeà organogênese moderaca do grande psiquiatra do pe-
ríodo, Henri Ey), Fanondestaca a insistência de Lacan na constituição social da personalidade
('ele considera a loucura de uma perspectiva intersubjetivista”) e acrescenta, numainteressante
preterição:
“A loucura”,ele diz, “é inteiramente vivida noregistro do sentido” [..] Gostaríamosde ter
consagrado longas páginas à teoria lacaniana da linguagem, mas correríamos o risco de nos
afastar demais de nosso propósito. A despeito disso,refletindo tem, devemosreconhecer que
todo fenômenodelirante é, em última instância, um fenômeno manifesto,isto é, dito1º
Portanto, Fanon vê em sua pesquisa sobre esse grupo de doenças mentais irredutíveis à sua ori-
gem neurológica a ocasião de levar a cabo uma reflexãoteórica de fundo e indica queela o conduz
aostrabalhos quepretende empreender mais tarde, mesmo em outras áreas.
Emterceiro lugar, não há por que subestimar o interesse continuado deFanon pelos aspectos
biológicos da clínica psiquiátrica. Maurice Despinoy, quefoi seu supervisorde residência no Hos-
pital Psiquiátrico de Saint-Alban, observa que ele manifestava grande interesse pelas experiências
que fazia com sais de lítio. Despinoy, um dos pioneiros nessaárea, estima que, se tivesse perma-
necido em Saint-Alban, Fanon “teriafeito umatese de bioquímica”.
Em quarto lugar, sabemos que Fanontrabalhava muito rápido, ditando seuslivros sem usar
anotações e raramente se corrigindo 2 Noentanto, a redação dessa tese talvez tenha levado tanto
tempo,se não mais, que a de seus livros: o histórico dos casos pertinentes a bibliografia são
extensivos;as referências, esclarecedoras; as citações (em geral corretas) revelam umaleitura atem-
ta da literatura, e suas análises vão aoponto central das questões dominantes na época. É uma tese
muito curta, sobretudo pelo número de casos resumidos ou estudados diretamente, e pouco con-
forme às convenções hiblingráficas, mas vai sem desvios ao cerne do problema e é possível ver
comoo estilo de seu pensamento se define.
Porfim, não é evidente que um trabalho, aoincorporar algumasdas análises na primeira e na
terceira pessoas sobre o tema de Pele negra, máscaras brancas (cujo primeiro título havia sido
“Ensaio sobre a desalienação do negro"), não pudesse ter sido defendido como tese numaépoca
em quea necessidade de uma abordagem fenomenológica da doença mental estava no centro dos
debates, impulsionada, entre outros, por Ey e Merleau-Ponty,ambosgrandes leitores de Karl Jas-
pers (assim comoFanon). Sem dúvida, hojetal tese na psiquiatria seria menosaceitável do quena-
quele tempo. David Macey observa que Pele negra, máscaras brancas, que Fanon havia começado a
escrever antes de se lançar aos estudos depsiquiatria, não podiater sido concebido inicialmente
comotese de exercíco.!3 O essencial é que as duas obras têm pontosde partida muito diferentes:
é certo quea tese estabeleceu o fundamento ontológico de Pele negra, máscaras brancas, mostrando
que, mesmo quandotem origem em problemasneurológicos, uma doença mental só costumase
desenvolver num espaço relacional socialmente determinado, que explica a forma que ela toma.
Maso livro é um estudo psicossócio-histórico particular sobre a alienação numacolônia doAntigo
Regime, o Caribe francês, onde a dependência interna em relação à metrópole é absoluta,tanto,
aliás, na forma de uma identificação quanto emidentidades de oposição (como a negritude)
Fanon poderia muito bem ter se servidodos dois capítulos mais “psicológicos”, um subjetivo, “A.
experiência vivida do negro” (já publicado em Esprit em maio de 1957), e o outro, quepoderíamos
dizer mais objetivo, “O preto a psicopatologia”. Mas uma tese de medicina sobrea psicopa-
tologia do “negro” separada dos contextos socioculturais e históricos concretos, que são o objeto
essencial das análises de Pele negra, máscaras brancas, teria caído no essencialismo,já denunciado
vivamente por tanon em “Le Syndrome nord-africam” JA sindrome norte-africana],escrito na
mesma época.!t Do ponto de vista de Fanon, está claro que esse livro é também uma crítica da
ideia de que construções patológicas atribuídas a uma “raça” possam ter outras fontes além dahis-
tória.
Sustentar que as doenças mentais não são “entidades” naturais, reconhecendo ao mesmo
tempo a possibilidads de sua origem orgânica,era, portanto, umaposição importante a sertomada
nos debates médicos daépoca, e Fanon a defendia com ainda mais vigor porque ela lhe permitia,
além disso, solapar os fundamentosda etnopsiquiatria colonial. Preocupado com asrelações entre
orgânico e o mental, mas igualmente apabxonado pelas relações entre a história e a alienação, e
estudando num ambiente de pesquisa neurológica, Fanon emergou em sua tese de exercício em
psiquiatria a oportunidade de refletir sobre o problema filosófico que constituía seu horizonte:
espaço que umaprova empírica da distinção entre o neurológico e o psiquiátrico abriria à liberdade
eà história,
Organogênese e psicogênese da doença mental
Atese de Fanonutiliza umadoença neurodegenerativa hereditária, a ataxia de Friedreich, parainter-
rogarsobre oslimites da redução do mental ao neurológico. Aconclusão, numabase experimental,
é pela dimensão relacional (interpessoal e,por extensão, social) do desenvolvimento das doenças
mentais e das formas que elas adquirem: a maioria dos casossérios tem origem numapatologia
neurológica que necessita de um ou vários tratamentos orgânicos, segundo os meios disponíveis
emdeterminada época, masestes não bastam para curara doença mental. Logo,esta não se reduz
à sua causa ocasional: ela tem dinâmica própria e requer um tratamento de ordem totalmente di
versa. Mas, se não há organogênese pura das doenças mentais, tampouco há psicogênese pura
Para Fanon, a oposição é obsoleta, pois as formas que as doenças mentais tomam são deter-
minadas pela estrutura das relações de que o indi uo é capaz, ou incapaz, departicipar, portanto,
por fatores “extemos”, nem orgânicos nem psíquicos, mas institucionais e sociais. A partir de
então,o distárbio neurológico só será concebido como causa na mecida em quea “dissolução” de
certas funções superiores (como asque controlam o movimento oua aprendizagem)altera a pos-
sibilidade e a estrutura das relações sociais; logo, em consequência, a personalidade. Com o tempo,
o espírito reage « recompõe a personalidade utilizando o que dela resta depois da dissolução men-
tal, As diversas formas possíveis dessa reconstituição são repertoriadas em diferentes tipos de
doenças mentais.
preâmbulo datese anuncia desdelogoessa dimensãoepistemológica da pesquisa: entre 1861
e 1931, numafamília de distúrbios neurológicos degenerativos hereditários,“determinadosquadros
clínicos tentaram alcançar a dignidade de ente específico”! Ora, essa longa e complexa história
mostra que, nesses casos, sintoma neurológico e sintoma psiquiátrico “obedecem a um polimor-
fismo absoluto”15 Em outras palavras, se era possível unificar as doenças neurológicas, essatarefa
se mostraria impossível para seus correlatos psiquiátricos. Sabe-se que a famosa “paralisia geral”,
descrita em 1822 pelo médico alienista francês Antoine Laurent Bayle (1799-1858), parecia tão
claramente ligada a umasíndrome mental específica (o delírio megalomaníaco e a demência pro-
gresciva) que foi utilizada pelo psiquiatra Jarques-Joseph Moreau de Tours (1804-84). é seguida
pelo positivismo médico doséculo x1x, como prova do substrato orgânico de toda doença mental
e comofundamento de uma concepção organogenética da loucura? Masbasta ampliar o campo
para a família dos distúrbios neurológicos degenerativoshereditários ligados à ataxia de Friedreich
para perceber que, se umaparte dos casos vinha acompanhadade doenças mentais, essas alte-
rações raramente erem idênticas. De modo que essas doenças pareciam questionar as distinções
a ocasião de uma
rígidas e a simplicidade das “explicações causais e mecanicistas”. Fanon viu
refundação do campo:
Numaépoca em que neurologistas e psiquiatras se esforçam para delimitar uma ciência pura,
isto é, uma neurologia pura e uma psiquiatria pura,seria válido introduzir no debate um grupo
de doenças neurológicas quesão acompanhadasdedistúrbios psíquicos e levantar a questão
legítima a respeito da essência desses distúrbios 1º
E, em umaparte importante da seção “Considerações gerais”:
Não acreditamosque um distúrbio neurológico, por mais queesteja inscrito no plasma germi-
nativo de um incivíduo, possa engendrar um quadro psiquiátrico determinado. Mas queremos
mostrar que toda afecção neurológica incide dealgum modosobre a personalidade. E, quanto
mais o distúrbio neurológico seguir uma semiologia rigorosae irreversível, mais sensível será
essa falha aberta no interior doego. [..] Pensamos em órgãose em lesões focais quandoseria
necessário pensar em funções e desintegrações. Nossa ótica médica é espacial e deveria se
temporalizar cadavez mais 1º
Essa preocupação epistemológica pode ser encontradano conjunto dostrabalhos de Fanon: uma
classificação pode ser cômoda, mas isso em nada prova umaontologia. Deveríamos sempre poder
pensar em termos de processo em vez deentidades. Esse rigor vem da fenomenologia e de uma
reflexãosobre os debates principais dapsiquiatria francesa dadécadaanterior, especialmente aque-
les que opunham Henri Ey a Jacques Lacan e aos neurologistas Julian de Ajuriaguerra e Henri
Hécaen2º Esse ceticismo também alimenta os trabalhos de Gaston Bachelard e Georges Cangui-
lhem e osprimeirosescritos de Michel Foucault2! Fanon vai derivar daí uma denúncia da vacui-
dade dos conceitos etnopsiquiátricoscoloniais, mas no campo deestudo da tese esse ceticismo
conduz a uma abordagemestrutural da doença mental
Foi dito que a Universidade de Lyon era um deserto psiquiátrico nessa época22 O estudante
que decidisse se dedicar a esse tipo de pesquisa demonstraria ume lucidez notável e uma capa-
cidade espantosa de se envolver nos maisinteressantes debates do período. No entanto,é provável
que esses debates, amplamente documentados por Ey, tenham sido acessíveis a Fanon por meio
dos cursos e dos trabalhos publicados de Merleau-Ponty. Além disso, em Lyon, Fanon descobriu
também fora da universidade a corrente mais progressista da psiquiatria francesa 22 Conhece, por
meio de amigos comuns, Paul Balvet, renomadopsiquiatra do Hospital Le Vinatier. Balvet havia
publicado,no número de setembro de 1947 de Esprit, o importante artigo “La Valeur humaine de la
folie” [O valor humano da loucura], que, em sua tese, Fanon compera com as análises de Lacan.
Ele tinha sido o diretorda clínica de Saint-Alban, na qual Fanonfaria mais tarde sua residência, sob
a supervisão de François Tosquelles (recrutado por Balvet) e Maurice Despinoy. Em março de
1950, Balvet contribui para um númeroespecial de Esprit,intitulado “Médecine, quatrime pouvoir?
Ulntervention psychologiqueet ['intégrité' de la personne” [Medicina, quarto poder? A intervenção
psicológica e a “integridade” da pessoa], que incluía artigos consagrados à neurocirurgia,às tera-
pias de choque, à narcoanálise e à psicanálise2 Suas discussões se deram provavelmente em
tornodesses debates, que estavam noprimeiro plano da vida intelectual da época. Fanon,leitor
voraz de filosofia, literatura e psiquiatria, informado sobre essas questões, decidiu naturalmente
tomar posição nesse campo de pesquisae nele imprimir sua marca.
Portanto,a tese se inscreve, de saída, na perspectiva de uma comparação entre filosofia e a
psiquiatria e quase poderia ser contida nas duas epígrafes, à primeira vista contraditórias, que
constituem seu incipit: uma de Nietzsche e a outra de Paul Guiraud eJulian de Ajuriaguerra 25
Paul Guiraud, neurologista de grande renome,trabalhava na conexão entre lesões neurológicas
distúrbios psicológicos,e Julian de Ajuriaguerra se tornaria autoridade mundial nessa área. Na
mesmareunião da Sociedade Médico-Psicológica, Guiraud também apresentou, com Madeleine
Derombies, “Un Cas de maladie familiale de Roussy-Lévy avectroubles mentaux” [Um caso de do-
ença familiar de Roussy-Lévy com distúrbios mentais]. Essa enfermidade era acompanhadade uma
síndromepsicológica que compreendia depressão, irritabilidade e afecção da sensibilidade mus-
cular, repercutindonasíntese da personalidade:
já não existe apropriação da atividade muscular por parte dapersonalidade, o sujeito tem a im-
pressão de sofrer passivamente os movimentos da caminhada, ele não anda, mas, como disse,
É transportado, como se estivesse num carro”. O resultado desse défcit é um declínio da
noção do eu, da perconalidade, a tal ponto, conformedisseo paciente, que, «e ele nãoparar,
chega a perderaconsciência 2s
Ora, a essa patologia se acrescentavam “ideias incipientes de grandeza detipo infantil”. Do ponto
de vista neurológico, o jovem apresentava todos os sintomas musculares fisiológicosda doença
de Roussy-Lévy (distasia arrefléxica hereditária), confirmada pelo estudo de sua hereditariedade. Os.
autores concluíram que existia correlação entre síndrome mental específica e síndrome neuro-
lógica, mas enfatizaram, num texto que talvez tenha inspirado o tema da tese de Fanon, queessa
correlação neuropsiquiátrica não é universal:
Consideramosque, em nosso caso, a lesão ainda desconhecida (uma vez que a doença de
Roussy-Lévy continua aguardando sua anatomia patológica) nãose limita à medula, mas atin-
ge as vias ou os centrosterminais da proprioceptividade nessas mesmasregiões em que o
neurológico se torna psíquico. De fato, está amplamente demonstrado que a simples privação
de impressões cinestésicas, ou de outra ordem,não basta para provocartranstornostais como
falha naapropriação pelo ego e o sentimento depassividade dosatos motores. preciso
outra coisa para explicaros distúrbios do caráter,a impulsividade, o estado depressivo etc.
Em compensação,na doença de Friedreich, osdistúrbios mentais são bastante conhecidos.
Mollaret os estudou cuidadosamente em suatese. Ele nota que os distúrbios do humore do
caráter, a impulsividade e a instabilidade estão muitas vezesassociados debilidade mental
Mas em nenhurra de suas observações encontramos umaligaçãotão estreita quanto nanossa
entre a síndromeneurológicae a síndrome mental.
Essas considerações sobre as diferenças entro as doenças neuropsiquiátricas esclarecem o pensa
mento de Fanon. O que está em jogo é a natureza do psíquico: a ataxia de Friedreich tornapossível
até necessário compreendera independência do psíquico em relação ao neurológico no âmbito
de umaabordagem científica,isto é, sem recurso a um dualismo espiritualista. Outro caso estu-
dado por Guiraud na mesma reunião da Sociedade Médico-Psicológica, com Ajuriaguerra, apre
sentava umasíndrome de “arreflexia, amiotrofia acentuada, sinal de Argyll e distúrbios mentais”.
Denovo,temos uma lista de distúrbios neurológicos ligados a distúrbios mentais (desequilíbrio
mental, distúrbios de caráter, surto ciclotímico e, por vezes, deficiência intelectual original) nointerior
de umasíndrome ainda não plenamente definida, embora inegável, « bastante similar à doença de
Friedreich A conclusão dos autores compreende a frase que Fanon cita como segunda epígrafe:
essas enfermidades nervosas hereditárias são acompanhadas por distúrbios mentais tão fre-
quentes etão significativos que não podemser consideradosfortuitos.
Noentanto, no centro das três apresentações surgiu uma dúvida: essasligações, que não são
umacoincidência, bastam para explicara forma e o conteúdo dos distúrbios mentais? Podemos
noscontentar em falar de “processos cerebrais”, como dizia Fanon para traduzir as “coisas que
acontecem na cabeça”, segundo Nietzsche, ou deveríamos estudar tembém as “coisas vividas”, as
formas e osestados de consciência em si? A análise atenta e detalheda da literatura sobre a ataxia
de Friedreich, associada ao estudo docaso específico sobre o qual Fanon se debruçou (um “caso
dedelírio de possessão deestrutura histérica” com sintomas como“agitação,atitudes extáticas,
elocuções sobre temas místicos ou eróticos")2º mostra que a extrema variedade dessas formas
põe em dúvida de antemão qualquer reducionismo.
A solução se encontra numalonga seção da tese que compara as ideias de Ey, Goldstein (e
Monakow) e Lacan. Ainda que tenha permanecido, ao que parece, mais próximo do organodi-
namismo de Ey e da compreensão da natureza da doença mental como reconstrução patológica da
personalidade — trabalho de umaconsciência afetada em primeira instância por problemas neuro-
lógicos subjacentes e em reação eles -, Fanon enfatiza várias vezes a insistência de Lacan na
dimensão social do complexo e seu impacto no desenvolvimento da doença mental 2º No caso
específico estudado por Fanon, a degeneração cerebral produzia demência imaturidade mental,
mas delírio e as manifestaçõeshistéricas e místicas (delírio de possessão) deviam ser explicados
como comportamento reativo de um eu privado de relações sociais. O distárbio neurológico ori-
ginal havia inibido o desenvolvimento afetivo e cognitivo, impedindo a mobilidade e, portanto, a
socialização (umaideia que talvez revele a influência de Henri Wallon,pela via de Merleau-Ponty)
“LJ os del los sistematizados, as manifestações histéricas e os comportamentos neuróticos
devem serconsiderados condutas reacionais de um ego em ruptura de relações intersociais”20
Numa formulação famosa, Ey denominava “fosso organoclínico” o espaço dessa “trajetória psf
quica” de autorreconstrução pela consciência, após uma dissolução mental 2! Para Fanon, esse
fosso será cada vez mais estruturado por uma multiplicidade defatores externos, sociais e cultu-
rais. Poressa razão,suas publicações médicas e seus manuscritos sobre a necessidade dostrata-
mentosneuropsiquiátricos então disponíveis sublinham sempre seuslimites. A partir do momento
em que foi confrontado com asdivisões sociais próprias do contexto colonial, ele se voltou mais
diretamente para o papel da sociedade e da cultura na doença mental * passou à refletir cobre as
vantagens e os limites da terapia social e da psicoterapia como tratamento no âmbito do hospital
psiquiátrico.
Valore limites dos tretamentos neuropsiquiátricos
A tese abria a possibilidade de pensar em uma abordagem propriamente neuropsiquiátrica no trata-
mento das doenças mentais. Em todosseus textos posteriores sobre o tema, Fanon explica que
esse processo se dá em duas etapas: primeiro, um tratamento orgânico, baseado tanto nas terapias
de choque - eletrochoques (terapêutica de Bini), comas insulínicos (cura de Sake!) ou uma com!
naçãodosdois — como numaterapia do sono, com o objetivo de fazertábula rasa das construções
reativas anteriores. Esse tratamento, que consiste apenas em umafase preliminar, é seguido por
umlongo trabalho psicoterapêutico com o propósito de reconstruir a personalidade e reconduzir o
paciente a umaexistência social o mais normal possível 2 A doença mental nunca é vista como
uma forma extremade liberdade, mas antes como uma“patologia da liberdade”, expressão que
Fanonutiliza em vários textos, referindo-se a Ey, que, porsua vez, o havia tomado de empréstimo
de um artigo epônimo de Gunther Anders (1902-1992) 23 Ele opõe essa concepção da loucura
comopatologia da liberdade à de Lacan, que via na possibilidade da loucura uma dimensão essen-
cial da existência humana, em certa proximidade com os surrealistas.2<
Após seus estudos em Lyon e uma breve estada no Hospital Psiquiátrico SaintYlie, em Dole
Uura), e depois na Martinica, Fanon se transferiu, em abril de 1952, para o Hospital de Saint-Alban-
de-Limag-nole (Lozêre), para trabalhar comoresidente com o psiquiatra revolucionário François
Tosquelles, um dos inventores da “socioterapia” (subsequentemente, psicoterapia institucional)
Logo publica com Tosquelles e seus colaboradores umasérie de textos centrados nasterapias de
choque. Esses tratamentos nunca são apresentados como remédios, mas como preparações
necessárias aotrabalho psicoterápico propriamente dito.
Esse foi o caso de várias apresentações na512 sessão do Congresso de Médicos Alienistas e
Neurologistas da Françae dos Países de Língua Francesa, em Pau, de 20 a 26 de julho de 1953: “A
propósito de algunscasos tratados pelo método de Bini”, “Indicações da terapêutica de Bini no
quadro da terapêutica institucional”, “Sobre uma tentativa de readaptação de uma paciente com
epilepsia morfeica e transtornos de natureza grave”(todos com Tosquelles) e “Nota sobre as
técnicas terapêuticas do sono com condicionamento controle eletroencefalográfico” (com Mau-
rice DespinoyeWalter Zenner, que também eram de Saint-Alhan)
Esses artigos descrevem casos de pacientes que sofriam de distúrbios psicóticos severos.
Fanon e Tosquelles evocam longamente osdiversos debates sobre cs riscos e as questões éticas
das terapias de choque e observam que um dos motivosdaresistência em adoté-las (além de sua
equiparação incorreta à lobotomia, então chamada leucotomia) é uma crença ingênua na perma-
nência da personalidade: “não haverá portrás dessa atitude um desconhecimento do dinamismo
da personalidadetal comonos mostraa psicanálise [.>"25
A personalidade que as terapias de choque decompõem não é uma essência fxa, mas uma
construção patológica em reação a um transtorno inicial e a uma “dissolução” As terapiasde cho-
que, que Fanon continuou a empregar em Blida e em Túnis, eram ertão instrumento de escolha
de uma segunda “dissolução”, a das reconstruções patológicas; entretanto, essa dissolução impli-
cavaa criação de condições e processos especiais para ajudaro paciente a reconstruir sua persona-
lidade. Tais são as funções da terapia institucional « dapsicoterapia (em geral em forma deterapia
de grupo) elaboradas e implantadas em Saint-Alban. A terapia institucional consistia em criar um
microcosmo do “mundoreal”, umaabertura ao mundono contexto hospitalar, em queo paciente
desempenharia um papel ativo ao longo do dia,trabalhandoe dandoconta de múltiplas atividades.
A construção de uma estrutura social era, portanto, fator essencial na reconstrução da persona-
lidade:
Insistimos nofato de que, para tratamentosnessa perspectiva, preciso a um só tempo atri-
buir a maiorimportância ao dispositivo hospitalar, à classificação e ao agrupamento dos paci-
entes, assim como à organização concomitante das terapias de grupo. A coexistência doateliê,
dos dormitórios e davida social do conjunto do hospitalétão indispensável quanto a etapa de
análise ativa, intervencionista, que precedea cura. A cura de Bin,fora dessa possibilidade de em-
cadeamento terapêutico, parece-nos um contrassenso 35
Como muitas vezes se disse, a terapia institucional se baseava naideia de que primeiro era preciso
tratar a própria instituição para depois tratar seus pacientes. O hospital era, em muitos casos, um
simples lugar de internaçãoperpétua 2? Depois da Segunda Guerra Mundial, a lembrança da fome
nos manicômios franceses?: « as imagens de campos de concentração haviam tornadoa realidade
do hospital psiquiátrico particularmente inaceitável, mas a ideia deque a instituição engendrava,
porsua própria estrutura, doenças mentais sem grande ligação com os problemas iniciais dos
pacientes não era nova: já havia sido formulada em meadosdo século xix por Maximien Par.
chappe, inspetor-geral dos abrigos para alienados, que havia supervisionadoa segundavaga de
construção de manicômios na França e escrevera que a maioria das doenças mentais era causada
pela internação. Fanon conhecia esses textos por intermédio de Philippe Paumelle, pioneiro da
terapia institucional e dapsiquiatria de setor em Paris.2º Impunham-se reformas, e na França a
solução veio, em parte, pelo trabalho desenvolvido por Tosquelles em Saint-Alban, que tinha por
objetivos a abolição dasestruturas coercitivas ligadas à internação (não só os instrumentosde
contenção, como também o ócio forçado e a rotina) e a recriação, nointerior hospitalar, e sob
supervisão médica, das estruturas da sociedadeexterior, com atenção particular à textura da vida
cotidiana, em oposição à rotina tradicional da visita matinal do médico seguida por uma jornada
inativa. Assim, o hospital seria administrado em todas assuas dimensões sociais e materiais pelos
pacientes e enfermeiros, que receberiam nova formação. Lentamente, e de maneira controlada, a
maioria dos pacientes se recompunha, ao menosaté ser capaz de interagir. A terapia institucional
foi umadas fontes da antipsiquiatria dos anos 1960, em particular as experiências de Jean Oury e
Félix Guattari na Clínica de La Borde. Oury, quetambém tinha sido interno em Saint-Alban, conhe-
cia bem Fanon.
Socioterapiaeculture
Tão logo chega ao Hospital Psiquiátrico de Blida-Joinvlle em novembro de 1953 (depois de ter
trabalhado dois meses no Hospital de Pontorson, na Normandia), munido de sua concepção or-
ganodinâmica não essencialista da doença mental e de sua experiência com terapia institucional,
Fanonse descobre imerso em um ambiente que logo se transforma em uma situação experimental
única e que teria um impacto decisivo naevolução de seu pensamento. Blida-Joinville era um hos-
pital de “segunda linha”, depois de Mustapha, em Argel, o que significava que boa parte de seus
pacientes era consideradaincurável. Desde sua chegada, Fanon se dedicoua reformaras alas sob
sua responsabilidade. Os pacientes eram separados segundo um critério étnico em “europeus” e
“nativos”; a ele foram confiados dois pavilhões, um de mulheres europeias e o outro de homens
argelinos.!º Se a socioterapia funcionava às mil maravilhas com as mulheres europeias, mostrou-
se umfracasso completo com os homens argelinos. Fanone seuinterno Jacques Azoulay (1927
201), que tinha decidido consagrar sua tese 0 problema, publicaram um importanteartigosobre
esse fracasso e suas lições.4! Para além da especificidade da experiência colonial, eles tiveram uma
chance única de refletir com profundidade sobre os processos da socioterapia Se o cineclube, a
associação de música ou o jornal do hospital (todos administrados porpacientes) poderiam ter
uma função terapêutica, não era somente por causa dos filmes, das músicas ou dos textos em si,
mas porque eram instrumentos que davam a eles a possibilidade de reaprender a atribuir sentido
aos elementosconstitutivos de um ambiente.
O cinemanão deve consistir numasucessão deimagens com acompanhamento sonoro:é pre-
ciso que se converta no desenrolar de umavida, de uma história. Assim, a respectiva comis-
são, ao escolher os filmes e ao comentá-los no jornal em uma coluna especial, conferia ao
evento cinematográfico seu verdadeiro sentido?
A experiência funcionava e logo, como em Saint-Alban, Fanon conseguiu descartar as camisas de
força e outrosinstrumentos de contenção no pavilhão europeu. Mas por que essas reformasnão
deram certo com os homens “nativos”, que permaneciam presos em seu ciclo deindiferença, retra-
ção e agitação, com seu correlato de repressão?A resposta não se encontrava em algumacaracte-
rística racial, e sim no fato de que o trabalhocognitivo de atribuição de sentido só pode ser feito
emcertos contextos de referência, e estes não são universais, mas culturalmente determinados,
fato que se manifesta claramente numa sociedade colonial. “Em razão de qual desvio de julga-
mento”, escrevem Azoulay e Fanon, “pudemos crer possível uma socioterapia de inspiração oci-
dental numaala dealienados muçulmanos? Como seria possível uma análise estrutural se colocá-
vamosentre parênteses os contextos geográficos, históricos,culturais e sociais?"
Charles Geronimi sugere queesse fracasso foi desejadopor Fanon como umaetapa necessária
noestabelecimento dasestruturas terapêuticas:
É legítimo nos perguntar se Fanon defato “se enganou”tentandoaplicaras técnicas “euro-
peias”numaala de muçulmanosou seele se engajou de casopensado no que desdeo início
sabia ser um impasse. JacquesAzoulay, segundo suaspalavras, acredita que “eletinha se enga-
nado redondamente”. Quando me mostrei surpreso com esse “desvio de julgamento”, con-
forme sua expressão, pois vindo de quem havia acabado de escrever Pele negra, máscaras bran-
cas ou artigo de Esprit sobre a “síndrome norte-africana”, trabalhos que punham em evi-
dência à impossibilidade de um encontro autêntico num contexto colonial, ele sorriu e
replicou: “Sabe, a gente só compreende com asentranhas. Para mim, não era umaquestão de
impor de fora métodos mais ou menos adaptados à “mentalidade nativa” Fu precisava de-
monstrar muitas coisas: que a cultura argelina era portadora de valores diferentes dos da cul-
tura colonial; que esses valores estruturantes tinham de ser assumidos sem complexo por
aqueles que os trazem: os enfermeiros ou os pacientes argelinos. Para ter a adesão dos arge-
linos, eu precisava suscitar neles um sentimento de revolta do tipo 'somos tãocapazes quanto
os europeus”. Cabia a eles sugerir as formas de sociabilidade específicas « integrá-las no pro-
cesso de socioterapia. Foi o que ocorreu”. E acrescentou: “A psiquiatria deve ser política”+
Blida oferecia a Fanon a oportunidade ideal paraesclarecer os dois problemas que o perseguiam
desde sua tese e desde Pele negra, máscarasbrancas, a saber, as relações entre o neurológico e o
psiquiátrico e entre c psiquiátrico e o social. Com seus internos (especialmente Jacques Azoulay e
François Sanchez), ele passou a estudar, na cultura local, a maneira comoas doenças mentais
eram conceitualizadas.º Eles estudaram os exorcismosdos marabutos, baseadosna crença em gê-
nios(djinns ou, mais propriamente, djnoun, forças que, acredita-se, dominam osdoentes mentais),
mastambémo impacto da colonização sobre essas culturas. De um ponto de vista institucional, a
solução em Blida se tornou evidente, gerando, em seguida, uma reformulação completa dasativi-
dades socioterapêuticas: abertura de um café mouro, celebrações de festas tradicionais, encontros
com contadores de Histórias e grupos de música locais, envolvendocada vez mais participação
dos pacientes. Futebolista apaixonado, Fanon também conseguiu que os pacientes construíssem
umestádio do qual se orgulhava bastante, onde organizava jogos — e que aindahoje é utilizado. No
artigo escrito com Azoulay, essas soluções são descritas de forma muito breve enquanto o pro-
blema propriamente dito é analisado nos mínimosdetalhes. O mais importante consistia em expor
a necessidade de uma transformação conceitual cujo sucesso permitisse, por sua vez, enfraquecer
o olhar etnopsiquiátrico dominante na época +º
Seus trabalhos psiquiátricos posteriores, em especial aqueles sobre a doença mental na África
do Norte, confirmam nateoria o que essa experiência tinha revelado e atacam a psiquiatria colonial
do pré-guerra, essencialmente viciada em naturalizartranstornos mentais que hoje parecem clara-
mente determinados porfatores sociais e culturais. Se é verdade que na gênese das doenças men-
tais muitas vezes estão problemas neurológicos, essa experiência terapêutica também confirma a
irredutibilidade das síndromes psiquiátricas ao neurológico. O reducionismo científico só floresceu
nascolônias, sobretudo sob a égide de Antoine Porot e de sua influente “escola deArgel”, porque
oferecia ao racismo um fundamento de aparência científica
Em umaapresentação no Congreso de Médicos Alienistas e Neurologistas de setembro de
1955, em Nice, Fanon e seu colega Raymond Lacaton, de Blida, abordam o assunto da doença men-
tal na África do Norte, sob o ângulo original de um problema de medicina legal: se a maioria dos
criminosos “europeus” acaba confessando o crimeapós a apresentação deprovas, a maioria dos
criminosos “nativos” nega osfatos, mesmo diante de provas cabais, sem tentar provar sua ino-
cência. A reação da polícia e da opinião pública é naturalizar esse comportamento, com o argu-
mento de que o norte-africano é mentiroso por constituição. Os psiquiatras “primitivistas” expli-
cavam fato de maneira mais sutil. Para eles, antes de mais nada, a criminalidadeestá inscrita na
“mentalidade” dos nativos:
4 criminalidade dos nativos tem um desenvolvimento, uma frequência, uma brutalidadee uma
selvageria que surpreendem à primeira vista e que são condicicnadosporessaimpulsividade
especial para a qual um denósjáteve a ocasião de chamara atenção [..] 2 Das 75 períciaspsi-
quiátricas deindígenas solicitadas a um de nós nestes últimosdez anos,61tratavam de assas-
sinatos ou tentativas de assassinato de aparência injustificada
Nos douars, só era possível defender-se desses doentes acorrentando-os; em nossos hospi-
tais psiquiátricos modernos,foi preciso multiplicar os quartos deisolamento, queainda sãoin-
suficientes para contero número surpreendente de “agitados nativos” que devemosisolar.
Ora, aindaé o primitivismo que nos fornece a explicação para essatendência à agitação.
Essas manifestações psicomotoras desordenadas devem ser corsideradas, em nossaopinião,
segundo ideia de Kretschmer, como a libertação repentina de “complexos arcaicos” pré-
formados; reaçõesexplosivas “tempestuosas” (medo,pânico, defesa oufuga) no caso da agi-
tação. Enquanto o indivíduo “evoluído” está sempre sob o domínio de faculdades superiores
de controle,crítica e lógica, queinibem a libertação de suasfaculdades instintivas, o primitivo
reage além de certo limite, por meio de umalibertação total de seus automatismosinstintivos,
em que é possível constatar a lei do tudo ou nada: o nativo, em sua loucura, não conhece
limites es
A tendência a negar as evidências se explica, para Antoine Porot e seu discípulo Jean Sutter (191-
1998) que começou sua carreira com Porot em 1938, comochefe de uma ala em Blida-Joinville —,
por umaespécie de teimosia constitutiva, umaincapacidade de integrar os dados da experiência
numa objetividade comum,assim como as crianças que negam sua desobediência mesmo quando
viramseus pais ohsesvá-las (com a ressalva de que as crianças têm a capacidade de evoluir):
A única resistência intelectual de que[os nativos] são capazes se dá na formade umateimosia
tenaz e insuperável, de um poderde perseverança que desafia todasas iniciativas e que em geral
só é exercido num sentido determinado pelosinteresses, instintos ou crenças essenciais. O
nativo lesado toma-se rapidamente um reivindicador tenaz e obstinado. Essa redução inte-
lectual baseada na credulidade e na teimosia aproximaria, à primeira vista, a fórmula psíquica
do nativo muçulmano à de uma criança. [Noentanto, esse puerilismo mental difere do com-
portamento de nossas crianças, no sentido de que não encontramos no nativo esse espírito
curioso que as leva a questionamentos, a porquês intermináveis, incitando-as a conexões im-
previsíveis,a comparações sempreinteressantes, um verdadeiro esboçodo espírito científico,
do qualo nativo é destituídoJe
Logo, os nativos estavam fixados não num estágio de desenvolvimento ontogenético anterior, mas
numa profunda diferença filogenética. Porot e Sutter concluem assim seu ensaio:
Pois o primitivismo não significa falta de maturidade, umainterrupçãodo desenvolvimento do
psiquismo individual; [. ele tem raízes muito mais profundas e pensamos até que seu subs-
trato deve estar numadisposição particular se não da arquitetura, ao menos da hierarquização
“dinâmica”dos centros nervosos.sº
Em um documento datilografadonão publicado,Fanon faz de novo tábula rasa dos pressupostos e
parte de uma reflexão filosófica sobre as condições culturais e a história legal da confissão,citando
Sartre, Bergson, Nabert, Dostoiévskie sobretudo Hobbes:
Existe um polo moral da confissão: aquilo que se chamaria de sinceridade. Masexiste também
umpolo cívico, e é sabido queessa posição era cara a Hobbes e aos filósofos do contrato so-
cial
Confesso como homem e sou sincero. Confesso também na condição de cidadão e, assim,
autentico o contrato social. Por certo, essa duplicidade está inserida na existência cotidiana,
mas em determinadas circunstâncias é preciso saberinvertê-la 3.
Portanto, a confissãc só faz sentido num grupo que o indivíduo reconheça e que, por sua vez, o
reconheça. Salvo nas jurisdições totalitárias, seu papel é mínimo nosprocedimentos judiciários
modernos. pois já não tem o estatuto de prova (é possível acusar à si mesmo sobcoação ou para
inocentar o culpado). O reconhecimento da culpa deve então ser compreendido como um meio de
facilitara reintegração no grupo social, umavez provada a culpa. Ora,isso supõea existência de
“um grupo homogêneo, contexto imprescindível, em que o indivíduo seinseriu em dado momento,
mesmoquena prática esse contexto passe despercebido em virtude precisamente de sua evidência
necessidade. O texto publicado sobre essa intervenção começa neste pontoda reflexão: só pode
haver reinserção num grupo se indivíduo já for parte integrante dele. Como pertencem a um
grupo distinto, com suas próprias normas éticas e sociais (entre as quais um código de honra dife-
rente), os “nativos” norteafricanos não podem legitimar um sistema estrangeiro por meio da con-
fissão. Eles podem se submeter ao julgamento, no qual veem apenas a decisão de Deus. Fanon
não deixa de ressaltar que se submeter a um poder não significa aceitélo:
Para o criminoso, reconhecer seuato perante o juiz implica desaprovar esse ato, implica legi-
timara irrupção do público noprivado. O norte-africano, ao negar, ao se retratar, não estará se
recusando isso? Sem dúvida, vemosassim concretizada a separação total entre dois grupos
sociais coexistentes — tragicamente, há que se lamentar —, mas cuja integração recíproca não
foi iniciada. Essa recusa do acusado muçulmano em autenticar, pela confissão de seu ato, o
contrato social quelhe é proposto significa que a submissão, por vezes profunda, que perce-
bemos que ele demonstra perante o poder(judiciário, no caso) não pode ser confundida com
umaaceitação desse poder?
Portanto, o interesse desse problema de medicina legal é revelar que na sociedade colonial não há
contrato social compartilhado, não há adesãodo indivíduo a um todo social e jurídico. Aqui se re-
vela uma contradição inconciliável entre a compreensão contratual do social e o colonialismo,
aindaque ele tivesse levantado essa bandeira como umade suasjustificativas. Mais uma vez, a
ideologia de uma patologia mental e de um caráter naturalmente igados a uma raça, por mais
espontânea quetivesse parecido, não passava de um dispositivo destinado a mascararessa contra-
dição. Sob a capa daciência, a naturalização da doença mental com base racial significava,nareali-
dade,transformarem norma naturalcerta estrutura cultural importada da Europa.
FanoneAzoulay tinham observado que as dificuldades deaplicação da socioterapia para os ho-
mens argelinos na enfermaria de Blida vinham do fato de que “o biológico, o psicológico e o
sociológico haviam se separado apenas por uma aberração do espírito”5é Para exploraras relações
reais dessas dimensões e compreender as conexões que unem os membros individuais de um
grupo a um todo social, Fanon consultou seuslivros, em especial de sociólogos antropólogos,
comoAndré Leroi-Gourhan,ss Georges Gusdorfe Marcel Mauss,cujo conceito de fato social total
ele adotaºs Para Fanon, entre as práticas cruciais que definem uma sociedade, nainterseção entre a
economia, a lei, a religião, a magia e a arte, as atitudes em relação à loucura tinham um papel
essencial, Ele deixou vários textos interessantes nesse campo, dosquais o mais surpreendente é,
sem dúvida, um artigo de 1956, escrito em colaboração com François Sanchez, sobre a “Atitude do
muçulmano magrebino diante da loucura”. Em vez de recorrer à grande tradição de escritos medi-
evais árabes sobre a loucura como doença mental, Fanon e Sanchez se concentram nasreações
populares perante os doentes, estudando-as por meio da observação dos procedimentos terapêu-
ticos dos marabutos e encomendando traduções dos tratados de demonologia em que se funda-
mentavam essaspráticas. O curioso, segundo eles, é que, apesar de na Europa a loucura ser enca-
rada comodoença, e não comoperversão, as reações, tanto fora quanto no interior do hospital,
aindase baseiam num esquema mental moral « não médico. Os enfermeiros psiquiátricos tendem
a “punir” pacientes cue causam problemas, e os membros de sua família se sentem pessoalmente
ofendidos por essa atitude:
ocidental crê, em geral, quea loucura aliena, que não seria possível compreender o compor:
tamento do doerte sem levar em conta a doença. Contudo,na prática essa crença nem sempre
acarreta umaatitudelógica, e tudo se passa como seo ocidental com frequência se esquecesse
da doença: o alienado parece experimentaralguma complacência na própria morbidez e tende
a se aproveitar mais ou menos dela para abusar de seu entorno.”
A visão norte-africana sobre a loucura é diferente: “Se existe uma certeza bem assentada, é a do
magrebino em relação à loucura e seu determinismo: o doente mental é absolutamente alienado,
não tem responsabilidade por seus transtornos; somente osgênios detêm plena responsabilidade
poreles”.
Se pensarmosrealmente que o louco está doente por ser controlado por forçasexteriores (os
dinoun, ou gênios), não podemos atribuir intencionalidade, muito menos moralidade, aos compor-
tamentos dos pacientes:
A mãeinsultada ou espancadapelo filho doentejamais vai ousaracusá-lo de desrespeito ou de
desejos homicidas; ela sabe que o filho não seria capaz de desejar deliberadamente seu mal
Jamais se chega sequera considerara questão de lhe atribuir atos que não decoram de sua
vontade, sujeita por completo ao domíniodos gênios.
Fanon considera que essas sociedades estão mais avançadas em termos de “higiene mental”, isto
é, em cuidados dispensados localmente, do que as sociedades europeias, mas não em razão de
algum fascínio pelo que a própria doença revelaria (e, nesse ponto, ele está muito longe do Fou-
cault de Folie et déraison [Loucura e desrazão]): “Não é a loucura que suscita respeito, paciência e
indulgência—é a pessoa acometida pela loucura, pelos gênios;é a pessoa comotal”-sº
A Europadeve então tirarlições dessas atitudes se deseja desenvolver sistemas de assistência
melhores para ospacientes, masisso não significa, segundo Fanon, ter que abandonar uma pers-
pectiva científica em psiquiatria. O artigo termina com uma frase em destaque contendoa seguinte
afirmação: “Se a Europa recebeu dospaíses muçulmanos osprimeiros rudimentos de uma assistência aos
alienados, ela lhes ofereceu, em retribuição, umacompreensão racionaldasenfermidades mentais!"
Para além dainstituição
A reflexão sobre a experiência de Blida mostrara a Fanon que deviam ser considerados os aspectos
culturais, e não só os sociais, para que o modelo da terapia institudonal funcionasse. Ele se per-
guntou então se seria possível conceber outras estruturas de higiene mental que não a própria
instituição hospitalar. Num artigo de 1957 escrito em colaboração com um dosinternos deBlida, o
dr. SlimaneAsselah, sobre agitação (a violência dos pacientes e sua ligação com a instituição),
texto que indica pela primeira vez distância em relação a Tosquelles, Fanon questiona de novo a
ideia de que o hospital pode substituir o meio exterior, acrescentando que, nesse caso,as relações
de poder do exteriortambém seriam transpostas:
Não nosparece detodo descabido relembrar aqui que a compreensão da necessidadede orga-
nizar o serviço clínico, de institucionalizá-o e nele viabilizar condutas sociais não deve pro-
vocar uma mistificação fundada em referências externas. É assim que podem ser entendidas
expressões como: hospital-aldeia; hospital reflexo do mundo exterior; dentro do hospital é
comodo lado de fora, o paciente deve se sentir em casa... É questionável se essas expressões
não são umatentativa de mascarar a realidade por trás de preocupações humanitárias
falsamente psicoterapêuticas. E Le Guillant tem mil vezes razão ao condenar essasatitudes
descoladas da realidade 2
Porisso, durante seus últimos anos em Túnis, além do trabalho no jornal El Moudjahid das ativi-
dades políticas, Fanon consagrou energia considerável à instalação e à direção de um centro-dia,
gado ao Hospital Charles-Nicolle, para substituir a hospitalização psiquiátrica. O último de seus
artigos científicos, publicado em 1959, é um longo relatório sobre essa experiência de quase dois
anos. Fanon parece ter ficadoparticularmente orgulhoso desse centro e o considerava um modelo
avançado de assistência psiquiátrica a ser desenvolvido em qualquer lugar, sobretudo nospaíses
descolonizados, em úirtude de seu baixo custo e da grandeeficácia terapêutica & A vantagem de
um centro-dia em comparação com umainstituição de internação é que a socioterapia pode ocor-
rer no ambiente social e cultural normal dos pacientes, que voltam para casa à noite, depois de
terem se submetido a uma série de tratamentos apropriadosdurante o dia, compreendendo, se
necessário, sessões iniciais deterapia de choque ou de hipnoterapia, e uma variedade depsicote-
rapias, individuais ou em grupo. Nesse artigo, para justificar sua recusa à internação, Fanon volta
várias vezes à ideia, herdada deEy, de que a loucura é uma patologia daliberdade:
A doença menta, numa fenomenologia que deixaria de lado as grandes alterações da consci-
ência, apresenta-se como umaverdadeira patologia daliberdade. A doençasitua o doente num
mundo em que sua liberdade, sua vontade e seus desejos são constantemente violados por
obsessões, inibições, contraordens e angústias. A internação clássica limita consideravelmente
o campode ação do paciente e lhe interdita qualquer compensaçãoe qualquer deslocamento,
restringindo-o ao espaço fechado do hospital e condenando-o exercersualiberdadeno
mundoirreal dos fantasmas. Nãosurpreende, portanto, que o paciente só se sinta livre em sua
oposição ao médico que o mantém preso. [.] No hospital-dia [..] a instituição,na verdade, não
tem nenhum cortrole sobre a liberdadedo paciente, sobre sua manifestação imediata. [..] Para
o paciente, fato de se cuidar por meio do vestir-se, docorte dos cabelose,acima detudo, da
intimidadede toda uma parte do dia passada fora do ambiente hospitalar reforça e, em todo
caso, mantém sua personalidade em contraposição à integração dissolvente em um hospital
psiquiátrico, que abre caminho aos fantasmas da fragmentação corporal ou da erosão do
egost
Fantasmas de fragmentação física, desagregação da identidade, quea instituição psiquiátrica só re-
força, mas não transforma: escas noções já tinham sido utilizadas por Fanon em Pele negra, méc
caras brancas para descrever a alienação produzida pelo olharracista e pelainstituição colonial na
própria experiência vivida do negro, desagregadores análogos à fase inicial de dissolução neuro-
lógica na gênese da doença mental 55 Mas o mundo estava mudando e já não se tratava de perpe-
tuar na medicina estruturas essencialmente alienantes. O programade saúde mental para um país
novo que Fanon expõe em seu artigo sobre o Centro-Dia de Neuroosiquiatria em Túnis poderia,
aliás, servir de modelo ao que se tornaria,sob o nomede “psiquiatria de setor”, umadimensão
essencial dotratamento psiquiátrico também na Europa
Nãohádúvida de que Fanon amava sua vida de revolucionário, dejornalista e de embaixador.
Mas, umavez conquistada independência, ele tinha a intenção de dedicaro resto de seus dias à
organização, em sua área, de estruturas capazes de resolver da melhor maneira possível as pato-
logias da liberdade. Sua prática científica e clínica é inseparável de todas essas suas vidas, vividas
JEAN KHALFA é professor de História do Pensamento Francês no Trinity College na Univer-
sidadede Cambridge « organizador, com RobertYoung, dovolume Ecrits surFaliénation et la li
berté (La Découverte,2015)
mm
RFFIFXÕES SORRF CI ÍNICA PSIQUIÁTRICA
A INTERNAÇÃO DIURNANA PSIQUIATRIA: VALORE LIMITES (1)
FRANTZ FANON, 1959
Introduçãogeral
Apósa Segunda Guerra Mundial, os problemas da assistência psiquiátrica se apresentaram com
grandeacuidade a seus praticantes nos mais diversospaíses. Sabe-se que, desde antes de 1938, a
prioridade era conferida, de um lado,à prevenção e à detecção precoce dos distúrbios mentais e,
de outro,à simplificaçãodas formalidades administrativas em torno dahospitalização dosdoentes
mentais.
A lei adotada em 1938 naFrança, para citar apenas um exemplo.? visava justamente retirar dos
manicômios seu caráter prisional. Durante a guerra, a recrudescência dos distúrbios mentais e,
acima de tudo, suasúbita eclosão levaram os médicos anglo-saxões a intensificara prática doopen
door nos hospitais psiquiátricos. Essa fórmula de portas abertas, inaugurada por Duncan
McMillanê em Nottingham reproduzida desde então em diversos países, permite aos pacientes
circularlivremente nointeriordo hospital, possibilitando,assim, o máximode contato entre o paci-
ente e o meio social:visitas de parentes, dispensas temporárias, férias,altas precoces, altas experi-
mentais.
Sem dúvida, os primeirospacientes a se beneficiar das portas abertas foram os neuropatase os
pré-psicóticos, mas c estudodos pacientes considerados crônicos havia mostrado que, em grande
parte dotempo, a meioria dos sintomas é de ordem neurótica e que,paradoxalmente, o manicômio
agravava a doença, favorecendoa psicotização.£ Um passo a mais e se inaugurava o princípio do
day hospital, hospital-dia, cujas experiências mais convincentes foram realizadas na Inglaterra, na
Dinamarca e no Cansdá.
Quais são os princípios do hospital-dia? 1) De saída, o paciente não rompe com seu meio fam
liar e, por vezes, tampouco com seu meio profissional. 2) A sintomatologia psiquiátrica exibida
pelo paciente não desaparece em decorrência do internamento, pois justamente oselementos do
conflito e a configuração confitiva se mantêm presentes e vivos nos quadros famil 1, sociale pro-
fissional. Não se assiste ao desaparecimento mágico da tensão,tão clássico após a internação,e
tem-se constantemente a possibilidadede estudaras reações dopaciente no quadro natural da sua
existência.
No modelo antigo de hospital psiquiátrico, subtrafa-se o paciente de seu ambiente conflitivo e
muito amiúde «e tinha a impressão de um desaparecimento súbito dos sintomas neuráticos logo.
que as portas do manicômio se fechavam atrás dele. Era nesse sentido quese podia dizer quea
internação provocava umadistensão. Masas atitudes neuróticas continuavam presentese assistia-
se à sua ab-reação diante daprimeira visita da esposa ou do marido oudiante da primeira menção
às antigas dificuldades. O manicômio envolvia o paciente num manto protetor, porém era uma
falsa proteção, pois favorecia a letargia do paciente, essa espécie de sono acordado durante o qual
ele levava uma vida vegetativa. E a atenção do médico era dirigida unicamente às perturbações do
comportamento do paciente, oriundas, no mais das vezes, das condições de vida no âmbito mani-
commial
A tentativa feita por médicos decriar no interior do hospital uma neossociedade (é esse o es-
forço dasocioterapia) visava justamente impor ao paciente situações similares ao mundoexterior,
em meio às quais ele pudesse reeditaratitudes neuróticas como as que porventura existiram anteri-
ormente.
Vê-se, portanto, que o hospitaldia atende a duas demand: : 1) o diagnóstico e o tratamento
precocedos transtornos de comportamento; 2) a manutenção do riaior número de contatos do
paciente com o meio exterior, de tal modo que nenhumaatitude neurótica e nenhuma situação
confltiva desapareçam magicamente. Nãose trata, assim, de colocar o paciente fora decirculação
da vida social, mas de pôr em movimento uma terapia dentro do quadro navidasocial. Dapers-
pectiva da assistência psiquiátrica, é uma tentativa de propiciar o desprendimento da atmosfera de
segurança aparente que existência do manicômio confere
As experiências concretas de hospital-dia aindasão raras. Existem no máximovinte hospitais-
dia em operação no mundo. Em todos os casos, eles se encontramem países tecnicamente avan-
gados; jamais se tentou realizar num país subdesenvolvido tal experiência. Seria importante, antes
de mais nada, questionar do ponto de vista metodológico se um hospital-dia seria possível num
país de baixa industrialização. Se sim, uma questão doutrinária poderia serlevantada: o hospital-
dia é capaz de dar conta detodasas afecçõespsiquiátricas?
preciso avaliar a importância efetiva da decisão tomadapelo governotunisiano de criar um
centro-dia de neuropsiquiatria, o único no continente africano a realizar essa experiência. São os
resultados dessa experiência que estudamosaqui; é a validadedesse princípio, mesmo em países
subdesenvolvidos, que é defendida aqui; é nossa convicção que, daqui em diante, se tornará
medicamente importante e socialmente rentável desenvolver centros-dia neuropsiqui
mesmo em países subdesenvolvidos.
Veremosque, em dezoito mesesde atividade, o Centro-Dia de Neuropsiquiatria de Tánis rece-
beuetratou mais de mil pacientes e que menosde 0,88% deles precisou de internação.
O Centro-Dia de Neuropsiquiatria deTúnis
NoHospital Geral Cfarles-Nicolle existia um serviço de neuropsiquiatria,criado havia mais de qua-
renta anos e praticamente regido pela lei de 1838. A única diferença era a prioridade relativa dada
aos pacientes ditos voluntários, que se podiam beneficiar da modalidade de serviço aberto. As
medidas de monitoramento em nada ficavam dever às dos hospitais psiquiátricos em geral, que
empregavam os piores métodos: camisas de força,solitárias, grades, portas trancadas e, acima de
tudo,a atitude complacentemente punitiva dainstituição. Um plano global da assistência psiquiá-
trica naTunísia fora solicitado pelos serviços ministeriais e os psiquiatras tunisianos, de comum
acordo, responderam que lhes parecia importante não mais reproduzir os estabelecimentospsi-
quiátricos de acordo com o padrão de grandes hospitais, que cedo ou tardese veriam convertidos
em manicômios. Eles ressaltavam, em vez disso, a necessidade de vincular aos hospitais gerais já
existentes serviçosneuropsiquiátricos de baixa capacidade, mas cuja eficácia terapêutica poderia
ser racionalmente estudada e ampliada. Comojá estava prevista uma reorganização completa do
Hospital Geral Chartes-Nicolle, eles propuseram às autoridades realizar a experiência imedia-
tamente e transformar o serviço neuropsiquiátrico desse hospital em serviço-dia.
As modificaçõesarquitetônicas foram mínimas. Cuidou-se principalmente dedeitar abaixo por-
tas, retirar grades « abandonar meios decontenção comocamisas de força e algemas, e umaequi
pe de pacientes foi encarregada da demolição das solitárias. A pintura doprédio foi refeita e a capa
cidade hospitalar foi fixada em oitentaleitos: quarenta para homense quarenta para mulheres. Na
ala dedicadaàs mulheres, um pequeno espaço de seis leitos foi reservado para crianças.
O problema da equipe de atendimento se impunha de maneira incisiva. O pessoal antigo
desenvolvera certos hábitos predominantemente repressivos. Os pacientes eram, como em grande
parte dos manicômios atuais, considerados fontes de incômodo e de desentendimentos no serviço
clínico; como é típico, assistia-se a uma inversão da fórmula original: longe de representarem a
finalidade precípua do serviço clínico, os pacientes haviam se convertido em inimigos da tranqui-
lidade dos funcionários. Essas considerações não são exclusivas desse caso, umavez que a maior
crítica que se faz há mais de duas décadas contra a concepção manicomialse refere justamenteàs
relações sadomasoquistas que progrescivamente seinstanram entre o grupo dosenfermeiros e o
grupo dospacientes.
A equipese encontra sob a autoridade de um supervisor. São cinco mulheres e seis homens.
Cursos foram instituídos de imediato com a intenção de eliminar antigas posturas e promoverati-
tudes em consonância com a nova concepção do atendimento. Constatou-se rapidamente queal-
guns enfermeiros e algumas enfermeiras não estavam dispostos a se adaptar com a presteza
necessária. Em comum acordo com os médicos do serviço clínico, esses agentes solicitaram sua
remoção e foram substituídos por pessoas mais jovens, que tinham umaformação geral mais só-
lidae que, acima de tudo, jamais haviam tido contato com doentes mentais. Esses novosenfer-
meiros adotaram umapostura normal diante dos pacientes.
O DIA NO CENTRO
Os pacientes chegam a partir das 7 horas da manhã. Vêm sozinhosou acompanhados dafamília
Na chegada, os enfermeiros já estão a postos para acolhê-los. Cadaagente se encarrega de seis a
oito pacientes. Jamais ocorre de pacientes trocarem de enfermeiro. O papel do agente é de início
repetir cotidianamente certos gestos técnicos (verificação da temperatura, do pulso e da tensão
arterial), mas, acima detudo, de conversar com cada um de seus pacientes e seinformar respeito
de suasatividades e seus pensamentos desde saída do centro na véspera. É recomendado que se
informe mais especificamente sobre o sono do paciente, seus contatos com o cônjuge, no caso
doscasados, seus pesadelos e seus sonhos. Toda manhã, quando o médico chega, um relatório
deve ser elaborado. Pede-se aos enfermeiros que adotem umapostura benevolente, sobretudo
quando o material onírico relatadoé espetacularmente angustiante. Nesse caso, o médico deve ser
avisado logoao chegar.
Emprincípio,três dias são consagrados ao serviço clínico dos homense três ao das mulheres;
Mas muito amiúde, quando o médicofica ciente de que um dos pacientes está ansioso ou quedif-
culdades no âmbito familiar adquiriram navéspera umadimensão fora do comum, pratica-se uma
intervenção imediata
Duas categorias de psicoterapia ocorrem no serviço clínico: psicoterapias de inspiração psi-
canalítica, as mais frequentes; e psicoterapias de suporte e de explicação,inspiradas, sobretudo, na
teoria pavloviana do segundo sistema de sinalização. No segundocaso, na maiorparte do tempo o
agente designado para o paciente assiste à entrevista. Deve-se evitarinterrogar a família na pre
sença do paciente e,justamente para evitar à falta de tato dos parentes, chega-se mesmo a exigir
que nada lhes seja perguntado a respeito do comportamento dele. Algumas vezes,o sujeito é ini-
bido tal ponto que não é possível obter informações sobre sua atividade fora do centro. Nesse
caso,então, perguntamos os parentes.
almoço é servido nocentro nos mesmos horários que em outros serviços hospitalares, entre
nho e 12h30.Atarde é dedicada atividades coletivas. Isso podeenvolver dramatização : Os paci-
entes são reunidospelosrespectivos enfermeiros, que lhes contam umahistória, tomando nota
das projeções ou identificações; ou é um paciente específico que, solicitado, deve relatar suas dif-
culdades,e as reações dos pacientes a essas ditas dificuldades são então anotadas(retornaremos,
na seção “Psicoterapia”, ao que esse método oferece de interessante). Pode envolver, ainda, fabri-
car objetos, no caso dos homens,e tricotar, costurar, passar roupa e cozinhar, no caso das mulhe-
res. Ousessões de iriciação, durante as quais são ensinados cuidados com bebêse utilização da
máquina de costura e do ferro de passar.
As 17 horas é senido jantare às 17h30 os pacientes começam a deixara ala. Às 18 horas, a ala
é fechada. O centro também fica fechado aos domingos.
AS INTERNAÇÕES EM MEIO PERÍODO
Ocorre com frequência que o estado de um paciente demande cuidados, mas que sua condição
material não lhe permita deixar seu emprego ou interrompersuaatividade. É o caso, por exemplo,
de donasde casa, estudantes ou representantes comerciais. Nesses casos, é permitido ao paciente,
uma vez encerrado c tratamento, deixar o serviço clínico; dessa forma, a terapia ocupacional que
tantos problemas apresenta dentro dos manicômios se vê solucionadaaqui, e da melhor maneira,
visto que o paciente não perde o contato com o ambiente da sua práxis e os mecanismos profis-
sionais não correm o risco de se degradar. Não nos soautópico abordar, numa segunda etapa, um
problemaque nos parece importante: não seria possível, como já existe em outros países, orga-
nizar, a partir das 18 horas, um serviço noturno, em que outros pacientes em condições sociais
específicas (funcionários, professores, artesãos) pudessem receber cuidados, sem que para isso
precisassem interromper suasatividadesprofissionais?
[Ano de 1958]
Comodissemos, o Centro-Dia de Neuropsiquiatria (CON) de Túnis abriu suas portas em maio de
1958 De maio a dezembro desse ano, foram admitidos 345 pacientes, distribuídos da ceguinte
maneiras (Figuras 1€ 2)
Se acompanharmosa curva da duração média de permanência (Figura 1), perceberemosque,
noprimeiro mês, a duração média é de 53 dias, número quenão voltaria a ser atingido. No mês de
dezembro, por exemplo, a duração média de hospitalização foi reduzida para 26 dias. Essa dife-
rençaindica claramenteque a organização do serviço foi progressivarmente aperfeiçoada.
Os homenssão, de longe, os pacientes mais numerosos,e o número pouco elevadode cri-
anças se deve exclusivamente aofato de que, noinício, quisemosenfocar, sobretudo, a parcela
adulta da população enferma. Foi apenas paulatinamente que puderrosimplantar um espaço dedi-
cado a crianças. A partir de 1959, elas passariam a ser admitidas em número considerável. Entre os
345 pacientes internados no Centro-Dia de Neuropsiquiatria durante os seis primeiros meses de
1958, encontramos dozeisraelitas (seis homens e seis mulheres), nove europeus (oito homens
umamulher), 28 refugiadosargelinos (vinte homens e oito mulheres) e 296tunisianos.
7
E]
so
1
maio junho juho agosto setembro outubro novembro dezembro
+=em.» entrados emo soldas duração de permanência média
FIGURA 1 Movimentação de pacientes do Centro-Dia de Neuropsiquiatria (1958)
IDADE MÉDIA DOS PACIENTES
estudo do diagrama (Figura 2) mostra que a maioria dos pacientes se situa entre quinze e 35
anos, com um pico de vinte e 25 anos para os homens e as mulheres,respectivamente. Essa curva
é interessante, pois indica queas enfermidades mentais eclodem no período consideradopelos
médicos internistas em geral como o menos exposto a doenças. O psiquiatra, porsua vez, o reco-
nhece comoo períoco do desabrochar do indivíduo, ao longo do qual ele escolhe uma profissão,
estabelece um lar « os filhos nascem. Vale ressaltar a notável raridade de doenças no período pós-
menopausa e a quase ausência de distúrbios da senilidade.
homens mulheres
anos idade
85] 7
E 28
15 20
o 60 40 20 0 o 4 6
FIGURA 2 Pirâmide etária dos pacientes (1958) - 202 homens, 135 mulheres, oito crianças (quatro
meninos e quatro meninas), o que corresponde a uma média de 57.5 pacientes por mês.
SITUAÇÃO FAMILIAR
Levando em conta a situação dos pacientes de acordo com a circunstância de serem solteiros,
casados com filhos ou casados sem filhos, algumas observações podem ser feitas. Assim, por
exemplo, de 345 pacientes, 162 são solteiros (115 homens e 47 mulheres). Os casados e com filhos
são muito mais numerosos que os casados sem filhos. Nesse sentido, encontramos 105 pacientes
casados e com filhos (54 homens e 51 mulheres) e apenas 28 casados e sem filhos (catorze ho-
mense catorze mulheres)
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon
A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

História da literatura brasileira realismo
História da literatura brasileira realismoHistória da literatura brasileira realismo
História da literatura brasileira realismoJúnior Souza
 
Um estudo sobre construção de mundos no cinema de terror (revista eco 2013)...
Um estudo sobre construção de mundos no cinema de terror (revista eco   2013)...Um estudo sobre construção de mundos no cinema de terror (revista eco   2013)...
Um estudo sobre construção de mundos no cinema de terror (revista eco 2013)...João Massarolo
 
Natalia montebello a mulher mais perigosa da américa...
Natalia montebello a mulher mais perigosa da américa...Natalia montebello a mulher mais perigosa da américa...
Natalia montebello a mulher mais perigosa da américa...moratonoise
 
Realismo; Natualismo; Parnasianismo Português
Realismo; Natualismo; Parnasianismo PortuguêsRealismo; Natualismo; Parnasianismo Português
Realismo; Natualismo; Parnasianismo PortuguêsUiles Martins
 
Realismo e naturalismo
Realismo e naturalismoRealismo e naturalismo
Realismo e naturalismoLuciene Gomes
 
EDGARD LEUENROTH. Anarquismo - Roteiro de Libertação Social
EDGARD LEUENROTH. Anarquismo - Roteiro de Libertação SocialEDGARD LEUENROTH. Anarquismo - Roteiro de Libertação Social
EDGARD LEUENROTH. Anarquismo - Roteiro de Libertação SocialWesley Guedes
 
Realismo x Naturalismo
Realismo x NaturalismoRealismo x Naturalismo
Realismo x Naturalismoadenicio
 

Mais procurados (18)

Literatura
LiteraturaLiteratura
Literatura
 
Gu000069
Gu000069Gu000069
Gu000069
 
História da literatura brasileira realismo
História da literatura brasileira realismoHistória da literatura brasileira realismo
História da literatura brasileira realismo
 
Realismo em portugal
Realismo em portugalRealismo em portugal
Realismo em portugal
 
Realismo em Portugal
Realismo em Portugal Realismo em Portugal
Realismo em Portugal
 
Um estudo sobre construção de mundos no cinema de terror (revista eco 2013)...
Um estudo sobre construção de mundos no cinema de terror (revista eco   2013)...Um estudo sobre construção de mundos no cinema de terror (revista eco   2013)...
Um estudo sobre construção de mundos no cinema de terror (revista eco 2013)...
 
Romantismo,realismo
Romantismo,realismoRomantismo,realismo
Romantismo,realismo
 
Natalia montebello a mulher mais perigosa da américa...
Natalia montebello a mulher mais perigosa da américa...Natalia montebello a mulher mais perigosa da américa...
Natalia montebello a mulher mais perigosa da américa...
 
Realismo; Natualismo; Parnasianismo Português
Realismo; Natualismo; Parnasianismo PortuguêsRealismo; Natualismo; Parnasianismo Português
Realismo; Natualismo; Parnasianismo Português
 
Realismo
RealismoRealismo
Realismo
 
Naturalismo...
Naturalismo...Naturalismo...
Naturalismo...
 
Utopias
UtopiasUtopias
Utopias
 
Realismo e naturalismo
Realismo e naturalismoRealismo e naturalismo
Realismo e naturalismo
 
EDGARD LEUENROTH. Anarquismo - Roteiro de Libertação Social
EDGARD LEUENROTH. Anarquismo - Roteiro de Libertação SocialEDGARD LEUENROTH. Anarquismo - Roteiro de Libertação Social
EDGARD LEUENROTH. Anarquismo - Roteiro de Libertação Social
 
Realismo
Realismo Realismo
Realismo
 
Nietzsche e o_tragico_texto_de_apoio
Nietzsche e o_tragico_texto_de_apoioNietzsche e o_tragico_texto_de_apoio
Nietzsche e o_tragico_texto_de_apoio
 
Naturalismo
NaturalismoNaturalismo
Naturalismo
 
Realismo x Naturalismo
Realismo x NaturalismoRealismo x Naturalismo
Realismo x Naturalismo
 

Semelhante a A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon

CARVALHO, João Rafael Chió Serra. Identidade e Alteridade em Frantz Fanon.pdf
CARVALHO, João Rafael Chió Serra. Identidade e Alteridade em Frantz Fanon.pdfCARVALHO, João Rafael Chió Serra. Identidade e Alteridade em Frantz Fanon.pdf
CARVALHO, João Rafael Chió Serra. Identidade e Alteridade em Frantz Fanon.pdfAlmandoStorckJnior
 
Crimes do Comunismo China e União Soviética
Crimes do Comunismo China e União SoviéticaCrimes do Comunismo China e União Soviética
Crimes do Comunismo China e União Soviéticamitisah871
 
Livro Negro do Comunismo por Stéphane Courtois
Livro Negro do Comunismo por Stéphane CourtoisLivro Negro do Comunismo por Stéphane Courtois
Livro Negro do Comunismo por Stéphane CourtoisJoão Soares
 
Os Condenados da Terra ( etc.) (Z-Library).pdf
Os Condenados da Terra ( etc.) (Z-Library).pdfOs Condenados da Terra ( etc.) (Z-Library).pdf
Os Condenados da Terra ( etc.) (Z-Library).pdfPedroFerreira332872
 
Frantz Fanon e a ontologia negra
Frantz Fanon e a ontologia negraFrantz Fanon e a ontologia negra
Frantz Fanon e a ontologia negraAndré Santos Luigi
 
O Livro Negro do Comunismo
O Livro Negro do ComunismoO Livro Negro do Comunismo
O Livro Negro do Comunismocaixapretadopt
 
Manifesto Antropófagico
Manifesto AntropófagicoManifesto Antropófagico
Manifesto AntropófagicoLyssa Martins
 
Franrz fanon, um itinerário inelectual ortiz
Franrz fanon, um itinerário inelectual   ortizFranrz fanon, um itinerário inelectual   ortiz
Franrz fanon, um itinerário inelectual ortizRafael Marino
 
Aula 19 pré - modernismo - brasil
Aula 19   pré - modernismo - brasilAula 19   pré - modernismo - brasil
Aula 19 pré - modernismo - brasilJonatas Carlos
 
Os brancos saberão resistir.pdf
Os brancos saberão resistir.pdfOs brancos saberão resistir.pdf
Os brancos saberão resistir.pdfOdairdesouza
 
as-teorias-raciais-do-seculo-xix-e-o-racismo-na-sociedade-atual5560.pptx
as-teorias-raciais-do-seculo-xix-e-o-racismo-na-sociedade-atual5560.pptxas-teorias-raciais-do-seculo-xix-e-o-racismo-na-sociedade-atual5560.pptx
as-teorias-raciais-do-seculo-xix-e-o-racismo-na-sociedade-atual5560.pptxRODOLFORODRIGUESGOME1
 
Georges nivat a paixão russa de destruir
Georges nivat a paixão russa de destruirGeorges nivat a paixão russa de destruir
Georges nivat a paixão russa de destruirmoratonoise
 
Utopia e Barbárie - Silvio Tendler.
Utopia e Barbárie - Silvio Tendler.Utopia e Barbárie - Silvio Tendler.
Utopia e Barbárie - Silvio Tendler.Athus Leonardo
 
A paralaxe de Marine Le Pen: um estudo sobre a construção da imagem na políti...
A paralaxe de Marine Le Pen: um estudo sobre a construção da imagem na políti...A paralaxe de Marine Le Pen: um estudo sobre a construção da imagem na políti...
A paralaxe de Marine Le Pen: um estudo sobre a construção da imagem na políti...I SEMIC ESPM - 2012
 
trabalho de filosofia
trabalho de filosofiatrabalho de filosofia
trabalho de filosofiajoseapascoal
 
Literaturas africanas de expressão portuguesa
Literaturas africanas de expressão portuguesaLiteraturas africanas de expressão portuguesa
Literaturas africanas de expressão portuguesaAna Eunice
 
realismo-naturalismo-2c2aa-sc3a9rie (1).ppt
realismo-naturalismo-2c2aa-sc3a9rie (1).pptrealismo-naturalismo-2c2aa-sc3a9rie (1).ppt
realismo-naturalismo-2c2aa-sc3a9rie (1).pptANDRESSASILVADESOUSA
 

Semelhante a A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon (20)

CARVALHO, João Rafael Chió Serra. Identidade e Alteridade em Frantz Fanon.pdf
CARVALHO, João Rafael Chió Serra. Identidade e Alteridade em Frantz Fanon.pdfCARVALHO, João Rafael Chió Serra. Identidade e Alteridade em Frantz Fanon.pdf
CARVALHO, João Rafael Chió Serra. Identidade e Alteridade em Frantz Fanon.pdf
 
Crimes do Comunismo China e União Soviética
Crimes do Comunismo China e União SoviéticaCrimes do Comunismo China e União Soviética
Crimes do Comunismo China e União Soviética
 
Livro Negro do Comunismo por Stéphane Courtois
Livro Negro do Comunismo por Stéphane CourtoisLivro Negro do Comunismo por Stéphane Courtois
Livro Negro do Comunismo por Stéphane Courtois
 
O livro-negro-do-comunismo
O livro-negro-do-comunismoO livro-negro-do-comunismo
O livro-negro-do-comunismo
 
Os Condenados da Terra ( etc.) (Z-Library).pdf
Os Condenados da Terra ( etc.) (Z-Library).pdfOs Condenados da Terra ( etc.) (Z-Library).pdf
Os Condenados da Terra ( etc.) (Z-Library).pdf
 
Frantz Fanon e a ontologia negra
Frantz Fanon e a ontologia negraFrantz Fanon e a ontologia negra
Frantz Fanon e a ontologia negra
 
O Livro Negro do Comunismo
O Livro Negro do ComunismoO Livro Negro do Comunismo
O Livro Negro do Comunismo
 
Manifesto Antropófagico
Manifesto AntropófagicoManifesto Antropófagico
Manifesto Antropófagico
 
Franrz fanon, um itinerário inelectual ortiz
Franrz fanon, um itinerário inelectual   ortizFranrz fanon, um itinerário inelectual   ortiz
Franrz fanon, um itinerário inelectual ortiz
 
Aula 19 pré - modernismo - brasil
Aula 19   pré - modernismo - brasilAula 19   pré - modernismo - brasil
Aula 19 pré - modernismo - brasil
 
Os brancos saberão resistir.pdf
Os brancos saberão resistir.pdfOs brancos saberão resistir.pdf
Os brancos saberão resistir.pdf
 
Filosofia 2012
Filosofia 2012Filosofia 2012
Filosofia 2012
 
as-teorias-raciais-do-seculo-xix-e-o-racismo-na-sociedade-atual5560.pptx
as-teorias-raciais-do-seculo-xix-e-o-racismo-na-sociedade-atual5560.pptxas-teorias-raciais-do-seculo-xix-e-o-racismo-na-sociedade-atual5560.pptx
as-teorias-raciais-do-seculo-xix-e-o-racismo-na-sociedade-atual5560.pptx
 
Romantismo
RomantismoRomantismo
Romantismo
 
Georges nivat a paixão russa de destruir
Georges nivat a paixão russa de destruirGeorges nivat a paixão russa de destruir
Georges nivat a paixão russa de destruir
 
Utopia e Barbárie - Silvio Tendler.
Utopia e Barbárie - Silvio Tendler.Utopia e Barbárie - Silvio Tendler.
Utopia e Barbárie - Silvio Tendler.
 
A paralaxe de Marine Le Pen: um estudo sobre a construção da imagem na políti...
A paralaxe de Marine Le Pen: um estudo sobre a construção da imagem na políti...A paralaxe de Marine Le Pen: um estudo sobre a construção da imagem na políti...
A paralaxe de Marine Le Pen: um estudo sobre a construção da imagem na políti...
 
trabalho de filosofia
trabalho de filosofiatrabalho de filosofia
trabalho de filosofia
 
Literaturas africanas de expressão portuguesa
Literaturas africanas de expressão portuguesaLiteraturas africanas de expressão portuguesa
Literaturas africanas de expressão portuguesa
 
realismo-naturalismo-2c2aa-sc3a9rie (1).ppt
realismo-naturalismo-2c2aa-sc3a9rie (1).pptrealismo-naturalismo-2c2aa-sc3a9rie (1).ppt
realismo-naturalismo-2c2aa-sc3a9rie (1).ppt
 

Último

Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"
Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"
Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"Ilda Bicacro
 
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)ElliotFerreira
 
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Ilda Bicacro
 
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...licinioBorges
 
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManuais Formação
 
Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....
Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....
Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....LuizHenriquedeAlmeid6
 
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃOFASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃOAulasgravadas3
 
análise de redação completa - Dissertação
análise de redação completa - Dissertaçãoanálise de redação completa - Dissertação
análise de redação completa - DissertaçãoMaiteFerreira4
 
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptxDiscurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptxferreirapriscilla84
 
Atividade sobre os Pronomes Pessoais.pptx
Atividade sobre os Pronomes Pessoais.pptxAtividade sobre os Pronomes Pessoais.pptx
Atividade sobre os Pronomes Pessoais.pptxDianaSheila2
 
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamentalAntônia marta Silvestre da Silva
 
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdfPRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdfprofesfrancleite
 
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcanteCOMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcanteVanessaCavalcante37
 
GEOGRAFIA - ENSINO FUNDAMENTAL ANOS FINAIS.pdf
GEOGRAFIA - ENSINO FUNDAMENTAL ANOS FINAIS.pdfGEOGRAFIA - ENSINO FUNDAMENTAL ANOS FINAIS.pdf
GEOGRAFIA - ENSINO FUNDAMENTAL ANOS FINAIS.pdfElianeElika
 
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdfFicha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdfFtimaMoreira35
 
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestreCIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestreElianeElika
 
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdfNoções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdflucassilva721057
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...azulassessoria9
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...azulassessoria9
 
CRUZADINHA - Leitura e escrita dos números
CRUZADINHA   -   Leitura e escrita dos números CRUZADINHA   -   Leitura e escrita dos números
CRUZADINHA - Leitura e escrita dos números Mary Alvarenga
 

Último (20)

Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"
Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"
Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"
 
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
 
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
 
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
 
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
 
Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....
Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....
Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....
 
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃOFASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
 
análise de redação completa - Dissertação
análise de redação completa - Dissertaçãoanálise de redação completa - Dissertação
análise de redação completa - Dissertação
 
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptxDiscurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
 
Atividade sobre os Pronomes Pessoais.pptx
Atividade sobre os Pronomes Pessoais.pptxAtividade sobre os Pronomes Pessoais.pptx
Atividade sobre os Pronomes Pessoais.pptx
 
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
 
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdfPRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
 
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcanteCOMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
 
GEOGRAFIA - ENSINO FUNDAMENTAL ANOS FINAIS.pdf
GEOGRAFIA - ENSINO FUNDAMENTAL ANOS FINAIS.pdfGEOGRAFIA - ENSINO FUNDAMENTAL ANOS FINAIS.pdf
GEOGRAFIA - ENSINO FUNDAMENTAL ANOS FINAIS.pdf
 
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdfFicha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
 
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestreCIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
 
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdfNoções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
 
CRUZADINHA - Leitura e escrita dos números
CRUZADINHA   -   Leitura e escrita dos números CRUZADINHA   -   Leitura e escrita dos números
CRUZADINHA - Leitura e escrita dos números
 

A violência como antídoto ao racismo colonial segundo Fanon

  • 1.
  • 2. ALIENAÇÃOE LIBERDADE ESCRITOS PSIQUIÁTRICOS FRANTZ FANON TRADUÇÃO SEBASTIÃO NASCIMENTO ORGANIZAÇÃO JEAN KHALFAE ROBERT ]. C. YOUNG ubu
  • 3. APRESENTAÇÃO Fanon: uma filosofia para reexistir Renato Noguera INTRODU! Fanon,psiquiatra revolucionário Jean Khalfa [NSOBREPSIQUIÁTRICA A internação diurnanapsiquiatria: valore limites(1) A internação diurnanapsiquiatria: valore limites (2) Sobre uma tentativa de readaptação de uma paciente com epilepsia morfeica e transtornos de natureza grave Nota sobre as técnicas terapêuticas do sono com condicionamento e controle eletroencefalográfico O fenômenoda agitação no meio psiquiátrico: consideraçõesgerais,significado psicopatológico Estudobiológico da ação do citrato de lítio nas crises maníacas Apropósito de um caso de espasmo de torção Primeirostestes do meprobamatoinjetável nos estados hipocondríacos [2] DIMENSÕES SOCIAIS DO SOFRIMENTO PSIQUICO A socioterapia numaala de homens muçulmanos:dificuldades metodológicas Avida cotidiana nos douars Introduçãoaostranstornosda sexualidade do norte-africano Aspectosatuais da assistência mentalna Argélia Considerações etnopsiquiátricas Condutas confessionais na África do Norte (1) Condutas confessionais na África do Norte (2) Atitude do muçulmano magrebino diante da loucura O TaT em mulheres muçulmanas: sociologia da percepção e da imaginação [3] curso DE PSICOPATOLOGIA SOCIAL E OUTROS TEXTOS Traço de união Encontro entre a sociedade e a psiquiatria [4] TESE DE EXERCICIO Um caso de doençade Friedreich com delírio de possess
  • 5. APRESENTAÇÃO FANON: UMAFILOSOFIA PARA REEXISTIR RENATO NOGUERA Em 1951, aos 25 anos de idade, o martinicano Frantz Fanon escreveu Essai sur la désaliênation du Noir [Ensaio sobre a desalienação do negro],seu trabalho de conclusão do curso de medicina na área depsiquiatria. A comissão julgadora não o aprovou, ponderando que umestudo clínico seria mais adequado. Essa reprovação diz muito mais sobre a universidade francesa do que sobre o candidato, que reagiu apresentando outra tese em pouco tempo. que esse episódio revela? Antes de mais nada, que o estreitamento cognitivo da academia francesa dosanos 1950 impediu devir à tona um trabalho autêntico de tema urgente incômodo. Fanon lançava mão de um repertório criativo e de umaestratégia de sobrevivência típica de pes- soas negras em contextos de colonização e de opressão racial. Ele precisou se adaptar e serein- ventar e chegar aoslimites da exaustão para ser aceito. Num prazo curtíssimo — duas semanas -, ele submeteu à banca umanovatese, Alterações mentais, modificações de caráter, distárbios psíquicos déficitintelectual na heredodegeneração espinocerebelar: um caso de doença de Friedreich com delírio de possessão. Na arguição, Fanon, extremamente articulado,rebateu as objeções com segurança e erudição. Em 1952, parte ca tese reprovada foi revisada e publicada sob o título Pele negra, máscaras brancas, livro que se tornou um marco doséculo xx para estudosde relações étnico-raciais, ra- cismo, colonização, descolonização, antirracismo, abusos psiquiátricos e interfaces entre estudos dasubjetividadee da política. Fanon faz uma análisecrítica do projeto colonialracista, examinando seus dispositivos de “vendas” de máscaras brancas para incluir as populações negras norol do “mundocivilizado”. Fanon procurou o intelectual e ativista político francês Francis Jeanson, um dos editoresda re- vista Les Temps Modemes — lançada em outubro de 1945, a publicação davavoz a intelectuais que discutiam filosofia, política, arte e cultura no período do pós-guerra. O filósofo martinicano queria pleitear que sua obra fosse resenhada na revista e pedir uma sugestão de um nome para prefaciar seu livro. Jeanson acabouporaproximá-lo de Jean-Paul Sartre, que prefaciou Pele negra, máscaras brancas e, mais tarde, em 1961, Os condenados da terra. Coubeao autorestreante a honra deter sido introduzido pelo mais célebrefilósofo francês de seu tempo. NaEuropa,a recepção da obra foi sintomática: como que o que mais chamoua atenção dos intelectuais não foi o conteúdo da obra, mas à autoria do prefácio? Sartre desfrutava de grande po pularidade, sem dúvida, noentanto por que nãose falava do livro? Ele estaria sendo desprezado em razãode seu autor ser um homem negro nascido na Martinica? A análise da filósofa alemã Hannah Arendt, por exemplo,ressaltou certa glamourização da vio- lência no pensamento de Fanon. À violência tornaa política impossível,1 sustenta ela, que vê na argumentação do autor umadefesa da violência revolucionária —queArendt desaprova como estra- tégia política Pois bem, uma leitura detida de Fanon não revelaria outra coisa? Nãose trata exatamente de propora violência, mas de compreender quea colonização é um sistema predatório a violência faz parte de sua dinâmica. Arendt, bem como outros comentadores, em suacrítica, não percebeu que, para Fanon,a violência é (uma forma defazer)política. A modernidade ocidental perpetrada pela Europa seria indissociável da violência, direcionadacontra a colônia, gente não branca — con- tra gente bárbara e incivilizada. Não setrata de endossara violência cu propô-la, e sim de constatar suarealidade. Tanto que, em Os condenados da terra, ela é vista como umelemento desintoxicante para quem sofre a opressão colonial. Enfim, a violência escraviza ou iberta? Naintrodução de Pele regra, máscaras brancas, Fanon dá umapista: Porque escrever esta obra? Ninguém me pediu que o fizesse. Muito menos aqueles queela interpela E então? Então eu respondocalmamente que existem imbecis demais neste mundo. E tendo dito isso, compete a mim demonstrá-o. Rumo à um novo humanismo..? novo humanismo não encampa violência essencial porquefaz parte daresistência anticolonial. A violência não é um fm em si. O perigotanto da opressão colonial quanto da resistência antico- lonial é sucumbir à adicção. A metrópole quer o controle da colônia. não pretendedestruí-lainte gralmente, mas extrair suas riquezas naturais e exploraro trabalho,fazendo das pessoassuas ferra- mentas. A colônia pretendese libertar, virar as costas para a metrópole gerir seu destino. Para a metrópole, o risco da violência é exterminar a colônia. Para a colônia, o perigo é ter seu projeto de liberdade inviabilizado pelo fato de ela só saber viver sobo regime daviolência. A invocação “O corpo meu, faz sempre de mim um homem quequestional”, presente em Pele
  • 6. negra, máscaras brancas, abre caminho para uma metáfora. A metrópole é o corpo,a colônia é o coro da outro A relação entre esses comos conhece apenas a língua da vinlência Além do id oma,a violência é umasubstância quevicia. A metrópole só pode perdurar por meio daviolência; a colonização é a expressão político-econômica e social dessa relação. O corpo adicto da colônia agoniza enquanto a metrópole goza. A violência anticolonial de Fanon não seria um capricho, mas umantídoto dialético contra a perversidade do gozo canalha da metrópole. Leitor de Hegel, Fanon entendea dialética como um processo detese, antítese e síntese, quan- do então nasceria um novo momento. Ora,a violência da metrópole tem como antítese a violência revolucionária da colônia. E o resultado pode ser a descolonização. A violência da colônia não é uma antipolítica; é, sim,a língua nativa da metrópolee a formacomo esta faz política. O fim da vio- lência só pode ocorrer com a demolição das fronteiras entre metrópole e colônia: isso que Fanon argumenta tanto em Oscondenados da terra como em LAn v de la révolution algérienne[Ano v da Revolução Argelina], publicado em 1959, dois anos antes de sua morte. Mas essaquestão já está em Pele negra, máscaras brancas, quando o filósofo insiste que a retirada das máscaras brancas constitui o ponto de partida para as pessoas negras superarem osefeitos do racismo. Se o humano é sinônimo de branco, restaria às pessoas negras buscar essa máscara. A colonização é racista, o racismoé colonial, um alimenta o outro. análise do racismoincluias estruturas da colonização,além da psicopatologia. O contato de uma pessoa negra com o mundo branco já a prejudica: “Umacriança negra, normal, tendo cres- cido no seio de uma família normal, ficará anormal ao menor contato com o mundo branco”? Para Fanon, o racismo é determinadohistoricamente e funciona para a opressão sistemática de um povo, uma opressão quepassa por instâncias políticas, jurídicas, econômicas e psicológicas. A práxis revolucionária é um antídoto. Ou seja, uma organização política que promovaa destituição do poderracista colonial pode expulsarcolonizadordasestruturas do poder. Masexiste outra dimensão do racismoque não podeser combatida pelas armas. As patologias psicológicas decorrentes de um mundobranco produzido como único e verdadeiro acabam por importranstornos de outra ordem às pessoasnegras. O branco colonizado pode escaparaos olha- res do branco colonizadore, mediante uma “boa educação”, estabelecer um d álogo com a metrá- pole. O homem negro, por sua vez, não pode fingir; mesmo que use umaeficiente “máscara bran- ca”, ele se denuncia à primeiravista. O racismoé “epidérmico” — essa “epidermização da inferi- oridade”que recai sobre as pessoas negras é um dos aspectos ressaltados por Fanon. O racismo é umsistema quefacilita a exploração por meio da identificação de gente “civilizada”e “incivilizada”. Para à metrápole branca, esse modo de situar as populações é mais fácil uma vez que evidente racismo antinegro difere de outros racismos. Sartre disse que um judeu podenegar sua condição.! Se uma mulher branca cigana do Leste Europeu usar as roupas certas, pode se disfarçar numa multidão branca. Quando setrata de uma pessoa negra, não é necessário verificar sobre- nomeou buscar um código cultural disfarçado: a negritude está sempre anunciada na pele,está na cara. A práxis revolucionária pela descolonização da periferia do capitalismoé um aspecto dafilo- sofia de Fanon que ganhou muito destaque. Noentanto, sem se esquivar da centralidade do tema na obra do autor, há outros aspectos marcadamente relevantes em seu pensamento. resistência nãose dá somente pela luta armada, pois a colonização não é apenas política e social: tem uma natureza profunda e silenciosa, apresenta raízes psicológicas que não se deixam enxergar a olho À primeira vista poderia parecer que o fim da colonização política libertaria a subjetividade. As contribuições do primeiro livro do autor, porém, ajudam entenderoutra coisa. A subjetividade — aqui compreendida de modo amplo comoo aparelho psíquico, modos depensar, de sentir e de desejar — fica comprometida a despeito das bandeiras hasteadas e dos hinos entoados. O veneno da colonização não se expurga meramente com a saída dastropas francesas daArgélia Outra questão importante é a recepção de Fanon no Brasil. De modogeral, o martinicanopropôs umdeslocamento da Europa: não mais o centro filosófico, pol ico, econômico e cultural do pla- neta, mas umasimples província. Tal transposição ajudou a enviesar a recepção de sua obra no contexto europeu. Todavia, no Brasil da década de 1950, a situação era ainda maisgrave. O pensa- mento de Fanon nem ecoou no mundo acadêmico brasileiro, que parecia desconhecer seu tra- balho. O difícil acesso às publicações poderia ser umahipótese razoável para explicar esse silên- cio, porém isso não corresponderia à realidade. Naquele momento, no país, cinco intelectuais que pensavam as relações étnico-raciais — Clóvis Moura, Florestan Fernandes, Octavio lanni, Roger Bastide e Sérgio Milliet — não ignoravam a existência de Frantz Fanon, embora de 1952 a 1960 ne- nhum deles tenha publicado umalinha sequer sobre o filósofo martnicano, comoatesta o cuida- doso levantamento bibliográfico feito pelo sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães: Qual seria o motivo daindiferença desses intelectuais brancos em relação a Fanon? Bem, na- quela época, influência manásta inseria a questão racial no contexto daluta de classes. O racismo
  • 7. não era necessariamente visto como um sistemaà parte da opressão social. Embora Fanondesse muita importância à dominação econômica, ele privilegiava o enredo racial, que à luta de classes não podia suplantar ou subsumir. Dealgum modo,osestudos das relações étnico-raciais,coorde- nados principalmente por Bastide e Fernandes, não trabalhavam o racismo como uma categoria totalmente independente das questões de classe social Em 2008, Guimarães publicou o artigo “A recepção de Fanon no Brasil e a identidadenegra”, trabalho útil para entender por quea obra do filósofo só passou a ser comentada entre nós depois davinda de Jean-Pau Sartre e de Simone de Beauvoir ao país, em agosto e setembro de 1960. Não é de estranhar que tenha sido a visita dos intelectuais franceses a chancelar Fanon?Seu nomepas- sou a ser ouvido depois da chegada do casal, ainda que não tenha sido temade nenhuma de suas palestras no Rio de Janeiro, São Paulo, Ouro Preto, Salvador, Recife, Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Belém = Manaus. Os escritos de Sartre e de Beauvoir foram o foco daatenção dos acadêmicos brasileiros. Não surpreende que um pensadorbranco francês dealgum modoprecisasse referendar Fanon: o racismoé resposta essa equação. Somente com a leitura do prefácio de Sartre à obra Pele negra, máscaras brancas surgiram os primeiros comentários sobre o autor entre nós. O minucioso balanço que o cientista social Mário Augusto Medeirosda Silvas fez da recepção crítica de Fanon, de 1960 até o final do século xx, nosajuda entender como o impacto doautor foi mais intenso no movimento social negro brasileiro. Não é equivocadodizer quefoi o ativismo negro antirracista que o recebeu de braçosabertos. Em 1956, o artista visual « ativista negro Wilson Tibério participou do | Congresso de Escritores e Artistas Negros, realizado na Sorbonne, em Paris. Três anosdepois, a segunda edição do con- gresso, realizada em Roma, contou com participação do intelectual ativista Geraldo Campos de Oliveira, representante da Associação Cultural do Negro (AcN), fundada em 1954. A ACN foi um grupoinfluente que, por dentro daprodução antirracista e anticolonial do continente africano, do Caribe e dos Estados Unidos, impulsionou a interlocução afro-atlântica. Promovendoo diálogo com organizações em nível internacional, o grupo, cujos ativistas conheciam Fanon, contribuiu para mantervivo o ativismonegro antirraciasta brasileiro Décadas depois, nos anos 1980, o Movimento Negro Unificado (MNU),entre outros, indicava obras de Fanon nabibliografia de formação deativistas. Ou seja, parte doativismo negro brasileiro já mantinha contato com o pensamento fanoniano. Na academia, porém, a primeira tese de doutorado sobre o autor só foi defendida em 2013 (Fanon, o reconhecimento do negro e o novo huma- nismo: horizontes descoloniais da tecnologia) por Ivo Pereira de Queiroz, na UniversidadeTecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Passados dois anos, Deivison Mendes Faustino (Deivison Nkosi) defendeu na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) a tese de doutorado Por que Fanon, por que agora?: Frantz Fanon e osfanonismosno Brasil. Ambos são negros e comprometidos com o ati- vismo antirracista. De lá para cá, multiplicaram-se ostrabalhos sobreo pensamento fanoniano. O levantamento de Medeirosda Silva revela que foram osativistas negrosos primeiros a recep- cionar a obra nopaís. Mesmo no âmbito da academia, foi porintermédio de intelectuais negros engajados noantirracismo que os estudos fanonianos floresceram mais efetivamente, em parti- cular aqueles associados aos temas da descolonização e do antirracismo. Sobo impacto do pensa- mento de Fanon e em busca deferramentas teóricas para pensar a sociedade brasileira e seu ra- cismo estrutural, osintelectuais negros e negras fizeram com que a obra do filósofo circulasse amplamente Em 2018, Faustino publicou um livro fundamental: Frantz Fancn: Um revolucionário particu- larmente negro, no qual ele desenvolve umatese muito especial que o filósofo explanasobretudo no primeiro livro. Tendopor tema a sociogênese do racismo, Faustino dialoga com muitos auto- res. Mostra como Stuart Hall e Lewis Gordon, por exemplo,iluminam a trajetória do filósofo, cujo leque de interrogações atravessadas por uma ânsia revolucionária de descolonização antirracista do mundotodo deixou profundas marcas na academia. E concorda com a comentadora Sylvia Wiynter, que ressalta o princípio sociogênico do pensamento de Fanon? Em Pele negra, máscaras brancas, as questões mais candentes dizem respeito à sociogenia, pois tratam de subjetividade, identidade, processos de identificação e cultura. Enquanto a sociogenia é um fenômenocentral para analisar o racismo e a colonização,o sociodiagnóstico enterga a colonização como um fenô- menohistórico-social Se a fenomenologia existencialista, o mandsmo e a psicanálise foram referências caras a Fanon, a diversidade cultural negra foi muito marcante em seusescritos e trabalhospsiquiátricos. Mesmo na condição de leitor de psicanálise, Fanon relativiza aspectos certrais da teoria freudiana, por exemplo, o complexo de Édipo — como “coisa de branco”, é praticamente isso que ele diz em Pele negra, máscaras brancas: “Queiramos ou não, o complexo deÉdipo está longe dever a luz entre os negros”£ Em seu conhecido O mal-estar na civilização, Freud apresenta a neurose como consti- tutiva da condição humana. Porém,para Fanon,psiquiatra comoseucolega austríaco,ela não é,
  • 8. e poressa razão ele prefere falar em psicopatologia. A psicanálise sai de cena, cedendo espaço a uma psicopatologia cue se serve de elementos psicanalíicos Fanon recorre à sociogênese de todos osfenômenos. Nas sociedades africanas e noscontextos negros afrodiaspóricos, a dinâmica social não é marcadapelos mesmoscódigosjudaico-cristãos, pelos mesmos mitos de fundação. A subjetividade branca comporta o complexo de Édipo, mas os contextos africanos são historicamente, de modogeral, matrifocais? Por razões culturais, no “âmbitodas populações negras — e algo semelhante poderiaser dito dos povos originários da Amé- rica —, não encontramos terreno fértil para o florescimento de dromes e dedistúrbiosfrequentes e estruturais naprovíncia Europa, em seuprojeto da modernidadeocidental As diferençasculturais não podem ser desprezadas, a existência do mundo branco antinegro impõe distúrbios à população negra em estado decolonização. Numa atmosfera racista, o auto ódio passa a ser a única oportunidade de se tornar um ser humano. Pensando em termos de psi- copatologia, a colonização, mais que um envenenamento político,é, sobretudo, uma intoxicação psíquica. Contra o caráter brutalmente té ico dacolonização racista, Fanon levanta a voz e defende o uso de armas. Seu clamoré pelalibertação negra na África e no mundo. Não custa repetir que, emboraasanálises de Fanon tenham se concentrado nalibertação doconti nente africano e de todos os povos colonizados,isso não querdizer que seu pensamento possa ser reduzido a essa temática; sua relevância, assim como suaatualidade, ultrapassaas reflexões do contexto histórico dedescolonização dos anos 1950. Sua obra inclui, além de Pele negra, máscaras brancas (1952), LAn v de la révolution algérienne (1959),Os condenados da terra (1961), Pourla Révo- lution africaine: Ecrits polítiques [Rumo à revolução africana: Escritos políticos] (1964), crits sur Faliênation et la liberté Escritos sobre alienação e liberdade] (2015), do qual faz parte esteAlienação liberdade: Escritos peiquiátricos, e um conjunto de textos publicados na França na segunda década do século xx1, que retratam a ampla vocação do filósofo, psiquiatra e ativista da descolonização para conectar política e subjetividade. Para analisar o racismo, não basta situá-lo como um fenômeno individual, ontogênico, tam- pouco como uma característica universal da espécie,flogênica: Freud, por meio dapsicanálise, exigiu que se levasse em conta o fatorindividual. Ele substituiu umatese filogenética pela perspectiva ontogenética. Veremosquea alienação do negro nãoé uma questãoindividual. Além da filogenia e da ontogenia, existe a sociogenia 10 Segundoa perspectiva sociogênica, o racismo integra um complexo sócio-histórico que está na base da formação da subjetividade, no núcleo da cisão colonial que determina quem está fora e quem está dentro. A colonização divide o mundo em duas partes: em uma,vive o colonizador, a régua, o cânone, a imagem da humanidade, o branco; em outra, o inverso, o negativo. Se Fanon nosfala da revolução e ficou bastante conhecido poressediscurso, ele ressalva que nenhuma revolução podeacontecer sem descolonização do pensamento. Ele seria, pois, um precursor da- quilo que hoje chamamos de desintoxicação das subjetividades colonzadas. E se o assunto é subjetividade, não há como não endossar a tese de que as questões psicana- Ííticas estão em todo o pensamento fanoniano — é o que defende Stuart Hall no artigo“The After- life ofFrantz Fanon: Why Fanon? Why Now? Why Black Skin, White Masks?”[A vida pós-morte de Frantz Fanon: Por que Fanon? Por que agora? Por que pele negra, máscaras brancas?) Outro tra- balho vigoroso e incontornável é o já mencionado Frantz Fanon: Um revolucionário particularmente negro, de Deivison Mendes Faustino. Ambos os autores discutem como a colonização das sub- jetividades produz patologias, temaqueatravessa Ecrits sur Faliénation et la liberié, e desenvolvem tópicosda sociogênese dessefenômeno do racismo. desejo é um dos pontos de partida deste Alienação e liberdade: Escritospsiquiátricos. Tomando a subjetividade comofio condutor, livro politiza a sanidade, agora sinônimode liberdade. O res- tabelecimento dasanidade não deixa deser um projeto político. A ligaçãoentre a dimensãohistó- rica e político-social, por um lado,e a psíquica, por outro, € inescapável. E aqui Fanonexplicita a questão queatravessa radicalmente toda sua obra: a aspiração à liberdade. A denúncia insistente de métodos antiéticos de tratamentopsiquiátrico é recorrente, seja na crítica ao choque, seja na denúncia de abordagens não exatamente clínicas, que reproduzem racismo. Seu faro filosófico não o distancia do empenho em elaborar uma escrita mais clínica—as especulações e o espírito re- volucionário estão presentes de algum modoe, de certa forma, politizam trabalhopsiquiátrico. Donode um repertório vasto, o autor nosoferece a descrição de situações socioterápicas. Ele aponta, entre outros, a falta de humildadedo etnocentrismo, uma característica incorporadaa uma psiquiatria que não consegue escutar. A diversidade cultural não pode ser tomada como loucura. A colonização infantilizou discursos e práticas em toda África e nas populações negras em todas as regiões do mundo, muitas vezes deixandoa internaçãopsiquiátrica como única saída. Alienação e liberdade tece críticas a situações escandalosas, como a necessidadedeintérpretes para médicose enfermeiros em hospitais psiquiátricos naArgélia. Se um argelino, ou qualquer outro africano,
  • 9. trabalhasse em um hospital francês, o domínio da língua seria o primeiro requisito para sua admis- são na instituição A metrápole não «ente necescidade de fazer nenhum esforçopara se aproximar da colônia. O paciente argelino não precisa ser compreendido, sua cultura não é considerada. O hospital psiquiátrico não é exatamente uma instância de recuperação da sanidade mental, mas de assimilação. Para além dos efeitos políticos dacolonização, há as consequênciaspsíquicas. Alienação e liber- dade possui um mérito quedeve serressaltado, ou seja,a obra propõe uma leitura política do hos- pital psiquiátrico e uma analogia entre as ações do psiquiatra e do colonizador diante da “loucura” do paciente / colonizado. Se umapessoa nasce em umaterra explorada,sua sanidadejá está em risco —a colonizaçãopode acarretar baixa autoestimaou outras percepções de siigualmente nefas- tas. A toxicidade do sistema político se expressa sob as mais diversas formas de opressão psico- lógica, e umadelas éprojeto manicomial. Fanon nos convida a clamarpela recuperação da sani- dade e, ao mesmotempo,nosintima a buscar a liberdade. Liberdade e sanidade andam juntas. A experiênciaclínica doescritor deixou marcas cruciais em seu trajeto intelectual: sejao reco- nhecimento de que o mundo branco adoece as pessoas negras,seja a identificação deque a cultura hegemonicamente cristã do colonizador transforma em paciente o muçulmano colonizado. Nos dois casos, cotidianodo hospital psiquiátrico apresenta estudos de casos que ajudam a desenhar sua narrativa. É possível afirmar uma “psicopolítica”em sua obra,ainda que o termo seja extem- porâneo a seu pensamento. Atoxicidade da colonização é uma política enraizadano psiquismo. Os escritos a seguir mostramqueo filósofo e psiquiatra enxergou na loucura um clamorporliberdade. RENATO NOGUERA é doutor em filosofia, professor e pesquisador da Universidade Federal Rural do Rio deJaneiro (urRRj)
  • 10. INTRODUÇÃO FANON,PSIQUIATRA REVOLUCIONÁRIO JEAN KeaLea Ostrabalhospsiquiátricos de Frantz Fanon costumam ser mencionados quando se comentam as passagens de seus livros sobre os efeitos psicológicos da colonização, mas esses textos, escritos entre 1951 e 1960,paralelamente à sua obra política e o longo de sua carreira profissional de neu- ropsiquiatra, são pouco estudados em si ou pelo que dizem a respeito da evolução de seu pensa- mento. Há muitas razõespara isso: sua natureza técnica, o interesse nunca desmentido de Fanon porterapias hoje frequentemente desacreditadas, como eletrochoques ou comasinsul icos (méto- dos que ele praticava e sobre os quais escreveu artigos científicos) ou, ainda, seus experimentos com os neurolépticos de primeira geração. Alguns também se incomodam com o fato deele subor- dinara psicanálise a uma abordagem neuropsiquiátrica mais geral, ao menos quando a considera deum ponto devista clínico. Além disso, a riqueza e o impacto da obra política são tais, para uma vida tão curta, queé difícil acreditar queeletenha tido tempopara produzir também uma obra cien- tífica de algumaimportância. No entanto,ao lê-los em paralelo logo fica claro que obra política encontra sua forma eseusfundamentosteóricos na obra científica Fanon,aliás, se considerava antes de tudo psiquiatra e poucas vezes interrompeu sua prática clínica, fosse na Frarça, na Argélia ou na Tu a. Se a psiquiatria constituísse apenas uma ativi- dadeprofissional apertada de seus interesses principais, ele decerto teria aberto um daqueles con- sultórios particulares que floresciam na época! Ora, ele privilegiou a clínica hospitalar, realizou pesquisas originais, que apresentou em congressos, publicou-as,dirigiu trabalhos universitários e exerceu um impacto considerável sobre a vocação e a carreira de internos e enfermeiros — o que muito cedo lhe granjeou a reputação de médico que revolucionava a prática dominante. Seus textos de psiquiatria contêm preciosas reflexões flosóficas, etnológicas, epistemológicas e jurídicas. Em termosde psiquiatria e de neurologia, remetem aos debates mais interessantes da área, e isso du- rante um período apaixonante de redefinição febril da disciplina. Também merecem ser estudados, se quisermos compreender o pensamento do autorna íntegra. Tendo reunido diversos de seus escritos políticos sobo título Pourla Révolution africaine [Rumo à revolução africana],o editor Fran- cois Maspero chamou atenção para esse corpus de documentos, observando que, ao mesmo tempo que redige seustextos políticos, Fanon realiza um notáveltrabalho médico,inovador em todos os aspectos, profunda e visceralmente próximo de seus doentes, em quem vê,acimade tudo, as vítimas do sistema que combate Fle acumula as anotações clínicas e as análises sobre osfenômenos da alienação colonialista vista através das doenças mentais; também explora astradições locais e suas relações com a coloni- zação. Esse material capital está intacto, mas também disperso, e esperamos poder reunilo num volume à parte? A obra científica de Fanon parte de uma reflexãofundamental sobre a especificidade dapsiquiatria emrelação à neurologia, temade sua tese de medicina, defendida em 1951. Ele publicou em se- guidaartigos sobre os tratamentos neuropsiquiátricos que havia testado e seuslimites, e depois orientou-se para uma abordagem socioterapêutica cujas dificuldades logo o levaram a estudar o papel crucial da cultura no desenvolvimento das doenças mentais. Fanon recusou desde o início qualquer naturalização das doenças mentais e rejeitaria com veemência aquelas que a etnopsi- quiatria colonial, essencialmente biologizante e racista, havia inventado e encarnado na estrutura dos hospitais fundados antes da guerra, em especial o de BlidaJoinvlle, na Argélia. Elaborou, nessa ocasião, umaabordagem quefez dele um dos pioneiros da etnopsiquiatria moderna. Porfim, afastou-se da socioterapia ou terapia institucional para criar um serviço de tratamento mental fora do hospital psiquiátrico e propor um modelo paraas futuras instituições de saúde mental Atesefundadora de 1951 sobre as “alterações mentais” Seu primeiro texto importante é a tese de exercício em psiquiatria defendida em Lyon, em novem- bro de1951,para atuar como médico - ele tinhaentão 26 anos de idade3 Essa tese costuma ser apresentada como um trabalho técnico produzidoàs pressas com o fim de obter umaqualificação no lugar de Pele negra, rmscuras bruna, consideradoinaceitável corno Lal, pur ter sido redigida de “um ponto devista demasiado subjetivo.é Fanonapresenta um motivodiferente: Quando começamos este livro, surgido no final de nossos estudos em medicina, pensávamos em defendê-lo comotese. Mas depois a dialética exigiu que tomássemosposições mais refor- gadas. Embora, de qualquer modo,tivéssemosabordadoa alienação psíquica donegro, não poderíamosomitir certos elementos que, embora de natureza psicológica, engendravamefei- tos relativosàs outras ciências
  • 11. Essa dialética é a da psiquiatria e da sociologia, da subjetividade e dahistória, e Fanon havia destacadodesde a incradução: Reagindocontra a tendência constitucionalista em psicologia do fim doséculo x1x, Freud, por meio dapsicanálise, exigiu que fosse levado em consideração o fatorindividual. Ele substituiu a tese filogenética pela perspectiva ontogenética. Veremos quea alienação do negro nãoé ape- nasuma questão individual. Ao ladoda filogenia « da ontogenia, há a sociogenia5 Fanon, que nãohesitava nem um pouco em se posicionar na esteira defiliações ilustres, desde o começo teve consciência do que viriam a constituira força e a modemidadede seu pensamento político: tomar a noção de alienação num sentidoforte, articulando essas três dimensões. Para isso, ainda era preciso provar quea alienação não pode se reduzir a distúrbios da constituição orgânica ou da história individual, fora de qualquer vínculo social. Tal é o objeto da tese de psiqui atria “estrita”, texto que é preciso levar a sério, tanto em si mesmocomo em sua conexão funda- mental com seus outros trabalhos, pelas razões indicadas a seguir. Emprimeiro lugar, o caso médico objeto da tese — uma doença neurológica hereditária muitas. vezes, mas nem sempre, acompanhada desintomaspsiquiátricos, eles próprios variáveis — é o de uma paciente obsenada cuidadosamente e por um longo período. Fanon estudava num depar- tamento de orientação neurológica e, portanto,tinha à sua disposição os recursos necessários para examinar o problema das relações entre causalidade neurológica e causalidade psiquiátrica. Su- pondo que essa doença lhe ofereceria umachave para o problema, ele examinou todosos casos recentes, tanto na literatura médica desde o século xix quanto nas clínicas próximas, tendo por objetivo explícito provar empiricamente a insuficiência do reducionismoorganicista ainda domi- nante napsiquiatria do pré-guerra. Portanto, a resolução desse problema inicial pode ser consi- derada uma preconcição teórica para seus trabalhosrelativos ao impacto dosfatores sociais e culturais sobre o desenvolvimento das doenças mentais e, em consequência, para seu pensamento posterior sobre a alienação. Em segundolugar, Fanon indica em vários pontos importantes da tese as orientações futuras de seu próprio percursoprofissional e intelectual. Sobre a natureza da neuropsiquiatria e as fun- ções respectivas do neurologista e dopsiquiatra,ele declara: “longe de proporumasolução — cre- mos ser necessário para isso uma vidade estudose de observações”? Naparte consagradaà re- cusa do atomismo e das localizações cerebrais pelos psicólogos da Gestalitheorie (teoria psicológica da forma), notando a insistência do psiquiatra e médico suíço Constantin von Mona- kow (1853-1930) no tempo como fator crucial no desenvolvimento das doenças mentais, em opo- sição à localização espacial das lesões cerebrais,a tese anuncia uma obra futura, provavelmente Pele negra, máscaras brancas, publicadapouco depoi “Teremos ocasião, numaobra em que vimos trabalhando há algum tempo, de abordaro problemada história sob a perspectiva psicanalítica e ontológica. Mostraremosentão que a história consiste na valorização sistemática dos complexos coletivos” 3 Fanontinhalido Jacques Lacan com muita atenção,talvez sob a influência de Maurice Merleau- Ponty cujos cursos frequentava 2 Consagrando uma seção de sua tese à teoria lacaniana de uma psicogênese pura da loucura (que ele opõeà organogênese moderaca do grande psiquiatra do pe- ríodo, Henri Ey), Fanondestaca a insistência de Lacan na constituição social da personalidade ('ele considera a loucura de uma perspectiva intersubjetivista”) e acrescenta, numainteressante preterição: “A loucura”,ele diz, “é inteiramente vivida noregistro do sentido” [..] Gostaríamosde ter consagrado longas páginas à teoria lacaniana da linguagem, mas correríamos o risco de nos afastar demais de nosso propósito. A despeito disso,refletindo tem, devemosreconhecer que todo fenômenodelirante é, em última instância, um fenômeno manifesto,isto é, dito1º Portanto, Fanon vê em sua pesquisa sobre esse grupo de doenças mentais irredutíveis à sua ori- gem neurológica a ocasião de levar a cabo uma reflexãoteórica de fundo e indica queela o conduz aostrabalhos quepretende empreender mais tarde, mesmo em outras áreas. Emterceiro lugar, não há por que subestimar o interesse continuado deFanon pelos aspectos biológicos da clínica psiquiátrica. Maurice Despinoy, quefoi seu supervisorde residência no Hos- pital Psiquiátrico de Saint-Alban, observa que ele manifestava grande interesse pelas experiências que fazia com sais de lítio. Despinoy, um dos pioneiros nessaárea, estima que, se tivesse perma- necido em Saint-Alban, Fanon “teriafeito umatese de bioquímica”. Em quarto lugar, sabemos que Fanontrabalhava muito rápido, ditando seuslivros sem usar anotações e raramente se corrigindo 2 Noentanto, a redação dessa tese talvez tenha levado tanto tempo,se não mais, que a de seus livros: o histórico dos casos pertinentes a bibliografia são extensivos;as referências, esclarecedoras; as citações (em geral corretas) revelam umaleitura atem- ta da literatura, e suas análises vão aoponto central das questões dominantes na época. É uma tese
  • 12. muito curta, sobretudo pelo número de casos resumidos ou estudados diretamente, e pouco con- forme às convenções hiblingráficas, mas vai sem desvios ao cerne do problema e é possível ver comoo estilo de seu pensamento se define. Porfim, não é evidente que um trabalho, aoincorporar algumasdas análises na primeira e na terceira pessoas sobre o tema de Pele negra, máscaras brancas (cujo primeiro título havia sido “Ensaio sobre a desalienação do negro"), não pudesse ter sido defendido como tese numaépoca em quea necessidade de uma abordagem fenomenológica da doença mental estava no centro dos debates, impulsionada, entre outros, por Ey e Merleau-Ponty,ambosgrandes leitores de Karl Jas- pers (assim comoFanon). Sem dúvida, hojetal tese na psiquiatria seria menosaceitável do quena- quele tempo. David Macey observa que Pele negra, máscaras brancas, que Fanon havia começado a escrever antes de se lançar aos estudos depsiquiatria, não podiater sido concebido inicialmente comotese de exercíco.!3 O essencial é que as duas obras têm pontosde partida muito diferentes: é certo quea tese estabeleceu o fundamento ontológico de Pele negra, máscaras brancas, mostrando que, mesmo quandotem origem em problemasneurológicos, uma doença mental só costumase desenvolver num espaço relacional socialmente determinado, que explica a forma que ela toma. Maso livro é um estudo psicossócio-histórico particular sobre a alienação numacolônia doAntigo Regime, o Caribe francês, onde a dependência interna em relação à metrópole é absoluta,tanto, aliás, na forma de uma identificação quanto emidentidades de oposição (como a negritude) Fanon poderia muito bem ter se servidodos dois capítulos mais “psicológicos”, um subjetivo, “A. experiência vivida do negro” (já publicado em Esprit em maio de 1957), e o outro, quepoderíamos dizer mais objetivo, “O preto a psicopatologia”. Mas uma tese de medicina sobrea psicopa- tologia do “negro” separada dos contextos socioculturais e históricos concretos, que são o objeto essencial das análises de Pele negra, máscaras brancas, teria caído no essencialismo,já denunciado vivamente por tanon em “Le Syndrome nord-africam” JA sindrome norte-africana],escrito na mesma época.!t Do ponto de vista de Fanon, está claro que esse livro é também uma crítica da ideia de que construções patológicas atribuídas a uma “raça” possam ter outras fontes além dahis- tória. Sustentar que as doenças mentais não são “entidades” naturais, reconhecendo ao mesmo tempo a possibilidads de sua origem orgânica,era, portanto, umaposição importante a sertomada nos debates médicos daépoca, e Fanon a defendia com ainda mais vigor porque ela lhe permitia, além disso, solapar os fundamentosda etnopsiquiatria colonial. Preocupado com asrelações entre orgânico e o mental, mas igualmente apabxonado pelas relações entre a história e a alienação, e estudando num ambiente de pesquisa neurológica, Fanon emergou em sua tese de exercício em psiquiatria a oportunidade de refletir sobre o problema filosófico que constituía seu horizonte: espaço que umaprova empírica da distinção entre o neurológico e o psiquiátrico abriria à liberdade eà história, Organogênese e psicogênese da doença mental Atese de Fanonutiliza umadoença neurodegenerativa hereditária, a ataxia de Friedreich, parainter- rogarsobre oslimites da redução do mental ao neurológico. Aconclusão, numabase experimental, é pela dimensão relacional (interpessoal e,por extensão, social) do desenvolvimento das doenças mentais e das formas que elas adquirem: a maioria dos casossérios tem origem numapatologia neurológica que necessita de um ou vários tratamentos orgânicos, segundo os meios disponíveis emdeterminada época, masestes não bastam para curara doença mental. Logo,esta não se reduz à sua causa ocasional: ela tem dinâmica própria e requer um tratamento de ordem totalmente di versa. Mas, se não há organogênese pura das doenças mentais, tampouco há psicogênese pura Para Fanon, a oposição é obsoleta, pois as formas que as doenças mentais tomam são deter- minadas pela estrutura das relações de que o indi uo é capaz, ou incapaz, departicipar, portanto, por fatores “extemos”, nem orgânicos nem psíquicos, mas institucionais e sociais. A partir de então,o distárbio neurológico só será concebido como causa na mecida em quea “dissolução” de certas funções superiores (como asque controlam o movimento oua aprendizagem)altera a pos- sibilidade e a estrutura das relações sociais; logo, em consequência, a personalidade. Com o tempo, o espírito reage « recompõe a personalidade utilizando o que dela resta depois da dissolução men- tal, As diversas formas possíveis dessa reconstituição são repertoriadas em diferentes tipos de doenças mentais. preâmbulo datese anuncia desdelogoessa dimensãoepistemológica da pesquisa: entre 1861 e 1931, numafamília de distúrbios neurológicos degenerativos hereditários,“determinadosquadros clínicos tentaram alcançar a dignidade de ente específico”! Ora, essa longa e complexa história mostra que, nesses casos, sintoma neurológico e sintoma psiquiátrico “obedecem a um polimor- fismo absoluto”15 Em outras palavras, se era possível unificar as doenças neurológicas, essatarefa se mostraria impossível para seus correlatos psiquiátricos. Sabe-se que a famosa “paralisia geral”, descrita em 1822 pelo médico alienista francês Antoine Laurent Bayle (1799-1858), parecia tão
  • 13. claramente ligada a umasíndrome mental específica (o delírio megalomaníaco e a demência pro- gresciva) que foi utilizada pelo psiquiatra Jarques-Joseph Moreau de Tours (1804-84). é seguida pelo positivismo médico doséculo x1x, como prova do substrato orgânico de toda doença mental e comofundamento de uma concepção organogenética da loucura? Masbasta ampliar o campo para a família dos distúrbios neurológicos degenerativoshereditários ligados à ataxia de Friedreich para perceber que, se umaparte dos casos vinha acompanhadade doenças mentais, essas alte- rações raramente erem idênticas. De modo que essas doenças pareciam questionar as distinções a ocasião de uma rígidas e a simplicidade das “explicações causais e mecanicistas”. Fanon viu refundação do campo: Numaépoca em que neurologistas e psiquiatras se esforçam para delimitar uma ciência pura, isto é, uma neurologia pura e uma psiquiatria pura,seria válido introduzir no debate um grupo de doenças neurológicas quesão acompanhadasdedistúrbios psíquicos e levantar a questão legítima a respeito da essência desses distúrbios 1º E, em umaparte importante da seção “Considerações gerais”: Não acreditamosque um distúrbio neurológico, por mais queesteja inscrito no plasma germi- nativo de um incivíduo, possa engendrar um quadro psiquiátrico determinado. Mas queremos mostrar que toda afecção neurológica incide dealgum modosobre a personalidade. E, quanto mais o distúrbio neurológico seguir uma semiologia rigorosae irreversível, mais sensível será essa falha aberta no interior doego. [..] Pensamos em órgãose em lesões focais quandoseria necessário pensar em funções e desintegrações. Nossa ótica médica é espacial e deveria se temporalizar cadavez mais 1º Essa preocupação epistemológica pode ser encontradano conjunto dostrabalhos de Fanon: uma classificação pode ser cômoda, mas isso em nada prova umaontologia. Deveríamos sempre poder pensar em termos de processo em vez deentidades. Esse rigor vem da fenomenologia e de uma reflexãosobre os debates principais dapsiquiatria francesa dadécadaanterior, especialmente aque- les que opunham Henri Ey a Jacques Lacan e aos neurologistas Julian de Ajuriaguerra e Henri Hécaen2º Esse ceticismo também alimenta os trabalhos de Gaston Bachelard e Georges Cangui- lhem e osprimeirosescritos de Michel Foucault2! Fanon vai derivar daí uma denúncia da vacui- dade dos conceitos etnopsiquiátricoscoloniais, mas no campo deestudo da tese esse ceticismo conduz a uma abordagemestrutural da doença mental Foi dito que a Universidade de Lyon era um deserto psiquiátrico nessa época22 O estudante que decidisse se dedicar a esse tipo de pesquisa demonstraria ume lucidez notável e uma capa- cidade espantosa de se envolver nos maisinteressantes debates do período. No entanto,é provável que esses debates, amplamente documentados por Ey, tenham sido acessíveis a Fanon por meio dos cursos e dos trabalhos publicados de Merleau-Ponty. Além disso, em Lyon, Fanon descobriu também fora da universidade a corrente mais progressista da psiquiatria francesa 22 Conhece, por meio de amigos comuns, Paul Balvet, renomadopsiquiatra do Hospital Le Vinatier. Balvet havia publicado,no número de setembro de 1947 de Esprit, o importante artigo “La Valeur humaine de la folie” [O valor humano da loucura], que, em sua tese, Fanon compera com as análises de Lacan. Ele tinha sido o diretorda clínica de Saint-Alban, na qual Fanonfaria mais tarde sua residência, sob a supervisão de François Tosquelles (recrutado por Balvet) e Maurice Despinoy. Em março de 1950, Balvet contribui para um númeroespecial de Esprit,intitulado “Médecine, quatrime pouvoir? Ulntervention psychologiqueet ['intégrité' de la personne” [Medicina, quarto poder? A intervenção psicológica e a “integridade” da pessoa], que incluía artigos consagrados à neurocirurgia,às tera- pias de choque, à narcoanálise e à psicanálise2 Suas discussões se deram provavelmente em tornodesses debates, que estavam noprimeiro plano da vida intelectual da época. Fanon,leitor voraz de filosofia, literatura e psiquiatria, informado sobre essas questões, decidiu naturalmente tomar posição nesse campo de pesquisae nele imprimir sua marca. Portanto,a tese se inscreve, de saída, na perspectiva de uma comparação entre filosofia e a psiquiatria e quase poderia ser contida nas duas epígrafes, à primeira vista contraditórias, que constituem seu incipit: uma de Nietzsche e a outra de Paul Guiraud eJulian de Ajuriaguerra 25 Paul Guiraud, neurologista de grande renome,trabalhava na conexão entre lesões neurológicas distúrbios psicológicos,e Julian de Ajuriaguerra se tornaria autoridade mundial nessa área. Na mesmareunião da Sociedade Médico-Psicológica, Guiraud também apresentou, com Madeleine Derombies, “Un Cas de maladie familiale de Roussy-Lévy avectroubles mentaux” [Um caso de do- ença familiar de Roussy-Lévy com distúrbios mentais]. Essa enfermidade era acompanhadade uma síndromepsicológica que compreendia depressão, irritabilidade e afecção da sensibilidade mus- cular, repercutindonasíntese da personalidade: já não existe apropriação da atividade muscular por parte dapersonalidade, o sujeito tem a im- pressão de sofrer passivamente os movimentos da caminhada, ele não anda, mas, como disse,
  • 14. É transportado, como se estivesse num carro”. O resultado desse défcit é um declínio da noção do eu, da perconalidade, a tal ponto, conformedisseo paciente, que, «e ele nãoparar, chega a perderaconsciência 2s Ora, a essa patologia se acrescentavam “ideias incipientes de grandeza detipo infantil”. Do ponto de vista neurológico, o jovem apresentava todos os sintomas musculares fisiológicosda doença de Roussy-Lévy (distasia arrefléxica hereditária), confirmada pelo estudo de sua hereditariedade. Os. autores concluíram que existia correlação entre síndrome mental específica e síndrome neuro- lógica, mas enfatizaram, num texto que talvez tenha inspirado o tema da tese de Fanon, queessa correlação neuropsiquiátrica não é universal: Consideramosque, em nosso caso, a lesão ainda desconhecida (uma vez que a doença de Roussy-Lévy continua aguardando sua anatomia patológica) nãose limita à medula, mas atin- ge as vias ou os centrosterminais da proprioceptividade nessas mesmasregiões em que o neurológico se torna psíquico. De fato, está amplamente demonstrado que a simples privação de impressões cinestésicas, ou de outra ordem,não basta para provocartranstornostais como falha naapropriação pelo ego e o sentimento depassividade dosatos motores. preciso outra coisa para explicaros distúrbios do caráter,a impulsividade, o estado depressivo etc. Em compensação,na doença de Friedreich, osdistúrbios mentais são bastante conhecidos. Mollaret os estudou cuidadosamente em suatese. Ele nota que os distúrbios do humore do caráter, a impulsividade e a instabilidade estão muitas vezesassociados debilidade mental Mas em nenhurra de suas observações encontramos umaligaçãotão estreita quanto nanossa entre a síndromeneurológicae a síndrome mental. Essas considerações sobre as diferenças entro as doenças neuropsiquiátricas esclarecem o pensa mento de Fanon. O que está em jogo é a natureza do psíquico: a ataxia de Friedreich tornapossível até necessário compreendera independência do psíquico em relação ao neurológico no âmbito de umaabordagem científica,isto é, sem recurso a um dualismo espiritualista. Outro caso estu- dado por Guiraud na mesma reunião da Sociedade Médico-Psicológica, com Ajuriaguerra, apre sentava umasíndrome de “arreflexia, amiotrofia acentuada, sinal de Argyll e distúrbios mentais”. Denovo,temos uma lista de distúrbios neurológicos ligados a distúrbios mentais (desequilíbrio mental, distúrbios de caráter, surto ciclotímico e, por vezes, deficiência intelectual original) nointerior de umasíndrome ainda não plenamente definida, embora inegável, « bastante similar à doença de Friedreich A conclusão dos autores compreende a frase que Fanon cita como segunda epígrafe: essas enfermidades nervosas hereditárias são acompanhadas por distúrbios mentais tão fre- quentes etão significativos que não podemser consideradosfortuitos. Noentanto, no centro das três apresentações surgiu uma dúvida: essasligações, que não são umacoincidência, bastam para explicara forma e o conteúdo dos distúrbios mentais? Podemos noscontentar em falar de “processos cerebrais”, como dizia Fanon para traduzir as “coisas que acontecem na cabeça”, segundo Nietzsche, ou deveríamos estudar tembém as “coisas vividas”, as formas e osestados de consciência em si? A análise atenta e detalheda da literatura sobre a ataxia de Friedreich, associada ao estudo docaso específico sobre o qual Fanon se debruçou (um “caso dedelírio de possessão deestrutura histérica” com sintomas como“agitação,atitudes extáticas, elocuções sobre temas místicos ou eróticos")2º mostra que a extrema variedade dessas formas põe em dúvida de antemão qualquer reducionismo. A solução se encontra numalonga seção da tese que compara as ideias de Ey, Goldstein (e Monakow) e Lacan. Ainda que tenha permanecido, ao que parece, mais próximo do organodi- namismo de Ey e da compreensão da natureza da doença mental como reconstrução patológica da personalidade — trabalho de umaconsciência afetada em primeira instância por problemas neuro- lógicos subjacentes e em reação eles -, Fanon enfatiza várias vezes a insistência de Lacan na dimensão social do complexo e seu impacto no desenvolvimento da doença mental 2º No caso específico estudado por Fanon, a degeneração cerebral produzia demência imaturidade mental, mas delírio e as manifestaçõeshistéricas e místicas (delírio de possessão) deviam ser explicados como comportamento reativo de um eu privado de relações sociais. O distárbio neurológico ori- ginal havia inibido o desenvolvimento afetivo e cognitivo, impedindo a mobilidade e, portanto, a socialização (umaideia que talvez revele a influência de Henri Wallon,pela via de Merleau-Ponty) “LJ os del los sistematizados, as manifestações histéricas e os comportamentos neuróticos devem serconsiderados condutas reacionais de um ego em ruptura de relações intersociais”20 Numa formulação famosa, Ey denominava “fosso organoclínico” o espaço dessa “trajetória psf quica” de autorreconstrução pela consciência, após uma dissolução mental 2! Para Fanon, esse fosso será cada vez mais estruturado por uma multiplicidade defatores externos, sociais e cultu- rais. Poressa razão,suas publicações médicas e seus manuscritos sobre a necessidade dostrata- mentosneuropsiquiátricos então disponíveis sublinham sempre seuslimites. A partir do momento
  • 15. em que foi confrontado com asdivisões sociais próprias do contexto colonial, ele se voltou mais diretamente para o papel da sociedade e da cultura na doença mental * passou à refletir cobre as vantagens e os limites da terapia social e da psicoterapia como tratamento no âmbito do hospital psiquiátrico. Valore limites dos tretamentos neuropsiquiátricos A tese abria a possibilidade de pensar em uma abordagem propriamente neuropsiquiátrica no trata- mento das doenças mentais. Em todosseus textos posteriores sobre o tema, Fanon explica que esse processo se dá em duas etapas: primeiro, um tratamento orgânico, baseado tanto nas terapias de choque - eletrochoques (terapêutica de Bini), comas insulínicos (cura de Sake!) ou uma com! naçãodosdois — como numaterapia do sono, com o objetivo de fazertábula rasa das construções reativas anteriores. Esse tratamento, que consiste apenas em umafase preliminar, é seguido por umlongo trabalho psicoterapêutico com o propósito de reconstruir a personalidade e reconduzir o paciente a umaexistência social o mais normal possível 2 A doença mental nunca é vista como uma forma extremade liberdade, mas antes como uma“patologia da liberdade”, expressão que Fanonutiliza em vários textos, referindo-se a Ey, que, porsua vez, o havia tomado de empréstimo de um artigo epônimo de Gunther Anders (1902-1992) 23 Ele opõe essa concepção da loucura comopatologia da liberdade à de Lacan, que via na possibilidade da loucura uma dimensão essen- cial da existência humana, em certa proximidade com os surrealistas.2< Após seus estudos em Lyon e uma breve estada no Hospital Psiquiátrico SaintYlie, em Dole Uura), e depois na Martinica, Fanon se transferiu, em abril de 1952, para o Hospital de Saint-Alban- de-Limag-nole (Lozêre), para trabalhar comoresidente com o psiquiatra revolucionário François Tosquelles, um dos inventores da “socioterapia” (subsequentemente, psicoterapia institucional) Logo publica com Tosquelles e seus colaboradores umasérie de textos centrados nasterapias de choque. Esses tratamentos nunca são apresentados como remédios, mas como preparações necessárias aotrabalho psicoterápico propriamente dito. Esse foi o caso de várias apresentações na512 sessão do Congresso de Médicos Alienistas e Neurologistas da Françae dos Países de Língua Francesa, em Pau, de 20 a 26 de julho de 1953: “A propósito de algunscasos tratados pelo método de Bini”, “Indicações da terapêutica de Bini no quadro da terapêutica institucional”, “Sobre uma tentativa de readaptação de uma paciente com epilepsia morfeica e transtornos de natureza grave”(todos com Tosquelles) e “Nota sobre as técnicas terapêuticas do sono com condicionamento controle eletroencefalográfico” (com Mau- rice DespinoyeWalter Zenner, que também eram de Saint-Alhan) Esses artigos descrevem casos de pacientes que sofriam de distúrbios psicóticos severos. Fanon e Tosquelles evocam longamente osdiversos debates sobre cs riscos e as questões éticas das terapias de choque e observam que um dos motivosdaresistência em adoté-las (além de sua equiparação incorreta à lobotomia, então chamada leucotomia) é uma crença ingênua na perma- nência da personalidade: “não haverá portrás dessa atitude um desconhecimento do dinamismo da personalidadetal comonos mostraa psicanálise [.>"25 A personalidade que as terapias de choque decompõem não é uma essência fxa, mas uma construção patológica em reação a um transtorno inicial e a uma “dissolução” As terapiasde cho- que, que Fanon continuou a empregar em Blida e em Túnis, eram ertão instrumento de escolha de uma segunda “dissolução”, a das reconstruções patológicas; entretanto, essa dissolução impli- cavaa criação de condições e processos especiais para ajudaro paciente a reconstruir sua persona- lidade. Tais são as funções da terapia institucional « dapsicoterapia (em geral em forma deterapia de grupo) elaboradas e implantadas em Saint-Alban. A terapia institucional consistia em criar um microcosmo do “mundoreal”, umaabertura ao mundono contexto hospitalar, em queo paciente desempenharia um papel ativo ao longo do dia,trabalhandoe dandoconta de múltiplas atividades. A construção de uma estrutura social era, portanto, fator essencial na reconstrução da persona- lidade: Insistimos nofato de que, para tratamentosnessa perspectiva, preciso a um só tempo atri- buir a maiorimportância ao dispositivo hospitalar, à classificação e ao agrupamento dos paci- entes, assim como à organização concomitante das terapias de grupo. A coexistência doateliê, dos dormitórios e davida social do conjunto do hospitalétão indispensável quanto a etapa de análise ativa, intervencionista, que precedea cura. A cura de Bin,fora dessa possibilidade de em- cadeamento terapêutico, parece-nos um contrassenso 35 Como muitas vezes se disse, a terapia institucional se baseava naideia de que primeiro era preciso tratar a própria instituição para depois tratar seus pacientes. O hospital era, em muitos casos, um simples lugar de internaçãoperpétua 2? Depois da Segunda Guerra Mundial, a lembrança da fome nos manicômios franceses?: « as imagens de campos de concentração haviam tornadoa realidade do hospital psiquiátrico particularmente inaceitável, mas a ideia deque a instituição engendrava,
  • 16. porsua própria estrutura, doenças mentais sem grande ligação com os problemas iniciais dos pacientes não era nova: já havia sido formulada em meadosdo século xix por Maximien Par. chappe, inspetor-geral dos abrigos para alienados, que havia supervisionadoa segundavaga de construção de manicômios na França e escrevera que a maioria das doenças mentais era causada pela internação. Fanon conhecia esses textos por intermédio de Philippe Paumelle, pioneiro da terapia institucional e dapsiquiatria de setor em Paris.2º Impunham-se reformas, e na França a solução veio, em parte, pelo trabalho desenvolvido por Tosquelles em Saint-Alban, que tinha por objetivos a abolição dasestruturas coercitivas ligadas à internação (não só os instrumentosde contenção, como também o ócio forçado e a rotina) e a recriação, nointerior hospitalar, e sob supervisão médica, das estruturas da sociedadeexterior, com atenção particular à textura da vida cotidiana, em oposição à rotina tradicional da visita matinal do médico seguida por uma jornada inativa. Assim, o hospital seria administrado em todas assuas dimensões sociais e materiais pelos pacientes e enfermeiros, que receberiam nova formação. Lentamente, e de maneira controlada, a maioria dos pacientes se recompunha, ao menosaté ser capaz de interagir. A terapia institucional foi umadas fontes da antipsiquiatria dos anos 1960, em particular as experiências de Jean Oury e Félix Guattari na Clínica de La Borde. Oury, quetambém tinha sido interno em Saint-Alban, conhe- cia bem Fanon. Socioterapiaeculture Tão logo chega ao Hospital Psiquiátrico de Blida-Joinvlle em novembro de 1953 (depois de ter trabalhado dois meses no Hospital de Pontorson, na Normandia), munido de sua concepção or- ganodinâmica não essencialista da doença mental e de sua experiência com terapia institucional, Fanonse descobre imerso em um ambiente que logo se transforma em uma situação experimental única e que teria um impacto decisivo naevolução de seu pensamento. Blida-Joinville era um hos- pital de “segunda linha”, depois de Mustapha, em Argel, o que significava que boa parte de seus pacientes era consideradaincurável. Desde sua chegada, Fanon se dedicoua reformaras alas sob sua responsabilidade. Os pacientes eram separados segundo um critério étnico em “europeus” e “nativos”; a ele foram confiados dois pavilhões, um de mulheres europeias e o outro de homens argelinos.!º Se a socioterapia funcionava às mil maravilhas com as mulheres europeias, mostrou- se umfracasso completo com os homens argelinos. Fanone seuinterno Jacques Azoulay (1927 201), que tinha decidido consagrar sua tese 0 problema, publicaram um importanteartigosobre esse fracasso e suas lições.4! Para além da especificidade da experiência colonial, eles tiveram uma chance única de refletir com profundidade sobre os processos da socioterapia Se o cineclube, a associação de música ou o jornal do hospital (todos administrados porpacientes) poderiam ter uma função terapêutica, não era somente por causa dos filmes, das músicas ou dos textos em si, mas porque eram instrumentos que davam a eles a possibilidade de reaprender a atribuir sentido aos elementosconstitutivos de um ambiente. O cinemanão deve consistir numasucessão deimagens com acompanhamento sonoro:é pre- ciso que se converta no desenrolar de umavida, de uma história. Assim, a respectiva comis- são, ao escolher os filmes e ao comentá-los no jornal em uma coluna especial, conferia ao evento cinematográfico seu verdadeiro sentido? A experiência funcionava e logo, como em Saint-Alban, Fanon conseguiu descartar as camisas de força e outrosinstrumentos de contenção no pavilhão europeu. Mas por que essas reformasnão deram certo com os homens “nativos”, que permaneciam presos em seu ciclo deindiferença, retra- ção e agitação, com seu correlato de repressão?A resposta não se encontrava em algumacaracte- rística racial, e sim no fato de que o trabalhocognitivo de atribuição de sentido só pode ser feito emcertos contextos de referência, e estes não são universais, mas culturalmente determinados, fato que se manifesta claramente numa sociedade colonial. “Em razão de qual desvio de julga- mento”, escrevem Azoulay e Fanon, “pudemos crer possível uma socioterapia de inspiração oci- dental numaala dealienados muçulmanos? Como seria possível uma análise estrutural se colocá- vamosentre parênteses os contextos geográficos, históricos,culturais e sociais?" Charles Geronimi sugere queesse fracasso foi desejadopor Fanon como umaetapa necessária noestabelecimento dasestruturas terapêuticas: É legítimo nos perguntar se Fanon defato “se enganou”tentandoaplicaras técnicas “euro- peias”numaala de muçulmanosou seele se engajou de casopensado no que desdeo início sabia ser um impasse. JacquesAzoulay, segundo suaspalavras, acredita que “eletinha se enga- nado redondamente”. Quando me mostrei surpreso com esse “desvio de julgamento”, con- forme sua expressão, pois vindo de quem havia acabado de escrever Pele negra, máscaras bran- cas ou artigo de Esprit sobre a “síndrome norte-africana”, trabalhos que punham em evi- dência à impossibilidade de um encontro autêntico num contexto colonial, ele sorriu e
  • 17. replicou: “Sabe, a gente só compreende com asentranhas. Para mim, não era umaquestão de impor de fora métodos mais ou menos adaptados à “mentalidade nativa” Fu precisava de- monstrar muitas coisas: que a cultura argelina era portadora de valores diferentes dos da cul- tura colonial; que esses valores estruturantes tinham de ser assumidos sem complexo por aqueles que os trazem: os enfermeiros ou os pacientes argelinos. Para ter a adesão dos arge- linos, eu precisava suscitar neles um sentimento de revolta do tipo 'somos tãocapazes quanto os europeus”. Cabia a eles sugerir as formas de sociabilidade específicas « integrá-las no pro- cesso de socioterapia. Foi o que ocorreu”. E acrescentou: “A psiquiatria deve ser política”+ Blida oferecia a Fanon a oportunidade ideal paraesclarecer os dois problemas que o perseguiam desde sua tese e desde Pele negra, máscarasbrancas, a saber, as relações entre o neurológico e o psiquiátrico e entre c psiquiátrico e o social. Com seus internos (especialmente Jacques Azoulay e François Sanchez), ele passou a estudar, na cultura local, a maneira comoas doenças mentais eram conceitualizadas.º Eles estudaram os exorcismosdos marabutos, baseadosna crença em gê- nios(djinns ou, mais propriamente, djnoun, forças que, acredita-se, dominam osdoentes mentais), mastambémo impacto da colonização sobre essas culturas. De um ponto de vista institucional, a solução em Blida se tornou evidente, gerando, em seguida, uma reformulação completa dasativi- dades socioterapêuticas: abertura de um café mouro, celebrações de festas tradicionais, encontros com contadores de Histórias e grupos de música locais, envolvendocada vez mais participação dos pacientes. Futebolista apaixonado, Fanon também conseguiu que os pacientes construíssem umestádio do qual se orgulhava bastante, onde organizava jogos — e que aindahoje é utilizado. No artigo escrito com Azoulay, essas soluções são descritas de forma muito breve enquanto o pro- blema propriamente dito é analisado nos mínimosdetalhes. O mais importante consistia em expor a necessidade de uma transformação conceitual cujo sucesso permitisse, por sua vez, enfraquecer o olhar etnopsiquiátrico dominante na época +º Seus trabalhos psiquiátricos posteriores, em especial aqueles sobre a doença mental na África do Norte, confirmam nateoria o que essa experiência tinha revelado e atacam a psiquiatria colonial do pré-guerra, essencialmente viciada em naturalizartranstornos mentais que hoje parecem clara- mente determinados porfatores sociais e culturais. Se é verdade que na gênese das doenças men- tais muitas vezes estão problemas neurológicos, essa experiência terapêutica também confirma a irredutibilidade das síndromes psiquiátricas ao neurológico. O reducionismo científico só floresceu nascolônias, sobretudo sob a égide de Antoine Porot e de sua influente “escola deArgel”, porque oferecia ao racismo um fundamento de aparência científica Em umaapresentação no Congreso de Médicos Alienistas e Neurologistas de setembro de 1955, em Nice, Fanon e seu colega Raymond Lacaton, de Blida, abordam o assunto da doença men- tal na África do Norte, sob o ângulo original de um problema de medicina legal: se a maioria dos criminosos “europeus” acaba confessando o crimeapós a apresentação deprovas, a maioria dos criminosos “nativos” nega osfatos, mesmo diante de provas cabais, sem tentar provar sua ino- cência. A reação da polícia e da opinião pública é naturalizar esse comportamento, com o argu- mento de que o norte-africano é mentiroso por constituição. Os psiquiatras “primitivistas” expli- cavam fato de maneira mais sutil. Para eles, antes de mais nada, a criminalidadeestá inscrita na “mentalidade” dos nativos: 4 criminalidade dos nativos tem um desenvolvimento, uma frequência, uma brutalidadee uma selvageria que surpreendem à primeira vista e que são condicicnadosporessaimpulsividade especial para a qual um denósjáteve a ocasião de chamara atenção [..] 2 Das 75 períciaspsi- quiátricas deindígenas solicitadas a um de nós nestes últimosdez anos,61tratavam de assas- sinatos ou tentativas de assassinato de aparência injustificada Nos douars, só era possível defender-se desses doentes acorrentando-os; em nossos hospi- tais psiquiátricos modernos,foi preciso multiplicar os quartos deisolamento, queainda sãoin- suficientes para contero número surpreendente de “agitados nativos” que devemosisolar. Ora, aindaé o primitivismo que nos fornece a explicação para essatendência à agitação. Essas manifestações psicomotoras desordenadas devem ser corsideradas, em nossaopinião, segundo ideia de Kretschmer, como a libertação repentina de “complexos arcaicos” pré- formados; reaçõesexplosivas “tempestuosas” (medo,pânico, defesa oufuga) no caso da agi- tação. Enquanto o indivíduo “evoluído” está sempre sob o domínio de faculdades superiores de controle,crítica e lógica, queinibem a libertação de suasfaculdades instintivas, o primitivo reage além de certo limite, por meio de umalibertação total de seus automatismosinstintivos, em que é possível constatar a lei do tudo ou nada: o nativo, em sua loucura, não conhece limites es A tendência a negar as evidências se explica, para Antoine Porot e seu discípulo Jean Sutter (191- 1998) que começou sua carreira com Porot em 1938, comochefe de uma ala em Blida-Joinville —, por umaespécie de teimosia constitutiva, umaincapacidade de integrar os dados da experiência
  • 18. numa objetividade comum,assim como as crianças que negam sua desobediência mesmo quando viramseus pais ohsesvá-las (com a ressalva de que as crianças têm a capacidade de evoluir): A única resistência intelectual de que[os nativos] são capazes se dá na formade umateimosia tenaz e insuperável, de um poderde perseverança que desafia todasas iniciativas e que em geral só é exercido num sentido determinado pelosinteresses, instintos ou crenças essenciais. O nativo lesado toma-se rapidamente um reivindicador tenaz e obstinado. Essa redução inte- lectual baseada na credulidade e na teimosia aproximaria, à primeira vista, a fórmula psíquica do nativo muçulmano à de uma criança. [Noentanto, esse puerilismo mental difere do com- portamento de nossas crianças, no sentido de que não encontramos no nativo esse espírito curioso que as leva a questionamentos, a porquês intermináveis, incitando-as a conexões im- previsíveis,a comparações sempreinteressantes, um verdadeiro esboçodo espírito científico, do qualo nativo é destituídoJe Logo, os nativos estavam fixados não num estágio de desenvolvimento ontogenético anterior, mas numa profunda diferença filogenética. Porot e Sutter concluem assim seu ensaio: Pois o primitivismo não significa falta de maturidade, umainterrupçãodo desenvolvimento do psiquismo individual; [. ele tem raízes muito mais profundas e pensamos até que seu subs- trato deve estar numadisposição particular se não da arquitetura, ao menos da hierarquização “dinâmica”dos centros nervosos.sº Em um documento datilografadonão publicado,Fanon faz de novo tábula rasa dos pressupostos e parte de uma reflexão filosófica sobre as condições culturais e a história legal da confissão,citando Sartre, Bergson, Nabert, Dostoiévskie sobretudo Hobbes: Existe um polo moral da confissão: aquilo que se chamaria de sinceridade. Masexiste também umpolo cívico, e é sabido queessa posição era cara a Hobbes e aos filósofos do contrato so- cial Confesso como homem e sou sincero. Confesso também na condição de cidadão e, assim, autentico o contrato social. Por certo, essa duplicidade está inserida na existência cotidiana, mas em determinadas circunstâncias é preciso saberinvertê-la 3. Portanto, a confissãc só faz sentido num grupo que o indivíduo reconheça e que, por sua vez, o reconheça. Salvo nas jurisdições totalitárias, seu papel é mínimo nosprocedimentos judiciários modernos. pois já não tem o estatuto de prova (é possível acusar à si mesmo sobcoação ou para inocentar o culpado). O reconhecimento da culpa deve então ser compreendido como um meio de facilitara reintegração no grupo social, umavez provada a culpa. Ora,isso supõea existência de “um grupo homogêneo, contexto imprescindível, em que o indivíduo seinseriu em dado momento, mesmoquena prática esse contexto passe despercebido em virtude precisamente de sua evidência necessidade. O texto publicado sobre essa intervenção começa neste pontoda reflexão: só pode haver reinserção num grupo se indivíduo já for parte integrante dele. Como pertencem a um grupo distinto, com suas próprias normas éticas e sociais (entre as quais um código de honra dife- rente), os “nativos” norteafricanos não podem legitimar um sistema estrangeiro por meio da con- fissão. Eles podem se submeter ao julgamento, no qual veem apenas a decisão de Deus. Fanon não deixa de ressaltar que se submeter a um poder não significa aceitélo: Para o criminoso, reconhecer seuato perante o juiz implica desaprovar esse ato, implica legi- timara irrupção do público noprivado. O norte-africano, ao negar, ao se retratar, não estará se recusando isso? Sem dúvida, vemosassim concretizada a separação total entre dois grupos sociais coexistentes — tragicamente, há que se lamentar —, mas cuja integração recíproca não foi iniciada. Essa recusa do acusado muçulmano em autenticar, pela confissão de seu ato, o contrato social quelhe é proposto significa que a submissão, por vezes profunda, que perce- bemos que ele demonstra perante o poder(judiciário, no caso) não pode ser confundida com umaaceitação desse poder? Portanto, o interesse desse problema de medicina legal é revelar que na sociedade colonial não há contrato social compartilhado, não há adesãodo indivíduo a um todo social e jurídico. Aqui se re- vela uma contradição inconciliável entre a compreensão contratual do social e o colonialismo, aindaque ele tivesse levantado essa bandeira como umade suasjustificativas. Mais uma vez, a ideologia de uma patologia mental e de um caráter naturalmente igados a uma raça, por mais espontânea quetivesse parecido, não passava de um dispositivo destinado a mascararessa contra- dição. Sob a capa daciência, a naturalização da doença mental com base racial significava,nareali- dade,transformarem norma naturalcerta estrutura cultural importada da Europa. FanoneAzoulay tinham observado que as dificuldades deaplicação da socioterapia para os ho- mens argelinos na enfermaria de Blida vinham do fato de que “o biológico, o psicológico e o
  • 19. sociológico haviam se separado apenas por uma aberração do espírito”5é Para exploraras relações reais dessas dimensões e compreender as conexões que unem os membros individuais de um grupo a um todo social, Fanon consultou seuslivros, em especial de sociólogos antropólogos, comoAndré Leroi-Gourhan,ss Georges Gusdorfe Marcel Mauss,cujo conceito de fato social total ele adotaºs Para Fanon, entre as práticas cruciais que definem uma sociedade, nainterseção entre a economia, a lei, a religião, a magia e a arte, as atitudes em relação à loucura tinham um papel essencial, Ele deixou vários textos interessantes nesse campo, dosquais o mais surpreendente é, sem dúvida, um artigo de 1956, escrito em colaboração com François Sanchez, sobre a “Atitude do muçulmano magrebino diante da loucura”. Em vez de recorrer à grande tradição de escritos medi- evais árabes sobre a loucura como doença mental, Fanon e Sanchez se concentram nasreações populares perante os doentes, estudando-as por meio da observação dos procedimentos terapêu- ticos dos marabutos e encomendando traduções dos tratados de demonologia em que se funda- mentavam essaspráticas. O curioso, segundo eles, é que, apesar de na Europa a loucura ser enca- rada comodoença, e não comoperversão, as reações, tanto fora quanto no interior do hospital, aindase baseiam num esquema mental moral « não médico. Os enfermeiros psiquiátricos tendem a “punir” pacientes cue causam problemas, e os membros de sua família se sentem pessoalmente ofendidos por essa atitude: ocidental crê, em geral, quea loucura aliena, que não seria possível compreender o compor: tamento do doerte sem levar em conta a doença. Contudo,na prática essa crença nem sempre acarreta umaatitudelógica, e tudo se passa como seo ocidental com frequência se esquecesse da doença: o alienado parece experimentaralguma complacência na própria morbidez e tende a se aproveitar mais ou menos dela para abusar de seu entorno.” A visão norte-africana sobre a loucura é diferente: “Se existe uma certeza bem assentada, é a do magrebino em relação à loucura e seu determinismo: o doente mental é absolutamente alienado, não tem responsabilidade por seus transtornos; somente osgênios detêm plena responsabilidade poreles”. Se pensarmosrealmente que o louco está doente por ser controlado por forçasexteriores (os dinoun, ou gênios), não podemos atribuir intencionalidade, muito menos moralidade, aos compor- tamentos dos pacientes: A mãeinsultada ou espancadapelo filho doentejamais vai ousaracusá-lo de desrespeito ou de desejos homicidas; ela sabe que o filho não seria capaz de desejar deliberadamente seu mal Jamais se chega sequera considerara questão de lhe atribuir atos que não decoram de sua vontade, sujeita por completo ao domíniodos gênios. Fanon considera que essas sociedades estão mais avançadas em termos de “higiene mental”, isto é, em cuidados dispensados localmente, do que as sociedades europeias, mas não em razão de algum fascínio pelo que a própria doença revelaria (e, nesse ponto, ele está muito longe do Fou- cault de Folie et déraison [Loucura e desrazão]): “Não é a loucura que suscita respeito, paciência e indulgência—é a pessoa acometida pela loucura, pelos gênios;é a pessoa comotal”-sº A Europadeve então tirarlições dessas atitudes se deseja desenvolver sistemas de assistência melhores para ospacientes, masisso não significa, segundo Fanon, ter que abandonar uma pers- pectiva científica em psiquiatria. O artigo termina com uma frase em destaque contendoa seguinte afirmação: “Se a Europa recebeu dospaíses muçulmanos osprimeiros rudimentos de uma assistência aos alienados, ela lhes ofereceu, em retribuição, umacompreensão racionaldasenfermidades mentais!" Para além dainstituição A reflexão sobre a experiência de Blida mostrara a Fanon que deviam ser considerados os aspectos culturais, e não só os sociais, para que o modelo da terapia institudonal funcionasse. Ele se per- guntou então se seria possível conceber outras estruturas de higiene mental que não a própria instituição hospitalar. Num artigo de 1957 escrito em colaboração com um dosinternos deBlida, o dr. SlimaneAsselah, sobre agitação (a violência dos pacientes e sua ligação com a instituição), texto que indica pela primeira vez distância em relação a Tosquelles, Fanon questiona de novo a ideia de que o hospital pode substituir o meio exterior, acrescentando que, nesse caso,as relações de poder do exteriortambém seriam transpostas: Não nosparece detodo descabido relembrar aqui que a compreensão da necessidadede orga- nizar o serviço clínico, de institucionalizá-o e nele viabilizar condutas sociais não deve pro- vocar uma mistificação fundada em referências externas. É assim que podem ser entendidas expressões como: hospital-aldeia; hospital reflexo do mundo exterior; dentro do hospital é comodo lado de fora, o paciente deve se sentir em casa... É questionável se essas expressões não são umatentativa de mascarar a realidade por trás de preocupações humanitárias
  • 20. falsamente psicoterapêuticas. E Le Guillant tem mil vezes razão ao condenar essasatitudes descoladas da realidade 2 Porisso, durante seus últimos anos em Túnis, além do trabalho no jornal El Moudjahid das ativi- dades políticas, Fanon consagrou energia considerável à instalação e à direção de um centro-dia, gado ao Hospital Charles-Nicolle, para substituir a hospitalização psiquiátrica. O último de seus artigos científicos, publicado em 1959, é um longo relatório sobre essa experiência de quase dois anos. Fanon parece ter ficadoparticularmente orgulhoso desse centro e o considerava um modelo avançado de assistência psiquiátrica a ser desenvolvido em qualquer lugar, sobretudo nospaíses descolonizados, em úirtude de seu baixo custo e da grandeeficácia terapêutica & A vantagem de um centro-dia em comparação com umainstituição de internação é que a socioterapia pode ocor- rer no ambiente social e cultural normal dos pacientes, que voltam para casa à noite, depois de terem se submetido a uma série de tratamentos apropriadosdurante o dia, compreendendo, se necessário, sessões iniciais deterapia de choque ou de hipnoterapia, e uma variedade depsicote- rapias, individuais ou em grupo. Nesse artigo, para justificar sua recusa à internação, Fanon volta várias vezes à ideia, herdada deEy, de que a loucura é uma patologia daliberdade: A doença menta, numa fenomenologia que deixaria de lado as grandes alterações da consci- ência, apresenta-se como umaverdadeira patologia daliberdade. A doençasitua o doente num mundo em que sua liberdade, sua vontade e seus desejos são constantemente violados por obsessões, inibições, contraordens e angústias. A internação clássica limita consideravelmente o campode ação do paciente e lhe interdita qualquer compensaçãoe qualquer deslocamento, restringindo-o ao espaço fechado do hospital e condenando-o exercersualiberdadeno mundoirreal dos fantasmas. Nãosurpreende, portanto, que o paciente só se sinta livre em sua oposição ao médico que o mantém preso. [.] No hospital-dia [..] a instituição,na verdade, não tem nenhum cortrole sobre a liberdadedo paciente, sobre sua manifestação imediata. [..] Para o paciente, fato de se cuidar por meio do vestir-se, docorte dos cabelose,acima detudo, da intimidadede toda uma parte do dia passada fora do ambiente hospitalar reforça e, em todo caso, mantém sua personalidade em contraposição à integração dissolvente em um hospital psiquiátrico, que abre caminho aos fantasmas da fragmentação corporal ou da erosão do egost Fantasmas de fragmentação física, desagregação da identidade, quea instituição psiquiátrica só re- força, mas não transforma: escas noções já tinham sido utilizadas por Fanon em Pele negra, méc caras brancas para descrever a alienação produzida pelo olharracista e pelainstituição colonial na própria experiência vivida do negro, desagregadores análogos à fase inicial de dissolução neuro- lógica na gênese da doença mental 55 Mas o mundo estava mudando e já não se tratava de perpe- tuar na medicina estruturas essencialmente alienantes. O programade saúde mental para um país novo que Fanon expõe em seu artigo sobre o Centro-Dia de Neuroosiquiatria em Túnis poderia, aliás, servir de modelo ao que se tornaria,sob o nomede “psiquiatria de setor”, umadimensão essencial dotratamento psiquiátrico também na Europa Nãohádúvida de que Fanon amava sua vida de revolucionário, dejornalista e de embaixador. Mas, umavez conquistada independência, ele tinha a intenção de dedicaro resto de seus dias à organização, em sua área, de estruturas capazes de resolver da melhor maneira possível as pato- logias da liberdade. Sua prática científica e clínica é inseparável de todas essas suas vidas, vividas JEAN KHALFA é professor de História do Pensamento Francês no Trinity College na Univer- sidadede Cambridge « organizador, com RobertYoung, dovolume Ecrits surFaliénation et la li berté (La Découverte,2015)
  • 21.
  • 22. mm RFFIFXÕES SORRF CI ÍNICA PSIQUIÁTRICA
  • 23. A INTERNAÇÃO DIURNANA PSIQUIATRIA: VALORE LIMITES (1) FRANTZ FANON, 1959 Introduçãogeral Apósa Segunda Guerra Mundial, os problemas da assistência psiquiátrica se apresentaram com grandeacuidade a seus praticantes nos mais diversospaíses. Sabe-se que, desde antes de 1938, a prioridade era conferida, de um lado,à prevenção e à detecção precoce dos distúrbios mentais e, de outro,à simplificaçãodas formalidades administrativas em torno dahospitalização dosdoentes mentais. A lei adotada em 1938 naFrança, para citar apenas um exemplo.? visava justamente retirar dos manicômios seu caráter prisional. Durante a guerra, a recrudescência dos distúrbios mentais e, acima de tudo, suasúbita eclosão levaram os médicos anglo-saxões a intensificara prática doopen door nos hospitais psiquiátricos. Essa fórmula de portas abertas, inaugurada por Duncan McMillanê em Nottingham reproduzida desde então em diversos países, permite aos pacientes circularlivremente nointeriordo hospital, possibilitando,assim, o máximode contato entre o paci- ente e o meio social:visitas de parentes, dispensas temporárias, férias,altas precoces, altas experi- mentais. Sem dúvida, os primeirospacientes a se beneficiar das portas abertas foram os neuropatase os pré-psicóticos, mas c estudodos pacientes considerados crônicos havia mostrado que, em grande parte dotempo, a meioria dos sintomas é de ordem neurótica e que,paradoxalmente, o manicômio agravava a doença, favorecendoa psicotização.£ Um passo a mais e se inaugurava o princípio do day hospital, hospital-dia, cujas experiências mais convincentes foram realizadas na Inglaterra, na Dinamarca e no Cansdá. Quais são os princípios do hospital-dia? 1) De saída, o paciente não rompe com seu meio fam liar e, por vezes, tampouco com seu meio profissional. 2) A sintomatologia psiquiátrica exibida pelo paciente não desaparece em decorrência do internamento, pois justamente oselementos do conflito e a configuração confitiva se mantêm presentes e vivos nos quadros famil 1, sociale pro- fissional. Não se assiste ao desaparecimento mágico da tensão,tão clássico após a internação,e tem-se constantemente a possibilidadede estudaras reações dopaciente no quadro natural da sua existência. No modelo antigo de hospital psiquiátrico, subtrafa-se o paciente de seu ambiente conflitivo e muito amiúde «e tinha a impressão de um desaparecimento súbito dos sintomas neuráticos logo. que as portas do manicômio se fechavam atrás dele. Era nesse sentido quese podia dizer quea internação provocava umadistensão. Masas atitudes neuróticas continuavam presentese assistia- se à sua ab-reação diante daprimeira visita da esposa ou do marido oudiante da primeira menção às antigas dificuldades. O manicômio envolvia o paciente num manto protetor, porém era uma falsa proteção, pois favorecia a letargia do paciente, essa espécie de sono acordado durante o qual ele levava uma vida vegetativa. E a atenção do médico era dirigida unicamente às perturbações do comportamento do paciente, oriundas, no mais das vezes, das condições de vida no âmbito mani- commial A tentativa feita por médicos decriar no interior do hospital uma neossociedade (é esse o es- forço dasocioterapia) visava justamente impor ao paciente situações similares ao mundoexterior, em meio às quais ele pudesse reeditaratitudes neuróticas como as que porventura existiram anteri- ormente. Vê-se, portanto, que o hospitaldia atende a duas demand: : 1) o diagnóstico e o tratamento precocedos transtornos de comportamento; 2) a manutenção do riaior número de contatos do paciente com o meio exterior, de tal modo que nenhumaatitude neurótica e nenhuma situação confltiva desapareçam magicamente. Nãose trata, assim, de colocar o paciente fora decirculação da vida social, mas de pôr em movimento uma terapia dentro do quadro navidasocial. Dapers- pectiva da assistência psiquiátrica, é uma tentativa de propiciar o desprendimento da atmosfera de segurança aparente que existência do manicômio confere As experiências concretas de hospital-dia aindasão raras. Existem no máximovinte hospitais- dia em operação no mundo. Em todos os casos, eles se encontramem países tecnicamente avan- gados; jamais se tentou realizar num país subdesenvolvido tal experiência. Seria importante, antes de mais nada, questionar do ponto de vista metodológico se um hospital-dia seria possível num país de baixa industrialização. Se sim, uma questão doutrinária poderia serlevantada: o hospital- dia é capaz de dar conta detodasas afecçõespsiquiátricas? preciso avaliar a importância efetiva da decisão tomadapelo governotunisiano de criar um centro-dia de neuropsiquiatria, o único no continente africano a realizar essa experiência. São os resultados dessa experiência que estudamosaqui; é a validadedesse princípio, mesmo em países subdesenvolvidos, que é defendida aqui; é nossa convicção que, daqui em diante, se tornará
  • 24. medicamente importante e socialmente rentável desenvolver centros-dia neuropsiqui mesmo em países subdesenvolvidos. Veremosque, em dezoito mesesde atividade, o Centro-Dia de Neuropsiquiatria de Tánis rece- beuetratou mais de mil pacientes e que menosde 0,88% deles precisou de internação. O Centro-Dia de Neuropsiquiatria deTúnis NoHospital Geral Cfarles-Nicolle existia um serviço de neuropsiquiatria,criado havia mais de qua- renta anos e praticamente regido pela lei de 1838. A única diferença era a prioridade relativa dada aos pacientes ditos voluntários, que se podiam beneficiar da modalidade de serviço aberto. As medidas de monitoramento em nada ficavam dever às dos hospitais psiquiátricos em geral, que empregavam os piores métodos: camisas de força,solitárias, grades, portas trancadas e, acima de tudo,a atitude complacentemente punitiva dainstituição. Um plano global da assistência psiquiá- trica naTunísia fora solicitado pelos serviços ministeriais e os psiquiatras tunisianos, de comum acordo, responderam que lhes parecia importante não mais reproduzir os estabelecimentospsi- quiátricos de acordo com o padrão de grandes hospitais, que cedo ou tardese veriam convertidos em manicômios. Eles ressaltavam, em vez disso, a necessidade de vincular aos hospitais gerais já existentes serviçosneuropsiquiátricos de baixa capacidade, mas cuja eficácia terapêutica poderia ser racionalmente estudada e ampliada. Comojá estava prevista uma reorganização completa do Hospital Geral Chartes-Nicolle, eles propuseram às autoridades realizar a experiência imedia- tamente e transformar o serviço neuropsiquiátrico desse hospital em serviço-dia. As modificaçõesarquitetônicas foram mínimas. Cuidou-se principalmente dedeitar abaixo por- tas, retirar grades « abandonar meios decontenção comocamisas de força e algemas, e umaequi pe de pacientes foi encarregada da demolição das solitárias. A pintura doprédio foi refeita e a capa cidade hospitalar foi fixada em oitentaleitos: quarenta para homense quarenta para mulheres. Na ala dedicadaàs mulheres, um pequeno espaço de seis leitos foi reservado para crianças. O problema da equipe de atendimento se impunha de maneira incisiva. O pessoal antigo desenvolvera certos hábitos predominantemente repressivos. Os pacientes eram, como em grande parte dos manicômios atuais, considerados fontes de incômodo e de desentendimentos no serviço clínico; como é típico, assistia-se a uma inversão da fórmula original: longe de representarem a finalidade precípua do serviço clínico, os pacientes haviam se convertido em inimigos da tranqui- lidade dos funcionários. Essas considerações não são exclusivas desse caso, umavez que a maior crítica que se faz há mais de duas décadas contra a concepção manicomialse refere justamenteàs relações sadomasoquistas que progrescivamente seinstanram entre o grupo dosenfermeiros e o grupo dospacientes. A equipese encontra sob a autoridade de um supervisor. São cinco mulheres e seis homens. Cursos foram instituídos de imediato com a intenção de eliminar antigas posturas e promoverati- tudes em consonância com a nova concepção do atendimento. Constatou-se rapidamente queal- guns enfermeiros e algumas enfermeiras não estavam dispostos a se adaptar com a presteza necessária. Em comum acordo com os médicos do serviço clínico, esses agentes solicitaram sua remoção e foram substituídos por pessoas mais jovens, que tinham umaformação geral mais só- lidae que, acima de tudo, jamais haviam tido contato com doentes mentais. Esses novosenfer- meiros adotaram umapostura normal diante dos pacientes. O DIA NO CENTRO Os pacientes chegam a partir das 7 horas da manhã. Vêm sozinhosou acompanhados dafamília Na chegada, os enfermeiros já estão a postos para acolhê-los. Cadaagente se encarrega de seis a oito pacientes. Jamais ocorre de pacientes trocarem de enfermeiro. O papel do agente é de início repetir cotidianamente certos gestos técnicos (verificação da temperatura, do pulso e da tensão arterial), mas, acima detudo, de conversar com cada um de seus pacientes e seinformar respeito de suasatividades e seus pensamentos desde saída do centro na véspera. É recomendado que se informe mais especificamente sobre o sono do paciente, seus contatos com o cônjuge, no caso doscasados, seus pesadelos e seus sonhos. Toda manhã, quando o médico chega, um relatório deve ser elaborado. Pede-se aos enfermeiros que adotem umapostura benevolente, sobretudo quando o material onírico relatadoé espetacularmente angustiante. Nesse caso, o médico deve ser avisado logoao chegar. Emprincípio,três dias são consagrados ao serviço clínico dos homense três ao das mulheres; Mas muito amiúde, quando o médicofica ciente de que um dos pacientes está ansioso ou quedif- culdades no âmbito familiar adquiriram navéspera umadimensão fora do comum, pratica-se uma intervenção imediata Duas categorias de psicoterapia ocorrem no serviço clínico: psicoterapias de inspiração psi- canalítica, as mais frequentes; e psicoterapias de suporte e de explicação,inspiradas, sobretudo, na teoria pavloviana do segundo sistema de sinalização. No segundocaso, na maiorparte do tempo o
  • 25. agente designado para o paciente assiste à entrevista. Deve-se evitarinterrogar a família na pre sença do paciente e,justamente para evitar à falta de tato dos parentes, chega-se mesmo a exigir que nada lhes seja perguntado a respeito do comportamento dele. Algumas vezes,o sujeito é ini- bido tal ponto que não é possível obter informações sobre sua atividade fora do centro. Nesse caso,então, perguntamos os parentes. almoço é servido nocentro nos mesmos horários que em outros serviços hospitalares, entre nho e 12h30.Atarde é dedicada atividades coletivas. Isso podeenvolver dramatização : Os paci- entes são reunidospelosrespectivos enfermeiros, que lhes contam umahistória, tomando nota das projeções ou identificações; ou é um paciente específico que, solicitado, deve relatar suas dif- culdades,e as reações dos pacientes a essas ditas dificuldades são então anotadas(retornaremos, na seção “Psicoterapia”, ao que esse método oferece de interessante). Pode envolver, ainda, fabri- car objetos, no caso dos homens,e tricotar, costurar, passar roupa e cozinhar, no caso das mulhe- res. Ousessões de iriciação, durante as quais são ensinados cuidados com bebêse utilização da máquina de costura e do ferro de passar. As 17 horas é senido jantare às 17h30 os pacientes começam a deixara ala. Às 18 horas, a ala é fechada. O centro também fica fechado aos domingos. AS INTERNAÇÕES EM MEIO PERÍODO Ocorre com frequência que o estado de um paciente demande cuidados, mas que sua condição material não lhe permita deixar seu emprego ou interrompersuaatividade. É o caso, por exemplo, de donasde casa, estudantes ou representantes comerciais. Nesses casos, é permitido ao paciente, uma vez encerrado c tratamento, deixar o serviço clínico; dessa forma, a terapia ocupacional que tantos problemas apresenta dentro dos manicômios se vê solucionadaaqui, e da melhor maneira, visto que o paciente não perde o contato com o ambiente da sua práxis e os mecanismos profis- sionais não correm o risco de se degradar. Não nos soautópico abordar, numa segunda etapa, um problemaque nos parece importante: não seria possível, como já existe em outros países, orga- nizar, a partir das 18 horas, um serviço noturno, em que outros pacientes em condições sociais específicas (funcionários, professores, artesãos) pudessem receber cuidados, sem que para isso precisassem interromper suasatividadesprofissionais? [Ano de 1958] Comodissemos, o Centro-Dia de Neuropsiquiatria (CON) de Túnis abriu suas portas em maio de 1958 De maio a dezembro desse ano, foram admitidos 345 pacientes, distribuídos da ceguinte maneiras (Figuras 1€ 2) Se acompanharmosa curva da duração média de permanência (Figura 1), perceberemosque, noprimeiro mês, a duração média é de 53 dias, número quenão voltaria a ser atingido. No mês de dezembro, por exemplo, a duração média de hospitalização foi reduzida para 26 dias. Essa dife- rençaindica claramenteque a organização do serviço foi progressivarmente aperfeiçoada. Os homenssão, de longe, os pacientes mais numerosos,e o número pouco elevadode cri- anças se deve exclusivamente aofato de que, noinício, quisemosenfocar, sobretudo, a parcela adulta da população enferma. Foi apenas paulatinamente que puderrosimplantar um espaço dedi- cado a crianças. A partir de 1959, elas passariam a ser admitidas em número considerável. Entre os 345 pacientes internados no Centro-Dia de Neuropsiquiatria durante os seis primeiros meses de 1958, encontramos dozeisraelitas (seis homens e seis mulheres), nove europeus (oito homens umamulher), 28 refugiadosargelinos (vinte homens e oito mulheres) e 296tunisianos.
  • 26. 7 E] so 1 maio junho juho agosto setembro outubro novembro dezembro +=em.» entrados emo soldas duração de permanência média FIGURA 1 Movimentação de pacientes do Centro-Dia de Neuropsiquiatria (1958) IDADE MÉDIA DOS PACIENTES estudo do diagrama (Figura 2) mostra que a maioria dos pacientes se situa entre quinze e 35 anos, com um pico de vinte e 25 anos para os homens e as mulheres,respectivamente. Essa curva é interessante, pois indica queas enfermidades mentais eclodem no período consideradopelos médicos internistas em geral como o menos exposto a doenças. O psiquiatra, porsua vez, o reco- nhece comoo períoco do desabrochar do indivíduo, ao longo do qual ele escolhe uma profissão, estabelece um lar « os filhos nascem. Vale ressaltar a notável raridade de doenças no período pós- menopausa e a quase ausência de distúrbios da senilidade. homens mulheres anos idade 85] 7 E 28 15 20 o 60 40 20 0 o 4 6 FIGURA 2 Pirâmide etária dos pacientes (1958) - 202 homens, 135 mulheres, oito crianças (quatro meninos e quatro meninas), o que corresponde a uma média de 57.5 pacientes por mês. SITUAÇÃO FAMILIAR Levando em conta a situação dos pacientes de acordo com a circunstância de serem solteiros, casados com filhos ou casados sem filhos, algumas observações podem ser feitas. Assim, por exemplo, de 345 pacientes, 162 são solteiros (115 homens e 47 mulheres). Os casados e com filhos são muito mais numerosos que os casados sem filhos. Nesse sentido, encontramos 105 pacientes casados e com filhos (54 homens e 51 mulheres) e apenas 28 casados e sem filhos (catorze ho- mense catorze mulheres)