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Loïc Wacquant
tradução: Paula Miraglia e Hélio de Mello Filho
9NOVOS ESTUDOS 80 ❙❙MARÇO 2008
RESUMO
A sociedade norte-americana é cinco vezes mais punitiva
hojedoquehá25anos.Oacionamentodalutacontraocrimeserviutão-somentecomopretextoetrampolimparauma
reformulação do perímetro e das funções do Estado, que resultou no enxugamento do seu componente de welfare. O
complexo penitenciário ganhou um lugar central como instrumento para a administração da pobreza, nas encruzilha-
das do mercado de trabalho desqualificado, no colapso do gueto urbano e nos serviços de bem-estar social “reforma-
dos” de modo a reforçar a disciplina do trabalho assalariado dessocializado.
PALAVRAS-CHAVE:prisão;administraçãodapobreza;welfare;workfare.
ABSTRACT
The irresistible rise of the penal state in the United States
manifests the implementation of a policy of criminalization of poverty that is the indispensable complement to the
imposition of precarious and underpaid wage labor as civic obligation for those trapped at the bottom of the class and
caste structure. The prison has thus regained a central place in the panoply of instruments for the government of
poverty,at the crossroads of the deskilled labor market,the collapsing urban ghetto,and social-welfare services “refor-
med” with a view to buttressing the discipline of desocialized wage work.
KEYWORDS: prison;workfare;ghetto;poverty;United States;
neoliberalism.
[*] AserpublicadoemMarie-Louie
Frampton,Ián Haney Lopez e Jona-
than Simon (eds.), After the war on
crime (New York: New York Univer-
sity Press, 2008). Este artigo refor-
mula argumentos do livro Prisões da
miséria,publicado no Brasil pela edi-
toraJorgeZaharem2001.
[1] BureauofJusticeStatistics.Sour-
ceboook of Criminal Justice Statistics
2000.Washington:GovernmentPrin-
tingOffice,2001,p.528.
Apreender a mudança das funções do estado penal
na era pós-fordista e pós-keynesiana exige uma dupla ruptura.Pri-
meiro,deve-se romper o paradigma do “crime e castigo”,materiali-
zadopelacriminologiaeodireitopenal,quenosmantémconfinados
àperspectivaestreitadaimposiçãodocumprimentodalei,incapazde
considerarograucadavezmaiordepuniçõesaplicadaspelasautorida-
des,que ignoram na mesma proporção as finalidades extrapenais da
prisão.Bastaumaúnicaestatísticaparafazersobressairafaltadecone-
xão flagrante e crescente entre crime e encarceramento nos Estados
Unidos:em1975,opaísprendia21criminososparacada1.000crimes
graves(homicídio,estupro,agressão,roubo,assaltoefurtodecarros);
em1999,estenúmerohaviachegadoa1061.Seconsiderarmosocrime
como uma constante,a sociedade norte-americana é cinco vezes mais
punitivahojedoqueeraháumquartodeséculo.Porém,éprecisoafastar
o conto oposicionista do “complexo industrial prisional”,defendido
por ativistas,jornalistas e acadêmicos mobilizados contra a escalada
O LUGAR DA PRISÃO NA NOVA
ADMINISTRAÇÃO DA POBREZA*
[2] A toda a conversa de “trancafiá-
losejogarachavefora”,opõe-seofato
de que 95% de todos os presos con-
victos encarcerados em prisões fede-
raiseestaduaisacabamsendosoltos.
Os detentos sentenciados à prisão
perpétua ou à morte representam
3.500 indivíduos, de toda a popula-
çãocarcerária(Donziger,MarcR.The
real war on crime. New York: Harper
Perennial,1996,p.126).
[3] O termo welfare foi deixado
propositalmente em inglês não ape-
nas por ser amplamente adotado
assim, mas também, e sobretudo,
porque é utilizado neste artigo em
contraposição a workfare, que só
poderia ser traduzido por uma ex-
pressão explicativa, o que poluiria o
texto pela quantidade de vezes em
queaparece[N.doT.].
[4] Gifford,SidraLea.Justiceexpen-
ditures and employment in the United
States, 1999.Washington:Bureau of
Justice Statistics, 2002, p. 8; Com-
mittee on Ways and Means. 1996
Green Book. Washington: Govern-
mentPrintingOffice,1997,p.921.
penal,que de formas variadas atribuem equivocadamente a explosão
do encarceramento dos Estados Unidos à reestruturação global do
capitalismo,queintensificouoracismo,eàcorridafrenéticaembusca
dolucropormeiodaconstruçãodepenitenciáriasedasuperexplora-
çãodotrabalhodedetentos.
Quandoparamosparapensarsobreoassunto,tambémpercebe-
mos que a expressão “guerra contra o crime” é inapropriada sob três
aspectos,retóricostantoquantomateriais.Emprimeirolugar,guer-
ras são empreendidas por militares contra inimigos externos da
nação,enquanto o combate ao crime,independentemente do quão
duro seja,envolve órgãos civis que lidam com cidadãos e detentos
protegidos por uma série de direitos e que,ao invés de serem expul-
sos ou aniquilados, são reintroduzidos na sociedade após um
período em custódia penal2.Segundo,a chamada guerra declarada
por autoridades federais e locais nunca foi empreendida contra o
“crime”emgeral.Oalvonaverdadeeramdeterminadascategoriasde
ilegalidadescometidasemumsetorbemdefinidodosespaçosfísico
e social:basicamente crimes de rua cometidos em bairros de classes
desfavorecidas e segregadas das metrópoles norte-americanas.Ter-
ceiro,emaisimportante:oacionamentodalutacontraocrimeserviu
tão-somentecomopretextoetrampolimparaumareformulaçãodoperíme-
tro e das funções do Estado,que resultou no enxugamento (downsizing)
do seu componente de welfare3 e no inchaço (upsizing) dos seus seto-
respoliciais,jurídicosecorrecionais.
O NEXO INSTITUCIONAL TRIÁDICO DA PRISÃO
Entre 1975 e 2000,a população carcerária dos Estados Unidos
cresceuemtermosexponenciais,passandode380mila2milhõesde
detentos,enquanto o número de beneficiários dowelfare caiu vertigi-
nosamentede11paramenosde5milhões.Aoquadruplicaronúmero
de detentos entre 1980 e 2000 e submeter algo em torno de 6,5
milhõesdepessoasàsupervisãodajustiçapenal(incluindoosindiví-
duosemliberdadecondicionalesursis),osEstadosUnidosaumenta-
ramosorçamentosconjuntosdasadministraçõespenitenciáriasfede-
ral,estadualemunicipalemUS$50bilhões,eacrescentaram500mil
novos funcionários,tornando as cadeias e penitenciárias do país no
terceiro maior empregador em 1998, atrás apenas da Manpower
IncorporatededaWal-Mart.Acadaano,desde1985,osgastosnacio-
naiscomoencarceramentosuperaramosfundosalocadosparaoFood
Stamps e o AFDC:em 1995,às vésperas da “reforma do welfare”,os
Estados Unidos gastavam US$ 46 bilhões na operação das casas de
detençãocontramenosdeUS$20bilhõescomoAFDC4.Aindaassim,
em razão de as administrações públicas não terem sido capazes de se
10 DOSSIÊ SEGURANÇA PÚBLICA ❙❙Loïc Wacquant
11NOVOS ESTUDOS 80 ❙❙MARÇO 2008
[5] Rothman,David.Thediscoveryof
the asylum: social order and disorder in
the New Republic (Boston: Little
Brown,1971),pp.254-255.
expandirosuficienteparaconteraondaemcrescimentocontínuode
presos convictos, a explosão carcerária levou ao renascimento do
encarceramentoprivado.Emapenasumadécada,operadorescomfins
lucrativos dominaram 7% do “mercado”,oferecendo 120 mil vagas
adicionais em 1998,o que equivale à população carcerária da França,
ItáliaeEspanhajuntas.
Noentanto,ésobretudoalógicaintrínsecadestaviradadoregis-
trosocialparaopenal,maisdoqueasparticularidadessobredadose
tendências estatísticas,que merece ser assimilada.Longe de contra-
dizer o projeto neoliberal de desregulamentação e degradação do
setorpúblico,aascensãoirrefreáveldoestadopenalnorte-americano
constitui,por assim dizer,o seu negativo (ou seja,é a um só tempo a
revelação e a manifestação do seu reverso),uma vez que evidencia a
implementaçãodeumapolíticadecriminalizaçãodapobreza,queéocom-
plemento indispensável à imposição de ofertas de trabalho precárias e mal
remuneradas na forma de obrigações cívicas para aqueles que estão
cativosnabasedaestruturadeclassesecastas,bemcomoareimplan-
tação concomitante de programas de welfare reformulados com uma
face mais restritiva e punitiva.Na época da sua institucionalização,
nos Estados Unidos de meados do século XIX,“o encarceramento
era,acimadetudo,ummétodoquealmejavaocontroledepopulações
divergentes e dependentes”5,e os prisioneiros eram,acima de tudo,
pessoas pobres e imigrantes europeus recém-chegados ao Novo
Mundo.Hojeemdia,oaparatocarcerárionorte-americanodesempe-
nhaumpapelanálogonoquedizrespeitoaessesgrupos,transforma-
dosemsupérfluosoudiscrepantespeladuplareestruturaçãodarela-
ção entre o trabalho assalariado e a caridade do Estado:as porções
decadentesdaclassetrabalhadoraedosnegrospobresficarampresos
aoscentrosdascidades,umadiaindustrializados,agoradegradados.
Dessaforma,elepôdeganharumlugarcentralnapanópliadeinstru-
mentosparaaadministraçãodapobreza,nasencruzilhadasdomer-
cado de trabalho desqualificado,no colapso do gueto urbano e nos
serviçosdebem-estarsocial“reformados”demodoareforçaradisci-
plinadotrabalhoassalariadodessocializado.
A PRISÃO E O MERCADO DE TRABALHO DESQUALIFICADO
Emprimeirolugar,osistemapenalcontribuidiretamenteparaaregula-
mentaçãodossegmentosmaisbaixosdomercadodetrabalho—eofazdeum
modomaiscoercitivoesignificativodoquealegislaçãotrabalhista,os
sistemas de seguridade social e outras políticas públicas,muitas das
quais nem mesmo abrangem o trabalho não-regulamentado.Seus
efeitosnestalinhadefrentesãotripartidos.Primeiro,aprevalênciaea
escaladaimpressionantesdassançõespenaisajudamadisciplinaras
[6] Nelson, Marta, Dees, Perry e
Allen, Charlotte. The first month out:
post-incarceration experiences in New
York City. New York: Vera Institute,
1999.
[7] Termo usado em contraposição
ao welfare,e que implica o condicio-
namento do trabalho para a conces-
sãodaassistênciapública[N.doT.].
[8] Western, Bruce e Beckett, Ka-
therine. “How unregulated is the
U.S.labor market? The penal system
asalabormarketinstitution”. Ameri-
can Journal of Sociology,vol.104,n-º4,
1999,pp.1030-1060.
[9] Isso dá aos Estados Unidos 24
empregados penitenciários para cada
10milresidentesem“equivalentesde
tempointegral”contra4por10milna
França(efetivode24.220),5naEspa-
nha (22.035) e 8 na Inglaterra e no
PaísdeGales(41.065)[deacordocom
dados de Tournier, Pierre V. Space I
(Statistique Pénale Annuelle du Conseil
del’Europe):Enquête2000surlespopu-
lations pénitentiaires, version définitive.
Strasbourg:Conseil de Coopération
Pénologique,PC-CP,2001,p.47].
parcelas reticentes da classe trabalhadora,aumentando o custo das
estratégias de resistência ao trabalho assalariado dessocializado por
intermédiodeuma“saída”paraaeconomiainformal.Afrontadospor
umapolíciaagressiva,tribunaisseveroseapossibilidadedesentenças
de prisão estupidamente longas para crimes envolvendo drogas ilíci-
tasereincidência,muitosevitamentrarouafastam-sedocomércioile-
galderuaesubmetem-seaosprincípiosdotrabalhonão-regulamen-
tado.Para alguns dos recém-saídos de uma instituição carcerária,a
intrincada malha da supervisão pós-correcional aumenta a pressão
para a opção pela vida “do caminho certo” ancorada no trabalho,
quandodisponível6.Emumcasocomonooutro,osistemadejustiça
penal atua em anuência com o workfare7,para forçar a entrada da sua
clientelanossegmentosperiféricosdomercadodetrabalho.
Segundo, o aparato carcerário ajuda a “fluidificar” o setor de
empregos mal remunerados e reduz de maneira artificial a taxa de
desemprego,subtraindoàforçamilhõesdeindivíduosdesqualifica-
dos da força de trabalho.Estima-se que o confinamento carcerário
tenhadiminuídooíndicededesempregadosnosEstadosUnidosem
dois pontos percentuais durante a década de 1990. Com efeito,
segundoBruceWesterneKatherineBeckett,quandosecontabilizou
a diferença entre o nível de encarceramento das duas áreas,os Esta-
dos Unidos divulgaram uma taxa de desemprego mais alta do que a
média para a União Européia durante dezoito dos vinte anos entre
1974 e 1994, contrariando a visão propalada pelos entusiastas do
neoliberalismoecríticosda“euroesclerose”8.Aindaquesejaverdade
que nem todos os prisioneiros fariam parte da força de trabalho se
estivessememliberdade,adiferençadedoispontospercentuaisnão
inclui o estímulo keynesiano proporcionado pela explosão dos gas-
tospúblicosedoempregoeminstituiçõescorrecionais:onúmerode
empregosnascadeiaseprisõesmunicipais,estaduaisefederaismais
quedobrounasúltimasduasdécadas,saltandodemenosde300mil
em1982,paramaisde716milem1999,quandoafolhadepagamento
mensal excedia US$ 2,1 bilhões9. O crescimento penal também
impulsionouoempregonosetorprivadodeprodutoseserviçoscar-
cerários,um setor com altas taxas de empregos precários e rotativi-
dade,e que cresce paralelamente à privatização da punição (já que a
fonteda“competitividade”dasempresascorrecionaissãoossalários
incrivelmentebaixoseosbenefíciosinsuficientesconcedidosaoseu
quadrodeempregados).
Western e Beckett argumentam que a hipertrofia carcerária é um
mecanismo tardio,bipartido e com efeitos contraditórios:a um só
tempodouraocenáriotrabalhistadecurtoprazo,amputandoosupri-
mento de trabalho na base da hierarquia ocupacional,e agrava-o a
longoprazo,inviabilizandoemmenoroumaiorintensidademilhões
12 DOSSIÊ SEGURANÇA PÚBLICA ❙❙Loïc Wacquant
[10] WesterneBeckett,op.cit.,p.1031.
[11] Peck,JamieeTheodore,Nikolas.
“The business of contingent work:
growthandrestructuringinChicago’s
temporary employment industry”.
Work,Employment&Society,vol.12,n-º
4,1998,pp.655-674;Barker,Kathleen
eKristensen,Kathleen(eds.).Contin-
gent work: American employment rela-
tionsintransition.Ithaca:CornellUni-
versityPress,1998.
[12] Para uma elaboração histórica e
conceitual compacta sobre o acopla-
mento entre (hiper)gueto e prisão
apósodeclíniogradualdoMovimento
dos Direitos Civis,ver L.Wacquant.
“Thenew‘peculiarinstitution’:Onthe
prison as surrogate ghetto” (Theoreti-
cal Criminology,vol.4,n-º 3,2000,pp.
377-389); para uma exposição com-
pleta e detalhada sobre a extensão do
modeloteóricoparaaEuropaOciden-
taleoBrasil,veridem.Deadlysymbiosis:
raceandtheriseof thepenalstate(Cam-
bridge:PolityPress,2008).
de pessoas para o trabalho.Na visão desses autores,“o encarcera-
mento reduziu a taxa de desemprego dos Estados Unidos,mas [...]
sustentar índices baixos de desemprego no futuro vai depender da
expansãodosistemapenal”10.Porém,esseargumentoignoraumter-
ceiro impacto do ultra-encarceramento sobre o mercado de trabalho,
queéodefacilitarocrescimentodaeconomiainformaledeempregos
abaixodalinhadepobreza,eofazgerandocontinuamenteumgrande
volume de trabalhadores marginais que podem ser explorados sem
quaisquer escrúpulos.Ex-detentos dificilmente podem exigir algo
melhor que um emprego degradante e degradado em razão das traje-
tórias interrompidas,dos laços sociais esgarçados,do status jurídico
ignominioso e do amplo leque de restrições legais e obrigações civis
implicadas.O meio milhão de condenados que escoam das prisões
americanastodososanosforneceaforçadetrabalhovulnerávelapro-
priada para suprir a demanda de empregos temporários,o setor do
mercado de trabalho que mais cresceu nos Estados Unidas ao longo
dasduasúltimasdécadas(equerespondeporumquintodetodosos
novos empregos criados desde 1984)11.O encarceramento extremo,
portanto,alimenta o emprego contingente,que é a linha de frente da
flexibilizaçãodotrabalhoassalariadonascamadasmaisbaixasdadis-
tribuição de empregos.Além disso,a proliferação de penitenciárias
nos Estados Unidos (seu número triplicou em trinta anos,e já ultra-
passa4.800)contribuidiretamenteparaocrescimentoeadissemina-
ção do tráfico ilícito (drogas,prostituição,produtos roubados),que
sãoomotordocapitalismodepilhagemdasruas.
A PRISÃO E A IMPLOSÃO DO GUETO
A representação maciçamente predominante e crescente de afro-
americanos em qualquer nível do aparato penal tinge a segunda fun-
ção assumida pelo sistema carcerário da nova administração da
pobrezanaAméricadeumacordesagradável:compensarecomplementar
afalênciadoguetocomomecanismodeconfinamentodeumapopulaçãocon-
siderada divergente,desonesta e perigosa,bem como supérflua no
planoeconômico(imigrantesmexicanoseasiáticossãotrabalhadores
maisdóceis)enoplanopolítico(negrospobresraramentevotame,de
qualquer forma,o centro gravitacional eleitoral mudou das regiões
centraisurbanasdecadentesparaosprósperossubúrbiosbrancos)12.
Desseângulo,oencarceramentoéapenasamanifestaçãoparoxís-
ticadalógicadaexclusãoetnorracialdaqualoguetotemsidoinstru-
mentoeprodutodesdeasuaorigemhistórica.Duranteomeioséculo
dedomíniodaeconomiaindustrialfordista(1915-1965)—paraaqual
osnegroscontribuíramcomumaquantidadeindispensáveldetraba-
lho não-qualificado,desde a Primeira Guerra Mundial,que pôs em
13NOVOS ESTUDOS 80 ❙❙MARÇO 2008
[13] Kerner Commission.The Kerner
report: The 1968 report of the national
advisory commission on civil disorders.
New York: Pantheon, 1969/1989;
Harris,Fred R.e Curtis,Lynn (eds.).
Lockedinthepoorhouse:Cities,race,and
poverty in the United States.Lanham:
Rowman & Littlefield, 1998; Wac-
quant,L.Urbanoutcasts:Acomparative
sociologyofadvancedmarginality.Cam-
bridge:PolityPress2007.
[14] White,Armond.Rebelforthehell
of it: Life of Tupac Shakur. London:
QuartetBooks,1997/2002.
[15] Katz,MichaelB.Intheshadowof
thepoorhouse:Asocialhistoryof welfare
in America. New York: Basic Books,
1996, pp. 300-334; Handler, Joel e
Hasenfeld,Yeheskel.We the poor peo-
ple: Work, poverty, and welfare. New
Haven:YaleUniversityPress,1997.
marchaa“GrandeMigração”dosestadossegregacionistasdoSulpara
asmetrópolesdetrabalhadoresdoNorte,atéaRevoluçãodosDireitos
Civis,que finalmente lhes deu acesso às urnas (cem anos depois da
abolição da escravidão) —,o gueto desempenhou o papel de “prisão
social”,garantindo,assim,o ostracismo social sistemático de afro-
americanos e ao mesmo tempo permitindo a exploração da sua força
de trabalho na cidade.Após a crise de debilitação do gueto,simboli-
zada pela grande onda de revoltas urbanas que varreram o país em
meadosdadécadade1960,aprisãopreencheuoespaçoqueseabriu,
servindo como um “gueto” substituto para armazenar as parcelas do
(sub)proletariadonegroquetêmsidomarginalizadaspelatransiçãoà
economiadeserviçosduploseàspolíticasestataisderetraçãodowel-
fareederetiradadascidades13.
Logo,ambas as instituições acoplaram-se e complementaram-se,
poiscadaumaoperaàsuaprópriamaneiraparareforçaraseparação(o
significadoetimológicodesegregare)deumacategoriaindesejada,per-
cebidacomoumaameaçaduplaparaametrópole,indissociavelmente
moralefísica.Eessasimbioseestruturalefuncionalentreguetoepri-
são encontra uma expressão cultural surpreendente nas letras musi-
caisenoestilodevidadesdenhosodosmúsicosdegangstarap,exem-
plificado pelo destino trágico do cantor e compositor Tupac Shakur.
Nascido na prisão,filho de um pai ausente (sua mãe,Afeni Sahkur,
faziapartedosPanterasNegras),oapóstolodathuglife,heróiparauma
multidãodejovensdosguetos(elegiõesdeadolescentesbrancosdos
subúrbios),morreu em 1996,em Las Vegas,crivado de balas em um
carro,após cair numa emboscada armada por membros da gangue
rival.Antesdisso,foiacusadodeatirarcontrapoliciaisecumpriupena
deoitomesesporagressãosexual.14
A PRISÃO E O WELFARE TRANSFORMADO EM WORKFARE
Assimcomonoseunascimento,aprisãocomoinstituiçãoestádire-
tamentevinculadaaoconjuntodeorganizaçõeseprogramasencarrega-
dosdeprestar“assistência”àspopulaçõesdesfavorecidas,ealinhadaà
crescente interpenetração organizacional e ideológica entre os setores
penal e social do estado pós-keynesiano.Por um lado,a lógica pan-
óptica e punitiva própria ao campo penal tende a contaminar e em
seguidaredefinirosobjetivosemecanismosdeprestaçãodeassistên-
ciapública15.Dessemodo,alémdesubstituirodireitodecriançasdes-
favorecidasàassistênciaestatalpelaobrigaçãodeseuspaistrabalharem
apósdoisanos,a“reformadowelfare”,endossadaporClintonem1996,
sujeitaosbeneficiáriosdaassistênciapúblicaàspráticasintrusivasdo
registrovitalíciodeinformaçõesecontrolerígido,bemcomoestabele-
ceummonitoramentorigorosodesuascondutas—noquedizrespeito
14 DOSSIÊ SEGURANÇA PÚBLICA ❙❙Loïc Wacquant
[16] Fuller, Torrey E. “Jails and pri-
sons: America’s new mental hospi-
tals”.America Journal of Public Health
vol.85,n-º12,1995,pp.1611-1613.
[17] Lilly,J.Robert e Knepper,Paul.
“The corrections-commercial com-
plex”.Crime and Delinquency,vol.39,
n-º 2, 1993, pp. 150-166; Schlosser,
Eric. “The prison-industrial com-
plex”.The Atlantic Monthly,vol.282,
dez.1998,pp.51-77;Goldberg,Eve e
Evans, Linda. The prison industrial
complex and the global economy. Bos-
ton: Kersplebedeb, 1998. Uma cole-
ção valiosa de escritos, demandas e
informações de ativistas sobre os
tópicosestáreunidanosite<www.pri-
sonsucks.com>, administrado pela
Prison Policy Initiative (sediada em
Northampton,Massachusetts).
àeducação,emprego,consumodedrogasesexualidade—porforçado
qual podem ser acionadas sanções administrativas e criminais.Um
exemplo:desde1998,naregiãocentraldeMichigan,osbeneficiáriosde
programas de assistência social devem se submeter a testes de uso de
drogas periódicos,da mesma forma que os condenados em liberdade
condicional ou sursis.Esses testes são realizados pelo Departamento
PenitenciárioEstatalembeneficiáriosepresosemliberdadecondicio-
nal,todosjuntosnasmesmasinstalações.Poroutrolado,asinstalações
correcionaisdevem,nolensvolens,emcondiçõesdepenúriaeemergência
permanentes,enfrentar as adversidades médicas e sociais que a sua
“clientela”nãoconseguiuresolverdoladodefora:nasprincipaiscida-
des do país, o abrigo para sem-teto de maior capacidade e as mais
amplas instalações para doentes mentais prontamente acessíveis ao
subproletariadoéaprisãomunicipal16.Eamesmapopulaçãooscilade
umpóloaooutrodessecontinuuminstitucional,percorrendoumatraje-
tória quase fechada,que encerra sua marginalidade socioeconômica e
intensificaseusensodeindignação.
Finalmente, as limitações orçamentárias e a moda política de
“menosgoverno”convergiramparaintensificarastendênciasdareifi-
cação do welfare assim como as do encarceramento.Diversas jurisdi-
ções,comooTexaseoTennessee,consignamumaparteconsiderável
dosseuscondenadosaestabelecimentosprivadosesubcontratamfir-
mas especializadas para a administração dos beneficiários da assis-
tência pública,pois o estado não tem capacidade administrativa para
implementar sua nova política de combate à pobreza. Essa é uma
maneiradetornarpessoaspobreseprisioneiros(cujagrandemaioria
erapobreemliberdadeevoltaráaserpobrequandolibertada)“lucra-
tivos”,em termos ideológicos e econômicos.O que nós estamos tes-
temunhandoaquiéagênese,nãodeum“complexoindustrialprisio-
nal”,como é sugerido por alguns criminólogos,acompanhados por
umcorodejornalistaseativistasdosmovimentospelajustiça,mobi-
lizados contra o crescimento do Estado Penal17,mas de uma forma
organizacional verdadeiramente nova,um continuum carcerário-assis-
tencial em parte explorado para fins lucrativos,que é a linha de frente do
Estadoliberal-paternalistanascente.Suamissãoévigiaresubjugar,e
se necessário reprimir e neutralizar,as populações refratárias à nova
ordemeconômicaquesegueumadivisãodotrabalhoporsexo,como
seucomponentepenalvoltando-sesobretudoaoshomenseocompo-
nente assistencial exercendo sua tutela sobre as mulheres e crianças
(desses mesmos homens).Ao manter a tradição política americana
estabelecidaduranteaeracolonial,essecorpoinstitucionalformadoe
in statu nascendi é caracterizado,por um lado,pela interpenetração
entranhadaentreossetorespúblicoeprivadoe,poroutro,pelafusão
dasfunçõesdeestigmatização,reparaçãomoralerepressãodoEstado.
15NOVOS ESTUDOS 80 ❙❙MARÇO 2008
[18] Por exemplo,Donziger,op.cit.;
Rosenblatt, Elihu (ed.). Criminal
injustice: confronting the prison crisis.
Boston: South End Press, 1996;
Davis,AngelaeGordon,A.F.“Globa-
lism and the prison-industrial com-
plex: An interview with Angela
Davis”.RaceandClass,vol.40,n-ºs2-3,
1999,pp.145-157;Braz,Roseeoutros.
“Overview:Critical resistance to the
prison-industrial complex” (Intro-
duction to a symposium on ‘The Pri-
son-Industrial Complex’).Social Jus-
tice,vol.27,n-º3,2000,pp.1-5.
[19] A variante internacional do
argumento do “complexo industrial
prisional” que afirma que o aprisio-
namento de “pessoas do sexo femi-
nino de cor,imigrantes e indígenas”
em todo o planeta se deve à colisão
entreestadosecorporaçõesdeencar-
ceramento privadas (Sudbury,Julia.
Global lockdown: Race, gender, and the
prison-industrial complex. New York:
Routledge, 2005) é ainda mais im-
plausível que a sua versão masculina
nacional.
O MITO DEMONÍACO DO “COMPLEXO INDUSTRIAL PRISIONAL”
Os acadêmicos, ativistas e cidadãos comuns preocupados, ou
consternados,com o crescimento desgovernado do sistema penal
norte-americano não foram capazes de detectar o ancoradouro insti-
tucionaltriádicodaprisãoporestaremobnubiladospelovínculoapa-
rente entre encarceramento e lucro.Na década passada,o refrão da
ascensão de um “complexo industrial prisional” que teria sucedido
(ousuplementado)o“complexoindustrialmilitar”daGuerraFria—
em que os gigantes da indústria da defesa reestruturavam-se com o
abastecimento de armas para o Pentágono e,assim,proporcionavam
poderdevigilânciaepuniçãoaospobres;omedodo“inimigoverme-
lho” no exterior era substituído pelo temor do “inimigo negro” no
interior;eosoperadoresprivadostramavamemsurdinacompolíticos
e oficiais do sistema penitenciário para constituir um “subgoverno”
dissimulado,quedirecionavaaexpansãocarceráriadesmedidaparaa
exploração de uma força de trabalho cativa de crescimento exponen-
cial — foi o leitmotiv do discurso de oposição à prisão nos Estados
Unidos18.Baseadaemumavisãoconspiratóriadehistória,essateseé
solapadaporquatrolacunasimportantes,quederrubamasuasignifi-
cânciaanalíticaearruínamasuapertinênciaprática.
Emprimeirolugar,reduzatransformaçãodúplice,conjuntaeinterativa
dos componentes penal e social do campo burocrático à simples “indus-
trialização” do encarceramento.Porém,a escala mutável do confina-
mentonosEstadosUnidoséapenasumelementodaredefiniçãomais
ampladoperímetroedasmodalidadesdaaçãodoEstadovoltadapara
as“populaçõesproblemáticas”,residentesdasprofundezasdoespaço
socialeurbano.Essaescalaesuaexplicaçãoestãoindissociavelmente
vinculadas à transição paradigmática do welfare para o workfare.Em
contraposição,apossibilidadedevínculodocapitalismoedoracismo
(os dois réus favoritos do conto ativista sobre a malignidade do
governo) com a “globalização” é muito ambígua,sendo que nenhum
dessesdoisimensosevagos“ismos”proporcionaascondiçõesneces-
sáriasesuficientesparaesseexperimentocarcerárionorte-americano
inaudito e singular.Para começar,a inflação carcerária nos Estados
Unidosfoidisparadamuitoantesdaaceleraçãodamobilidadedecapi-
taisentreasfronteiras,e,também,outrospaísesmaisavançados,cujas
economiashaviampassadoporumainternacionalizaçãosemelhante,
apresentaramumcrescimentoapenasmodestodaspopulaçõescarce-
rárias, alimentado pelo alongamento das sentenças, e não pelo
aumentodasadmissões19.Ademais,emboraaoperaçãodosistemade
justiça seja marcada pelo preconceito etnorracial,é difícil perceber
como a discriminação poderia ter se intensificadodesde os anos 1970,
dada a ênfase cada vez maior às salvaguardas e devidos processos
16 DOSSIÊ SEGURANÇA PÚBLICA ❙❙Loïc Wacquant
[20] Hacker,JacobS.ThedividedWel-
fareState:Thebattleoverpublicandpri-
vate social benefits in the United States.
New York: Cambridge University
Press,2002.
legaisinstituídanodespertardarevoluçãodosdireitoscivis,semfalar
napresençacrescentedepoliciais,juízes,vigias,carcereiros,oficiaisde
condicionalnegrosemtodososníveisdoaparatopenal.
Em segundo lugar,o imaginário do “complexo industrial prisio-
nal”enquadra-senopapeldeforçamotrizdosinteressespecuniários
deempresasquevendemserviçosouprodutoscorrecionais,ousupos-
tamente mantêm trancafiadas vastas reservas de mão-de-obra.Sus-
tentaqueomotivodolucroécrucialparaoaparecimentodaprisãoem
massa,quando,na verdade,esta vincula-se principal e primordial-
mente a uma lógica e a um projeto políticos,ou seja,à construção de um
estado pós-keynesiano,“liberal paternalista”,apto à instituição do
trabalhoassalariadodessocializadoeàpropagaçãodeumaéticareno-
vada de trabalho e de “responsabilidade individual” que a reforça.O
lucrocomprisõesnãoéacausaprincipal,masumaconseqüênciasecun-
dária e incidental do desenvolvimento hipertrófico do aparato penal.
Ofatodeinteressesprivadosestaremsendobeneficiadospelaexpan-
sãodasfunçõesgovernamentaisdecertonãoénovotampoucoespecí-
fico ao encarceramento: a distribuição de todos os bens públicos
importantesnosEstadosUnidos,desdeaeducaçãoeahabitaçãoatéa
segurança e a saúde,confere um papel amplo para o terceiro setor e o
setor de serviços e comércio — em relação,por exemplo,ao forneci-
mentodeassistênciamédicaesocial,apuniçãopermanecesurpreen-
dentemente pública20.A privatização tampouco é necessária para o
crescimentocarcerário.Baniraprisãocomfinslucrativosnãoimpediu
a Califórnia de se unir à corrida frenética pelo confinamento.Entre
1980e2000,o“GoldenState”testemunhousuapopulaçãodedeten-
tossaltarde27milpara160mil;seuorçamentoparaosistemacarce-
ráriodecuplicardeUS$400milhõesparaUS$4,2bilhões;eoquadro
de funcionários de penitenciárias inchar,passando de 8.400 para 48
mil,tudoissosemabrirsequerumaúnicaprisãoprivadaparaadultos.Narea-
lidade,seosoperadorescomerciaissimplesmentedesaparecessemda
noite para o dia,os estados e municípios enfrentariam interrupções
operacionais,emaissuperlotaçõeseobstáculosdecurtoprazoaocres-
cimento,mas a prevalência e a fisionomia social do encarceramento
permaneceriamintactas.
Damesmaforma,adenúnciaritualdasuperexploraçãodedeten-
tosemcondiçõesqueevocamumaescravidãopenalnãopodeescon-
der o fato de que apenas uma parcela ínfima e estagnada da popula-
ção carcerária dos Estados Unidos trabalha para empresas externas
(bemmenosque1%,deacordocomascontasmaisgenerosas)eque
nenhum setor econômico se apóia,nem mesmo marginalmente,em
trabalhadores presos. Em relação a prisioneiros que trabalham
arduamente atrás das grades para setores estatais ou federais (cerca
de8%,segundoasestatísticasmaiscondescendentes),suaprodução
17NOVOS ESTUDOS 80 ❙❙MARÇO 2008
[21] No exercício fiscal de 2001, o
UNICOR,o programa de Indústrias
PrisionaisFederais,empregou22.600
detentos para a produção de uma
variedade de mercadorias (uniformes
depolícia,capacetesdekevlar,jogosde
cama e cortinas,móveis de escritório,
serviços de lavanderia,encadernação,
reparos de veículos,reciclagem de ele-
trônicos etc.) vendidas ao governo
comumrendimentode583milhõesde
dólares.Apesar dos subsídios finan-
ceiros,ummercadoparaaproduçãode
detentos (dois terços das vendas são
para o Departamento de Defesa) e
saláriosmédiosmíseros,entre23cen-
tavosa1,15dólarporhora,oprograma
gerouumfluxodecaixanegativodeUS$
5 milhões (Federal Bureau of Prisons.
UNICOR 2001 Annual Report.Dispo-
nível em <http://www.unicor.gov/
information/publications/pdfs/cor-
porate/CATAR2001.pdf>, acessado
em11/08/2007).
[22] Goldberg e Evans, op. cit., p.
1998.
[22] Zimring,FranklinE.eHawkins,
Gordon J. The scale of imprisonment.
Chicago: University of Chicago
Press,1991,p.173.
éinsignificanteeelessão“empregados”comprejuízolíquidoparao
governo,aindaquesuaatividadesejamaciçamentesubsidiadaefor-
temente protegida21.A despeito de seu crescimento,todavia,diante
dos números brutos nacionais fica difícil concordar com o argu-
mento de Goldberg e Evans22,de que o “complexo industrial prisio-
nalestásetornandocadavezmaiscentralparaocrescimentodaeco-
nomia norte-americana”:os US$ 57 bilhões que os Estados Unidos
gastaram com prisões municipais,estaduais e federais em 2001 não
chegamnemàmetadede1%doPIBdeU$10.128bilhõesdaqueleano.
Longe de ser “um componente essencial da economia norte-ameri-
cana”,as prisões permanecem insignificantes do ponto de vista da
produçãoeservemnãocomoumestímulogeralparaoslucroscorpo-
rativos,mas como um escoadouro de dinheiro dos cofres públicos e
umdesviosemsentidodocapitalfinanceiro.
Em terceiro lugar,a visão ativista tem como premissa um parale-
lismo equivocado entre as funções de defesa nacional do Estado e
administraçãopenal,quedeixadeperceberestadiferençafundamen-
tal:a política militar é altamente centralizada e coordenada no plano
federal,enquanto o controle da criminalidade é amplamente descen-
tralizadoedispersoentreautoridadesfederais,umacentenadedepar-
tamentosestaduaisdejustiçaeprisões,emilharesdeadministrações
estaduaismunicipaisresponsáveispelaspolícias,tribunaisecadeias.
A expressão “sistema de justiça criminal” oculta uma rede frouxa de
agênciasburocráticasprovidasdeumlivre-arbítrioabrangenteedes-
tituídas de uma filosofia ou política penal em comum.Ainda que um
grupogovernantemíopetivesse,dealgummodo,inventadoumplano
terrívelparatransformarosistemacarcerárioemumaindústrialucra-
tiva,usandooscorposdospobresdepelenegracomo“matéria-prima”,
não haveria uma única base de apoio que pudesse ter sido utilizada
paragarantirasuarealização.Atesesimplistadequeolucrocapitalista
impulsiona o crescimento carcerário deixa sem explicação os meca-
nismosespecíficosquederamorigemànotávelconvergênciadasten-
dênciascorrecionaisentrediferentesjurisdiçõesdosEstadosUnidos
e é apenas mais um elemento que se soma ao “composto misterioso”
doultra-encarceramentonacional,dadaafaltadeum“precursorpolí-
ticodistintivo”22.
Finalmente,constrangidapelasuaabordagemacusatória,anoção
confusade“complexoindustrialprisional”nãolevaemconsideração
osefeitosabrangentesdaintrodução,aindaquedeumamaneiralimi-
tadaepervertida,dalógicadowelfarenointeriordouniversocarcerárioem
si.As instituições correcionais foram profundamente transformadas
ao longo das últimas três décadas,não apenas pelas mudanças na
escala e composição da sua clientela,mas também pelo movimento
dosdireitosdospresos,aracionalizaçãoeaprofissionalizaçãodocon-
18 DOSSIÊ SEGURANÇA PÚBLICA ❙❙Loïc Wacquant
[24] Feeley, Malcolm e Rubin, Ed-
ward L.Judicial policy making and the
Modern State: How the courts reformed
America’s prisons. New York: Cornell
UniversityPress,1998.
[25] Glaser, Jordan B. e Greifinger,
RobertB.“Correctionalhealthcare:a
public health opportunity”.Annals of
Internal Medicine,vol.118,n-º 2,1993,
pp.139-145. N.T.
finamento,eavigilânciacadavezmaiordoserrosjudiciais24.Assim,os
juízes exigiram que as autoridades das cadeias e prisões cumprissem
umabateriadenormasmínimasreferentesadireitosindividuaiseser-
viçosinstitucionais,oquesignificou,porexemplo,oferecereducação
para presos menores de idade e atendimento psiquiátrico em massa.
Mesmoqueaindadeficiente,osistemadesaúdedasprisõesmelhorou
consideravelmente,apontodesersuperioraosserviçosmédicosdefi-
cientes acessíveis aos condenados mais pobres do lado de fora, e
atende a milhões anualmente, tanto que pesquisadores da saúde
pública e oficiais governamentais consideraram o sistema carcerário
umpontodeintervençãocrucialparadiagnosticaretratarumasériede
doençasinfecciosascomunsempopulaçõesdebaixarenda25.
CODA
Escapar do paradigma angelical da imposição do cumprimento
da lei e exorcizar o mito demoníaco do “complexo industrial prisio-
nal” são duas etapas necessárias e complementares para localizar de
forma apropriada as novas funções que a prisão carrega no sistema
reconfiguradodeinstrumentosparagerirotrabalhonão-regulamen-
tado,a hierarquia etnorracial e a marginalidade urbana nos Estados
Unidosdosdiasdehoje.Realizaressasduasetapasrevelaquealibe-
ração de um aparato penal hipertrófico e hiperativo após meados da
década de 1970 não é a lâmina cega de uma “guerra contra o crime”,
nem o engendramento de um acordo secreto demoníaco entre ofi-
ciais públicos e corporações privadas com vistas a faturar com o
encarceramento.Em vez disso,revela que o fenômeno participa da
construção de um Estado reformado capaz de impor requerimentos
econômicos e morais adstringentes do neoliberalismo após o des-
carte do pacto social fordista-keynesiano e a implosão do gueto
negro. O aparecimento dessa nova administração da pobreza de
mãos dadas com o workfare restritivo e com punições expansivas
exige que tiremos a prisão dos domínios técnicos da criminologia e
dapolíticacriminal,eacoloquemosdiretamentenocentrodasocio-
logiapolíticaedasaçõescivis.
LoïcWacquantéprofessordesociologianaUniversidadedaCalifórnia,emBerkeley,epesquisa-
dordoCentredeSociologieEuropéenne,Paris.PublicourecentementenoBrasiloslivrosOMistério
doministério:PierreBourdieueapolíticademocrática(Revan,2005)eOndapunitiva:onovogovernodainse-
gurançasocial(Revan,2007).
19NOVOS ESTUDOS 80 ❙❙MARÇO 2008
Recebidoparapublicação
em25denovembrode2007.
NOVOSESTUDOS
CEBRAP
80,março2008
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  • 1. Loïc Wacquant tradução: Paula Miraglia e Hélio de Mello Filho 9NOVOS ESTUDOS 80 ❙❙MARÇO 2008 RESUMO A sociedade norte-americana é cinco vezes mais punitiva hojedoquehá25anos.Oacionamentodalutacontraocrimeserviutão-somentecomopretextoetrampolimparauma reformulação do perímetro e das funções do Estado, que resultou no enxugamento do seu componente de welfare. O complexo penitenciário ganhou um lugar central como instrumento para a administração da pobreza, nas encruzilha- das do mercado de trabalho desqualificado, no colapso do gueto urbano e nos serviços de bem-estar social “reforma- dos” de modo a reforçar a disciplina do trabalho assalariado dessocializado. PALAVRAS-CHAVE:prisão;administraçãodapobreza;welfare;workfare. ABSTRACT The irresistible rise of the penal state in the United States manifests the implementation of a policy of criminalization of poverty that is the indispensable complement to the imposition of precarious and underpaid wage labor as civic obligation for those trapped at the bottom of the class and caste structure. The prison has thus regained a central place in the panoply of instruments for the government of poverty,at the crossroads of the deskilled labor market,the collapsing urban ghetto,and social-welfare services “refor- med” with a view to buttressing the discipline of desocialized wage work. KEYWORDS: prison;workfare;ghetto;poverty;United States; neoliberalism. [*] AserpublicadoemMarie-Louie Frampton,Ián Haney Lopez e Jona- than Simon (eds.), After the war on crime (New York: New York Univer- sity Press, 2008). Este artigo refor- mula argumentos do livro Prisões da miséria,publicado no Brasil pela edi- toraJorgeZaharem2001. [1] BureauofJusticeStatistics.Sour- ceboook of Criminal Justice Statistics 2000.Washington:GovernmentPrin- tingOffice,2001,p.528. Apreender a mudança das funções do estado penal na era pós-fordista e pós-keynesiana exige uma dupla ruptura.Pri- meiro,deve-se romper o paradigma do “crime e castigo”,materiali- zadopelacriminologiaeodireitopenal,quenosmantémconfinados àperspectivaestreitadaimposiçãodocumprimentodalei,incapazde considerarograucadavezmaiordepuniçõesaplicadaspelasautorida- des,que ignoram na mesma proporção as finalidades extrapenais da prisão.Bastaumaúnicaestatísticaparafazersobressairafaltadecone- xão flagrante e crescente entre crime e encarceramento nos Estados Unidos:em1975,opaísprendia21criminososparacada1.000crimes graves(homicídio,estupro,agressão,roubo,assaltoefurtodecarros); em1999,estenúmerohaviachegadoa1061.Seconsiderarmosocrime como uma constante,a sociedade norte-americana é cinco vezes mais punitivahojedoqueeraháumquartodeséculo.Porém,éprecisoafastar o conto oposicionista do “complexo industrial prisional”,defendido por ativistas,jornalistas e acadêmicos mobilizados contra a escalada O LUGAR DA PRISÃO NA NOVA ADMINISTRAÇÃO DA POBREZA*
  • 2. [2] A toda a conversa de “trancafiá- losejogarachavefora”,opõe-seofato de que 95% de todos os presos con- victos encarcerados em prisões fede- raiseestaduaisacabamsendosoltos. Os detentos sentenciados à prisão perpétua ou à morte representam 3.500 indivíduos, de toda a popula- çãocarcerária(Donziger,MarcR.The real war on crime. New York: Harper Perennial,1996,p.126). [3] O termo welfare foi deixado propositalmente em inglês não ape- nas por ser amplamente adotado assim, mas também, e sobretudo, porque é utilizado neste artigo em contraposição a workfare, que só poderia ser traduzido por uma ex- pressão explicativa, o que poluiria o texto pela quantidade de vezes em queaparece[N.doT.]. [4] Gifford,SidraLea.Justiceexpen- ditures and employment in the United States, 1999.Washington:Bureau of Justice Statistics, 2002, p. 8; Com- mittee on Ways and Means. 1996 Green Book. Washington: Govern- mentPrintingOffice,1997,p.921. penal,que de formas variadas atribuem equivocadamente a explosão do encarceramento dos Estados Unidos à reestruturação global do capitalismo,queintensificouoracismo,eàcorridafrenéticaembusca dolucropormeiodaconstruçãodepenitenciáriasedasuperexplora- çãodotrabalhodedetentos. Quandoparamosparapensarsobreoassunto,tambémpercebe- mos que a expressão “guerra contra o crime” é inapropriada sob três aspectos,retóricostantoquantomateriais.Emprimeirolugar,guer- ras são empreendidas por militares contra inimigos externos da nação,enquanto o combate ao crime,independentemente do quão duro seja,envolve órgãos civis que lidam com cidadãos e detentos protegidos por uma série de direitos e que,ao invés de serem expul- sos ou aniquilados, são reintroduzidos na sociedade após um período em custódia penal2.Segundo,a chamada guerra declarada por autoridades federais e locais nunca foi empreendida contra o “crime”emgeral.Oalvonaverdadeeramdeterminadascategoriasde ilegalidadescometidasemumsetorbemdefinidodosespaçosfísico e social:basicamente crimes de rua cometidos em bairros de classes desfavorecidas e segregadas das metrópoles norte-americanas.Ter- ceiro,emaisimportante:oacionamentodalutacontraocrimeserviu tão-somentecomopretextoetrampolimparaumareformulaçãodoperíme- tro e das funções do Estado,que resultou no enxugamento (downsizing) do seu componente de welfare3 e no inchaço (upsizing) dos seus seto- respoliciais,jurídicosecorrecionais. O NEXO INSTITUCIONAL TRIÁDICO DA PRISÃO Entre 1975 e 2000,a população carcerária dos Estados Unidos cresceuemtermosexponenciais,passandode380mila2milhõesde detentos,enquanto o número de beneficiários dowelfare caiu vertigi- nosamentede11paramenosde5milhões.Aoquadruplicaronúmero de detentos entre 1980 e 2000 e submeter algo em torno de 6,5 milhõesdepessoasàsupervisãodajustiçapenal(incluindoosindiví- duosemliberdadecondicionalesursis),osEstadosUnidosaumenta- ramosorçamentosconjuntosdasadministraçõespenitenciáriasfede- ral,estadualemunicipalemUS$50bilhões,eacrescentaram500mil novos funcionários,tornando as cadeias e penitenciárias do país no terceiro maior empregador em 1998, atrás apenas da Manpower IncorporatededaWal-Mart.Acadaano,desde1985,osgastosnacio- naiscomoencarceramentosuperaramosfundosalocadosparaoFood Stamps e o AFDC:em 1995,às vésperas da “reforma do welfare”,os Estados Unidos gastavam US$ 46 bilhões na operação das casas de detençãocontramenosdeUS$20bilhõescomoAFDC4.Aindaassim, em razão de as administrações públicas não terem sido capazes de se 10 DOSSIÊ SEGURANÇA PÚBLICA ❙❙Loïc Wacquant
  • 3. 11NOVOS ESTUDOS 80 ❙❙MARÇO 2008 [5] Rothman,David.Thediscoveryof the asylum: social order and disorder in the New Republic (Boston: Little Brown,1971),pp.254-255. expandirosuficienteparaconteraondaemcrescimentocontínuode presos convictos, a explosão carcerária levou ao renascimento do encarceramentoprivado.Emapenasumadécada,operadorescomfins lucrativos dominaram 7% do “mercado”,oferecendo 120 mil vagas adicionais em 1998,o que equivale à população carcerária da França, ItáliaeEspanhajuntas. Noentanto,ésobretudoalógicaintrínsecadestaviradadoregis- trosocialparaopenal,maisdoqueasparticularidadessobredadose tendências estatísticas,que merece ser assimilada.Longe de contra- dizer o projeto neoliberal de desregulamentação e degradação do setorpúblico,aascensãoirrefreáveldoestadopenalnorte-americano constitui,por assim dizer,o seu negativo (ou seja,é a um só tempo a revelação e a manifestação do seu reverso),uma vez que evidencia a implementaçãodeumapolíticadecriminalizaçãodapobreza,queéocom- plemento indispensável à imposição de ofertas de trabalho precárias e mal remuneradas na forma de obrigações cívicas para aqueles que estão cativosnabasedaestruturadeclassesecastas,bemcomoareimplan- tação concomitante de programas de welfare reformulados com uma face mais restritiva e punitiva.Na época da sua institucionalização, nos Estados Unidos de meados do século XIX,“o encarceramento era,acimadetudo,ummétodoquealmejavaocontroledepopulações divergentes e dependentes”5,e os prisioneiros eram,acima de tudo, pessoas pobres e imigrantes europeus recém-chegados ao Novo Mundo.Hojeemdia,oaparatocarcerárionorte-americanodesempe- nhaumpapelanálogonoquedizrespeitoaessesgrupos,transforma- dosemsupérfluosoudiscrepantespeladuplareestruturaçãodarela- ção entre o trabalho assalariado e a caridade do Estado:as porções decadentesdaclassetrabalhadoraedosnegrospobresficarampresos aoscentrosdascidades,umadiaindustrializados,agoradegradados. Dessaforma,elepôdeganharumlugarcentralnapanópliadeinstru- mentosparaaadministraçãodapobreza,nasencruzilhadasdomer- cado de trabalho desqualificado,no colapso do gueto urbano e nos serviçosdebem-estarsocial“reformados”demodoareforçaradisci- plinadotrabalhoassalariadodessocializado. A PRISÃO E O MERCADO DE TRABALHO DESQUALIFICADO Emprimeirolugar,osistemapenalcontribuidiretamenteparaaregula- mentaçãodossegmentosmaisbaixosdomercadodetrabalho—eofazdeum modomaiscoercitivoesignificativodoquealegislaçãotrabalhista,os sistemas de seguridade social e outras políticas públicas,muitas das quais nem mesmo abrangem o trabalho não-regulamentado.Seus efeitosnestalinhadefrentesãotripartidos.Primeiro,aprevalênciaea escaladaimpressionantesdassançõespenaisajudamadisciplinaras
  • 4. [6] Nelson, Marta, Dees, Perry e Allen, Charlotte. The first month out: post-incarceration experiences in New York City. New York: Vera Institute, 1999. [7] Termo usado em contraposição ao welfare,e que implica o condicio- namento do trabalho para a conces- sãodaassistênciapública[N.doT.]. [8] Western, Bruce e Beckett, Ka- therine. “How unregulated is the U.S.labor market? The penal system asalabormarketinstitution”. Ameri- can Journal of Sociology,vol.104,n-º4, 1999,pp.1030-1060. [9] Isso dá aos Estados Unidos 24 empregados penitenciários para cada 10milresidentesem“equivalentesde tempointegral”contra4por10milna França(efetivode24.220),5naEspa- nha (22.035) e 8 na Inglaterra e no PaísdeGales(41.065)[deacordocom dados de Tournier, Pierre V. Space I (Statistique Pénale Annuelle du Conseil del’Europe):Enquête2000surlespopu- lations pénitentiaires, version définitive. Strasbourg:Conseil de Coopération Pénologique,PC-CP,2001,p.47]. parcelas reticentes da classe trabalhadora,aumentando o custo das estratégias de resistência ao trabalho assalariado dessocializado por intermédiodeuma“saída”paraaeconomiainformal.Afrontadospor umapolíciaagressiva,tribunaisseveroseapossibilidadedesentenças de prisão estupidamente longas para crimes envolvendo drogas ilíci- tasereincidência,muitosevitamentrarouafastam-sedocomércioile- galderuaesubmetem-seaosprincípiosdotrabalhonão-regulamen- tado.Para alguns dos recém-saídos de uma instituição carcerária,a intrincada malha da supervisão pós-correcional aumenta a pressão para a opção pela vida “do caminho certo” ancorada no trabalho, quandodisponível6.Emumcasocomonooutro,osistemadejustiça penal atua em anuência com o workfare7,para forçar a entrada da sua clientelanossegmentosperiféricosdomercadodetrabalho. Segundo, o aparato carcerário ajuda a “fluidificar” o setor de empregos mal remunerados e reduz de maneira artificial a taxa de desemprego,subtraindoàforçamilhõesdeindivíduosdesqualifica- dos da força de trabalho.Estima-se que o confinamento carcerário tenhadiminuídooíndicededesempregadosnosEstadosUnidosem dois pontos percentuais durante a década de 1990. Com efeito, segundoBruceWesterneKatherineBeckett,quandosecontabilizou a diferença entre o nível de encarceramento das duas áreas,os Esta- dos Unidos divulgaram uma taxa de desemprego mais alta do que a média para a União Européia durante dezoito dos vinte anos entre 1974 e 1994, contrariando a visão propalada pelos entusiastas do neoliberalismoecríticosda“euroesclerose”8.Aindaquesejaverdade que nem todos os prisioneiros fariam parte da força de trabalho se estivessememliberdade,adiferençadedoispontospercentuaisnão inclui o estímulo keynesiano proporcionado pela explosão dos gas- tospúblicosedoempregoeminstituiçõescorrecionais:onúmerode empregosnascadeiaseprisõesmunicipais,estaduaisefederaismais quedobrounasúltimasduasdécadas,saltandodemenosde300mil em1982,paramaisde716milem1999,quandoafolhadepagamento mensal excedia US$ 2,1 bilhões9. O crescimento penal também impulsionouoempregonosetorprivadodeprodutoseserviçoscar- cerários,um setor com altas taxas de empregos precários e rotativi- dade,e que cresce paralelamente à privatização da punição (já que a fonteda“competitividade”dasempresascorrecionaissãoossalários incrivelmentebaixoseosbenefíciosinsuficientesconcedidosaoseu quadrodeempregados). Western e Beckett argumentam que a hipertrofia carcerária é um mecanismo tardio,bipartido e com efeitos contraditórios:a um só tempodouraocenáriotrabalhistadecurtoprazo,amputandoosupri- mento de trabalho na base da hierarquia ocupacional,e agrava-o a longoprazo,inviabilizandoemmenoroumaiorintensidademilhões 12 DOSSIÊ SEGURANÇA PÚBLICA ❙❙Loïc Wacquant
  • 5. [10] WesterneBeckett,op.cit.,p.1031. [11] Peck,JamieeTheodore,Nikolas. “The business of contingent work: growthandrestructuringinChicago’s temporary employment industry”. Work,Employment&Society,vol.12,n-º 4,1998,pp.655-674;Barker,Kathleen eKristensen,Kathleen(eds.).Contin- gent work: American employment rela- tionsintransition.Ithaca:CornellUni- versityPress,1998. [12] Para uma elaboração histórica e conceitual compacta sobre o acopla- mento entre (hiper)gueto e prisão apósodeclíniogradualdoMovimento dos Direitos Civis,ver L.Wacquant. “Thenew‘peculiarinstitution’:Onthe prison as surrogate ghetto” (Theoreti- cal Criminology,vol.4,n-º 3,2000,pp. 377-389); para uma exposição com- pleta e detalhada sobre a extensão do modeloteóricoparaaEuropaOciden- taleoBrasil,veridem.Deadlysymbiosis: raceandtheriseof thepenalstate(Cam- bridge:PolityPress,2008). de pessoas para o trabalho.Na visão desses autores,“o encarcera- mento reduziu a taxa de desemprego dos Estados Unidos,mas [...] sustentar índices baixos de desemprego no futuro vai depender da expansãodosistemapenal”10.Porém,esseargumentoignoraumter- ceiro impacto do ultra-encarceramento sobre o mercado de trabalho, queéodefacilitarocrescimentodaeconomiainformaledeempregos abaixodalinhadepobreza,eofazgerandocontinuamenteumgrande volume de trabalhadores marginais que podem ser explorados sem quaisquer escrúpulos.Ex-detentos dificilmente podem exigir algo melhor que um emprego degradante e degradado em razão das traje- tórias interrompidas,dos laços sociais esgarçados,do status jurídico ignominioso e do amplo leque de restrições legais e obrigações civis implicadas.O meio milhão de condenados que escoam das prisões americanastodososanosforneceaforçadetrabalhovulnerávelapro- priada para suprir a demanda de empregos temporários,o setor do mercado de trabalho que mais cresceu nos Estados Unidas ao longo dasduasúltimasdécadas(equerespondeporumquintodetodosos novos empregos criados desde 1984)11.O encarceramento extremo, portanto,alimenta o emprego contingente,que é a linha de frente da flexibilizaçãodotrabalhoassalariadonascamadasmaisbaixasdadis- tribuição de empregos.Além disso,a proliferação de penitenciárias nos Estados Unidos (seu número triplicou em trinta anos,e já ultra- passa4.800)contribuidiretamenteparaocrescimentoeadissemina- ção do tráfico ilícito (drogas,prostituição,produtos roubados),que sãoomotordocapitalismodepilhagemdasruas. A PRISÃO E A IMPLOSÃO DO GUETO A representação maciçamente predominante e crescente de afro- americanos em qualquer nível do aparato penal tinge a segunda fun- ção assumida pelo sistema carcerário da nova administração da pobrezanaAméricadeumacordesagradável:compensarecomplementar afalênciadoguetocomomecanismodeconfinamentodeumapopulaçãocon- siderada divergente,desonesta e perigosa,bem como supérflua no planoeconômico(imigrantesmexicanoseasiáticossãotrabalhadores maisdóceis)enoplanopolítico(negrospobresraramentevotame,de qualquer forma,o centro gravitacional eleitoral mudou das regiões centraisurbanasdecadentesparaosprósperossubúrbiosbrancos)12. Desseângulo,oencarceramentoéapenasamanifestaçãoparoxís- ticadalógicadaexclusãoetnorracialdaqualoguetotemsidoinstru- mentoeprodutodesdeasuaorigemhistórica.Duranteomeioséculo dedomíniodaeconomiaindustrialfordista(1915-1965)—paraaqual osnegroscontribuíramcomumaquantidadeindispensáveldetraba- lho não-qualificado,desde a Primeira Guerra Mundial,que pôs em 13NOVOS ESTUDOS 80 ❙❙MARÇO 2008
  • 6. [13] Kerner Commission.The Kerner report: The 1968 report of the national advisory commission on civil disorders. New York: Pantheon, 1969/1989; Harris,Fred R.e Curtis,Lynn (eds.). Lockedinthepoorhouse:Cities,race,and poverty in the United States.Lanham: Rowman & Littlefield, 1998; Wac- quant,L.Urbanoutcasts:Acomparative sociologyofadvancedmarginality.Cam- bridge:PolityPress2007. [14] White,Armond.Rebelforthehell of it: Life of Tupac Shakur. London: QuartetBooks,1997/2002. [15] Katz,MichaelB.Intheshadowof thepoorhouse:Asocialhistoryof welfare in America. New York: Basic Books, 1996, pp. 300-334; Handler, Joel e Hasenfeld,Yeheskel.We the poor peo- ple: Work, poverty, and welfare. New Haven:YaleUniversityPress,1997. marchaa“GrandeMigração”dosestadossegregacionistasdoSulpara asmetrópolesdetrabalhadoresdoNorte,atéaRevoluçãodosDireitos Civis,que finalmente lhes deu acesso às urnas (cem anos depois da abolição da escravidão) —,o gueto desempenhou o papel de “prisão social”,garantindo,assim,o ostracismo social sistemático de afro- americanos e ao mesmo tempo permitindo a exploração da sua força de trabalho na cidade.Após a crise de debilitação do gueto,simboli- zada pela grande onda de revoltas urbanas que varreram o país em meadosdadécadade1960,aprisãopreencheuoespaçoqueseabriu, servindo como um “gueto” substituto para armazenar as parcelas do (sub)proletariadonegroquetêmsidomarginalizadaspelatransiçãoà economiadeserviçosduploseàspolíticasestataisderetraçãodowel- fareederetiradadascidades13. Logo,ambas as instituições acoplaram-se e complementaram-se, poiscadaumaoperaàsuaprópriamaneiraparareforçaraseparação(o significadoetimológicodesegregare)deumacategoriaindesejada,per- cebidacomoumaameaçaduplaparaametrópole,indissociavelmente moralefísica.Eessasimbioseestruturalefuncionalentreguetoepri- são encontra uma expressão cultural surpreendente nas letras musi- caisenoestilodevidadesdenhosodosmúsicosdegangstarap,exem- plificado pelo destino trágico do cantor e compositor Tupac Shakur. Nascido na prisão,filho de um pai ausente (sua mãe,Afeni Sahkur, faziapartedosPanterasNegras),oapóstolodathuglife,heróiparauma multidãodejovensdosguetos(elegiõesdeadolescentesbrancosdos subúrbios),morreu em 1996,em Las Vegas,crivado de balas em um carro,após cair numa emboscada armada por membros da gangue rival.Antesdisso,foiacusadodeatirarcontrapoliciaisecumpriupena deoitomesesporagressãosexual.14 A PRISÃO E O WELFARE TRANSFORMADO EM WORKFARE Assimcomonoseunascimento,aprisãocomoinstituiçãoestádire- tamentevinculadaaoconjuntodeorganizaçõeseprogramasencarrega- dosdeprestar“assistência”àspopulaçõesdesfavorecidas,ealinhadaà crescente interpenetração organizacional e ideológica entre os setores penal e social do estado pós-keynesiano.Por um lado,a lógica pan- óptica e punitiva própria ao campo penal tende a contaminar e em seguidaredefinirosobjetivosemecanismosdeprestaçãodeassistên- ciapública15.Dessemodo,alémdesubstituirodireitodecriançasdes- favorecidasàassistênciaestatalpelaobrigaçãodeseuspaistrabalharem apósdoisanos,a“reformadowelfare”,endossadaporClintonem1996, sujeitaosbeneficiáriosdaassistênciapúblicaàspráticasintrusivasdo registrovitalíciodeinformaçõesecontrolerígido,bemcomoestabele- ceummonitoramentorigorosodesuascondutas—noquedizrespeito 14 DOSSIÊ SEGURANÇA PÚBLICA ❙❙Loïc Wacquant
  • 7. [16] Fuller, Torrey E. “Jails and pri- sons: America’s new mental hospi- tals”.America Journal of Public Health vol.85,n-º12,1995,pp.1611-1613. [17] Lilly,J.Robert e Knepper,Paul. “The corrections-commercial com- plex”.Crime and Delinquency,vol.39, n-º 2, 1993, pp. 150-166; Schlosser, Eric. “The prison-industrial com- plex”.The Atlantic Monthly,vol.282, dez.1998,pp.51-77;Goldberg,Eve e Evans, Linda. The prison industrial complex and the global economy. Bos- ton: Kersplebedeb, 1998. Uma cole- ção valiosa de escritos, demandas e informações de ativistas sobre os tópicosestáreunidanosite<www.pri- sonsucks.com>, administrado pela Prison Policy Initiative (sediada em Northampton,Massachusetts). àeducação,emprego,consumodedrogasesexualidade—porforçado qual podem ser acionadas sanções administrativas e criminais.Um exemplo:desde1998,naregiãocentraldeMichigan,osbeneficiáriosde programas de assistência social devem se submeter a testes de uso de drogas periódicos,da mesma forma que os condenados em liberdade condicional ou sursis.Esses testes são realizados pelo Departamento PenitenciárioEstatalembeneficiáriosepresosemliberdadecondicio- nal,todosjuntosnasmesmasinstalações.Poroutrolado,asinstalações correcionaisdevem,nolensvolens,emcondiçõesdepenúriaeemergência permanentes,enfrentar as adversidades médicas e sociais que a sua “clientela”nãoconseguiuresolverdoladodefora:nasprincipaiscida- des do país, o abrigo para sem-teto de maior capacidade e as mais amplas instalações para doentes mentais prontamente acessíveis ao subproletariadoéaprisãomunicipal16.Eamesmapopulaçãooscilade umpóloaooutrodessecontinuuminstitucional,percorrendoumatraje- tória quase fechada,que encerra sua marginalidade socioeconômica e intensificaseusensodeindignação. Finalmente, as limitações orçamentárias e a moda política de “menosgoverno”convergiramparaintensificarastendênciasdareifi- cação do welfare assim como as do encarceramento.Diversas jurisdi- ções,comooTexaseoTennessee,consignamumaparteconsiderável dosseuscondenadosaestabelecimentosprivadosesubcontratamfir- mas especializadas para a administração dos beneficiários da assis- tência pública,pois o estado não tem capacidade administrativa para implementar sua nova política de combate à pobreza. Essa é uma maneiradetornarpessoaspobreseprisioneiros(cujagrandemaioria erapobreemliberdadeevoltaráaserpobrequandolibertada)“lucra- tivos”,em termos ideológicos e econômicos.O que nós estamos tes- temunhandoaquiéagênese,nãodeum“complexoindustrialprisio- nal”,como é sugerido por alguns criminólogos,acompanhados por umcorodejornalistaseativistasdosmovimentospelajustiça,mobi- lizados contra o crescimento do Estado Penal17,mas de uma forma organizacional verdadeiramente nova,um continuum carcerário-assis- tencial em parte explorado para fins lucrativos,que é a linha de frente do Estadoliberal-paternalistanascente.Suamissãoévigiaresubjugar,e se necessário reprimir e neutralizar,as populações refratárias à nova ordemeconômicaquesegueumadivisãodotrabalhoporsexo,como seucomponentepenalvoltando-sesobretudoaoshomenseocompo- nente assistencial exercendo sua tutela sobre as mulheres e crianças (desses mesmos homens).Ao manter a tradição política americana estabelecidaduranteaeracolonial,essecorpoinstitucionalformadoe in statu nascendi é caracterizado,por um lado,pela interpenetração entranhadaentreossetorespúblicoeprivadoe,poroutro,pelafusão dasfunçõesdeestigmatização,reparaçãomoralerepressãodoEstado. 15NOVOS ESTUDOS 80 ❙❙MARÇO 2008
  • 8. [18] Por exemplo,Donziger,op.cit.; Rosenblatt, Elihu (ed.). Criminal injustice: confronting the prison crisis. Boston: South End Press, 1996; Davis,AngelaeGordon,A.F.“Globa- lism and the prison-industrial com- plex: An interview with Angela Davis”.RaceandClass,vol.40,n-ºs2-3, 1999,pp.145-157;Braz,Roseeoutros. “Overview:Critical resistance to the prison-industrial complex” (Intro- duction to a symposium on ‘The Pri- son-Industrial Complex’).Social Jus- tice,vol.27,n-º3,2000,pp.1-5. [19] A variante internacional do argumento do “complexo industrial prisional” que afirma que o aprisio- namento de “pessoas do sexo femi- nino de cor,imigrantes e indígenas” em todo o planeta se deve à colisão entreestadosecorporaçõesdeencar- ceramento privadas (Sudbury,Julia. Global lockdown: Race, gender, and the prison-industrial complex. New York: Routledge, 2005) é ainda mais im- plausível que a sua versão masculina nacional. O MITO DEMONÍACO DO “COMPLEXO INDUSTRIAL PRISIONAL” Os acadêmicos, ativistas e cidadãos comuns preocupados, ou consternados,com o crescimento desgovernado do sistema penal norte-americano não foram capazes de detectar o ancoradouro insti- tucionaltriádicodaprisãoporestaremobnubiladospelovínculoapa- rente entre encarceramento e lucro.Na década passada,o refrão da ascensão de um “complexo industrial prisional” que teria sucedido (ousuplementado)o“complexoindustrialmilitar”daGuerraFria— em que os gigantes da indústria da defesa reestruturavam-se com o abastecimento de armas para o Pentágono e,assim,proporcionavam poderdevigilânciaepuniçãoaospobres;omedodo“inimigoverme- lho” no exterior era substituído pelo temor do “inimigo negro” no interior;eosoperadoresprivadostramavamemsurdinacompolíticos e oficiais do sistema penitenciário para constituir um “subgoverno” dissimulado,quedirecionavaaexpansãocarceráriadesmedidaparaa exploração de uma força de trabalho cativa de crescimento exponen- cial — foi o leitmotiv do discurso de oposição à prisão nos Estados Unidos18.Baseadaemumavisãoconspiratóriadehistória,essateseé solapadaporquatrolacunasimportantes,quederrubamasuasignifi- cânciaanalíticaearruínamasuapertinênciaprática. Emprimeirolugar,reduzatransformaçãodúplice,conjuntaeinterativa dos componentes penal e social do campo burocrático à simples “indus- trialização” do encarceramento.Porém,a escala mutável do confina- mentonosEstadosUnidoséapenasumelementodaredefiniçãomais ampladoperímetroedasmodalidadesdaaçãodoEstadovoltadapara as“populaçõesproblemáticas”,residentesdasprofundezasdoespaço socialeurbano.Essaescalaesuaexplicaçãoestãoindissociavelmente vinculadas à transição paradigmática do welfare para o workfare.Em contraposição,apossibilidadedevínculodocapitalismoedoracismo (os dois réus favoritos do conto ativista sobre a malignidade do governo) com a “globalização” é muito ambígua,sendo que nenhum dessesdoisimensosevagos“ismos”proporcionaascondiçõesneces- sáriasesuficientesparaesseexperimentocarcerárionorte-americano inaudito e singular.Para começar,a inflação carcerária nos Estados Unidosfoidisparadamuitoantesdaaceleraçãodamobilidadedecapi- taisentreasfronteiras,e,também,outrospaísesmaisavançados,cujas economiashaviampassadoporumainternacionalizaçãosemelhante, apresentaramumcrescimentoapenasmodestodaspopulaçõescarce- rárias, alimentado pelo alongamento das sentenças, e não pelo aumentodasadmissões19.Ademais,emboraaoperaçãodosistemade justiça seja marcada pelo preconceito etnorracial,é difícil perceber como a discriminação poderia ter se intensificadodesde os anos 1970, dada a ênfase cada vez maior às salvaguardas e devidos processos 16 DOSSIÊ SEGURANÇA PÚBLICA ❙❙Loïc Wacquant
  • 9. [20] Hacker,JacobS.ThedividedWel- fareState:Thebattleoverpublicandpri- vate social benefits in the United States. New York: Cambridge University Press,2002. legaisinstituídanodespertardarevoluçãodosdireitoscivis,semfalar napresençacrescentedepoliciais,juízes,vigias,carcereiros,oficiaisde condicionalnegrosemtodososníveisdoaparatopenal. Em segundo lugar,o imaginário do “complexo industrial prisio- nal”enquadra-senopapeldeforçamotrizdosinteressespecuniários deempresasquevendemserviçosouprodutoscorrecionais,ousupos- tamente mantêm trancafiadas vastas reservas de mão-de-obra.Sus- tentaqueomotivodolucroécrucialparaoaparecimentodaprisãoem massa,quando,na verdade,esta vincula-se principal e primordial- mente a uma lógica e a um projeto políticos,ou seja,à construção de um estado pós-keynesiano,“liberal paternalista”,apto à instituição do trabalhoassalariadodessocializadoeàpropagaçãodeumaéticareno- vada de trabalho e de “responsabilidade individual” que a reforça.O lucrocomprisõesnãoéacausaprincipal,masumaconseqüênciasecun- dária e incidental do desenvolvimento hipertrófico do aparato penal. Ofatodeinteressesprivadosestaremsendobeneficiadospelaexpan- sãodasfunçõesgovernamentaisdecertonãoénovotampoucoespecí- fico ao encarceramento: a distribuição de todos os bens públicos importantesnosEstadosUnidos,desdeaeducaçãoeahabitaçãoatéa segurança e a saúde,confere um papel amplo para o terceiro setor e o setor de serviços e comércio — em relação,por exemplo,ao forneci- mentodeassistênciamédicaesocial,apuniçãopermanecesurpreen- dentemente pública20.A privatização tampouco é necessária para o crescimentocarcerário.Baniraprisãocomfinslucrativosnãoimpediu a Califórnia de se unir à corrida frenética pelo confinamento.Entre 1980e2000,o“GoldenState”testemunhousuapopulaçãodedeten- tossaltarde27milpara160mil;seuorçamentoparaosistemacarce- ráriodecuplicardeUS$400milhõesparaUS$4,2bilhões;eoquadro de funcionários de penitenciárias inchar,passando de 8.400 para 48 mil,tudoissosemabrirsequerumaúnicaprisãoprivadaparaadultos.Narea- lidade,seosoperadorescomerciaissimplesmentedesaparecessemda noite para o dia,os estados e municípios enfrentariam interrupções operacionais,emaissuperlotaçõeseobstáculosdecurtoprazoaocres- cimento,mas a prevalência e a fisionomia social do encarceramento permaneceriamintactas. Damesmaforma,adenúnciaritualdasuperexploraçãodedeten- tosemcondiçõesqueevocamumaescravidãopenalnãopodeescon- der o fato de que apenas uma parcela ínfima e estagnada da popula- ção carcerária dos Estados Unidos trabalha para empresas externas (bemmenosque1%,deacordocomascontasmaisgenerosas)eque nenhum setor econômico se apóia,nem mesmo marginalmente,em trabalhadores presos. Em relação a prisioneiros que trabalham arduamente atrás das grades para setores estatais ou federais (cerca de8%,segundoasestatísticasmaiscondescendentes),suaprodução 17NOVOS ESTUDOS 80 ❙❙MARÇO 2008
  • 10. [21] No exercício fiscal de 2001, o UNICOR,o programa de Indústrias PrisionaisFederais,empregou22.600 detentos para a produção de uma variedade de mercadorias (uniformes depolícia,capacetesdekevlar,jogosde cama e cortinas,móveis de escritório, serviços de lavanderia,encadernação, reparos de veículos,reciclagem de ele- trônicos etc.) vendidas ao governo comumrendimentode583milhõesde dólares.Apesar dos subsídios finan- ceiros,ummercadoparaaproduçãode detentos (dois terços das vendas são para o Departamento de Defesa) e saláriosmédiosmíseros,entre23cen- tavosa1,15dólarporhora,oprograma gerouumfluxodecaixanegativodeUS$ 5 milhões (Federal Bureau of Prisons. UNICOR 2001 Annual Report.Dispo- nível em <http://www.unicor.gov/ information/publications/pdfs/cor- porate/CATAR2001.pdf>, acessado em11/08/2007). [22] Goldberg e Evans, op. cit., p. 1998. [22] Zimring,FranklinE.eHawkins, Gordon J. The scale of imprisonment. Chicago: University of Chicago Press,1991,p.173. éinsignificanteeelessão“empregados”comprejuízolíquidoparao governo,aindaquesuaatividadesejamaciçamentesubsidiadaefor- temente protegida21.A despeito de seu crescimento,todavia,diante dos números brutos nacionais fica difícil concordar com o argu- mento de Goldberg e Evans22,de que o “complexo industrial prisio- nalestásetornandocadavezmaiscentralparaocrescimentodaeco- nomia norte-americana”:os US$ 57 bilhões que os Estados Unidos gastaram com prisões municipais,estaduais e federais em 2001 não chegamnemàmetadede1%doPIBdeU$10.128bilhõesdaqueleano. Longe de ser “um componente essencial da economia norte-ameri- cana”,as prisões permanecem insignificantes do ponto de vista da produçãoeservemnãocomoumestímulogeralparaoslucroscorpo- rativos,mas como um escoadouro de dinheiro dos cofres públicos e umdesviosemsentidodocapitalfinanceiro. Em terceiro lugar,a visão ativista tem como premissa um parale- lismo equivocado entre as funções de defesa nacional do Estado e administraçãopenal,quedeixadeperceberestadiferençafundamen- tal:a política militar é altamente centralizada e coordenada no plano federal,enquanto o controle da criminalidade é amplamente descen- tralizadoedispersoentreautoridadesfederais,umacentenadedepar- tamentosestaduaisdejustiçaeprisões,emilharesdeadministrações estaduaismunicipaisresponsáveispelaspolícias,tribunaisecadeias. A expressão “sistema de justiça criminal” oculta uma rede frouxa de agênciasburocráticasprovidasdeumlivre-arbítrioabrangenteedes- tituídas de uma filosofia ou política penal em comum.Ainda que um grupogovernantemíopetivesse,dealgummodo,inventadoumplano terrívelparatransformarosistemacarcerárioemumaindústrialucra- tiva,usandooscorposdospobresdepelenegracomo“matéria-prima”, não haveria uma única base de apoio que pudesse ter sido utilizada paragarantirasuarealização.Atesesimplistadequeolucrocapitalista impulsiona o crescimento carcerário deixa sem explicação os meca- nismosespecíficosquederamorigemànotávelconvergênciadasten- dênciascorrecionaisentrediferentesjurisdiçõesdosEstadosUnidos e é apenas mais um elemento que se soma ao “composto misterioso” doultra-encarceramentonacional,dadaafaltadeum“precursorpolí- ticodistintivo”22. Finalmente,constrangidapelasuaabordagemacusatória,anoção confusade“complexoindustrialprisional”nãolevaemconsideração osefeitosabrangentesdaintrodução,aindaquedeumamaneiralimi- tadaepervertida,dalógicadowelfarenointeriordouniversocarcerárioem si.As instituições correcionais foram profundamente transformadas ao longo das últimas três décadas,não apenas pelas mudanças na escala e composição da sua clientela,mas também pelo movimento dosdireitosdospresos,aracionalizaçãoeaprofissionalizaçãodocon- 18 DOSSIÊ SEGURANÇA PÚBLICA ❙❙Loïc Wacquant
  • 11. [24] Feeley, Malcolm e Rubin, Ed- ward L.Judicial policy making and the Modern State: How the courts reformed America’s prisons. New York: Cornell UniversityPress,1998. [25] Glaser, Jordan B. e Greifinger, RobertB.“Correctionalhealthcare:a public health opportunity”.Annals of Internal Medicine,vol.118,n-º 2,1993, pp.139-145. N.T. finamento,eavigilânciacadavezmaiordoserrosjudiciais24.Assim,os juízes exigiram que as autoridades das cadeias e prisões cumprissem umabateriadenormasmínimasreferentesadireitosindividuaiseser- viçosinstitucionais,oquesignificou,porexemplo,oferecereducação para presos menores de idade e atendimento psiquiátrico em massa. Mesmoqueaindadeficiente,osistemadesaúdedasprisõesmelhorou consideravelmente,apontodesersuperioraosserviçosmédicosdefi- cientes acessíveis aos condenados mais pobres do lado de fora, e atende a milhões anualmente, tanto que pesquisadores da saúde pública e oficiais governamentais consideraram o sistema carcerário umpontodeintervençãocrucialparadiagnosticaretratarumasériede doençasinfecciosascomunsempopulaçõesdebaixarenda25. CODA Escapar do paradigma angelical da imposição do cumprimento da lei e exorcizar o mito demoníaco do “complexo industrial prisio- nal” são duas etapas necessárias e complementares para localizar de forma apropriada as novas funções que a prisão carrega no sistema reconfiguradodeinstrumentosparagerirotrabalhonão-regulamen- tado,a hierarquia etnorracial e a marginalidade urbana nos Estados Unidosdosdiasdehoje.Realizaressasduasetapasrevelaquealibe- ração de um aparato penal hipertrófico e hiperativo após meados da década de 1970 não é a lâmina cega de uma “guerra contra o crime”, nem o engendramento de um acordo secreto demoníaco entre ofi- ciais públicos e corporações privadas com vistas a faturar com o encarceramento.Em vez disso,revela que o fenômeno participa da construção de um Estado reformado capaz de impor requerimentos econômicos e morais adstringentes do neoliberalismo após o des- carte do pacto social fordista-keynesiano e a implosão do gueto negro. O aparecimento dessa nova administração da pobreza de mãos dadas com o workfare restritivo e com punições expansivas exige que tiremos a prisão dos domínios técnicos da criminologia e dapolíticacriminal,eacoloquemosdiretamentenocentrodasocio- logiapolíticaedasaçõescivis. LoïcWacquantéprofessordesociologianaUniversidadedaCalifórnia,emBerkeley,epesquisa- dordoCentredeSociologieEuropéenne,Paris.PublicourecentementenoBrasiloslivrosOMistério doministério:PierreBourdieueapolíticademocrática(Revan,2005)eOndapunitiva:onovogovernodainse- gurançasocial(Revan,2007). 19NOVOS ESTUDOS 80 ❙❙MARÇO 2008 Recebidoparapublicação em25denovembrode2007. NOVOSESTUDOS CEBRAP 80,março2008 pp. 9-19