SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 14
Baixar para ler offline
CadernoCRH19, Salvador,1993
Pobreza e
cidadania
Dilemas do Brasil
contemporâneo
Vera da Silva Telles *
Este artigo aborda o enigma da
persistência e crescimento da po
breza no Brasil, que atinge até
mesmo os trabalhadores urba
nos integrados nos centros dinâ
micos da economia do país. Ao
analisá-lo,destaca o
autoritarismo, a excludência e a
incivilidade da sociedade brasi-
leira, mostrando como isto se re-
flete na vida dos trabalhadores e
de suas famílias.
A pobreza brasileira é imensa. Pode
parecer que ao dizer isso não se
está mais do que reafirmando
obviedade. No entanto, há algo de
* Professora do Departamento de
Sociologia da Universidade de São Paulo.
enigmático na persistência de uma
pobreza tão imensa e sempre cres-
cente em uma sociedade que pas-
sou por décadas de industrializa-
ção, urbanização e modernização
institucional, uma sociedade que
proclamou direitos, montou um
formidável aparato de Previdência
Social, que passou pela experiên-
cia de conflitos e mobilizações
populares e construiu mecanismos
factíveis de negociação de interes-
ses. Na verdade, a pobreza con-
temporânea parece se constituir
numa espécie de ponto cego que
escapa ao já sabido e previsto por
teorias e paradigmas conhecidos
de explicação. Ponto cego instau-
rado no centro mesmo de um Brasil
moderno, a pobreza atual arma um
novo campo de questões ao trans-
bordar dos lugares nos quais esteve
"desde sempre" configurada: nas
franjas do mercado de trabalho, no
submundo do mercado informal,
nos confins do mundo rural, num
Nordeste de pesada herança
oligárquica, em tudo o mais, en-
fim, que fornecia (e ainda fornece)
as evidências da lógica excludente
própria das circunstâncias históri-
cas que presidiram a entrada do
país no mundo capitalista. De fato,
ao lado da persistência de uma
pobreza de raízes seculares, a face
moderna da pobreza aparece regis-
trada no empobrecimento dos tra-
balhadores urbanos integrados nos
centros dinâmicos da economia do
país.
É certo que em tudo isso se tem os
efeitos mais evidentes de uma in-
flação que corrói salários, de uma
crise prolongada e de políticas eco-
nômicas que provocaram recessão
e desemprego, que induziram a um
arrocho salarial sem proporções
em outros períodos da nossa histó-
ria, que levaram à redução dos
gastos sociais e provocaram a dete-
Caderno CRH 19, Salvador, 1993
rioração de já precários e insufici-
entes serviços públicos. No entan-
to, se isso explica muito dos dile-
mas atuais, não é suficiente para
explicar as dimensões da pobreza
contemporânea. A chamada dívida
social aumentou muito nesses anos,
mas suas origens vêm de mais lon-
ge. E é precisamente nisso que
começa a se armar o enigma da
pobreza brasileira. Nos últimos 30
anos, e isso é consenso entre ana-
listas, o país construiu base econô-
mica e institucional para melhorar
as condições de vida da população
brasileira, diminuir a escala das
desigualdades sociais e viabilizar
programas de erradicação da po-
breza. Se nos anos de crescimento
econômico as chances não foram
aproveitadas, isso não se deveu,
portanto, à lógica cega da econo-
mia, mas a um jogo político muito
excludente, que repõe velhos pri-
vilégios, cria outros tantos e exclui
as maiorias. Se a pobreza contem-
porânea diz respeito aos impasses
do crescimento econômico num
país situado na periferia do mundo
capitalista, põe em foco sobretudo
a tradição conservadora e autoritá-
ria dessa sociedade.
Porém, ainda assim o enigma per
manece. Pois, conservadora e au
toritária, a sociedade brasileira sem
pre teve, para o bem ou para o mal,
a questão social no seu horizonte
político. É uma sociedade na qual
sempre existiu uma consciência
pública de uma pobreza persisten
te - a pobreza sempre apareceu no
discurso oficial, mas também nas
falas públicas de representantes
políticos e até mesmo de lideran
ças empresariais, como sinal de
desigualdades sociais
indefensáveis num país que se quer
à altura das nações do Primeiro
Mundo. Tema do debate público e
alvo privilegiado do discurso polí-
tico, a pobreza é e sempre foi nota-
da, registrada e documentada.
Poder-se-ia mesmo dizer que, tal
como uma sombra, a pobreza acom-
panha a história brasileira, com-
pondo o elenco dos problemas,
impasses e também virtualidades
de um país que fez e ainda faz do
progresso um projeto nacional. É
isso propriamente que especifica o
enigma da pobreza brasileira. Pois
espanta que essa pobreza persis-
tente, conhecida, registrada e alvo
do discurso político, não tenha sido
suficiente para constituir uma opi-
nião pública crítica capaz de mobi-
lizar vontades políticas na defesa
de padrões mínimos de vida para
que esse país mereça ser chamado
de civilizado. Sobretudo espanta
que o aumento visível da pobreza
no correr do anos nunca tenha sus-
citado um debate público sobre a
justiça e a igualdade, pondo em
foco as iniquidades inscritas na
trama social.
Como problema que inquieta e
choca a sociedade, a pobreza é
percebida como o efeito indesejado
de uma história sem autores e res-
ponsabilidades. Nesse registro,
aparece como chaga aberta a lem-
brar a todos o atraso que envergo-
nha um país que se acostumou a se
pensar como o "país do futuro", de
tal modo que a eliminação das de-
sigualdades é projetada para a
ação esclarecida de um Estado
capaz de promover crescimento e
progresso que haverão de
absorver os que foram até agora
deles excluídos. Como
espetáculo, visível por todos os
lados, a pobreza aparece, no
entanto, no registro da patologia,
seja nas evidências da destituição
dos miseráveis, que clamam pela
ação protetora e assistencial do
Estado, seja nas imagens da vio-
lência associadas à pobreza des-
mesurada e que apelam para a in-
Caderno CRH 19, Salvador, 1993
tervenção estatal preventiva, mas
sobretudo repressiva. Num regis-
tro e no outro, a pobreza é transfor-
mada em natureza, resíduo que
escapou à potência civilizadora da
modernização e que ainda tem que
ser capturado e transformado pelo
progresso. Nas suas múltiplas evi-
dências, é fixada como paisagem.
Paisagem que rememora as ori-
gens e que projeta no futuro as
possibilidades de sua redenção, a
pobreza não se atualiza como pre-
sente, ou seja, nas imagens do atra-
so, aparece como sinal de uma
ausência. E é esse o ponto: entre a
imagem do atraso e o horizonte
idealizado do progresso, a pobreza
é encenada como algo externo a
um mundo propriamente social,
como algo que não diz respeito aos
parâmetros que regem as relações
sociais.
As figuras de uma pobreza despo-
jada de dimensão ética e transfor-
mada em natureza fornecem, tal-
vez, uma chave para elucidar a
persistência de uma pobreza em
um país que, afinal de contas, dei-
xou para trás o estreito figurino da
Republica oligárquica. Seria pos-
sível dizer que essa figuração pú-
blica da pobreza diz algo de uma
sociedade na qual as distâncias
sociais são tão grandes e brutais
que parece não ser plausível uma
medida comum que permita que a
questão da justiça se coloque como
problema e critério de julgamento
nas relações sociais. Diz algo de
uma sociedade em que vigoram as
regras culturais de uma tradição
hierárquica, plasmadas em um pa-
drão de sociabilidade que obsta a
construção de um princípio de re-
ciprocidade que confira ao outro o
estatuto de sujeito de interesses
válidos e direitos legítimos. Essa é
a matriz da incivilidade que atra-
vessa de ponta a ponta a vida social
brasileira. A exploração selvagem
nas relações de trabalho é o seu
exemplo paradigmático. Mas tam-
bém o são a prepotência e o
autoritarismo nas relações de man-
do, para não falar do reiterado des-
respeito aos direitos civis das po-
pulações trabalhadoras. Incivilida-
de que se ancora num imaginário
persistente que fixa a pobreza como
marca da inferioridade, modo de
ser que descredencia indivíduos
para o exercício de seus direitos, já
que percebidos numa diferença in-
comensurável, aquém das regras
da equivalência que a formalidade
da lei supõe e o exercício dos direi-
tos deveriam concretizar, do que é
prova evidente a violência policial
que declara publicamente que nem
todos são iguais perante a lei e que
os mais elementares direitos civis
só valem para os que detém os
atributos de respeitabilidade, per-
cebidos como monopólio das "clas-
ses superiores", reservando às "clas-
ses baixas" a imposição autoritária
da ordem.
Seria um equívoco creditar tudo
isso a persistência de
tradicionalismo de tempos passa-
dos, resíduos de um Brasil arcaico.
Pois são esses termos que constro-
em a peculiaridade do Brasil mo-
derno. É certo que a sociedade
brasileira carrega todo o peso da
tradição de um país com passado
escravagista e que fez sua entrada
na modernidade capitalista no in-
terior de uma concepção patriarcal
de mando e autoridade, concepção
esta que traduz diferenças e desi-
gualdades no registro de hierarqui-
as que criam a figura do inferior
que tem o dever da obediência, que
merece o favor e proteção, mas
jamais os direitos. No entanto, se
tradições persistem, isso não
independe do modo como, aqui, a
cidadania foi formulada e
Caderno CRH 19, Salvador, 1993
institucionalizada. E é nisso que se
aloja todo o paradoxo da sociedade
brasileira. Paradoxo de um projeto
de modernidade que desfez as re-
gras da República oligárquica, que
desencadeou um vigoroso proces-
so de modernização econômica,
social e institucional, mas que re-
pôs a incivilidade nas relações so-
ciais. Pois, nos anos 30, a conces-
são de direitos trabalhistas e a mon-
tagem de um formidável sistema
de proteção social tiraram a popu-
lação trabalhadora do arbítrio, até
então sem limites, do poder patro-
nal, para jogá-la por inteiro sob a
tutela estatal. Trata-se de um pecu-
liar modelo de cidadania,
dissociado dos direitos políticos e
também das regra da equivalência
jurídica, tendo sido definida estri-
tamente nos termos de um igual
direito à proteção do Estado, atra-
vés dos direitos sociais, como re-
compensa ao cumprimento com o
dever do trabalho.
Se é possível falar de um paradoxo
da sociedade brasileira, este não
está propriamente no descompasso
entre a existência formal de direi-
tos e a realidade da destituição das
maiorias, mas no que esse
descompasso revela da lógica que
preside a atribuição de direitos. O
paradoxo está nesse modelo de ci-
dadania que proclama a justiça
como dever do Estado, mas desfaz
os efeitos igualitários dos direitos e
repõe na esfera social desigualda-
des, hierarquias e exclusões. É nes-
sa trama de que são feitos os direi-
tos que também se explicita o pon-
to cego de nossa ainda recente de-
mocracia. Pois essa é uma experi-
ência de cidadania que não cons-
truiu um vínculo propriamente ci-
vil entre indivíduos, grupos e clas-
ses. Sob o risco do exagero, se
poderia dizer que a essa concepção
de justiça desvinculada das moder-
nas noções de igualdade e projeta-
da como tarefa exclusiva do Esta-
do, corresponde uma sociedade que
não consegue se constituir plena-
mente como sociedade civil, se por
isso entendermos não apenas uma
sociedade que se estrutura nas re-
gras que organizam interesses pri-
vados, mas uma sociedade na qual
as relações sociais sejam mediadas
pelo reconhecimento de direitos e
representação de interesses, de tal
modo que se torne factível a cons-
trução de espaços públicos que con-
firam legitimidade aos conflitos e
nos quais a medida do justo e do
injusto venha a ser objeto do deba-
te e de uma permanente negocia-
ção.
É certo que no transcorrer dos anos
80, avanços notáveis ocorreram
nesse sentido. O fortalecimento de
organizações sindicais e associa-
ções populares, a multiplicação de
greves e movimentos sociais, con-
formaram os termos de uma expe-
riência inédita na história brasilei-
ra, em que a cidadania é buscada
como luta e conquista e a reivindi-
cação interpela a sociedade na exi-
gência de uma negociação possí-
vel, aberta ao reconhecimento dos
interesses e das razões que dão
plausibilidade às aspirações por um
trabalho mais digno, por uma vida
mais decente e por uma sociedade
mais civilizada nas suas formas de
sociabilidade. No entanto, é preci-
so que se diga que os avanços são
frágeis e as conquistas são difíceis
numa sociedade regida por uma
gramática social muito excludente,
em que o eventual atendimento de
reivindicações está longe de con-
solidar direitos como referência
normativa nas relações sociais, em
que, por isso mesmo, práticas de
representação e negociação se ge-
neralizam com dificuldade para
além dos grupos mais organizados.
CadernoCRH19,Salvador,1993
E disso, as tendências em curso no
mercado de trabalho são provam ais
do que evidente. No início dos anos
80, o fortalecimento dos sindicatos
e das organizações operárias, num
contexto de democratização da
sociedade brasileira, tornaram
inviável a manutenção de um pa-
drão despótico de organização do
trabalho, de tal modo que as em-
presas se viram constrangidas a se
abrirem às gráfica de negociação.
Mas isso não foi suficiente para
atingir trabalhadores fora da área
de atuação dos sindicatos mais ati-
vos, trabalhadores que experimen-
tam periférica ou intermitentemen-
te a mobilização operária e que
vivem circunstâncias de trabalho e
de vida subtraídas do poder de in-
terpelação da reivindicação sindi-
cal. E tampouco foi suficiente para
democratizar o espaço fabril. O
autoritarismo permanece, o arbí-
trio patronal e mais do que fre-
quente e as práticas de negociação
não chegaram a redefinir um pa-
drão de gestão da força de trabalho,
regido pelo controle disciplinar,
pela contenção dos salários em es-
calas sempre muito baixas e pela
prática rotineira da rotatividade
(Carvalho, Schimith, 1990; Gui-
marães, Castro, 1990). Com o
aprofundamento da crise econômi-
ca, há exemplos conhecidos de
empresas que retrocederam na aber-
tura às negociações e há indicações
de que para se ajustar às circuns-
tancias adversas da economia, o
desemprego ainda é, como sempre
foi, a estratégia que predomina,
mas com a peculiaridade de que
vem se associando, cada vez mais,
ao uso crescente de mão de obra
fora dos padrões convencionais de
contrato, seja pelo emprego sem
vínculo legal de trabalho, seja pela
prática da subcontratação, seja ain-
da pelo uso do trabalho temporário
em atividades ligadas à produção.
São esses os termos pelos quais
vem sendo aplicada a chamada
flexibilização do trabalho, modo
de escapar da pressão sindical, de
se liberar dos custos trabalhistas e
ampliar ainda mais a autonomia
nas práticas de demissão (Cf.
Troyanno, 1991.
E isso já nos introduz ao núcleo
mesmo da questão. Pois essa soci-
edade civil por assim dizer
inacabada, se projeta por inteiro na
pauperização que define o hori-
zonte mais do que provável de
parcelas majoritárias aos trabalha-
dores integrados no mercado de
trabalho. Com exceção talvez de
um segmento mais qualificado,
mais valorizado e mais preservado
em seus empregos, uma ampla
maioria dos trabalhadores tem uma
trajetória regida pela insegurança,
pela instabilidade e mesmo preca-
riedade nos vínculos que chegam a
estabelecer com o trabalho1
. São
trabalhadores que transitam o tem-
po todo entre empresas diferentes,
que permanecem muito pouco tem-
po nos empregos que conseguem,
que têm, por isso mesmo, poucas
chances de se fixar em profissões
ou ocupações definidas e que estão
sempre, real ou virtualmente,
tangenciando o mercado informal
através do trabalho irregular e pre-
cário como alternativa de sobrevi-
vência nas circunstâncias de de-
semprego prolongado. O que cha-
ma a atenção nisso tudo é a vigên-
cia de um padrão de funcionamen-
to do mercado de trabalho que não
1. As questões apresentadas a seguir, bem
como a base empírica que as sustenta, foram
apresentadas e desenvolvidas in: TELLES,
Vera da Silva. A cidadania inexistente: inci-
vilidade e pobreza. São Paulo: Tese (Douto-
rado) Universidade de São Paulo, 1992.
Caderno CRH 19, Salvador, 1993
preserva, expulsa e, no limite,
dilapida o potencial produtivo da
força de trabalho. É isso certamen-
te a contrapartida de um capitalis-
mo que construiu um padrão histó-
rico de acumulação sustentado
numa força de trabalho barata,
abundante e facilmente
substituível. Mas isso é sobretudo
revelador de uma trama social que
se abre com dificuldades para a
mediação representativa de inte-
resses. E isso é importante de se
notar. É aqui que se especifica a
pobreza como algo que diz respei-
to não apenas à legião dos miserá-
veis, esses que já ultrapassaram o
que se convencionou definir como
linha da pobreza. A pobreza não é
simplesmente fruto de circunstân-
cias que afetam determinados indi-
víduos (ou famílias) desprovidos
de recursos que o qualifiquem para
o mercado de trabalho. O
pauperismo está inscrito nas regras
que organizam a vida social. É isso
que permite dizer que a pobreza
não e apenas uma condição de ca-
rência, passível de ser medida por
indicadores sociais. É antes de mais
nada uma condição de privação de
direitos, que define formas de exis-
tência e modos de sociabilidade.
Parece claro que salários baixos,
instabilidade, desemprego e
subemprego são circunstâncias
geradoras de pauperização. Porém
esta não significa apenas degrada-
ção de condições materiais de vida.
Pois esses trabalhadores que pas-
sam de um emprego a outro, que
têm trajetórias descontínuas, mar-
cadas pelo desemprego e pelas al-
ternativas de trabalho fora das re-
gras formais de contrato, no limite,
perdem o estatuto mesmo de traba-
lhador, em função desse perma-
nente curto-circuito que o mercado
produz no vínculo que chegam a
estabelecer com o trabalho. Pre-
sentes no mercado de trabalho, suas
identidades não se completam in-
teiramente, já que privados dessa
espécie de acabamento simbólico
implicado no exercício de direitos
e na prática da representação sindi-
cal, acabamento simbólico que
constrói parâmetros de semelhan-
ça, identificação e reconhecimen-
to. Sem essa mediação representa-
tiva - representativa no duplo sen-
tido - em um mercado que desfaz,
o tempo todo, a trama por onde
identidades se completam ou po-
deriam se completar nas formas de
seu reconhecimento, esses traba-
lhadores, se já não estão efetiva-
mente, estão sempre no limiar des-
sa fronteira além da qual ganham
forma as figuras de uma pobreza
incivil. Figuras estas que acionam
um imaginário coletivo que asso-
cia desordem, violência e crime a
essa gente percebida sem lugar na
sociedade.
Nisso se explicita o sentido mais
perverso de uma tradição de cida-
dania fundada no trabalho regular
e regulamentado por lei, como con-
dição de acesso aos direitos soci-
ais. A posse de uma carteira de
trabalho, mais do que uma evidên-
cia trabalhista, opera como uma
espécie de rito de passagem para a
existência civil. Rito de passagem
que revela o que Bourdieu define
como poder simbólico de nomea-
ção, que cria identidades sociais,
que faz indivíduos, grupos ou clas-
ses existirem socialmente, que lhes
atribui um modo de ser em socie-
dade, mas que no mesmo ato, joga
para uma existência bastarda,
indiferenciada, todos os que não
foram ungidos pelo poder do nome.
Na tradição brasileira, a regra for-
mal que prescreve o acesso aos
direitos sociais desdobra-se em algo
como uma lei moral que julga a
pertinência do indivíduo na vida
Caderno CRH 19, Salvador, 1993
em sociedade, o seu direito a exis-
tir socialmente e a ser reconhecido
como cidadão: para ter direitos e
acesso a uma existência legítima, o
indivíduo tem que provar ser um
trabalhador responsável, com uma
trajetória ocupacional identificável
em seus registros, persistente na
vida laboriosa e cumpridor de seus
deveres. De que isso seja
consubstanciai a essa espécie de
"ritual de instituição", criador de
identidades sociais legítimas e re-
conhecidas, é prova a suspeita que
recai sobre todos os que não apre-
sentam os credenciais de reconhe-
cimento e que têm, por isso mes-
mo, uma existência social
indiferenciada na sua ilegitimida-
de, sempre sujeitos à repressão
policial. De que isso forneça os
critérios e categorias através dos
quais as diferenças sociais são per-
cebidas e julgadas na vida social é
prova a aceitação tácita na socie-
dade brasileira da carteira de traba-
lho como sinal de uma respeitabi-
lidade e honestidade que redime o
trabalhador do estigma da pobreza.
De que isso, ainda, componha os
horizontes simbólicos do mundo
social, é prova essa curiosa expres-
são popular do "procurar os direi-
tos". No universo cultural popular,
os direitos são percebidos como
prerrogativa exclusiva daqueles
que, por oposição aos que "não são
direitos", se sabem bons cidadãos
porque trabalham honestamente,
cumprem suas obrigações, têm fi-
cha limpa na polícia e carteira de
trabalhado assinada (Cf. Caldeira,
1984).
Singular percepção dos direitos essa
que não traduz uma consciência
cidadã, mas que é formulada nos
termos do dever e da prescrição
moral, no que se explicita uma
experiência histórica de cidadania
que foi escrita em negativo, que
define o cidadão pela ordem de
suas obrigações e que contêm na
própria enunciação dos direitos, o
princípio da criminalização.
A perda do estatuto de trabalhador
significa a perda do estatuto de
cidadania. Aqui, se faz notar a ou-
tra ponta em que uma experiência
de cidadania que não é conjugada
com direitos civis, mostra seus efei-
tos. É curioso perceber como os
avanços das lutas sociais no país
não corresponderam a movimen-
tos pela defesa dos direitos civis. Já
se notou que no imaginário coleti-
vo, os direitos sociais são especial-
mente valorizados, sem que o mes-
mo ocorra com os direitos indivi-
duais. Estes, quando não são sim-
plesmente desconhecidos, são per-
cebidos numa lógica muito peculi-
ar, no registro do privilégio dos que
detêm posições de poder na socie-
dade. Daí essa expressão - "a justi-
ça é coisa de rico" - tão corriqueira
no universo popular. Mas daí tam-
bém o espantoso deslizamento que
sofre o discurso dos direitos huma-
nos quando este ganha a cena pú-
blica, entrando em um terreno mi-
nado em que experiência, tradi-
ções e o imaginário se encontram
para decodificar os direitos civis
nos termos de uma defesa do crime
e dos criminosos, na percepção de
que esses direitos nada mais ser-
vem do que para acobertar a impu-
nidade e defender aqueles que não
merecem mais do que a repressão
aberta e a punição exemplar (Cf.
Caldeira, 1991). Certamente, isso
tem a ver com uma experiência
histórica que se fez ao revés da
tradição liberal da equivalência
jurídica formal e que construiu a
figura do indivíduo, base da mo-
derna concepção de direitos. A ri-
gor, este não tem lugar na socieda-
de brasileira, já que sua identidade
é atribuída pelo vínculo profissio-
Caderno CRH 19, Salvador, 1993
nal sacramentado pela lei e que o
qualifica para o exercício dos di-
reitos. Porém, talvez o mais impor-
tante, é que isso traduz a matriz
histórica de uma sociedade que
não foi submetida à revolução igua-
litária de que falava Tocqueville e
na qual as leis, ao contrário dos
modelos clássicos conhecidos, não
foram feitas para dissolver, mas
para preservar privilégios dos "do-
nos do poder" (Cf. Da Matta, 1987;
Chauí, 1987). Essa matriz históri-
ca, sempre reatualizada na história
brasileira e isso ainda hoje, se tra-
duz numa experiência da legalida-
de que se faz como experiência do
arbítrio, nos usos autoritários da lei
que, ao invés de igualar e garantir
direitos, é utilizada freqüentemente
como instrumento de sujeição, re-
pondo hierarquias onde deveriam
prevalecer os valores modernos da
igualdade e da justiça.
Numa sociedade que instituiu a
experiência insólita do arbítrio le-
gal (Cf. Chauí, 1987), é obstruída a
construção da lei como referência
- referência real, referência simbó-
lica - de uma igualdade prometida
para todos, alimentando a crença
na capacidade da legalidade de di-
rimir conflitos, impor limites ao
arbítrio do poder e garantir as reci-
procidades que a noção de igualda-
de supõe. Sem isso, é difícil
imagi-nar o surgimento de uma
cultura cívica e de movimentos
pela defesa de direitos civis.
Poder-se-ia dizer que nessa
equação entre cidadania e civismo
que não se realiza, se aloja boa
parte das dificuldades de
enraizamento da democracia
brasileira nas práticas sociais, nas
dificuldades que isso introduz para
a generalização de uma consciên-
cia de direitos.
Mas é aqui também que se esclare-
ce o drama desse trabalhador que,
perdendo o vínculo formal com o
trabalho, perde seu lugar na socie-
dade: não é trabalhador, não é cida-
dão e não tem existência civil. Se-
ria possível argumentar que, ape-
sar de representarem uma parcela
considerável - e crescente, nesses
anos de recessão - da população
trabalhadora, estão longe de cons-
tituírem uma maioria, ao menos
numa cidade como São Paulo, ca-
racterizada por um mercado de tra-
balho estruturado e onde o vínculo
formal de trabalho predomina (ain-
da predomina) de modo inequívo-
co. Porém, se a referência a esses
trabalhadores interessa, é porque,
no seu paroxismo, põem em foco a
dinâmica de uma sociedade que,
no limite, joga as maiorias numa
espécie de estado de natureza. Ao
contrário, portanto, da imagem -
imagem recorrente na tradição bra-
sileira - de uma oposição entre
Brasil legal e Brasil real, não se
trata de leis que não funcionam e
que são como que revogadas soci-
ologicamente por uma realidade
que não se ajusta à racionalidade
abstrata das regras formais. Pois
exclusões e hierarquias são repos-
tas no modo mesmo como a legali-
dade se institui na sociedade brasi-
leira. Em outros termos, é na pró-
pria experiência do mundo público
da lei, que o trabalhador é destitu-
ído dos credenciais de reconheci-
mento, é transfigurado nas ima-
gens do pobre inferior - e, para
muitos, do pobre incivil.
Se é possível falar de um estado de
natureza, não é porque aqui vigo-
ram a violência e a desordem, sen-
do estas, nunca é demais enfatizar,
imagens que se desenham num
horizonte simbólico que atualiza a
persistente tradição de
criminalização da pobreza e, por
essa via, produz as evidências que
alimentam a certeza de que o "po-
Caderno CRH 19, Salvador, 1993
bre" não está credenciado para a
vida civilizada. Esse estado de na-
tureza diz respeito a um mundo
social no qual os direitos não exis-
tem como regra de sociabilidade;
um mundo no qual a Justiça não
existe como instância conhecida e
reconhecida na sua capacidade de
dirimir conflitos e garantir direitos
nas circunstâncias de quebra das
regras da equidade; um mundo so-
cial no qual a lei não existe como
referência a partir da qual os sofri-
mentos cotidianos possam ser tra-
duzidos (e desprivatizados) na lin-
guagem pública da igualdade e da
justiça. Um mundo no qual a sobre-
vivência cotidiana depende intei-
ramente dos recursos materiais, das
energias morais e das solidarieda-
des que cada qual é capaz de mobi-
lizar e que se organiza em torno de
princípios inteiramente projetados
da vida privada, com suas lealda-
des e fidelidades pessoais, com
seus vínculos afetivos e sua teia
multifacetada de identificações e
sociabilidade.
É aqui que se determina toda a
importância que a família, ainda
hoje no Brasil moderno, ocupa nas
formas de vida das classes traba-
lhadoras. Numa sociedade que não
abre lugar para o indivíduo e o
cidadão, uma sociedade na qual a
insegurança, a violência e a incivi-
lidade são a regra da vida social, é
em torno da família que homens e
mulheres constroem uma ordem
plausível de vida: é espaço que a
viabiliza a sobrevivência cotidiana
através do esforço coletivo de to-
dos os seus membros; é espaço no
qual constroem os sinais de uma
respeitabilidade que neutraliza o
estigma da pobreza; é espaço ainda
no qual elaboram um sentido de
dignidade que compensa moral-
mente as adversidades impostas
pelos salários baixos, pelo trabalho
instável e pelo desemprego perió-
dico.
No ponto em que os imperativos da
sobrevivência se encontram com
as regras culturais que organizam
modos de vida, se estrutura um
universo moral que faz da família
algo como uma garantia ética num
mundo em que tudo parece amea-
çar as possibilidades de uma vida
digna. A valorização da "família
unida", tão presente no universo
popular, pode ser tomado como
indicação nesse sentido. O material
etnográfico hoje disponível mostra
que a casa limpa e bem cuidada,
atributos associados a uma família
organizada em suas hierarquias
internas, constroem as referências
tangíveis a partir dos quais homens
e mulheres se reconhecem como
sujeitos morais, capazes de fazer
frente às adversidades da vida e,
"apesar da pobreza", garantir uma
dignidade e respeitabilidade, que
os diferenciam moralmente dos que
foram pegos pela "maldição da
pobreza", que sucumbiram diante
dos azares do destino, que vivem à
deriva dos acasos da vida, sem
conseguir estruturar suas vidas em
torno do trabalho regular e da famí-
lia organizada (Cf. Caldeira, 1984;
Zaluar, 1985). É nesse jogo ambi-
valente de identificações e diferen-
ciações que são construídas as fi-
guras do "pobre porém honesto" e
do "trabalhador responsável" por-
que cumpridor de seus deveres e
compromissos familiares. Mais do
que a incorporação evidente dos
estigmas da pobreza, chama aten-
ção nisso tudo a construção de uma
ordem de vida inteiramente proje-
tada das reciprocidades morais da
vida privada. É nisso que se faz ver
os sinais de uma privatização de
experiências que não conseguem
ser formuladas na linguagem pú-
blica dos direitos. Aqui, a privação
Caderno CRH 19, Salvador, 1993
de direitos transparece por inteiro
num horizonte simbólico de causa-
lidades e responsabilidades que
transfere para a ordem moral pri-
vada as condições de possibilidade
de uma vida "bem sucedida".
A importância da família como
ordem de vida coloca algumas
questões para serem discutidas.
Mostra que direitos, lei e cidadania
dizem respeito a algo mais do que
os problemas da engenharia
institucional da qual depende uma
forma de governo. Inscrevem-se
por inteiro nos modos de existên-
cia, nas formas de vida e nas regras
da sociabilidade, no modo como
identidades são construídas e per-
cebidos os lugares simbólicos de
pertinência na vida social. É por
esse ângulo que se faz notar os
efeitos dessa peculiar experiência
de cidadania que não generaliza
direitos, que não chega a plasmar
as regras da civilidade e os termos
de identidades cidadãs. É preciso
que se diga, também, que é por esse
ângulo que se pode identificar o
ineditismo das lutas sociais recen-
tes, ineditismo pelo que rompem
ou prometem romper com o peso
dessa tradição enraizada na dinâ-
mica mesmo da sociedade, mon-
tando referências identificatórias e
construindo uma teia representati-
va por onde circulam reivindica-
ções e por onde homens e mulheres
podem virtualmente se reconhe-
cer, para usar os termos de Hannah
Arendt, no seu direito a ter direitos.
É por esse ângulo, enfim, que a
sociedade brasileira contemporâ-
nea se abre à percepção de todas as
suas ambivalências, numa promes-
sa de modernidade capaz de rede-
finir direitos, lei e justiça como
parâmetro nas relações sociais e
que convive, numa combinação por
vezes desconcertante, com privilé-
gios, exclusões e discriminações
que carregam o peso de toda uma
tradição histórica. Seja como for, é
na dinâmica mesmo da sociedade,
dinâmica feita na interseção entre
a lei e a cultura, a norma e as
tradições, a experiência e o imagi-
nário, que se circunscreve a pobre-
za como condição de existência.
Para retomar as questões aqui dis-
cutidas, nesse ponto em que direi-
tos (ou melhor, a inexistência de-
les) afetam formas de vida, a ques-
tão da família pode esclarecer algo
do drama da pobreza, para além
das referências genéricas aos salá-
rios baixos, ao desemprego e ao
trabalho instável.
Em primeiro lugar, no que se refere
às condições materiais de vida, a
importância da família põe em foco
o frágil equilíbrio em que estão
estruturadas as condições da vida
familiar. Qualquer "acaso", seja o
desemprego ou a deterioração das
condições de salário e trabalho,
seja a doença, a invalidez ou a
morte dos provedores principais,
pode jogar as famílias nas frontei-
ras da miséria. Em outras palavras,
se a sobrevivência cotidiana de-
pende de um esforço coletivo, as
condições vigentes no mercado (e
na sociedade) terminam por desfa-
zer - real ou virtualmente - a eficá-
cia possível das estratégias famili-
ares. É isso que permite dizer que
a insegurança é elemento definidor
de formas de vida. É isso sobretudo
que permite dizer que as histórias
familiares transcorrem nessa
liminaridade, em que a ameaça da
miséria não significa apenas de-
gradação de condições de vida,
mas se projeta no horizonte dessa
pobreza incivil que fornece a or-
dem das razões para toda a suspeita
que recai sobre suas vidas, de tal
forma que a batalha pela sobrevi-
vência e também esforço, sempre
reiterado, para garantir uma digni-
Caderno CRH 19, Salvador, 1993
dade ameaçada. Talvez por aí se
tenha uma chave para compreen-
der a valorização da família unida,
bem como as figuras do "pobre
honesto" e do "trabalhador respon-
sável" que povoam o universo po-
pular. São valores e representações
que prescrevem as fronteiras do
que homens e mulheres percebem
como uma ordem legítima de vida.
Mas que também podem ser toma-
dos como sinais de uma experiên-
cia de insegurança e de ameaça
constante de pauperização que fi-
cam sem palavras para serem no-
meadas fora de um sentido de des-
tino construído na dimensão priva-
da da vida social.
E isso já nos introduz a uma segun-
da questão. Sabe-se que as necessi-
dades da sobrevivência terminam
por mobilizar todos os membros
familiares para o mercado de tra-
balho. Isso pode parecer uma
obviedade, tal a evidência dos fa-
tos. Mas há nisso algo mais do que
uma simples trivialidade. Pois na
ausência de direitos que garantam
poder de barganha no mercado de
trabalho, ou seja, salários decentes
e garantias de emprego, na ausên-
cia de políticas sociais que garan-
tam a sobrevivência nas situações
de desemprego, mas também de
doença, de invalidez e de velhice,
nessas circunstâncias todos - ho-
mens e mulheres, adultos, crianças
e velhos - são virtualmente trans-
formados em força de trabalho ati-
va no mercado. É certo que para a
entrada no mercado de trabalho
não há a compulsão cega e muda
das necessidades. Além dos limi-
tes próprios ao ciclo vital de cada
um, atuam disposições normativas,
normas culturais e valores morais
que definem a disponibilidade de
cada um para o mercado. Seja
como for, o processo de
proletarização mobiliza a família
como coletivo,
sem que haja regras que definam as
condições de entrada e saída do
mercado. Os únicos limites são
dados por essa esfera em que natu
reza e cultura se encontram na cons
tituição da família como espaço de
sobrevivência, mas também de so-
ciabilidade e construção de identi
dades. Limites, portanto, fora, de
um espaço propriamente civil, es
paço construído pelo "artifício hu
mano" que são as leis e os direitos
que regem - ou deveriam reger - a
vida social, fornecendo ao mesmo
tempo os parâmetros e a medida a
partir da qual situações de vida e
trabalho possam ser
problematizadas e julgadas nas suas
exigências de equidade. E esse é o
ponto sobre o qualvaleria sedeter.
Sabemos que a teia de desigualda-
des e exclusões plasmadas no mer-
cado afeta diferenciadamente ho-
mens e mulheres, adultos, jovens e
crianças, numa lógica em que a
privação de direitos se articula com
estigmas de sexo e idade (e outros,
como os de cor e origem) que
sedimentam diferenças em discri-
minações diversas. Sabemos tam-
bém que são inúmeras as clivagens
de qualificação e salário produzi-
das por um processo de trabalho
que diferencia e hierarquiza a força
de trabalho sob critérios no mais
das vezes arbitrários, mas regidos
por uma razão disciplinadora. No
entanto, na ausência de uma medi-
da possível de equivalência entre
situações diversas, medida esta que
só poderia ser dada pelos direitos,
medida portanto que só poderia
existir por referência aos valores
de justiça e igualdade, as desigual-
dades e discriminações se pulveri-
zam em diferenciações que pare-
cem nada mais do que corresponder
aos azares de cada um e às diferen-
ças naturais de vocação, talento,
capacidadeedisposiçãoparaotra-
Caderno CRH 19, Salvador, 1993
balho. Nesse caso, o chamadomer-
cado informal é elucidativo: esse é
um mundo que parece flutuar ao
acaso de circunstâncias sem
explicitar suas relações com as es-
truturas de poder e dominação na
sociedade, um mundo onde não
existe contrato formal de trabalho,
direitos sociais e representação pro-
fissional, um mundo, portanto, sem
medida por onde necessidades e
interesses possam se universalizar
como demandas e reivindicações
coletivas.
Porém, nem por isso a experiência
que esses homens e mulheres fa-
zem da sociedade se fecha à per-
cepção de uma injustiça inscrita
em suas vidas. Num certo sentido,
a importância da família e dos có-
digos morais que estruturam suas
vidas, podem ser tomados como
sinal de uma privatização que pa-
rece fixá-los no mundo das dife-
renças e hierarquias naturais. No
entanto, esse é um mundo que não
se fecha inteiramente como natu-
reza. Diante do destino comum do
"ser pobre", há a percepção de um
espaço de autonomia no qual atra-
vés da ação, deliberação e
discernimento podem se afirmar e
se reconhecer como sujeitos que,
pelas suas qualidades e virtudes
morais, são capazes de contornar
as adversidades da vida. Se a ótica
moral predomina, isso não seria
possível sem uma noção de indiví-
duo capaz de deliberação e esco-
lha. É nesse modo de se perceber
nas virtualidades de um sujeito
moral que a experiência da pobre-
za se abre a percepção de uma
injustiça instalada no mundo. Mas
é uma injustiça percebida doponto
de vista da moralidade pessoal.
Aparece como ruptura das recipro-
cidades morais que se espera numa
vida em sociedade, ruptura vivida
no esforçonão recompensado,no
trabalho que não é valorizado, na
remuneração que não corresponde
à dignidade de um chefe de famí-
lia, nas autoridades que tratam o
trabalhador honesto como margi-
nal, no desrespeito e descaso que
recebem em troca do "dever cum-
prido", na polícia que confunde o
trabalhador com o bandido, na lei
que penaliza os fracos e protege os
poderosos, na justiça que não fun-
ciona, que condena os desgraçados
da sorte e deixa impunes os crimi-
nosos.
Impossível, aqui, deixar de comen-
tar que, se existe alguma relação
entre pobreza e criminalidade, esta
relação está configurada em uma
sociedade que rompe,o tempo todo,
com o que se poderia chamar, tal-
vez com alguma imprecisão, de
um pacto social implícito que cons-
trói um sentido de pertinência e dá
uma medida de plausibilidade à
vida em sociedade. Essa é uma
questão que se coloca abertamente
para os mais jovens, que se lançam
no mercado de trabalho sem en-
contrar muitas alternativas além
do trabalho desqualificado, instá-
vel e precário, que são duramente
atingidos pelo desemprego, que são
vistos com suspeita, sendo alvo
privilegiado da violência policial,
precisamente porque não carregam
os sinais de respeitabilidade asso-
ciados ao "trabalhador honesto" e
"chefe de família responsável". As
pesquisas mostram, de fato, que é
nessa difícil passagem para a mai-
oridade que a delinqüência se colo-
ca no horizonte desses jovens que
não enxergam muitas possibilida-
des de organizar suas vidas em
torno de um trabalho promissor e
para os quais, ainda, a família está
distante de se constituir nessa espé-
cie de recompensa moral aos "tem-
pos difíceis" (Cf. Zaluar, 1985).
No interior da família, a
Caderno CRH 19, Salvador, 1993
ambivalência inscrita na trajetória
desses jovens transparece, por in-
teiro, no temor que homens e mu-
lheres manifestam quanto ao de-
semprego e subemprego de seus
filhos, situações percebidas como
fonte de ameaça de desestruturação
de um projeto de vida que se orga-
niza quase que exclusivamente nes-
sa frágil - e difícil - relação entre o
trabalho regular e a família organi-
zada.
Seja como for, se a experiência que
fazem da sociedade existe como
insegurança, quando não de vio-
lência, aqui, nesse registro, da rup-
tura das reciprocidades esperadas
na vida social, aparece como de-
sordem. Desordem que desestrutura
estratégias de vida através das quais
buscam conferir dignidade às suas
vidas. Desordem, também e sobre-
tudo, que rompe com os equilíbrios
morais projetados da vida privada
e por onde imaginam uma ordem
social justa que retribua a cada um
conforme o seu valor e o seu esfor-
ço. O problema aqui não é a exis-
tência de uma noção de justiça
pensada nos termos das reciproci-
dades morais, mesmo porque esse
é o substrato de toda reivindicação
por igualdade e justiça. O proble-
ma está na dificuldade de investir a
esperança de justiça na esfera mun-
dana das leis e traduzi-las na lin-
guagem pública dos direitos, como
exigência coletiva que cobra da
sociedade suas responsabilidades
nas circunstâncias que afetam suas
vidas. Não é de estranhar, portanto,
que no imaginário popular as ex-
pectativas de justiça sejam
transferidas para a idéia de um
governo forte e onisciente, capaz
de ouvir as necessidades dos mais
fracos e restaurar os equilíbrios
desfeitos pela ganância dos ricos e
abuso dos poderosos. As pesquisas
mostram que as imagens de um
governo justiceiro traduzem uma
noção de justiça que se elabora no
interior de um universo moral e se
articula com as esperanças de re-
denção alimentadas na crença em
uma Providência, instrumento do
Bem e da Justiça no mundo dos
homens. É nessa articulação que se
ergue a expectativa de que surja
uma vontade generosa, capaz de
resolver o paradoxo ético da virtu-
de não recompensada e da vitória
da injustiça, restaurando os equilí-
brios morais desfeitos pela malda-
de, avareza e ganância dos homens
(Cf. Montes, 1983). Como parece
claro, a tradição tutelar brasileira
encontra ressonância nesse univer-
so cultural, de tal modo que não
deveria causar estranheza o
surgimento periódico na nossa his-
tória, incluindo os anos mais re-
centes, de figuras públicas trans-
formadas em "heróis salvadores",
da mesma forma que não deveria
causar espanto o apelo popular que,
ainda hoje, no Brasil moderno, tem
o discurso populista.
Arcaísmos da sociedade brasilei-
ra? Talvez. Porém, seria mais pro-
dutivo pensar que o problema não
está num suposto atraso e
tradicionalismo das classes popu-
lares, que esse arcaísmo, se é que
faz sentido colocar nesses termos,
está alojado no interior de uma
modernidade incompleta, travada,
que não se realiza plenamente, no
sentido da constituição de uma so-
ciedade na qual homens e mulhe-
res pudessem descobrir o sentido
do espaço público como espaço no
qual a igualdade e a justiça se
realizam na prática democrática da
permanente e reiterada negocia-
ção.
CadernoCRH19,Salvador,1993
Referências
bibliográficas
CALDEIRA, Teresa.
1984 A política dos outros. O cotidiano
dos moradores da periferia e o que
pensam do poder e dos poderosos. São
Paulo: Brasiliense.
TROYANNO, Annez Andraus.
1991 Flexibilidade do emprego
assalariado. São Paulo em Perspectiva,
São Paulo, n.5, p.84-95, abr./jun.
ZALUAR.Alba.
1985 A máquina e a revolta: as
organizações populares e o significado da
pobreza. São Paulo: Brasiliense.
21
1991 Direitos humanos ou "privilégio"
de bandidos? Novos Estudos CEBRAP.
São Paulo, n.30, p.162-174, jul.
CHAUÍ, Marilena. 1987 Conformismo e
resistência: aspectos da cultura popular
no Brasil. 2.ed. São Paulo: Brasiliense.
CARVALHO, Rui Castro, SCHMIT,
Hubert.
1990 O fordismo está vivo no Brasil.
Novos Estudos CEBRAP, São Paulo,
n.27,p.l48-156, jul.
DA MATTA, Roberto.
1987 A casa e a rua: espaço,
cidadania, mulher e morte no Brasil. São
Paulo: Brasiliense.
GUIMARÃES, Antonio Sergio, CASTRO,
Nadya Araujo.
1990 Trabalho, sindicalismo e
reconversão industrial no Brasil dos anos
90. Lua Nova. Revista de Cultura e
Política, São Paulo, n.22, p.207-228,
dez.
MONTES, Maria Lúcia. 1983 Lazer e
ideologia: a representa-ção do social e do
político na cultura popular. São Paulo:
Tese (Doutorado) Universidade de São
Paulo.
TELLES, Vera da Silva. 1992 A
cidadania inexistente:
incivilidade e pobreza. São
Paulo: Tese (Doutorado)
Universidade de São Paulo.

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

O terceiro setor em favelas do Rio de Janeiro
O terceiro setor em favelas do Rio de JaneiroO terceiro setor em favelas do Rio de Janeiro
O terceiro setor em favelas do Rio de JaneiroFavela é isso aí
 
Jornal CAHIS - Julho/ Agosto
Jornal CAHIS - Julho/ AgostoJornal CAHIS - Julho/ Agosto
Jornal CAHIS - Julho/ AgostoFellipe Soares
 
A crise brasileira
A crise brasileiraA crise brasileira
A crise brasileirapaulorbt
 
Tipos de argumentos
Tipos de argumentosTipos de argumentos
Tipos de argumentoshipolitus
 
Manifestações nas ruas, as eleições em 2014 e a política do Bem X Mal
Manifestações nas ruas, as eleições em 2014 e a política do Bem X Mal Manifestações nas ruas, as eleições em 2014 e a política do Bem X Mal
Manifestações nas ruas, as eleições em 2014 e a política do Bem X Mal UFPB
 
Preconceito de cor e racismo no brasil1
Preconceito de cor e racismo no brasil1Preconceito de cor e racismo no brasil1
Preconceito de cor e racismo no brasil1Geraa Ufms
 
Proposta de redação Preconceito
Proposta de redação PreconceitoProposta de redação Preconceito
Proposta de redação PreconceitoProfFernandaBraga
 
Slide livro Sociologia ensino médio capitulo 09 do Tomazi
Slide livro Sociologia ensino médio capitulo 09 do TomaziSlide livro Sociologia ensino médio capitulo 09 do Tomazi
Slide livro Sociologia ensino médio capitulo 09 do Tomazipascoalnaib
 
Cenários do futuro político do brasil
Cenários do futuro político do brasilCenários do futuro político do brasil
Cenários do futuro político do brasilFernando Alcoforado
 
O brasil não superará a crise atual sem a refundação da república
O brasil não superará a crise atual sem a refundação da repúblicaO brasil não superará a crise atual sem a refundação da república
O brasil não superará a crise atual sem a refundação da repúblicaFernando Alcoforado
 
Aula 2 Mercado de trabalho e desigualdades- 2º Sociologia - Prof. Noe Assunção
Aula 2   Mercado de trabalho e desigualdades- 2º Sociologia - Prof. Noe AssunçãoAula 2   Mercado de trabalho e desigualdades- 2º Sociologia - Prof. Noe Assunção
Aula 2 Mercado de trabalho e desigualdades- 2º Sociologia - Prof. Noe AssunçãoProf. Noe Assunção
 
Cenários da crise política no brasil
Cenários da crise política no brasilCenários da crise política no brasil
Cenários da crise política no brasilFernando Alcoforado
 
O inevitável fim do governo dilma rousseff no brasil
O inevitável fim do governo dilma rousseff no brasilO inevitável fim do governo dilma rousseff no brasil
O inevitável fim do governo dilma rousseff no brasilFernando Alcoforado
 
Bss entrevista istoé
Bss entrevista istoéBss entrevista istoé
Bss entrevista istoéjlexeni
 

Mais procurados (17)

O terceiro setor em favelas do Rio de Janeiro
O terceiro setor em favelas do Rio de JaneiroO terceiro setor em favelas do Rio de Janeiro
O terceiro setor em favelas do Rio de Janeiro
 
Capítulo 9 do livro de Sociologia
Capítulo 9 do livro de Sociologia Capítulo 9 do livro de Sociologia
Capítulo 9 do livro de Sociologia
 
Unidade14
Unidade14Unidade14
Unidade14
 
Jornal CAHIS - Julho/ Agosto
Jornal CAHIS - Julho/ AgostoJornal CAHIS - Julho/ Agosto
Jornal CAHIS - Julho/ Agosto
 
A crise brasileira
A crise brasileiraA crise brasileira
A crise brasileira
 
Tipos de argumentos
Tipos de argumentosTipos de argumentos
Tipos de argumentos
 
Manifestações nas ruas, as eleições em 2014 e a política do Bem X Mal
Manifestações nas ruas, as eleições em 2014 e a política do Bem X Mal Manifestações nas ruas, as eleições em 2014 e a política do Bem X Mal
Manifestações nas ruas, as eleições em 2014 e a política do Bem X Mal
 
Preconceito de cor e racismo no brasil1
Preconceito de cor e racismo no brasil1Preconceito de cor e racismo no brasil1
Preconceito de cor e racismo no brasil1
 
Proposta de redação Preconceito
Proposta de redação PreconceitoProposta de redação Preconceito
Proposta de redação Preconceito
 
Slide livro Sociologia ensino médio capitulo 09 do Tomazi
Slide livro Sociologia ensino médio capitulo 09 do TomaziSlide livro Sociologia ensino médio capitulo 09 do Tomazi
Slide livro Sociologia ensino médio capitulo 09 do Tomazi
 
Cenários do futuro político do brasil
Cenários do futuro político do brasilCenários do futuro político do brasil
Cenários do futuro político do brasil
 
Escravidão exclusão
Escravidão exclusãoEscravidão exclusão
Escravidão exclusão
 
O brasil não superará a crise atual sem a refundação da república
O brasil não superará a crise atual sem a refundação da repúblicaO brasil não superará a crise atual sem a refundação da república
O brasil não superará a crise atual sem a refundação da república
 
Aula 2 Mercado de trabalho e desigualdades- 2º Sociologia - Prof. Noe Assunção
Aula 2   Mercado de trabalho e desigualdades- 2º Sociologia - Prof. Noe AssunçãoAula 2   Mercado de trabalho e desigualdades- 2º Sociologia - Prof. Noe Assunção
Aula 2 Mercado de trabalho e desigualdades- 2º Sociologia - Prof. Noe Assunção
 
Cenários da crise política no brasil
Cenários da crise política no brasilCenários da crise política no brasil
Cenários da crise política no brasil
 
O inevitável fim do governo dilma rousseff no brasil
O inevitável fim do governo dilma rousseff no brasilO inevitável fim do governo dilma rousseff no brasil
O inevitável fim do governo dilma rousseff no brasil
 
Bss entrevista istoé
Bss entrevista istoéBss entrevista istoé
Bss entrevista istoé
 

Semelhante a Pobreza e cidadania no Brasil contemporâneo

Raízes
RaízesRaízes
Raízesmhmcrj
 
Pobreza no brasil contemporâneo e formas de seu enfrentamento
Pobreza no brasil contemporâneo e formas de seu enfrentamentoPobreza no brasil contemporâneo e formas de seu enfrentamento
Pobreza no brasil contemporâneo e formas de seu enfrentamentoRosane Domingues
 
Desigualdades google doc
Desigualdades google docDesigualdades google doc
Desigualdades google docliliandb
 
Acefaleia e o deficit habitacional
Acefaleia e o deficit habitacionalAcefaleia e o deficit habitacional
Acefaleia e o deficit habitacionalFernando Zornitta
 
Pobreza Resultado de Uma Máquina Política Desumanizada
Pobreza Resultado de Uma Máquina Política DesumanizadaPobreza Resultado de Uma Máquina Política Desumanizada
Pobreza Resultado de Uma Máquina Política DesumanizadaAniervson Santos
 
Acefaleia e o deficit habitacional
Acefaleia e o deficit habitacionalAcefaleia e o deficit habitacional
Acefaleia e o deficit habitacionalFernando Zornitta
 
Os contrates da realidade brasileira grupo
Os contrates da realidade brasileira   grupoOs contrates da realidade brasileira   grupo
Os contrates da realidade brasileira grupoPolly Pinto
 
Sawaia, bader as artimanhas da exclusao
Sawaia, bader   as artimanhas da exclusaoSawaia, bader   as artimanhas da exclusao
Sawaia, bader as artimanhas da exclusaomarcaocampos
 
Palestra na Escola Lacaniana de Psicanálise- RJ
Palestra na Escola Lacaniana de Psicanálise- RJPalestra na Escola Lacaniana de Psicanálise- RJ
Palestra na Escola Lacaniana de Psicanálise- RJPaulo Hartung
 
BRITO_Transicao_democrafica_Brasil_2008.pdf
BRITO_Transicao_democrafica_Brasil_2008.pdfBRITO_Transicao_democrafica_Brasil_2008.pdf
BRITO_Transicao_democrafica_Brasil_2008.pdfAlexandre Asada
 
Política e Sociedade no Brasil
Política e Sociedade no BrasilPolítica e Sociedade no Brasil
Política e Sociedade no BrasilPaulo Hartung
 
Oligarquias partidárias brasileiras
Oligarquias partidárias brasileirasOligarquias partidárias brasileiras
Oligarquias partidárias brasileirasJustino Amorim
 
Oligarquias partidárias brasileiras
Oligarquias partidárias brasileirasOligarquias partidárias brasileiras
Oligarquias partidárias brasileirasJustino Amorim
 
A classe média realidade e ficção
A classe média realidade e ficçãoA classe média realidade e ficção
A classe média realidade e ficçãoElisio Estanque
 

Semelhante a Pobreza e cidadania no Brasil contemporâneo (20)

Raízes
RaízesRaízes
Raízes
 
Pobreza no brasil contemporâneo e formas de seu enfrentamento
Pobreza no brasil contemporâneo e formas de seu enfrentamentoPobreza no brasil contemporâneo e formas de seu enfrentamento
Pobreza no brasil contemporâneo e formas de seu enfrentamento
 
Desigualdades google doc
Desigualdades google docDesigualdades google doc
Desigualdades google doc
 
Conselhos e suas
Conselhos e suasConselhos e suas
Conselhos e suas
 
O eclipse da razão no brasil
O eclipse da razão no brasilO eclipse da razão no brasil
O eclipse da razão no brasil
 
Acefaleia e o deficit habitacional
Acefaleia e o deficit habitacionalAcefaleia e o deficit habitacional
Acefaleia e o deficit habitacional
 
Gota d'Agua
Gota d'AguaGota d'Agua
Gota d'Agua
 
Pobreza Resultado de Uma Máquina Política Desumanizada
Pobreza Resultado de Uma Máquina Política DesumanizadaPobreza Resultado de Uma Máquina Política Desumanizada
Pobreza Resultado de Uma Máquina Política Desumanizada
 
Acefaleia e o deficit habitacional
Acefaleia e o deficit habitacionalAcefaleia e o deficit habitacional
Acefaleia e o deficit habitacional
 
190 745-1-pb
190 745-1-pb190 745-1-pb
190 745-1-pb
 
Os contrates da realidade brasileira grupo
Os contrates da realidade brasileira   grupoOs contrates da realidade brasileira   grupo
Os contrates da realidade brasileira grupo
 
Sawaia, bader as artimanhas da exclusao
Sawaia, bader   as artimanhas da exclusaoSawaia, bader   as artimanhas da exclusao
Sawaia, bader as artimanhas da exclusao
 
516 an 24_março_2015.ok (1)
516 an 24_março_2015.ok (1)516 an 24_março_2015.ok (1)
516 an 24_março_2015.ok (1)
 
Palestra na Escola Lacaniana de Psicanálise- RJ
Palestra na Escola Lacaniana de Psicanálise- RJPalestra na Escola Lacaniana de Psicanálise- RJ
Palestra na Escola Lacaniana de Psicanálise- RJ
 
BRITO_Transicao_democrafica_Brasil_2008.pdf
BRITO_Transicao_democrafica_Brasil_2008.pdfBRITO_Transicao_democrafica_Brasil_2008.pdf
BRITO_Transicao_democrafica_Brasil_2008.pdf
 
Política e Sociedade no Brasil
Política e Sociedade no BrasilPolítica e Sociedade no Brasil
Política e Sociedade no Brasil
 
Oligarquias partidárias brasileiras
Oligarquias partidárias brasileirasOligarquias partidárias brasileiras
Oligarquias partidárias brasileiras
 
Oligarquias partidárias brasileiras
Oligarquias partidárias brasileirasOligarquias partidárias brasileiras
Oligarquias partidárias brasileiras
 
Redações
RedaçõesRedações
Redações
 
A classe média realidade e ficção
A classe média realidade e ficçãoA classe média realidade e ficção
A classe média realidade e ficção
 

Mais de NandaTome

Norma%20 operacional%20de%20rh suas
Norma%20 operacional%20de%20rh suasNorma%20 operacional%20de%20rh suas
Norma%20 operacional%20de%20rh suasNandaTome
 
Interlocuções entre a psicologia e pnas
Interlocuções entre a psicologia  e pnasInterlocuções entre a psicologia  e pnas
Interlocuções entre a psicologia e pnasNandaTome
 
Cartilha psi e as suas
Cartilha psi e as suasCartilha psi e as suas
Cartilha psi e as suasNandaTome
 
5º encontro
5º encontro5º encontro
5º encontroNandaTome
 
Ações Socioeduc na assist social
Ações Socioeduc na assist socialAções Socioeduc na assist social
Ações Socioeduc na assist socialNandaTome
 
Formulario ingresso scfv
Formulario ingresso scfvFormulario ingresso scfv
Formulario ingresso scfvNandaTome
 
Trabalho educativo _2004[1]
Trabalho educativo _2004[1]Trabalho educativo _2004[1]
Trabalho educativo _2004[1]NandaTome
 
Projeto SASE 2004
Projeto SASE 2004 Projeto SASE 2004
Projeto SASE 2004 NandaTome
 
Relatório de gestão 2012 do serviço de proteção e atendimento integral à fam...
Relatório de gestão 2012 do  serviço de proteção e atendimento integral à fam...Relatório de gestão 2012 do  serviço de proteção e atendimento integral à fam...
Relatório de gestão 2012 do serviço de proteção e atendimento integral à fam...NandaTome
 
Relatório CMAS 2012
Relatório CMAS 2012Relatório CMAS 2012
Relatório CMAS 2012NandaTome
 
Prontuariosuasmds[1][1]
Prontuariosuasmds[1][1]Prontuariosuasmds[1][1]
Prontuariosuasmds[1][1]NandaTome
 
Orientação projeto vivendo proto alegre
Orientação projeto vivendo proto alegreOrientação projeto vivendo proto alegre
Orientação projeto vivendo proto alegreNandaTome
 
Oficina%20 em%20garanhuns%20vigil%c3%a2ncia%20social
Oficina%20 em%20garanhuns%20vigil%c3%a2ncia%20socialOficina%20 em%20garanhuns%20vigil%c3%a2ncia%20social
Oficina%20 em%20garanhuns%20vigil%c3%a2ncia%20socialNandaTome
 
Nob suas 2012
Nob suas 2012Nob suas 2012
Nob suas 2012NandaTome
 
Microsoft word diretrizes técnicas para o processo de trabalho nos cras u…
Microsoft word   diretrizes técnicas para o processo de trabalho nos cras u…Microsoft word   diretrizes técnicas para o processo de trabalho nos cras u…
Microsoft word diretrizes técnicas para o processo de trabalho nos cras u…NandaTome
 
Demandas da assist%c3%8a_ncia_na_rela%c3%87%c3%83o[1]
Demandas da assist%c3%8a_ncia_na_rela%c3%87%c3%83o[1]Demandas da assist%c3%8a_ncia_na_rela%c3%87%c3%83o[1]
Demandas da assist%c3%8a_ncia_na_rela%c3%87%c3%83o[1]NandaTome
 
Dados pacto gestao[1]
Dados pacto gestao[1]Dados pacto gestao[1]
Dados pacto gestao[1]NandaTome
 
Cronograma comite gestor
Cronograma comite gestorCronograma comite gestor
Cronograma comite gestorNandaTome
 
Cronograma alinhamento conceitual
Cronograma alinhamento conceitualCronograma alinhamento conceitual
Cronograma alinhamento conceitualNandaTome
 
Protocolo de gestao_integrada_de_servicos-_beneficios_e_transferencias_de_ren...
Protocolo de gestao_integrada_de_servicos-_beneficios_e_transferencias_de_ren...Protocolo de gestao_integrada_de_servicos-_beneficios_e_transferencias_de_ren...
Protocolo de gestao_integrada_de_servicos-_beneficios_e_transferencias_de_ren...NandaTome
 

Mais de NandaTome (20)

Norma%20 operacional%20de%20rh suas
Norma%20 operacional%20de%20rh suasNorma%20 operacional%20de%20rh suas
Norma%20 operacional%20de%20rh suas
 
Interlocuções entre a psicologia e pnas
Interlocuções entre a psicologia  e pnasInterlocuções entre a psicologia  e pnas
Interlocuções entre a psicologia e pnas
 
Cartilha psi e as suas
Cartilha psi e as suasCartilha psi e as suas
Cartilha psi e as suas
 
5º encontro
5º encontro5º encontro
5º encontro
 
Ações Socioeduc na assist social
Ações Socioeduc na assist socialAções Socioeduc na assist social
Ações Socioeduc na assist social
 
Formulario ingresso scfv
Formulario ingresso scfvFormulario ingresso scfv
Formulario ingresso scfv
 
Trabalho educativo _2004[1]
Trabalho educativo _2004[1]Trabalho educativo _2004[1]
Trabalho educativo _2004[1]
 
Projeto SASE 2004
Projeto SASE 2004 Projeto SASE 2004
Projeto SASE 2004
 
Relatório de gestão 2012 do serviço de proteção e atendimento integral à fam...
Relatório de gestão 2012 do  serviço de proteção e atendimento integral à fam...Relatório de gestão 2012 do  serviço de proteção e atendimento integral à fam...
Relatório de gestão 2012 do serviço de proteção e atendimento integral à fam...
 
Relatório CMAS 2012
Relatório CMAS 2012Relatório CMAS 2012
Relatório CMAS 2012
 
Prontuariosuasmds[1][1]
Prontuariosuasmds[1][1]Prontuariosuasmds[1][1]
Prontuariosuasmds[1][1]
 
Orientação projeto vivendo proto alegre
Orientação projeto vivendo proto alegreOrientação projeto vivendo proto alegre
Orientação projeto vivendo proto alegre
 
Oficina%20 em%20garanhuns%20vigil%c3%a2ncia%20social
Oficina%20 em%20garanhuns%20vigil%c3%a2ncia%20socialOficina%20 em%20garanhuns%20vigil%c3%a2ncia%20social
Oficina%20 em%20garanhuns%20vigil%c3%a2ncia%20social
 
Nob suas 2012
Nob suas 2012Nob suas 2012
Nob suas 2012
 
Microsoft word diretrizes técnicas para o processo de trabalho nos cras u…
Microsoft word   diretrizes técnicas para o processo de trabalho nos cras u…Microsoft word   diretrizes técnicas para o processo de trabalho nos cras u…
Microsoft word diretrizes técnicas para o processo de trabalho nos cras u…
 
Demandas da assist%c3%8a_ncia_na_rela%c3%87%c3%83o[1]
Demandas da assist%c3%8a_ncia_na_rela%c3%87%c3%83o[1]Demandas da assist%c3%8a_ncia_na_rela%c3%87%c3%83o[1]
Demandas da assist%c3%8a_ncia_na_rela%c3%87%c3%83o[1]
 
Dados pacto gestao[1]
Dados pacto gestao[1]Dados pacto gestao[1]
Dados pacto gestao[1]
 
Cronograma comite gestor
Cronograma comite gestorCronograma comite gestor
Cronograma comite gestor
 
Cronograma alinhamento conceitual
Cronograma alinhamento conceitualCronograma alinhamento conceitual
Cronograma alinhamento conceitual
 
Protocolo de gestao_integrada_de_servicos-_beneficios_e_transferencias_de_ren...
Protocolo de gestao_integrada_de_servicos-_beneficios_e_transferencias_de_ren...Protocolo de gestao_integrada_de_servicos-_beneficios_e_transferencias_de_ren...
Protocolo de gestao_integrada_de_servicos-_beneficios_e_transferencias_de_ren...
 

Pobreza e cidadania no Brasil contemporâneo

  • 1. CadernoCRH19, Salvador,1993 Pobreza e cidadania Dilemas do Brasil contemporâneo Vera da Silva Telles * Este artigo aborda o enigma da persistência e crescimento da po breza no Brasil, que atinge até mesmo os trabalhadores urba nos integrados nos centros dinâ micos da economia do país. Ao analisá-lo,destaca o autoritarismo, a excludência e a incivilidade da sociedade brasi- leira, mostrando como isto se re- flete na vida dos trabalhadores e de suas famílias. A pobreza brasileira é imensa. Pode parecer que ao dizer isso não se está mais do que reafirmando obviedade. No entanto, há algo de * Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo. enigmático na persistência de uma pobreza tão imensa e sempre cres- cente em uma sociedade que pas- sou por décadas de industrializa- ção, urbanização e modernização institucional, uma sociedade que proclamou direitos, montou um formidável aparato de Previdência Social, que passou pela experiên- cia de conflitos e mobilizações populares e construiu mecanismos factíveis de negociação de interes- ses. Na verdade, a pobreza con- temporânea parece se constituir numa espécie de ponto cego que escapa ao já sabido e previsto por teorias e paradigmas conhecidos de explicação. Ponto cego instau- rado no centro mesmo de um Brasil moderno, a pobreza atual arma um novo campo de questões ao trans- bordar dos lugares nos quais esteve "desde sempre" configurada: nas franjas do mercado de trabalho, no submundo do mercado informal, nos confins do mundo rural, num Nordeste de pesada herança oligárquica, em tudo o mais, en- fim, que fornecia (e ainda fornece) as evidências da lógica excludente própria das circunstâncias históri- cas que presidiram a entrada do país no mundo capitalista. De fato, ao lado da persistência de uma pobreza de raízes seculares, a face moderna da pobreza aparece regis- trada no empobrecimento dos tra- balhadores urbanos integrados nos centros dinâmicos da economia do país. É certo que em tudo isso se tem os efeitos mais evidentes de uma in- flação que corrói salários, de uma crise prolongada e de políticas eco- nômicas que provocaram recessão e desemprego, que induziram a um arrocho salarial sem proporções em outros períodos da nossa histó- ria, que levaram à redução dos gastos sociais e provocaram a dete-
  • 2. Caderno CRH 19, Salvador, 1993 rioração de já precários e insufici- entes serviços públicos. No entan- to, se isso explica muito dos dile- mas atuais, não é suficiente para explicar as dimensões da pobreza contemporânea. A chamada dívida social aumentou muito nesses anos, mas suas origens vêm de mais lon- ge. E é precisamente nisso que começa a se armar o enigma da pobreza brasileira. Nos últimos 30 anos, e isso é consenso entre ana- listas, o país construiu base econô- mica e institucional para melhorar as condições de vida da população brasileira, diminuir a escala das desigualdades sociais e viabilizar programas de erradicação da po- breza. Se nos anos de crescimento econômico as chances não foram aproveitadas, isso não se deveu, portanto, à lógica cega da econo- mia, mas a um jogo político muito excludente, que repõe velhos pri- vilégios, cria outros tantos e exclui as maiorias. Se a pobreza contem- porânea diz respeito aos impasses do crescimento econômico num país situado na periferia do mundo capitalista, põe em foco sobretudo a tradição conservadora e autoritá- ria dessa sociedade. Porém, ainda assim o enigma per manece. Pois, conservadora e au toritária, a sociedade brasileira sem pre teve, para o bem ou para o mal, a questão social no seu horizonte político. É uma sociedade na qual sempre existiu uma consciência pública de uma pobreza persisten te - a pobreza sempre apareceu no discurso oficial, mas também nas falas públicas de representantes políticos e até mesmo de lideran ças empresariais, como sinal de desigualdades sociais indefensáveis num país que se quer à altura das nações do Primeiro Mundo. Tema do debate público e alvo privilegiado do discurso polí- tico, a pobreza é e sempre foi nota- da, registrada e documentada. Poder-se-ia mesmo dizer que, tal como uma sombra, a pobreza acom- panha a história brasileira, com- pondo o elenco dos problemas, impasses e também virtualidades de um país que fez e ainda faz do progresso um projeto nacional. É isso propriamente que especifica o enigma da pobreza brasileira. Pois espanta que essa pobreza persis- tente, conhecida, registrada e alvo do discurso político, não tenha sido suficiente para constituir uma opi- nião pública crítica capaz de mobi- lizar vontades políticas na defesa de padrões mínimos de vida para que esse país mereça ser chamado de civilizado. Sobretudo espanta que o aumento visível da pobreza no correr do anos nunca tenha sus- citado um debate público sobre a justiça e a igualdade, pondo em foco as iniquidades inscritas na trama social. Como problema que inquieta e choca a sociedade, a pobreza é percebida como o efeito indesejado de uma história sem autores e res- ponsabilidades. Nesse registro, aparece como chaga aberta a lem- brar a todos o atraso que envergo- nha um país que se acostumou a se pensar como o "país do futuro", de tal modo que a eliminação das de- sigualdades é projetada para a ação esclarecida de um Estado capaz de promover crescimento e progresso que haverão de absorver os que foram até agora deles excluídos. Como espetáculo, visível por todos os lados, a pobreza aparece, no entanto, no registro da patologia, seja nas evidências da destituição dos miseráveis, que clamam pela ação protetora e assistencial do Estado, seja nas imagens da vio- lência associadas à pobreza des- mesurada e que apelam para a in-
  • 3. Caderno CRH 19, Salvador, 1993 tervenção estatal preventiva, mas sobretudo repressiva. Num regis- tro e no outro, a pobreza é transfor- mada em natureza, resíduo que escapou à potência civilizadora da modernização e que ainda tem que ser capturado e transformado pelo progresso. Nas suas múltiplas evi- dências, é fixada como paisagem. Paisagem que rememora as ori- gens e que projeta no futuro as possibilidades de sua redenção, a pobreza não se atualiza como pre- sente, ou seja, nas imagens do atra- so, aparece como sinal de uma ausência. E é esse o ponto: entre a imagem do atraso e o horizonte idealizado do progresso, a pobreza é encenada como algo externo a um mundo propriamente social, como algo que não diz respeito aos parâmetros que regem as relações sociais. As figuras de uma pobreza despo- jada de dimensão ética e transfor- mada em natureza fornecem, tal- vez, uma chave para elucidar a persistência de uma pobreza em um país que, afinal de contas, dei- xou para trás o estreito figurino da Republica oligárquica. Seria pos- sível dizer que essa figuração pú- blica da pobreza diz algo de uma sociedade na qual as distâncias sociais são tão grandes e brutais que parece não ser plausível uma medida comum que permita que a questão da justiça se coloque como problema e critério de julgamento nas relações sociais. Diz algo de uma sociedade em que vigoram as regras culturais de uma tradição hierárquica, plasmadas em um pa- drão de sociabilidade que obsta a construção de um princípio de re- ciprocidade que confira ao outro o estatuto de sujeito de interesses válidos e direitos legítimos. Essa é a matriz da incivilidade que atra- vessa de ponta a ponta a vida social brasileira. A exploração selvagem nas relações de trabalho é o seu exemplo paradigmático. Mas tam- bém o são a prepotência e o autoritarismo nas relações de man- do, para não falar do reiterado des- respeito aos direitos civis das po- pulações trabalhadoras. Incivilida- de que se ancora num imaginário persistente que fixa a pobreza como marca da inferioridade, modo de ser que descredencia indivíduos para o exercício de seus direitos, já que percebidos numa diferença in- comensurável, aquém das regras da equivalência que a formalidade da lei supõe e o exercício dos direi- tos deveriam concretizar, do que é prova evidente a violência policial que declara publicamente que nem todos são iguais perante a lei e que os mais elementares direitos civis só valem para os que detém os atributos de respeitabilidade, per- cebidos como monopólio das "clas- ses superiores", reservando às "clas- ses baixas" a imposição autoritária da ordem. Seria um equívoco creditar tudo isso a persistência de tradicionalismo de tempos passa- dos, resíduos de um Brasil arcaico. Pois são esses termos que constro- em a peculiaridade do Brasil mo- derno. É certo que a sociedade brasileira carrega todo o peso da tradição de um país com passado escravagista e que fez sua entrada na modernidade capitalista no in- terior de uma concepção patriarcal de mando e autoridade, concepção esta que traduz diferenças e desi- gualdades no registro de hierarqui- as que criam a figura do inferior que tem o dever da obediência, que merece o favor e proteção, mas jamais os direitos. No entanto, se tradições persistem, isso não independe do modo como, aqui, a cidadania foi formulada e
  • 4. Caderno CRH 19, Salvador, 1993 institucionalizada. E é nisso que se aloja todo o paradoxo da sociedade brasileira. Paradoxo de um projeto de modernidade que desfez as re- gras da República oligárquica, que desencadeou um vigoroso proces- so de modernização econômica, social e institucional, mas que re- pôs a incivilidade nas relações so- ciais. Pois, nos anos 30, a conces- são de direitos trabalhistas e a mon- tagem de um formidável sistema de proteção social tiraram a popu- lação trabalhadora do arbítrio, até então sem limites, do poder patro- nal, para jogá-la por inteiro sob a tutela estatal. Trata-se de um pecu- liar modelo de cidadania, dissociado dos direitos políticos e também das regra da equivalência jurídica, tendo sido definida estri- tamente nos termos de um igual direito à proteção do Estado, atra- vés dos direitos sociais, como re- compensa ao cumprimento com o dever do trabalho. Se é possível falar de um paradoxo da sociedade brasileira, este não está propriamente no descompasso entre a existência formal de direi- tos e a realidade da destituição das maiorias, mas no que esse descompasso revela da lógica que preside a atribuição de direitos. O paradoxo está nesse modelo de ci- dadania que proclama a justiça como dever do Estado, mas desfaz os efeitos igualitários dos direitos e repõe na esfera social desigualda- des, hierarquias e exclusões. É nes- sa trama de que são feitos os direi- tos que também se explicita o pon- to cego de nossa ainda recente de- mocracia. Pois essa é uma experi- ência de cidadania que não cons- truiu um vínculo propriamente ci- vil entre indivíduos, grupos e clas- ses. Sob o risco do exagero, se poderia dizer que a essa concepção de justiça desvinculada das moder- nas noções de igualdade e projeta- da como tarefa exclusiva do Esta- do, corresponde uma sociedade que não consegue se constituir plena- mente como sociedade civil, se por isso entendermos não apenas uma sociedade que se estrutura nas re- gras que organizam interesses pri- vados, mas uma sociedade na qual as relações sociais sejam mediadas pelo reconhecimento de direitos e representação de interesses, de tal modo que se torne factível a cons- trução de espaços públicos que con- firam legitimidade aos conflitos e nos quais a medida do justo e do injusto venha a ser objeto do deba- te e de uma permanente negocia- ção. É certo que no transcorrer dos anos 80, avanços notáveis ocorreram nesse sentido. O fortalecimento de organizações sindicais e associa- ções populares, a multiplicação de greves e movimentos sociais, con- formaram os termos de uma expe- riência inédita na história brasilei- ra, em que a cidadania é buscada como luta e conquista e a reivindi- cação interpela a sociedade na exi- gência de uma negociação possí- vel, aberta ao reconhecimento dos interesses e das razões que dão plausibilidade às aspirações por um trabalho mais digno, por uma vida mais decente e por uma sociedade mais civilizada nas suas formas de sociabilidade. No entanto, é preci- so que se diga que os avanços são frágeis e as conquistas são difíceis numa sociedade regida por uma gramática social muito excludente, em que o eventual atendimento de reivindicações está longe de con- solidar direitos como referência normativa nas relações sociais, em que, por isso mesmo, práticas de representação e negociação se ge- neralizam com dificuldade para além dos grupos mais organizados.
  • 5. CadernoCRH19,Salvador,1993 E disso, as tendências em curso no mercado de trabalho são provam ais do que evidente. No início dos anos 80, o fortalecimento dos sindicatos e das organizações operárias, num contexto de democratização da sociedade brasileira, tornaram inviável a manutenção de um pa- drão despótico de organização do trabalho, de tal modo que as em- presas se viram constrangidas a se abrirem às gráfica de negociação. Mas isso não foi suficiente para atingir trabalhadores fora da área de atuação dos sindicatos mais ati- vos, trabalhadores que experimen- tam periférica ou intermitentemen- te a mobilização operária e que vivem circunstâncias de trabalho e de vida subtraídas do poder de in- terpelação da reivindicação sindi- cal. E tampouco foi suficiente para democratizar o espaço fabril. O autoritarismo permanece, o arbí- trio patronal e mais do que fre- quente e as práticas de negociação não chegaram a redefinir um pa- drão de gestão da força de trabalho, regido pelo controle disciplinar, pela contenção dos salários em es- calas sempre muito baixas e pela prática rotineira da rotatividade (Carvalho, Schimith, 1990; Gui- marães, Castro, 1990). Com o aprofundamento da crise econômi- ca, há exemplos conhecidos de empresas que retrocederam na aber- tura às negociações e há indicações de que para se ajustar às circuns- tancias adversas da economia, o desemprego ainda é, como sempre foi, a estratégia que predomina, mas com a peculiaridade de que vem se associando, cada vez mais, ao uso crescente de mão de obra fora dos padrões convencionais de contrato, seja pelo emprego sem vínculo legal de trabalho, seja pela prática da subcontratação, seja ain- da pelo uso do trabalho temporário em atividades ligadas à produção. São esses os termos pelos quais vem sendo aplicada a chamada flexibilização do trabalho, modo de escapar da pressão sindical, de se liberar dos custos trabalhistas e ampliar ainda mais a autonomia nas práticas de demissão (Cf. Troyanno, 1991. E isso já nos introduz ao núcleo mesmo da questão. Pois essa soci- edade civil por assim dizer inacabada, se projeta por inteiro na pauperização que define o hori- zonte mais do que provável de parcelas majoritárias aos trabalha- dores integrados no mercado de trabalho. Com exceção talvez de um segmento mais qualificado, mais valorizado e mais preservado em seus empregos, uma ampla maioria dos trabalhadores tem uma trajetória regida pela insegurança, pela instabilidade e mesmo preca- riedade nos vínculos que chegam a estabelecer com o trabalho1 . São trabalhadores que transitam o tem- po todo entre empresas diferentes, que permanecem muito pouco tem- po nos empregos que conseguem, que têm, por isso mesmo, poucas chances de se fixar em profissões ou ocupações definidas e que estão sempre, real ou virtualmente, tangenciando o mercado informal através do trabalho irregular e pre- cário como alternativa de sobrevi- vência nas circunstâncias de de- semprego prolongado. O que cha- ma a atenção nisso tudo é a vigên- cia de um padrão de funcionamen- to do mercado de trabalho que não 1. As questões apresentadas a seguir, bem como a base empírica que as sustenta, foram apresentadas e desenvolvidas in: TELLES, Vera da Silva. A cidadania inexistente: inci- vilidade e pobreza. São Paulo: Tese (Douto- rado) Universidade de São Paulo, 1992.
  • 6. Caderno CRH 19, Salvador, 1993 preserva, expulsa e, no limite, dilapida o potencial produtivo da força de trabalho. É isso certamen- te a contrapartida de um capitalis- mo que construiu um padrão histó- rico de acumulação sustentado numa força de trabalho barata, abundante e facilmente substituível. Mas isso é sobretudo revelador de uma trama social que se abre com dificuldades para a mediação representativa de inte- resses. E isso é importante de se notar. É aqui que se especifica a pobreza como algo que diz respei- to não apenas à legião dos miserá- veis, esses que já ultrapassaram o que se convencionou definir como linha da pobreza. A pobreza não é simplesmente fruto de circunstân- cias que afetam determinados indi- víduos (ou famílias) desprovidos de recursos que o qualifiquem para o mercado de trabalho. O pauperismo está inscrito nas regras que organizam a vida social. É isso que permite dizer que a pobreza não e apenas uma condição de ca- rência, passível de ser medida por indicadores sociais. É antes de mais nada uma condição de privação de direitos, que define formas de exis- tência e modos de sociabilidade. Parece claro que salários baixos, instabilidade, desemprego e subemprego são circunstâncias geradoras de pauperização. Porém esta não significa apenas degrada- ção de condições materiais de vida. Pois esses trabalhadores que pas- sam de um emprego a outro, que têm trajetórias descontínuas, mar- cadas pelo desemprego e pelas al- ternativas de trabalho fora das re- gras formais de contrato, no limite, perdem o estatuto mesmo de traba- lhador, em função desse perma- nente curto-circuito que o mercado produz no vínculo que chegam a estabelecer com o trabalho. Pre- sentes no mercado de trabalho, suas identidades não se completam in- teiramente, já que privados dessa espécie de acabamento simbólico implicado no exercício de direitos e na prática da representação sindi- cal, acabamento simbólico que constrói parâmetros de semelhan- ça, identificação e reconhecimen- to. Sem essa mediação representa- tiva - representativa no duplo sen- tido - em um mercado que desfaz, o tempo todo, a trama por onde identidades se completam ou po- deriam se completar nas formas de seu reconhecimento, esses traba- lhadores, se já não estão efetiva- mente, estão sempre no limiar des- sa fronteira além da qual ganham forma as figuras de uma pobreza incivil. Figuras estas que acionam um imaginário coletivo que asso- cia desordem, violência e crime a essa gente percebida sem lugar na sociedade. Nisso se explicita o sentido mais perverso de uma tradição de cida- dania fundada no trabalho regular e regulamentado por lei, como con- dição de acesso aos direitos soci- ais. A posse de uma carteira de trabalho, mais do que uma evidên- cia trabalhista, opera como uma espécie de rito de passagem para a existência civil. Rito de passagem que revela o que Bourdieu define como poder simbólico de nomea- ção, que cria identidades sociais, que faz indivíduos, grupos ou clas- ses existirem socialmente, que lhes atribui um modo de ser em socie- dade, mas que no mesmo ato, joga para uma existência bastarda, indiferenciada, todos os que não foram ungidos pelo poder do nome. Na tradição brasileira, a regra for- mal que prescreve o acesso aos direitos sociais desdobra-se em algo como uma lei moral que julga a pertinência do indivíduo na vida
  • 7. Caderno CRH 19, Salvador, 1993 em sociedade, o seu direito a exis- tir socialmente e a ser reconhecido como cidadão: para ter direitos e acesso a uma existência legítima, o indivíduo tem que provar ser um trabalhador responsável, com uma trajetória ocupacional identificável em seus registros, persistente na vida laboriosa e cumpridor de seus deveres. De que isso seja consubstanciai a essa espécie de "ritual de instituição", criador de identidades sociais legítimas e re- conhecidas, é prova a suspeita que recai sobre todos os que não apre- sentam os credenciais de reconhe- cimento e que têm, por isso mes- mo, uma existência social indiferenciada na sua ilegitimida- de, sempre sujeitos à repressão policial. De que isso forneça os critérios e categorias através dos quais as diferenças sociais são per- cebidas e julgadas na vida social é prova a aceitação tácita na socie- dade brasileira da carteira de traba- lho como sinal de uma respeitabi- lidade e honestidade que redime o trabalhador do estigma da pobreza. De que isso, ainda, componha os horizontes simbólicos do mundo social, é prova essa curiosa expres- são popular do "procurar os direi- tos". No universo cultural popular, os direitos são percebidos como prerrogativa exclusiva daqueles que, por oposição aos que "não são direitos", se sabem bons cidadãos porque trabalham honestamente, cumprem suas obrigações, têm fi- cha limpa na polícia e carteira de trabalhado assinada (Cf. Caldeira, 1984). Singular percepção dos direitos essa que não traduz uma consciência cidadã, mas que é formulada nos termos do dever e da prescrição moral, no que se explicita uma experiência histórica de cidadania que foi escrita em negativo, que define o cidadão pela ordem de suas obrigações e que contêm na própria enunciação dos direitos, o princípio da criminalização. A perda do estatuto de trabalhador significa a perda do estatuto de cidadania. Aqui, se faz notar a ou- tra ponta em que uma experiência de cidadania que não é conjugada com direitos civis, mostra seus efei- tos. É curioso perceber como os avanços das lutas sociais no país não corresponderam a movimen- tos pela defesa dos direitos civis. Já se notou que no imaginário coleti- vo, os direitos sociais são especial- mente valorizados, sem que o mes- mo ocorra com os direitos indivi- duais. Estes, quando não são sim- plesmente desconhecidos, são per- cebidos numa lógica muito peculi- ar, no registro do privilégio dos que detêm posições de poder na socie- dade. Daí essa expressão - "a justi- ça é coisa de rico" - tão corriqueira no universo popular. Mas daí tam- bém o espantoso deslizamento que sofre o discurso dos direitos huma- nos quando este ganha a cena pú- blica, entrando em um terreno mi- nado em que experiência, tradi- ções e o imaginário se encontram para decodificar os direitos civis nos termos de uma defesa do crime e dos criminosos, na percepção de que esses direitos nada mais ser- vem do que para acobertar a impu- nidade e defender aqueles que não merecem mais do que a repressão aberta e a punição exemplar (Cf. Caldeira, 1991). Certamente, isso tem a ver com uma experiência histórica que se fez ao revés da tradição liberal da equivalência jurídica formal e que construiu a figura do indivíduo, base da mo- derna concepção de direitos. A ri- gor, este não tem lugar na socieda- de brasileira, já que sua identidade é atribuída pelo vínculo profissio-
  • 8. Caderno CRH 19, Salvador, 1993 nal sacramentado pela lei e que o qualifica para o exercício dos di- reitos. Porém, talvez o mais impor- tante, é que isso traduz a matriz histórica de uma sociedade que não foi submetida à revolução igua- litária de que falava Tocqueville e na qual as leis, ao contrário dos modelos clássicos conhecidos, não foram feitas para dissolver, mas para preservar privilégios dos "do- nos do poder" (Cf. Da Matta, 1987; Chauí, 1987). Essa matriz históri- ca, sempre reatualizada na história brasileira e isso ainda hoje, se tra- duz numa experiência da legalida- de que se faz como experiência do arbítrio, nos usos autoritários da lei que, ao invés de igualar e garantir direitos, é utilizada freqüentemente como instrumento de sujeição, re- pondo hierarquias onde deveriam prevalecer os valores modernos da igualdade e da justiça. Numa sociedade que instituiu a experiência insólita do arbítrio le- gal (Cf. Chauí, 1987), é obstruída a construção da lei como referência - referência real, referência simbó- lica - de uma igualdade prometida para todos, alimentando a crença na capacidade da legalidade de di- rimir conflitos, impor limites ao arbítrio do poder e garantir as reci- procidades que a noção de igualda- de supõe. Sem isso, é difícil imagi-nar o surgimento de uma cultura cívica e de movimentos pela defesa de direitos civis. Poder-se-ia dizer que nessa equação entre cidadania e civismo que não se realiza, se aloja boa parte das dificuldades de enraizamento da democracia brasileira nas práticas sociais, nas dificuldades que isso introduz para a generalização de uma consciên- cia de direitos. Mas é aqui também que se esclare- ce o drama desse trabalhador que, perdendo o vínculo formal com o trabalho, perde seu lugar na socie- dade: não é trabalhador, não é cida- dão e não tem existência civil. Se- ria possível argumentar que, ape- sar de representarem uma parcela considerável - e crescente, nesses anos de recessão - da população trabalhadora, estão longe de cons- tituírem uma maioria, ao menos numa cidade como São Paulo, ca- racterizada por um mercado de tra- balho estruturado e onde o vínculo formal de trabalho predomina (ain- da predomina) de modo inequívo- co. Porém, se a referência a esses trabalhadores interessa, é porque, no seu paroxismo, põem em foco a dinâmica de uma sociedade que, no limite, joga as maiorias numa espécie de estado de natureza. Ao contrário, portanto, da imagem - imagem recorrente na tradição bra- sileira - de uma oposição entre Brasil legal e Brasil real, não se trata de leis que não funcionam e que são como que revogadas soci- ologicamente por uma realidade que não se ajusta à racionalidade abstrata das regras formais. Pois exclusões e hierarquias são repos- tas no modo mesmo como a legali- dade se institui na sociedade brasi- leira. Em outros termos, é na pró- pria experiência do mundo público da lei, que o trabalhador é destitu- ído dos credenciais de reconheci- mento, é transfigurado nas ima- gens do pobre inferior - e, para muitos, do pobre incivil. Se é possível falar de um estado de natureza, não é porque aqui vigo- ram a violência e a desordem, sen- do estas, nunca é demais enfatizar, imagens que se desenham num horizonte simbólico que atualiza a persistente tradição de criminalização da pobreza e, por essa via, produz as evidências que alimentam a certeza de que o "po-
  • 9. Caderno CRH 19, Salvador, 1993 bre" não está credenciado para a vida civilizada. Esse estado de na- tureza diz respeito a um mundo social no qual os direitos não exis- tem como regra de sociabilidade; um mundo no qual a Justiça não existe como instância conhecida e reconhecida na sua capacidade de dirimir conflitos e garantir direitos nas circunstâncias de quebra das regras da equidade; um mundo so- cial no qual a lei não existe como referência a partir da qual os sofri- mentos cotidianos possam ser tra- duzidos (e desprivatizados) na lin- guagem pública da igualdade e da justiça. Um mundo no qual a sobre- vivência cotidiana depende intei- ramente dos recursos materiais, das energias morais e das solidarieda- des que cada qual é capaz de mobi- lizar e que se organiza em torno de princípios inteiramente projetados da vida privada, com suas lealda- des e fidelidades pessoais, com seus vínculos afetivos e sua teia multifacetada de identificações e sociabilidade. É aqui que se determina toda a importância que a família, ainda hoje no Brasil moderno, ocupa nas formas de vida das classes traba- lhadoras. Numa sociedade que não abre lugar para o indivíduo e o cidadão, uma sociedade na qual a insegurança, a violência e a incivi- lidade são a regra da vida social, é em torno da família que homens e mulheres constroem uma ordem plausível de vida: é espaço que a viabiliza a sobrevivência cotidiana através do esforço coletivo de to- dos os seus membros; é espaço no qual constroem os sinais de uma respeitabilidade que neutraliza o estigma da pobreza; é espaço ainda no qual elaboram um sentido de dignidade que compensa moral- mente as adversidades impostas pelos salários baixos, pelo trabalho instável e pelo desemprego perió- dico. No ponto em que os imperativos da sobrevivência se encontram com as regras culturais que organizam modos de vida, se estrutura um universo moral que faz da família algo como uma garantia ética num mundo em que tudo parece amea- çar as possibilidades de uma vida digna. A valorização da "família unida", tão presente no universo popular, pode ser tomado como indicação nesse sentido. O material etnográfico hoje disponível mostra que a casa limpa e bem cuidada, atributos associados a uma família organizada em suas hierarquias internas, constroem as referências tangíveis a partir dos quais homens e mulheres se reconhecem como sujeitos morais, capazes de fazer frente às adversidades da vida e, "apesar da pobreza", garantir uma dignidade e respeitabilidade, que os diferenciam moralmente dos que foram pegos pela "maldição da pobreza", que sucumbiram diante dos azares do destino, que vivem à deriva dos acasos da vida, sem conseguir estruturar suas vidas em torno do trabalho regular e da famí- lia organizada (Cf. Caldeira, 1984; Zaluar, 1985). É nesse jogo ambi- valente de identificações e diferen- ciações que são construídas as fi- guras do "pobre porém honesto" e do "trabalhador responsável" por- que cumpridor de seus deveres e compromissos familiares. Mais do que a incorporação evidente dos estigmas da pobreza, chama aten- ção nisso tudo a construção de uma ordem de vida inteiramente proje- tada das reciprocidades morais da vida privada. É nisso que se faz ver os sinais de uma privatização de experiências que não conseguem ser formuladas na linguagem pú- blica dos direitos. Aqui, a privação
  • 10. Caderno CRH 19, Salvador, 1993 de direitos transparece por inteiro num horizonte simbólico de causa- lidades e responsabilidades que transfere para a ordem moral pri- vada as condições de possibilidade de uma vida "bem sucedida". A importância da família como ordem de vida coloca algumas questões para serem discutidas. Mostra que direitos, lei e cidadania dizem respeito a algo mais do que os problemas da engenharia institucional da qual depende uma forma de governo. Inscrevem-se por inteiro nos modos de existên- cia, nas formas de vida e nas regras da sociabilidade, no modo como identidades são construídas e per- cebidos os lugares simbólicos de pertinência na vida social. É por esse ângulo que se faz notar os efeitos dessa peculiar experiência de cidadania que não generaliza direitos, que não chega a plasmar as regras da civilidade e os termos de identidades cidadãs. É preciso que se diga, também, que é por esse ângulo que se pode identificar o ineditismo das lutas sociais recen- tes, ineditismo pelo que rompem ou prometem romper com o peso dessa tradição enraizada na dinâ- mica mesmo da sociedade, mon- tando referências identificatórias e construindo uma teia representati- va por onde circulam reivindica- ções e por onde homens e mulheres podem virtualmente se reconhe- cer, para usar os termos de Hannah Arendt, no seu direito a ter direitos. É por esse ângulo, enfim, que a sociedade brasileira contemporâ- nea se abre à percepção de todas as suas ambivalências, numa promes- sa de modernidade capaz de rede- finir direitos, lei e justiça como parâmetro nas relações sociais e que convive, numa combinação por vezes desconcertante, com privilé- gios, exclusões e discriminações que carregam o peso de toda uma tradição histórica. Seja como for, é na dinâmica mesmo da sociedade, dinâmica feita na interseção entre a lei e a cultura, a norma e as tradições, a experiência e o imagi- nário, que se circunscreve a pobre- za como condição de existência. Para retomar as questões aqui dis- cutidas, nesse ponto em que direi- tos (ou melhor, a inexistência de- les) afetam formas de vida, a ques- tão da família pode esclarecer algo do drama da pobreza, para além das referências genéricas aos salá- rios baixos, ao desemprego e ao trabalho instável. Em primeiro lugar, no que se refere às condições materiais de vida, a importância da família põe em foco o frágil equilíbrio em que estão estruturadas as condições da vida familiar. Qualquer "acaso", seja o desemprego ou a deterioração das condições de salário e trabalho, seja a doença, a invalidez ou a morte dos provedores principais, pode jogar as famílias nas frontei- ras da miséria. Em outras palavras, se a sobrevivência cotidiana de- pende de um esforço coletivo, as condições vigentes no mercado (e na sociedade) terminam por desfa- zer - real ou virtualmente - a eficá- cia possível das estratégias famili- ares. É isso que permite dizer que a insegurança é elemento definidor de formas de vida. É isso sobretudo que permite dizer que as histórias familiares transcorrem nessa liminaridade, em que a ameaça da miséria não significa apenas de- gradação de condições de vida, mas se projeta no horizonte dessa pobreza incivil que fornece a or- dem das razões para toda a suspeita que recai sobre suas vidas, de tal forma que a batalha pela sobrevi- vência e também esforço, sempre reiterado, para garantir uma digni-
  • 11. Caderno CRH 19, Salvador, 1993 dade ameaçada. Talvez por aí se tenha uma chave para compreen- der a valorização da família unida, bem como as figuras do "pobre honesto" e do "trabalhador respon- sável" que povoam o universo po- pular. São valores e representações que prescrevem as fronteiras do que homens e mulheres percebem como uma ordem legítima de vida. Mas que também podem ser toma- dos como sinais de uma experiên- cia de insegurança e de ameaça constante de pauperização que fi- cam sem palavras para serem no- meadas fora de um sentido de des- tino construído na dimensão priva- da da vida social. E isso já nos introduz a uma segun- da questão. Sabe-se que as necessi- dades da sobrevivência terminam por mobilizar todos os membros familiares para o mercado de tra- balho. Isso pode parecer uma obviedade, tal a evidência dos fa- tos. Mas há nisso algo mais do que uma simples trivialidade. Pois na ausência de direitos que garantam poder de barganha no mercado de trabalho, ou seja, salários decentes e garantias de emprego, na ausên- cia de políticas sociais que garan- tam a sobrevivência nas situações de desemprego, mas também de doença, de invalidez e de velhice, nessas circunstâncias todos - ho- mens e mulheres, adultos, crianças e velhos - são virtualmente trans- formados em força de trabalho ati- va no mercado. É certo que para a entrada no mercado de trabalho não há a compulsão cega e muda das necessidades. Além dos limi- tes próprios ao ciclo vital de cada um, atuam disposições normativas, normas culturais e valores morais que definem a disponibilidade de cada um para o mercado. Seja como for, o processo de proletarização mobiliza a família como coletivo, sem que haja regras que definam as condições de entrada e saída do mercado. Os únicos limites são dados por essa esfera em que natu reza e cultura se encontram na cons tituição da família como espaço de sobrevivência, mas também de so- ciabilidade e construção de identi dades. Limites, portanto, fora, de um espaço propriamente civil, es paço construído pelo "artifício hu mano" que são as leis e os direitos que regem - ou deveriam reger - a vida social, fornecendo ao mesmo tempo os parâmetros e a medida a partir da qual situações de vida e trabalho possam ser problematizadas e julgadas nas suas exigências de equidade. E esse é o ponto sobre o qualvaleria sedeter. Sabemos que a teia de desigualda- des e exclusões plasmadas no mer- cado afeta diferenciadamente ho- mens e mulheres, adultos, jovens e crianças, numa lógica em que a privação de direitos se articula com estigmas de sexo e idade (e outros, como os de cor e origem) que sedimentam diferenças em discri- minações diversas. Sabemos tam- bém que são inúmeras as clivagens de qualificação e salário produzi- das por um processo de trabalho que diferencia e hierarquiza a força de trabalho sob critérios no mais das vezes arbitrários, mas regidos por uma razão disciplinadora. No entanto, na ausência de uma medi- da possível de equivalência entre situações diversas, medida esta que só poderia ser dada pelos direitos, medida portanto que só poderia existir por referência aos valores de justiça e igualdade, as desigual- dades e discriminações se pulveri- zam em diferenciações que pare- cem nada mais do que corresponder aos azares de cada um e às diferen- ças naturais de vocação, talento, capacidadeedisposiçãoparaotra-
  • 12. Caderno CRH 19, Salvador, 1993 balho. Nesse caso, o chamadomer- cado informal é elucidativo: esse é um mundo que parece flutuar ao acaso de circunstâncias sem explicitar suas relações com as es- truturas de poder e dominação na sociedade, um mundo onde não existe contrato formal de trabalho, direitos sociais e representação pro- fissional, um mundo, portanto, sem medida por onde necessidades e interesses possam se universalizar como demandas e reivindicações coletivas. Porém, nem por isso a experiência que esses homens e mulheres fa- zem da sociedade se fecha à per- cepção de uma injustiça inscrita em suas vidas. Num certo sentido, a importância da família e dos có- digos morais que estruturam suas vidas, podem ser tomados como sinal de uma privatização que pa- rece fixá-los no mundo das dife- renças e hierarquias naturais. No entanto, esse é um mundo que não se fecha inteiramente como natu- reza. Diante do destino comum do "ser pobre", há a percepção de um espaço de autonomia no qual atra- vés da ação, deliberação e discernimento podem se afirmar e se reconhecer como sujeitos que, pelas suas qualidades e virtudes morais, são capazes de contornar as adversidades da vida. Se a ótica moral predomina, isso não seria possível sem uma noção de indiví- duo capaz de deliberação e esco- lha. É nesse modo de se perceber nas virtualidades de um sujeito moral que a experiência da pobre- za se abre a percepção de uma injustiça instalada no mundo. Mas é uma injustiça percebida doponto de vista da moralidade pessoal. Aparece como ruptura das recipro- cidades morais que se espera numa vida em sociedade, ruptura vivida no esforçonão recompensado,no trabalho que não é valorizado, na remuneração que não corresponde à dignidade de um chefe de famí- lia, nas autoridades que tratam o trabalhador honesto como margi- nal, no desrespeito e descaso que recebem em troca do "dever cum- prido", na polícia que confunde o trabalhador com o bandido, na lei que penaliza os fracos e protege os poderosos, na justiça que não fun- ciona, que condena os desgraçados da sorte e deixa impunes os crimi- nosos. Impossível, aqui, deixar de comen- tar que, se existe alguma relação entre pobreza e criminalidade, esta relação está configurada em uma sociedade que rompe,o tempo todo, com o que se poderia chamar, tal- vez com alguma imprecisão, de um pacto social implícito que cons- trói um sentido de pertinência e dá uma medida de plausibilidade à vida em sociedade. Essa é uma questão que se coloca abertamente para os mais jovens, que se lançam no mercado de trabalho sem en- contrar muitas alternativas além do trabalho desqualificado, instá- vel e precário, que são duramente atingidos pelo desemprego, que são vistos com suspeita, sendo alvo privilegiado da violência policial, precisamente porque não carregam os sinais de respeitabilidade asso- ciados ao "trabalhador honesto" e "chefe de família responsável". As pesquisas mostram, de fato, que é nessa difícil passagem para a mai- oridade que a delinqüência se colo- ca no horizonte desses jovens que não enxergam muitas possibilida- des de organizar suas vidas em torno de um trabalho promissor e para os quais, ainda, a família está distante de se constituir nessa espé- cie de recompensa moral aos "tem- pos difíceis" (Cf. Zaluar, 1985). No interior da família, a
  • 13. Caderno CRH 19, Salvador, 1993 ambivalência inscrita na trajetória desses jovens transparece, por in- teiro, no temor que homens e mu- lheres manifestam quanto ao de- semprego e subemprego de seus filhos, situações percebidas como fonte de ameaça de desestruturação de um projeto de vida que se orga- niza quase que exclusivamente nes- sa frágil - e difícil - relação entre o trabalho regular e a família organi- zada. Seja como for, se a experiência que fazem da sociedade existe como insegurança, quando não de vio- lência, aqui, nesse registro, da rup- tura das reciprocidades esperadas na vida social, aparece como de- sordem. Desordem que desestrutura estratégias de vida através das quais buscam conferir dignidade às suas vidas. Desordem, também e sobre- tudo, que rompe com os equilíbrios morais projetados da vida privada e por onde imaginam uma ordem social justa que retribua a cada um conforme o seu valor e o seu esfor- ço. O problema aqui não é a exis- tência de uma noção de justiça pensada nos termos das reciproci- dades morais, mesmo porque esse é o substrato de toda reivindicação por igualdade e justiça. O proble- ma está na dificuldade de investir a esperança de justiça na esfera mun- dana das leis e traduzi-las na lin- guagem pública dos direitos, como exigência coletiva que cobra da sociedade suas responsabilidades nas circunstâncias que afetam suas vidas. Não é de estranhar, portanto, que no imaginário popular as ex- pectativas de justiça sejam transferidas para a idéia de um governo forte e onisciente, capaz de ouvir as necessidades dos mais fracos e restaurar os equilíbrios desfeitos pela ganância dos ricos e abuso dos poderosos. As pesquisas mostram que as imagens de um governo justiceiro traduzem uma noção de justiça que se elabora no interior de um universo moral e se articula com as esperanças de re- denção alimentadas na crença em uma Providência, instrumento do Bem e da Justiça no mundo dos homens. É nessa articulação que se ergue a expectativa de que surja uma vontade generosa, capaz de resolver o paradoxo ético da virtu- de não recompensada e da vitória da injustiça, restaurando os equilí- brios morais desfeitos pela malda- de, avareza e ganância dos homens (Cf. Montes, 1983). Como parece claro, a tradição tutelar brasileira encontra ressonância nesse univer- so cultural, de tal modo que não deveria causar estranheza o surgimento periódico na nossa his- tória, incluindo os anos mais re- centes, de figuras públicas trans- formadas em "heróis salvadores", da mesma forma que não deveria causar espanto o apelo popular que, ainda hoje, no Brasil moderno, tem o discurso populista. Arcaísmos da sociedade brasilei- ra? Talvez. Porém, seria mais pro- dutivo pensar que o problema não está num suposto atraso e tradicionalismo das classes popu- lares, que esse arcaísmo, se é que faz sentido colocar nesses termos, está alojado no interior de uma modernidade incompleta, travada, que não se realiza plenamente, no sentido da constituição de uma so- ciedade na qual homens e mulhe- res pudessem descobrir o sentido do espaço público como espaço no qual a igualdade e a justiça se realizam na prática democrática da permanente e reiterada negocia- ção.
  • 14. CadernoCRH19,Salvador,1993 Referências bibliográficas CALDEIRA, Teresa. 1984 A política dos outros. O cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo: Brasiliense. TROYANNO, Annez Andraus. 1991 Flexibilidade do emprego assalariado. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, n.5, p.84-95, abr./jun. ZALUAR.Alba. 1985 A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense. 21 1991 Direitos humanos ou "privilégio" de bandidos? Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, n.30, p.162-174, jul. CHAUÍ, Marilena. 1987 Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. 2.ed. São Paulo: Brasiliense. CARVALHO, Rui Castro, SCHMIT, Hubert. 1990 O fordismo está vivo no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.27,p.l48-156, jul. DA MATTA, Roberto. 1987 A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. São Paulo: Brasiliense. GUIMARÃES, Antonio Sergio, CASTRO, Nadya Araujo. 1990 Trabalho, sindicalismo e reconversão industrial no Brasil dos anos 90. Lua Nova. Revista de Cultura e Política, São Paulo, n.22, p.207-228, dez. MONTES, Maria Lúcia. 1983 Lazer e ideologia: a representa-ção do social e do político na cultura popular. São Paulo: Tese (Doutorado) Universidade de São Paulo. TELLES, Vera da Silva. 1992 A cidadania inexistente: incivilidade e pobreza. São Paulo: Tese (Doutorado) Universidade de São Paulo.