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UMA VELHA
Na cozinha, Raquel esticava o braço direito para alcançar o pote de ervas na
prateleira do armário. Impossível! Mais um pulinho e o recipiente, cheio de grãos de
café, caiu. As costas corcovadas proibiam-lhe qualquer possibilidade de expansão.
Abaixou-se para recolher os grãos e respirou malsofrida para se recompor. O calor
daquela jornada era de matar! A cabeça girava um pouco e agora angustiava ver as
etiquetas envelhecidas dos seus potes, com nomes que não correspondiam aos alimentos
que encerravam. Fora prazeroso o exercício de lembrar que o pote do açúcar continha
sal, o de farinha, açúcar e o de sal, farinha. Uma adorável ardileza! Mas com tanto calor
e o estômago vazio, não se experimentava nenhum prazer no jogo.
Vivia consigo mesma. Se precisasse de uma palavra, certamente a encontraria
nos seus livros de poesia, reunidos nas estantes da sala. Como uma serrania, os livros
protegiam-na do excesso de luminosidade, de barulho, de vida. Após o almoço,
regalava-se da solitude, empenhada na leitura desordenada de algum clássico. A
hierarquia das páginas invariavelmente a entediava. Abria o volume na última página,
lia seu derradeiro parágrafo para, em seguida, saltar à ditadora primeira página. Depois
a terceira, quem sabe a décima quinta página fosse igualmente curiosa. Sentia a tentação
de arrebentar a cola que encarcerava as páginas submissas à capa e à contracapa,
retângulos limitadíssimos à indissolúvel dicotomia frente e verso. Pobres páginas
numeradas! Infelizes palavras encadeadas! Todas negras, todas com a mesma tipologia,
todas com idêntico corpo, submetidas à impiedosa fraternidade linguística. Por vezes,
Raquel extraía delicadamente com uma tesoura alguma palavra e a lançava ao ar, na
tentativa de atribuir-lhe novos sentidos.
Além do prazer da leitura contingente, Raquel praticava a escrita. A mão lhe
tremia um pouco, mas ainda assim exercitava o texto da esquerda para a direita, da
direita para baixo, e da direita para a esquerda e de baixo para cima. Aquilo, sim, era
diversão! A escrita em círculos e trapézios também a excitava. Amiúde, posicionava o
artigo após o substantivo e dava risadas. Nada de desinências nos “rabichos” das
palavras. Vamos dar um passeio lá no início do vocábulo, dizia excitada!
Terminada a revolução, rasgava o papel, as células se espalhavam. Largava a
obra pelo chão, calçava os chinelos e se arrastava até o quarto. Atirava-se sobre o
colchão de espuma e dormia o resto da tarde. Quando acordava, um copo de leite e uma
torrada amolecida bastavam.
Aguardava pacientemente a noite. Pelas frestas da janela, observava o céu, a
quietude e o movimento dos astros. Perdida em sua astronomia estelar, ocorria-lhe que,
no dicionário, estrela podia significar um mero distintivo que se pregava a uniformes de
estudantes, com o fim de identificar a série “a que pertencem”. Como os seres humanos
eram inaceitáveis! “Pertencer”! Um verbo absurdo! Um contrassenso! Pior ainda era
reduzi-la ao asterisco. Amarela, anã ou binária. Tantas possibilidades! Exausta, Raquel
regressava aos seus livros. Agoniada, poderia atirar o volume do Bandeira pelos céus, se
a janela não estivesse perpetuamente cerrada.
A noite se alongava e a velha se esforçava para lembrar onde havia metido o tal
do volume. O ar estava quente e as bolinhas brancas não pareciam mais grudadas na
manta do sofá; saltavam a caminho dos olhos admirados de Raquel que tentava tocá-las.
Para cada bolinha uma estrela, para cada estrela uma palavra, para cada palavra um
significante inusual: para o abajur de tecido, pantalha; para a almofada, coxim; a
cortina, pano de boca; a estante, leitoril; o livro, livro-razão. Para ela: aguardente de
cana ou cachaça. Caiu na gargalhada! Ela do latim illa, quase ilha. O riso exagerado a
constrangeu. A cabeça pesava. Já se via de longe, sentada, como uma velha capaz de
pensar em cafonices, como ilhas e solidão. Uma velha que não parava de pensar, a quem
fazia mal pensar. Mens sana in corpore sano. Nem mens nem corpore. Chorava Raquel,
sábia em demasia, muito cansada das palavras que circulavam velozes pelo pensamento,
com os pés muito feios, de unhas amareladas, as mãos dorosas que nada de bonito
poderiam escrever, a boca muda com um céu de cabras. Quis gritar, mas sentiu
vergonha. Preferiu se deitar devagarinho, curvada, de lado.
Seus pés estavam gelados, as mãos tremiam. Nenhuma palavra vinha para
socorrê-la. Aos poucos, a visão foi escurecendo, a respiração foi refreando. Alguns
meses depois, descobriram Raquel, ali delicadamente recolhida, sem ânima.
É, hoje em dia, ninguém quer mesmo saber de velhos, foi o que disseram.

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  • 1. UMA VELHA Na cozinha, Raquel esticava o braço direito para alcançar o pote de ervas na prateleira do armário. Impossível! Mais um pulinho e o recipiente, cheio de grãos de café, caiu. As costas corcovadas proibiam-lhe qualquer possibilidade de expansão. Abaixou-se para recolher os grãos e respirou malsofrida para se recompor. O calor daquela jornada era de matar! A cabeça girava um pouco e agora angustiava ver as etiquetas envelhecidas dos seus potes, com nomes que não correspondiam aos alimentos que encerravam. Fora prazeroso o exercício de lembrar que o pote do açúcar continha sal, o de farinha, açúcar e o de sal, farinha. Uma adorável ardileza! Mas com tanto calor e o estômago vazio, não se experimentava nenhum prazer no jogo. Vivia consigo mesma. Se precisasse de uma palavra, certamente a encontraria nos seus livros de poesia, reunidos nas estantes da sala. Como uma serrania, os livros protegiam-na do excesso de luminosidade, de barulho, de vida. Após o almoço, regalava-se da solitude, empenhada na leitura desordenada de algum clássico. A hierarquia das páginas invariavelmente a entediava. Abria o volume na última página, lia seu derradeiro parágrafo para, em seguida, saltar à ditadora primeira página. Depois a terceira, quem sabe a décima quinta página fosse igualmente curiosa. Sentia a tentação de arrebentar a cola que encarcerava as páginas submissas à capa e à contracapa, retângulos limitadíssimos à indissolúvel dicotomia frente e verso. Pobres páginas numeradas! Infelizes palavras encadeadas! Todas negras, todas com a mesma tipologia, todas com idêntico corpo, submetidas à impiedosa fraternidade linguística. Por vezes, Raquel extraía delicadamente com uma tesoura alguma palavra e a lançava ao ar, na tentativa de atribuir-lhe novos sentidos. Além do prazer da leitura contingente, Raquel praticava a escrita. A mão lhe tremia um pouco, mas ainda assim exercitava o texto da esquerda para a direita, da direita para baixo, e da direita para a esquerda e de baixo para cima. Aquilo, sim, era diversão! A escrita em círculos e trapézios também a excitava. Amiúde, posicionava o artigo após o substantivo e dava risadas. Nada de desinências nos “rabichos” das palavras. Vamos dar um passeio lá no início do vocábulo, dizia excitada! Terminada a revolução, rasgava o papel, as células se espalhavam. Largava a obra pelo chão, calçava os chinelos e se arrastava até o quarto. Atirava-se sobre o
  • 2. colchão de espuma e dormia o resto da tarde. Quando acordava, um copo de leite e uma torrada amolecida bastavam. Aguardava pacientemente a noite. Pelas frestas da janela, observava o céu, a quietude e o movimento dos astros. Perdida em sua astronomia estelar, ocorria-lhe que, no dicionário, estrela podia significar um mero distintivo que se pregava a uniformes de estudantes, com o fim de identificar a série “a que pertencem”. Como os seres humanos eram inaceitáveis! “Pertencer”! Um verbo absurdo! Um contrassenso! Pior ainda era reduzi-la ao asterisco. Amarela, anã ou binária. Tantas possibilidades! Exausta, Raquel regressava aos seus livros. Agoniada, poderia atirar o volume do Bandeira pelos céus, se a janela não estivesse perpetuamente cerrada. A noite se alongava e a velha se esforçava para lembrar onde havia metido o tal do volume. O ar estava quente e as bolinhas brancas não pareciam mais grudadas na manta do sofá; saltavam a caminho dos olhos admirados de Raquel que tentava tocá-las. Para cada bolinha uma estrela, para cada estrela uma palavra, para cada palavra um significante inusual: para o abajur de tecido, pantalha; para a almofada, coxim; a cortina, pano de boca; a estante, leitoril; o livro, livro-razão. Para ela: aguardente de cana ou cachaça. Caiu na gargalhada! Ela do latim illa, quase ilha. O riso exagerado a constrangeu. A cabeça pesava. Já se via de longe, sentada, como uma velha capaz de pensar em cafonices, como ilhas e solidão. Uma velha que não parava de pensar, a quem fazia mal pensar. Mens sana in corpore sano. Nem mens nem corpore. Chorava Raquel, sábia em demasia, muito cansada das palavras que circulavam velozes pelo pensamento, com os pés muito feios, de unhas amareladas, as mãos dorosas que nada de bonito poderiam escrever, a boca muda com um céu de cabras. Quis gritar, mas sentiu vergonha. Preferiu se deitar devagarinho, curvada, de lado. Seus pés estavam gelados, as mãos tremiam. Nenhuma palavra vinha para socorrê-la. Aos poucos, a visão foi escurecendo, a respiração foi refreando. Alguns meses depois, descobriram Raquel, ali delicadamente recolhida, sem ânima. É, hoje em dia, ninguém quer mesmo saber de velhos, foi o que disseram.