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No Mês Internacional das
    Bibliotecas Escolares, a personalidade
    do mês é Laureano Barros, o homem
    que viveu para a sua biblioteca:
    Durante uma vida inteira,
    Laureano Barros reuniu, em
    Portugal, a mais valiosa
    biblioteca     privada   da
    segunda metade do século
    XX, que agora, após a sua
    morte, aos 84 anos, está a
    ser leiloada no Porto.
    Quem era este homem?
    Rigoroso, desinteressado,
    legalista    e    libertário,
    vertical e humilde, pontual
    e incapaz de manter um
    emprego, matemático de génio e amante da
    literatura, tolerante e radical, egocêntrico e
    generoso. Ele planeava tudo: era organizado,
    previdente e perfeccionista. Inflexível com a
    verdade e a liberdade.




1
A biblioteca»         Quando foi viver para o Porto, para
    frequentar o liceu, o jovem Laureano Barros começou a
    comprar livros. Frequentava os alfarrabistas e iniciou
    uma colecção, tal como fazia com os paliteiros, bengalas,
    relógios, louças, antiguidades ou alfaias agrícolas. Mas, ao
    contrário de toda a traquitana que sempre gostou de
    trazer para casa, aos livros dedicou uma fidelidade
    especial. Não os vendia, não desistia nem se esquecia
    deles. Começou a acumulá-los na moradia que o pai lhe
    comprou para se instalar na cidade, na Foz, continuou a
    ampliar a colecção enquanto viveu nessa casa com a
    primeira esposa, Leonor, e depois quando se divorciou
    dela e das seguintes. De cada vez que se separava da
    mulher com quem vivia (e foram mais mulheres do que
    os três casamentos), deixava-lhe tudo: os filhos, a casa,
    os móveis, as antiguidades. Mas levava consigo a
    biblioteca. Por alguns autores tornou-se obcecado e
    comprava tudo. Depois estendeu a obsessão a todos os
    escritores. Comprava e lia, várias vezes, os livros de
    Camilo, Eça, Pessoa, Torga. Sempre teve insónias, e
    passava-as a ler. Dono de uma memória prodigiosa,
    sabia páginas e páginas de cor. Perdia horas a arrumar os
    livros, a manuseá-los, a acariciá-los. Primeiras edições de
    Fernão Mendes Pinto, Camões, Vieira, Verney, Eça,
    Pessoa, Antero ou António Nobre, obras juvenis de
    Guerra Junqueiro, Torga ou José Gomes Ferreira, edições
    raras de poetas quinhentistas de Ponte da Barca – a
    biblioteca começou a crescer em majestade, a tornar-se
    maior do que si própria, misteriosa e imortal, exigindo
    reverência e devoção.


2
A solidão» Laureano        Barros tornou-se um homem
    desiludido. “Passava muito tempo sozinho, embora
    adorasse conversar”. O comportamento dos outros
    entristecia-o. Principalmente o dos mais comprometidos
    com o mundo. Por isso foi cortando eles. Aceitou o cargo
    de Director da Escola Secundária de Ponte da Barca, mas
    por pouco tempo. Segundo uma investigação que
    instaurou, descobriu serem falsos os atestados médicos
    que uma professora apresentava para faltar às aulas.
    Como ela não foi demitida, alegadamente por ter
    amizades no Ministério da Educação, Laureano pediu a
    reforma. “Para ele, tudo tinha de ser perfeito” Não
    facilitava. Terá sido por causa do perfeccionismo e
    obsessão pela verdade que não conseguiu manter
    nenhum casamento, explica um amigo. Não suportava
    situações menos que perfeitas, e não conseguia mentir:
    de cada vez que tinha uma infidelidade, contava logo à
    mulher, o que acabava por levar à separação.

    Laureano isolou-se em Ponte da Barca, onde passaria os
    últimos 30 anos de vida. Fugia das pessoas, mas ao
    mesmo tempo procurava-as. Os outros surgiam-lhe como
    entidades algo imateriais e o encontro com eles não raro
    o fazia sentir-se perdido. Talvez cultivasse o
    relacionamento com os que se prestavam a ser amigos
    imaginários, metáforas de si próprios. Dizem os
    psicólogos que os coleccionadores compulsivos sofrem
    de incapacidade de lidar com os outros. Se isso é
    verdade, os livros, metáforas perfeitas da vida, são a
    colecção ideal do filantropo solitário.



3
A vida na quinta» Em Ponte da Barca, Laureano
    era amado e odiado, e retribuía ambos os sentimentos.
    As eminências locais tinham a noção de ter ali uma
    personalidade de craveira nacional e tentavam
    aproveitar-se, oferecendo-lhe cargos e medalhas.
    Laureano nunca aceitou, alegando que nada fizera pela
    terra, o que não podia ser mais verdade. Limitava-se a ser
    um exemplo, o que nem sempre era devidamente
    apreciado. Para desconforto de muita gente, a legalidade
    fiscal era uma das obsessões de Laureano. Quase uma
    doença. Pagava tudo antes do tempo e até mais do que
    devia, para não correr o risco de errar. Não admitia a
    mínima batota. Nas transacções de propriedades, era
    comum assinar-se a escritura por um valor inferior ao
    real, para pagar menos imposto. Laureano recusava-se, o
    que lhe impediu alguns negócios. Mas não cedia. Uma
    vez, quis vender uma das terras da família por 100 mil
    euros. O comprador aceitava o preço, desde que se
    fizesse escritura por 10 mil. Laureano fez um acordo:
    pagaria ele próprio o montante do imposto de transacção
    correspondente a 90 mil euros, que era devido ao outro.
    Foi aceite e o negócio fez-se. Intransigente em relação à
    dignidade das pessoas, Laureando comia com os seus
    trabalhadores à mesma mesa, o que muitos
    consideravam esquisito. Foi também o primeiro, na
    região, a fazer descontos para a reforma e segurança
    social dos trabalhadores. A quinta da Fonte da Cova era
    um oásis de legalidade, mas também de alguma loucura.




4
O senhor Doutor»           “O doutor foi a pessoa mais
    honesta e culta que conheci à face da terra”, diz Manuel
    Rocha, que hoje tem 36 anos, mas está na quinta desde
    criança. “Ele para mim era tudo. Sempre pensei: com este
    homem, não preciso de mais nada”. Um dia, Nuno Leitão,
    que trabalhou na quinta mas depois estudou informática
    de gestão, ofereceu-se para catalogar toda a biblioteca
    em computador. Laureano agradeceu, mas não precisava:
    tinha os ficheiros todos na cabeça. Todos falam do
    “doutor”, hoje, com incondicional afecto e uma
    orgulhosa emoção. A exaltação quase fanática,
    possessiva, de quem sente ter tocado uma esfera
    superior da existência. Não é fácil entender que tipo de
    influência Laureano exerceu sobre os espíritos destes
    jovens. Mas basta falar um pouco com eles para perceber
    que ainda lhe estão submetidos. Têm uma transparência
    comovente no olhar, que nos faria confiar-lhes a própria
    vida, sem hesitação.

    Nos últimos tempos de vida, Laureano começou a
    preocupar-se com a posteridade. Não teve nenhuma
    fraqueza religiosa – manteve-se agnóstico até ao fim –
    mas passou a tomar disposições. Doou todos os bens aos
    filhos para os poupar a burocracias e eventuais
    contendas. Organizado e precavido como era, passou os
    últimos anos a preparar o seu desaparecimento, mas a
    sua grande preocupação eram, obviamente, os livros. À
    medida que se aproximava do fim, ia perdendo o
    interesse por tudo excepto pelos livros.




5
O Fim» Apercebendo-se de que os filhos não queriam a
    biblioteca, pensou em várias soluções, mas nenhuma lhe
    agradou. Por fim, deixou de se preocupar com o assunto,
    mergulhando numa estranha apatia, numa inconsciência
    meticulosa e desesperada.

     No seu afã de tudo medir pela beleza dos livros, de
    sublimar neles os seus dias e o seu futuro, nunca lhe
    passou pela cabeça que a biblioteca pudesse não ser
    eterna. Mesmo sabendo que em breve tudo aquilo seria
    vendido em leilão, não deixou de folhear, tratar e
    acariciar os seus livros, com a leveza confiante com que
    uma criança diz adeus a quem ama.

    Assim termina uma biblioteca que foi, afinal, a história
    da vida de um homem:
    "Em ano de comemoração dos seus
    50 anos de existência, a Livraria
    Manuel Ferreira promove um
    importante leilão de cerca de 6000
    espécies bibliográficas constitutivas
    de uma das mais valiosas
    bibliotecas particulares do século
    XX, formada pelo dedicado bibliófilo
    Dr. Laureano Barros. “


    Adaptado de um artigo, publicado no Jornal
    Público, em Junho de 2009.

     A Equipa da Biblioteca, em Outubro, o Mês
    Internacional das Bibliotecas Escolares




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Laureano Barros, o homem que viveu para a sua biblioteca

  • 1. No Mês Internacional das Bibliotecas Escolares, a personalidade do mês é Laureano Barros, o homem que viveu para a sua biblioteca: Durante uma vida inteira, Laureano Barros reuniu, em Portugal, a mais valiosa biblioteca privada da segunda metade do século XX, que agora, após a sua morte, aos 84 anos, está a ser leiloada no Porto. Quem era este homem? Rigoroso, desinteressado, legalista e libertário, vertical e humilde, pontual e incapaz de manter um emprego, matemático de génio e amante da literatura, tolerante e radical, egocêntrico e generoso. Ele planeava tudo: era organizado, previdente e perfeccionista. Inflexível com a verdade e a liberdade. 1
  • 2. A biblioteca» Quando foi viver para o Porto, para frequentar o liceu, o jovem Laureano Barros começou a comprar livros. Frequentava os alfarrabistas e iniciou uma colecção, tal como fazia com os paliteiros, bengalas, relógios, louças, antiguidades ou alfaias agrícolas. Mas, ao contrário de toda a traquitana que sempre gostou de trazer para casa, aos livros dedicou uma fidelidade especial. Não os vendia, não desistia nem se esquecia deles. Começou a acumulá-los na moradia que o pai lhe comprou para se instalar na cidade, na Foz, continuou a ampliar a colecção enquanto viveu nessa casa com a primeira esposa, Leonor, e depois quando se divorciou dela e das seguintes. De cada vez que se separava da mulher com quem vivia (e foram mais mulheres do que os três casamentos), deixava-lhe tudo: os filhos, a casa, os móveis, as antiguidades. Mas levava consigo a biblioteca. Por alguns autores tornou-se obcecado e comprava tudo. Depois estendeu a obsessão a todos os escritores. Comprava e lia, várias vezes, os livros de Camilo, Eça, Pessoa, Torga. Sempre teve insónias, e passava-as a ler. Dono de uma memória prodigiosa, sabia páginas e páginas de cor. Perdia horas a arrumar os livros, a manuseá-los, a acariciá-los. Primeiras edições de Fernão Mendes Pinto, Camões, Vieira, Verney, Eça, Pessoa, Antero ou António Nobre, obras juvenis de Guerra Junqueiro, Torga ou José Gomes Ferreira, edições raras de poetas quinhentistas de Ponte da Barca – a biblioteca começou a crescer em majestade, a tornar-se maior do que si própria, misteriosa e imortal, exigindo reverência e devoção. 2
  • 3. A solidão» Laureano Barros tornou-se um homem desiludido. “Passava muito tempo sozinho, embora adorasse conversar”. O comportamento dos outros entristecia-o. Principalmente o dos mais comprometidos com o mundo. Por isso foi cortando eles. Aceitou o cargo de Director da Escola Secundária de Ponte da Barca, mas por pouco tempo. Segundo uma investigação que instaurou, descobriu serem falsos os atestados médicos que uma professora apresentava para faltar às aulas. Como ela não foi demitida, alegadamente por ter amizades no Ministério da Educação, Laureano pediu a reforma. “Para ele, tudo tinha de ser perfeito” Não facilitava. Terá sido por causa do perfeccionismo e obsessão pela verdade que não conseguiu manter nenhum casamento, explica um amigo. Não suportava situações menos que perfeitas, e não conseguia mentir: de cada vez que tinha uma infidelidade, contava logo à mulher, o que acabava por levar à separação. Laureano isolou-se em Ponte da Barca, onde passaria os últimos 30 anos de vida. Fugia das pessoas, mas ao mesmo tempo procurava-as. Os outros surgiam-lhe como entidades algo imateriais e o encontro com eles não raro o fazia sentir-se perdido. Talvez cultivasse o relacionamento com os que se prestavam a ser amigos imaginários, metáforas de si próprios. Dizem os psicólogos que os coleccionadores compulsivos sofrem de incapacidade de lidar com os outros. Se isso é verdade, os livros, metáforas perfeitas da vida, são a colecção ideal do filantropo solitário. 3
  • 4. A vida na quinta» Em Ponte da Barca, Laureano era amado e odiado, e retribuía ambos os sentimentos. As eminências locais tinham a noção de ter ali uma personalidade de craveira nacional e tentavam aproveitar-se, oferecendo-lhe cargos e medalhas. Laureano nunca aceitou, alegando que nada fizera pela terra, o que não podia ser mais verdade. Limitava-se a ser um exemplo, o que nem sempre era devidamente apreciado. Para desconforto de muita gente, a legalidade fiscal era uma das obsessões de Laureano. Quase uma doença. Pagava tudo antes do tempo e até mais do que devia, para não correr o risco de errar. Não admitia a mínima batota. Nas transacções de propriedades, era comum assinar-se a escritura por um valor inferior ao real, para pagar menos imposto. Laureano recusava-se, o que lhe impediu alguns negócios. Mas não cedia. Uma vez, quis vender uma das terras da família por 100 mil euros. O comprador aceitava o preço, desde que se fizesse escritura por 10 mil. Laureano fez um acordo: pagaria ele próprio o montante do imposto de transacção correspondente a 90 mil euros, que era devido ao outro. Foi aceite e o negócio fez-se. Intransigente em relação à dignidade das pessoas, Laureando comia com os seus trabalhadores à mesma mesa, o que muitos consideravam esquisito. Foi também o primeiro, na região, a fazer descontos para a reforma e segurança social dos trabalhadores. A quinta da Fonte da Cova era um oásis de legalidade, mas também de alguma loucura. 4
  • 5. O senhor Doutor» “O doutor foi a pessoa mais honesta e culta que conheci à face da terra”, diz Manuel Rocha, que hoje tem 36 anos, mas está na quinta desde criança. “Ele para mim era tudo. Sempre pensei: com este homem, não preciso de mais nada”. Um dia, Nuno Leitão, que trabalhou na quinta mas depois estudou informática de gestão, ofereceu-se para catalogar toda a biblioteca em computador. Laureano agradeceu, mas não precisava: tinha os ficheiros todos na cabeça. Todos falam do “doutor”, hoje, com incondicional afecto e uma orgulhosa emoção. A exaltação quase fanática, possessiva, de quem sente ter tocado uma esfera superior da existência. Não é fácil entender que tipo de influência Laureano exerceu sobre os espíritos destes jovens. Mas basta falar um pouco com eles para perceber que ainda lhe estão submetidos. Têm uma transparência comovente no olhar, que nos faria confiar-lhes a própria vida, sem hesitação. Nos últimos tempos de vida, Laureano começou a preocupar-se com a posteridade. Não teve nenhuma fraqueza religiosa – manteve-se agnóstico até ao fim – mas passou a tomar disposições. Doou todos os bens aos filhos para os poupar a burocracias e eventuais contendas. Organizado e precavido como era, passou os últimos anos a preparar o seu desaparecimento, mas a sua grande preocupação eram, obviamente, os livros. À medida que se aproximava do fim, ia perdendo o interesse por tudo excepto pelos livros. 5
  • 6. O Fim» Apercebendo-se de que os filhos não queriam a biblioteca, pensou em várias soluções, mas nenhuma lhe agradou. Por fim, deixou de se preocupar com o assunto, mergulhando numa estranha apatia, numa inconsciência meticulosa e desesperada. No seu afã de tudo medir pela beleza dos livros, de sublimar neles os seus dias e o seu futuro, nunca lhe passou pela cabeça que a biblioteca pudesse não ser eterna. Mesmo sabendo que em breve tudo aquilo seria vendido em leilão, não deixou de folhear, tratar e acariciar os seus livros, com a leveza confiante com que uma criança diz adeus a quem ama. Assim termina uma biblioteca que foi, afinal, a história da vida de um homem: "Em ano de comemoração dos seus 50 anos de existência, a Livraria Manuel Ferreira promove um importante leilão de cerca de 6000 espécies bibliográficas constitutivas de uma das mais valiosas bibliotecas particulares do século XX, formada pelo dedicado bibliófilo Dr. Laureano Barros. “ Adaptado de um artigo, publicado no Jornal Público, em Junho de 2009. A Equipa da Biblioteca, em Outubro, o Mês Internacional das Bibliotecas Escolares 6