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DIRETOR DE REDAÇÃO: IVANILDO SAMPAIO
DIRETOR-ADJUNTO DE REDAÇÃO: LAURINDO FERREIRA
EDITORA-EXECUTIVA: MARIA LUIZA BORGES
EDIÇÃO: DIANA MOURA, MARCELO PEREIRA, OLÍVIA MINDÊLO
EDIÇÃO DE ARTE: BRUNO FALCONE, FABIANA MARTINS, KARLA TENÓRIO
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PARA FOTOGRAFAR A CALUNGA DONA JOVENTINA.
RECIFE - PE, BRASIL
Novembro de 2013
expediente
sumário
PREFÁCIO
APRESENTAÇÃO
DEPOIMENTOS
MÚSICA
LIA DE ITAMARACÁ
SELMA DO COCO
GALO PRETO
MAESTRO DUDA
MAESTRO NUNES
SOCIEDADE MUSICAL CURICA
EUTERPINA DE TIMBAÚBA
ORQUESTRA CAPA-BODE
PAGODE DO DIDI
JOÃO SILVA
CAMARÃO
ARTES CÊNICAS & CINEMA
FERNANDO SPENCER
TEATRO EXPERIMENTAL DE ARTE
ÍNDIA MORENA
GRAVURA E CORDEL
MESTRE DILA
J. BORGES
JOSÉ COSTA LEITE
CERÂMICA & PINTURA
ZÉ DO CARMO
MARIA AMÉLIA
ZEZINHO DE TRACUNHAÉM
MESTRE NUCA
MANUEL EUDÓCIO
AGREMIAÇÕES
CABOCLINHO SETE FLEXAS
CABOCLINHO CANINDÉ
MARACATU LEÃO COROADO
MARACATU ESTRELA DE OURO DE ALIANÇA
MARACATU ESTRELA BRILHANTE DE IGARASSU
O HOMEM DA MEIA-NOITE
CONFRARIA DO ROSÁRIO
IN MEMORIAN
BASTIDORES
Quem são eles, de onde vêm, que alegria é essa tão contagiante, que nem
os dias tristes abalam o seu canto e o seu viver? Que mundo é esse, fei-
to de sonho e poesia, onde cantar é lei, criar é dote? Quem são esses filhos
do povo, irmãos da arte, esses pastores da divina criação, ungidos que se
escondiam no anonimato e que agora saem do seu pequeno mundo para a
posteridade? Foram por toda sua existência pelotiqueiros e saltimbancos
da grande comédia humana – que agora são resgatados para obra e graça
dos seus contemporâneos, porque homenagem póstuma é uma visão dis-
torcida da história presente. Alguns deram vida ao barro, outros perpetu-
aram a imagem. Todos eles honraram a vida e escreveram uma pequena
epopeia. Esses homens e essas mulheres que hoje são personagens deste
caderno especial Pernambuco Vivo, essas instituições sacrossantas mais
amadas do que conhecidas, são um pedaço vivo do povo de suor e sandá-
lias, da história e do orgulho de Pernambuco. Que sejam todos louvados,
com licença de Vinicius de Morais.
Louvada seja Selma do Coco, preta e sábia, elegante na sua echarpe co-
lorida, faceira nos brincos de ametista – guardiã das melhores tradições do
nosso cancioneiro popular: o coco, sob suas mais diversas manifestações.
Coco que já rendeu a Selma nove discos, um DVD e cinco filmes, patrimô-
nio tão expressivo que bate o de muitos famosos do showbiz norte-ameri-
cano. Seja louvada Lia de Itamaracá, cujo nome e cuja fama se espalham
poressesbrasistãobrasileiros,dadoqueaelasecreditaoresgatedaautên-
tica ciranda. E ciranda, como se sabe, não é coisa para amador. Louvada
seja Índia Morena, que mambembou pelos picadeiros dos circos mais fa-
mosos aos mais humildes, fazendo da cobertura de lona o teto seu de cada
caminhada – e que neste mundo de fantasia corre chão há mais de meio
século. Não ganhou dinheiro, não fez fortuna, não tem patrimônio – mas
virou Patrimônio e tem o riso largo dos que carregam nas mãos os praze-
res da vida. Seja louvada Maria Amélia, rainha do barro e da criação – as
imagens moldadas pelas suas mãos talentosas são ornamentos admira-
dos bem para lá do horizonte. E o que dizer de Galo Preto, hoje de barba
branca, com seu pandeiro e seu improviso, cortante como o chicote de um
feitor – vaidoso sempre com seu chapéu quebrado?
Este suplemento especial que hoje estamos entregando aos leitores, com
textos de Mateus Araújo, fotos de Heudes Regis, criação gráfica de Ícaro
BioneeediçãodeDianaMoura,tembemmaisnoseuricoconteúdo.Elefala
de personagens e instituições que se tornaram, por justiça e merecimento,
PREFÁCIO
PatrimôniosVivosdePernambuco.Perfilamnestahonrosagaleriaosgran-
des ceramistas Zezinho de Tracunhaém e Zé do Carmo, o Mestre Dila da
gravura, o cordelista José Costa Leite, o xilogravurista J. Borges, parceiro
do não menos famoso Ariano Suassuna, instituições como os Maracatus
LeãoCoroadoeEstreladeOuro,aConfrariadoRosárioeoCaboclinhoSete
Flexas.Pioneirodocinemapernambucano,louvadosejaFernandoSpencer,
há mais de meio século envolvido coma sétima arte. Dá para ver, portanto,
que a leitura deste suplemento será prazerosa e enriquecedora – um dife-
rencial que estamos colocando hoje nas mãos de nossos leitores.
IVANILDO SAMPAIO
Diretor de Redação
Eles são 29 homens, mulheres e agremiações. Com poesia, escrevem a
cultura pernambucana todos os dias. E fazem parte dela. Alimentam
ummundoimagináriohabitadoporbois,gigantes,calungas,bichosquefa-
lamesantosquesetransfiguram.Vivemempequenascasascoloridas,pin-
tadaspordentroeporfora.Quasetodosvêmdaperiferia,dosarredores,de
onde o vento faz a curva. Talvez por isso, não falem em linha reta, mas em
voltas.Contamdeummundosódeles,queencantae,àsvezes,fazdoer.São
osPatrimôniosVivosdePernambucoquemantêmaricatradiçãodacultu-
rapopulardoEstadoedãocores,sonsevozesàidentidadepernambucana.
Pela imensa contribuição que oferecem ao seu povo, eles mereceram o
título de Patrimônios Vivos. O reconhecimento oficial é oferecido pelo go-
vernodoEstado,pormeiodeumeditaldaSecretariadeCultura/Fundarpe.
Anualmente,umacomissãoestadual,formadaespecificamenteparaaelei-
ção, reúne-se, avalia os nomes inscritos e seleciona três novos membros
paraogrupo.OprocessopassapeloavaldoConselhoEstadualdeCultura.
Oreconhecimentofoiestabelecidoporleiem2002–aindaqueosprimeiros
15 nomes só tenham sido anunciados em 2005, retroativamente.
Desde então, a cada ano, três novos artistas ou agremiações são escolhi-
dos.ElestêmquemorarnoEstadohápelomenos20anosecomprovaratua-
çãodentrodaculturalocal.Mensalmente,recebemumabolsavitalícia–R$
1.021,62parapessoasfísicas;ouR$2.043,24parainstituiçõessemfinslucra-
tivos. É um incentivo para que se mantenham em atuação e repassem seus
conhecimentos.Emoutubro,oJornaldoCommerciopublicoudoiscader-
nos Pernambuco Vivo, apresentando aos leitores um pouco da trajetória de
arteeencantamentodessesguerreiros.Omaterial,queresultounestee-book,
reflete a própria formação cultural do Estado, em sua diversidade ímpar.
Maracatus,caboclinhos,frevos,forrós,sambaseafoxés.Poetasdamadei-
ra, da cerâmica e das letras. Atores e bailarinos. Desenho, pintura e escul-
tura. É uma incrível multiplicidade de manifestações culturais que se des-
dobram neste Pernambuco Vivo. Nomes que vão além do Carnaval, do São
JoãoedoNatal.Artistasque,comojáhaviaalertadoopoetaPadreAntônio
Vieira, deveriam estar na boca do povo, nas salas de aula.
Para contar um pouco dessa história, nos dedicamos por 18 meses. Os
Patrimônios Vivos de Pernambuco abriram as portas de suas casas, ate-
liês e sedes de instituições. Às vezes, as memórias se diluem no tempo,
e os registros se inscrevem nas entrelinhas. Suas biografias se confun-
dem com a arte que professam. Nas reportagens, o leitor vai perceber
APRESENTAÇÃO
que, para essas pessoas, vida e obra são uma coisa só. Durante toda a
viagem, impressiona o sorriso no rosto de cada um deles. Com orgulho,
deixaram que seu mundo fosse compartilhado.
Só assim foi possível narrar o retorno ao sucesso da cirandeira Lia de
Itamaracá e da coquista Selma do Coco, hoje grandes amigas. A contor-
cionista Índia Morena redescobre a infância. O elegante Galo Preto fala
de superação. As criações dos xilogravuristas e cordelistas Dila, J. Borges
e José Costa Leite revelam cores e rimas. Abrem-se as cortinas do Teatro
ExperimentaldeArte.ZédoCarmo,MariaAméliaeNucafazemoraçõesem
forma de esculturas. Arte e fé se encontram na Confraria do Rosário e nos
batuquesdosmaracatusLeãoCoroado,EstrelaBrilhanteeEstrela de Ouro.
EmPernambucoVivotambémpasseiammestresdoCarnavalmaiscolo-
ridodomundo.ReverenciamosOHomemdaMeia-Noite,descemosladeiras
aosomdosfrevosrasgadosdosmaestrosDudaeNunesenosemocionamos
aoritmohipnotizantedoscaboclinhosSeteFlexaseCanindé.Tambémtri-
lhamosestradasparaentrarnossalõesdoforróquemarcaoSertão,comJoão
SilvaeCamarão;econhecemosovigordasbandasfilarmônicasdaZonada
Mata:EuterpinaTimbaúba,Capa-BodeeCurica.DoAgresteedaMatache-
gam escultores como os mestres Nuca e Manuel Eudócio. Neste livro, por
fim,nos despedimos dos Patrimônios que já se foram: Manuel Salustiano,
Arlindo dos Oito Baixos, Ana das Carrancas e Canhoto da Paraíba.
Comdelicadosenredosdevida,essesartistasdescreveramsonhos,amo-
res, canções; e confidenciaram medos. Mesmo aqueles que esqueceram al-
guma parte da história pelo caminho, todos ainda acreditam num final fe-
liz. Salvaguardados por um título que os torna representantes oficiais da
arte pernambucana, mestres do barro, músicos, cineasta e carnavalescos
recontam narrativas tão suas, ao mesmo tempo tão nossas.
O projeto Pernambuco Vivo foi concebido por Mateus Araújo, autor
da maior parte dos textos, com algumas reportagens assinadas por José
Teles,BrunoAlbertimeDiogoGuedes.AsfotografiassãodeHeudesRégis,
com colaborações de Ricardo Labastier e Priscila Buhr. Todo o conceito
visual dos dois cadernos especiais e deste e-book foi pensado pelo desig-
ner gráfico Ícaro Bione. O hotsite hospedado no JC Online foi desenhado
por Fábio Monteiro. O material do e-book é muito enriquecido ainda pelos
vídeos editados por Caíque Mulatinho.
Falar de universos
muitas vezes
estereotipados, mundos
talvez esquecidos. Dar
voz aos artistas, permitir
que contem suas próprias
histórias. Foi isso que
propusemos no especial
Pernambuco Vivo. A partir
de horas de entrevistas
gravadas, fui seguindo
narrativas, desvelando
lembranças ora confusas,
ora tão vivas. Um desafio de
apuração e um desejo de
revelar para Pernambuco os
seus grandes Patrimônios. É
muito honroso entregar este
especial, um trabalho de
equipe. Um grupo dedicado
e sempre disponível. Dois
cadernos nossos, e, antes
de tudo, desses 30 orgulhos
pernambucanos.”
MATEUS ARAÚJO
Repórter
O grande desafio
desse trabalho
foi entrar na casa dos
personagens, na intimidade
de cada um, sem que a
nossa presença interferisse
no universo deles. Sem que
os apetrechos guardados
para ocasiões especiais
saíssem das gavetas e
armários, em reverência
à “visita da imprensa”.
Precisamos nos desprender
do olhar viciado para
desnudar suas verdadeiras
identidades. Queríamos
nos surpreender, como no
Turista aprendiz, de Mário
de Andrade, e experimentar
o prazer da descoberta a
cada encontro. Praticamos
o exercício de desconstruir
a imagem desses artistas
(sedimentada nos jornais, na
TV ou no rádio) para trazer,
em retratos do cotidiano,
um pouco da elegância
e dignidade que lhes
são merecidas.”
HEUDES REGIS
Fotógrafo
Ser não é a única
questão para
eles, mas sim o quanto
podemos compartilhar o
que cada um deles é para
nós. A pura e crua cultura
pernambucana permeada
em nosso imaginário. Cada
morador do Estado tem em
si um pouco da realidade
desses 30 personagens,
talvez não no cotidiano, mas
em nossas raízes. Símbolos,
cores, vestimentas, rosas e
lanças são representados
aqui por um outro ângulo,
um olhar contemporâneo,
numa estrutura que procura
harmonia, leveza e ritmo
para incitar o leitor a passear
por cada história como se
fosse uma única - nossa -
própria história.”
ÍCARO BIONE
Designer
“ “ “
depoimentos
MÚ
SI
CA
A PRIMEIRA VOZ DA CIRANDA
LIA DE ITAMARACÁ
Lia tinha um medo. Em abril de 1998, a cirandeira da Ilha de Itamaracá
foi convidada para cantar no festival Abril pro Rock (APR), no Recife.
“Olha, eu me meti no meio dos roqueiros. Menino, me deu um medo. Eu
pensei: ciranda com essa batucada será que casa, meu Deus?. E fui embo-
ra.” Lia estava longe da mídia. Lançou um LP em 1977, A rainha da ciran-
da, e sumiu do mapa. O convite representava uma possível volta. “Rapaz,
o show foi tão bom, mas tão bom, que, se eu pudesse, estava lá todo dia. Os
roqueiros ficaram doidos. Dançaram, cantaram, bateram palma. Parecia
que eu estava ali dentro há séculos.” Depois disso, já gravou mais dois ál-
buns, Eu sou Lia (2000) e Ciranda de ritmos (2008), e participou de fil-
mes, entre eles o incrível Recife frio, de Kleber Mendonça Filho. Lia é um
Patrimônio Vivo de Pernambuco.
O título lhe engrandece a alma. “É bom ter o trabalho reconhecido com
apessoaviva.Sealguémtiverdefazeralgumagraçapramim,façacomigo
Fotos: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
viva, para eu ver. Não faça depois de eu morrer, não. Esse negócio de a Rua
de Lia, a Praça de Lia, a estátua de Lia... Faça comigo viva”, avisa. Além da
projeçãonacional,conquistourespeitoaoredordomundo.Foichamadade
“divadamúsicanegra”,pelojornalnorte-americanoTheNewYorkTimes,
e comparada à voz da cabo-verdiana Cesária Évora, pelo jornal francês Le
Parisien. Mas sua história não é feita só de alegrias.
Aos 69 anos, completados em 12 de janeiro de 2013, a artista vive
um momento tranquilo depois de muitos altos e baixos. A cantora, que
nos anos 1970 experimentou o apogeu da ciranda, conheceu o aban-
dono na década seguinte e voltou a brilhar fora da ilha depois de ser
apadrinhada pelo movimento manguebeat, no APR.
Altiva e elegante, Lia era chamada de Rainha da Ciranda na década de
1970.Aclassemédiaeopúblicouniversitáriosaíamdacapitalnosfinaisde
semanaembuscadasrodasdecantigaàbeira-mar.OdestinoeraItamaracá
ou a praia do Janga – onde morava a famosa Dona Duda. No livro Do frevo
ao manguebeat, o crítico musical do JC, José Teles, explica que outros ar-
tistas também foram importantes na afirmação da ciranda. Em 1967, Teca
Calazans lançou um disco com a canção mais conhecida da cirandeira,
Quem me deu foi Lia, gravada inicialmente por Expedito Baracho. A auto-
ria da música foi discutida por muito tempo. “E no fim das contas a músi-
ca termina sendo minha mesmo, né? Quem deu foi Lia e acabou”, brinca.
Hoje a composição é de domínio público.
DE SOL E DE SAL
Foinoaugedapopularidade,em1977,queLialançouseuprimeiroálbum.
Logodepoisfoiesquecida.Naviradadosanos1970paraadécadaseguinte,
as indústrias fonográfica e cultural passaram a marginalizar a música po-
pularbrasileiranãoelitizada.Esseostracismo,somadoaoalcoolismoeàmá
administração da carreira, levou a cantora a uma crise artística e pessoal.
“Euviviadentrodeumpoço.”Hojeelacreditaafamaeavidaestávelque
tem ao trabalho do seu empresário Beto. Depois do show do APR, ela con-
quistou a admiração do público jovem e ganhou o mundo. “Perdi a conta
de lugares por onde já andei. Eu pensei que nunca ia sair dessa ilha. Aqui é
ummatosemcachorro.Ninguémolhapelacultura.MasjáfuiàAlemanha,
Paris, Lisboa. Menino, eu já bati o mundo, Jesus!”, sorri, sem esconder a
satisfação. Mesmo assim, diz que não quer ser a “rainha da cocada preta”.
Lia tem a humildade daqueles que já perderam tudo e tiveram que re-
começar. Não uma vez. Mas várias. No verão de 1988 para 89, ela teve a
residência incendiada. Eram 2h da madrugada quando a casa detaipa co-
meçou a pegar fogo. “Foi muita inveja. Eu tinha acabado de ganhar uma
geladeira, e os vizinhos estavam de olho grande. No outro dia, acharam
uma espécie de tocha no chão. Alguém tinha tocado fogo na minha casa.”
As idas e vindas da vida e da ciranda obrigaram Lia a ser, por 28 anos,
merendeira em uma escola pública da ilha, trabalho que lhe deu sustento
durante o período longe dos palcos.
A casa onde mora com o marido foi herdada da mãe adotiva – a quem
Liafoidada,aosdezanos,porfaltadecondiçõesfinanceirasdospaisbioló-
gicos. Chegar até lá é tarefa fácil. Ela mora em Jaguaribe, uma comunida-
de periférica da Ilha de Itamaracá, no Litoral Norte do Estado, que ainda
vive da pesca e do verão. “Chegando em Jaguaribe, é só perguntar onde é
minhacasaquetodomundosabe.”Esabemesmo.“Pegueàdireitaeváem
frente. A casa dela tem uns nomes no muro”, diz um ilhéu. São os nomes
da própria artista, grafados em mosaico na parede. Uma batida na porta,
e a mulher de 1,87m de altura atende com um sorriso largo e um abraço
forte. Morena da beira do mar, queimada do sal e do sol, Lia é doce.
Aconversaénoterraço,defrenteaojardim.Asparedesdapequenacasa
guardam emolduradas as lembranças dos 50 anos de carreira. Entre re-
portagens e cartazes,elatambémeternizaseuamorpelomarido,Antônio.
As fotografias dos dois são intercaladas por pequenas frases de declara-
ções deamor. “Acho que vi um gatinho” é uma delas. Uma foto de Mestre
Salustiano relembra a amizade dos dois. No jardim, entre plantas e flores,
estãoesculturasdepássaros,sapos,golfinhoedeNossaSenhoradaGraças.
IEMANJÁ, RAINHA
Como boa filha de Iemanjá, Lia gosta de azul e de enfeites. Usa cola-
res, pulseira e brincos. Adora batom. Da Rainha das Águas, diz que her-
dou o amor pelo mar, mas não frequenta o candomblé. “Só vou num ter-
reiro quando estou precisando de ajuda. Aí faço uns trabalhos. Não faço
o mal para ninguém, só peço ajuda para mim.” Transitando pelo sagrado
e o profano que se unem na cultura afro-brasileira, Lia é amiga do padre
da capela de Jaguaribe, a quem prometeu só come-
çar suas apresentações após às 21h, quando termina
a missa. O templo está localizado bem pertinho do
Centro Cultural Estrela de Lia. “Às vezes a gente es-
tava ali com a ciranda, aí tinha maracatu, tinha coco.
Tudo quase na porta da igreja. E o padre coma hóstia
na mão. Eu via a hora o santo cair. Aí ele pediu para
eu só começar quando a missa acabasse”, explica.
NaslembrançasquetemdainfânciaemItamaracá,Liaguardaasimagens
e a alegria das noites de pastoril e cavalo-marinho na praça de Jaguaribe.
Entre seus 21 irmãos, ninguém canta, dança nem participa dos brinque-
dos. Só ela. Desde criança se interessou pela ciranda. Aos 12 anos, já dava
entrevista a jornais e rádios e aos 18 se firmava como cantora. Atualmente
a senhora de sorriso largo faz da beira do mar seu palco e sua inspiração.
Há três quarteirões de casa fica o Centro Cultural Estrela de Lia, na areia
da praia. Às noites de sábado, o lugar recebe a famosa roda de cirandeiros,
Ouça a música
Eu sou Lia
Já fui à
Alemanha,
Paris, Lisboa.
Menino, eu já
bati o mundo,
Jesus!”“
com cerca de 500 pessoas, entre ilhéus e turistas.
A cantora fez da sua vida uma roda de ciranda. A velhice
que chega lhe aflige. Há um medo do esquecimento, como
também há um medo do ócio. À beira das águas, ela compõe
suas músicas. Sentada na praia, escreve as letras que são apa-
gadas pelas ondas, e reescritas, e cantadas. “É da areia para
o cérebro, do cérebro para o papel. Depois eu canto.”
Há15anos,Liatinhamedodesubirnopalcodosroqueiros.
Agoratemmedodofuturo.Elaseressentedafaltadeumsuces-
sor. A artista conta que teve quatro filhos, “mas nenhum quis
cirandar”.Todosmorreramrecém-nascidos.Jáperdeuaespe-
rançaquedepositavanosobrinhoEzaquiel,22anos:“Onegócio
deleéfutebol”,lamenta.“Tantacoisaquevocêtem.Seutraba-
lho,suaforça,sualuta.Evocêvaiemboraenãotemninguém
que diga ‘eu vou cantar hoje, vou fazer o trabalho dela, vou
fazer o show dela’. Infelizmente, cada cabeça é um mundo.”
Às noites de sábado,
a cantora realiza sua
famosa roda de ciranda,
no Centro Cultural Estrela
de Lia, em Itamaracá
Nove discos, um DVD
e cinco filmes
SELMA DO COCO
“Ra-rá.Êêêê,tchá.Ra-rá.Tchá,tchá,tchá,tchá”.DonaSelmadoCoco,
78anos,entoaessaonomatopeiaemtodamúsicaquecanta.Repete-a
também, intercalando às suas respostas, durante a entrevista. Virou uma
fórmula, um cacoete indispensável quando ela sobe ao palco ou assume a
postura da figura pública que conquistou fama no Estado, no Brasil e fora
daqui, graças ao melô da rolinha fujona, sucesso no final dos anos 1990.
Assim como Lia de Itamaracá, a coquista também foi redescoberta pela
mídia nacional numa edição do Abril pro Rock, em 1997, um ano antes que
a amiga.Aprojeçãoconquistadacolocouaex-tapioqueiradoAltodaSéem
pontes aéreas até então inimagináveis por ela.
Aquela noite continua bem viva nas lembranças da senhora cuja boca
reluz ouro a cada sorriso desde os 15 anos. Ela
escancara com orgulho o pivô dourado que já vi-
rou refrão de uma de suas músicas: “Moreninha
do dente de ouro, parece um tesouro a boqui-
nha dela. Se eu pudesse e tivesse dinheiro, eu
ia em Barreiros e casava com ela”. O show no
APR foi, de certa forma, fruto da ligação que a
cantora alimentava com Chico Science (1966-
1997). O ícone do manguebeat gostava de be-
ber da fonte do trabalho, da experiência e da sa-
bedoria de Selma do Coco, como afirma o crí-
tico musical José Teles, no livro Do frevo ao manguebeat. Acostumada
a cantar na praieira e popular Festa da Lavadeira, Dona Selma padecia
do mesmo medo que afligia Lia em relação aos roqueiros.
“Oúnicoshowqueeufizemquefiqueicismadadeninguémmederrubar
do palco foi o Abril pro Rock. Ali é dose, né? É um perigo para não cair do
palco. Misturar cococomrock,Ave-Maria,nãofoifácil,não.Eufuiporque
sou doida mesmo. Ra-rá. Sempre penso assim: se perdi, perdi; se ganhei,
ganhei. Menino, o povo gostou mais do meu show do que do show dos ro-
queiros.Osroqueirosficaramarretadoscomigo.Pegaramospanosdebun-
da e foram embora.Ra-rá.Eu dei tanta entrevista depois daquilo”, recorda.
Antes desinibida e alegre, Dona Selma tem se dobrado ao tempo e às in-
tempéries da vida. Tornou-se uma mulher de humor retraído, demora a se
soltar e traz o sorriso acompanhado por um olhar evasivo. Na casa em que
mora com uma nora e as netas, passa os dias sentada em frente à televisão:
“Se chegar gente, eu converso. Se não chegar, eu não converso”. Quando
nãoestáseapresentando,elarimanacabeçaasaudadequeguardadofilho
Zezinho, que era seu braço direito, amigo e produtor musical. Ele morreu
em abril de 2010. “Nem sempre a gente tem o que quer. Não vou dizer que
nãosoufeliz.DependendodomeuDeus,eusoufeliz,edomeucoco.Sónão
sou mais feliz porque eu tinha uma pessoa que vivia do meu lado, era tudo
na minha vida, mas Deus levou.”
“MORRE QUEM CANTA, MAS A CULTURA NÃO MORRE NUNCA”
Ela recebe a equipe de reportagem numa sala pequena, no térreo de
uma casa de primeiro andar bem conhecida entre os moradores do Largo
do Amparo, no sítio histórico de Olinda. Sarcástica e com respostas curtas
no início da conversa, Dona Selma atropela palavras ao narrar lembranças
com uma voz cansada, marcada pelo peso da idade. Diz que chegou à mú-
sica encaminhada pela família. “Meu pai e minha mãe. Minha avó e meu
avô.Todoselescantavam.Quandoeucanteioprimeirococo,tinhanabase
de uns dez anos.” Mas ainda não pensava na música como um ganha-pão.
Nascida em VitóriadeSantoAntão,DonaSelma– osobrenomeFerreira
Dona Selma do Coco,
durante apresentação na
Festa da Lavadeira, na
Praia do Paiva, em 2005
Durante seu
anonimato, Dona
Selma trabalhou
como tapioqueira no
Alto da Sé, em Olinda
da Silva ela quase nem se lembra de usar – veio
para o Recife aos 10 anos e por muito tempo
foi apenas mais uma entre os milhares de mo-
radoras do bairro da Mustardinha, Zona Oeste
do Recife. “Eu vivia abandonada. Ninguém me
conhecia na rua. Hoje todo mundo me conhe-
ce. Tu me conheceria se eu morasse lá ainda?”,
pergunta a coquista.
O anonimato saiu de sua vida quando ela pas-
sou a vender tapioca no Alto da Sé, em Olinda.
Foi peneirar a goma de mandioca e fazer a ale-
gria dos turistas. “Tapioqueira, antes, só tinha na Sé. Agora tem em todo
canto. Como o coco de roda. Antes só havia perto de onde tinha escravi-
dão. Agora tem em tudo que é lugar. Mas não tem a mesma qualidade”,
alfineta. “Aliás, tem. Não vou nem dizer que não tem qualidade, pra não
dar confusão”, desconversa. Ra-rá.
Era exatamente na Sé que a coquista dialogava sobre música e cultura
com Chico Science. Na febre dos anos 1990, que misturava lama e caos,
alfaia e guitarra, Dona Selma viu seu trabalho ser aproximado do pop – o
mesmo processo que contagiou a ciranda de Lia de Itamaracá. Nesse pe-
ríodo, as duas se tornaram grandes amigas. “Quando eu estou arretada,
esculhambo com ela. Digo: ‘canta aí, nêga safada’”, comenta Dona Selma,
numagargalhada.Amulher,quenãotempapasnalíngua,começaasesol-
tar na entrevista. Trinta minutos depois, ela se convence de que a reporta-
gem chegou para conversar. Mas alerta: “Não gosto de dar entrevista não.
Estougostandodedarentrevistaavocêsporqueeugosteidevocês”.Rá-rá.
Em 60 anos de carreira, Selma do Coco já gravou nove discos, um DVD,
fez participação em trabalhos de outros artistas e em cinco filmes per-
nambucanos. Ela sabe todos os números de cor. Em casa, há uma sala
só para guardar discos, títulos, troféus e recordações– espaço que ela e a
nora pretendem transformaremumpequenomuseu.“Morrequemcanta,
mas a cultura num morre nunca.”
ESTOU ENSINANDO E VOU ENSINAR
A neta Polyana, aos 9 anos, olha de lado a avó fazendo pose para as fotos.
A menina talvez não compreenda algumas frases tristes, ditas displicente-
mente,entregargalhadas,porDonaSelma.“Euestoumorrendo.”Amulher
que já gravou disco na Alemanha, conheceu a Europa e fez shows no Brasil
inteiro aos poucos vai preparando a neta mais nova para cantar. Já tem ou-
trasnetasquelheacompanhamnospalcos,masPolyanaagoraéasuaprio-
ridade.“Voucolocarelaparadartrêspalavrasparaovídeodevocês.Vouco-
locarelaaquidomeulado.Euestouensinadoevouensinar.Porque,quando
eu morrer, ela vai ficar com a mãe dela tomando conta do meu trabalho.
A metodologia que naquela casa se segue não tem mistério. É sem ro-
deios. Cantar coco é abrir a boca e cantar. Aprender a letra e sair entoan-
do. A única exigência da matriarca é que a pessoa tenha energia e ritmo.
“Num é todo mundo que tem não”, diz Dona Selma. “Rará”, solta Poly ao
finalizar uma das músicas, no colo da avó, imitando a coquista.
A senhora já não tem a mesma força que antes. Nos shows, alterna-se ao
microfone com outras pessoas. A idade vai dando os seus sinais. Algumas
lembranças começam a lhe escapar da memória. Saudosista, ela confron-
ta o presente com um certo ressentimento sobre o vaivém da cultura pop.
“As pessoas chamam para os shows quem tem fama, quem é bonita, quem
todo mundo conhece. Se você pudesse escolher entre eu e aquela menina
da Bahia (Ivete Sangalo), para contratar para um show, escolheria quem?
Aí é uma questão de gosto.”
Dona Selma, que em 2011 ganhou o prêmio Afro-latino como destaque
de mulher negra do País – ficou em segundo lugar, depois da atriz Zezé
Mota eà frenteda cantora Margareth Menezes –, agora leva uma vida cal-
ma, depois de ter se dedicado à família e à música. A vaidade virou apenas
obrigação de quem é famosa, deixou de ser um prazer. “Eu era vaidosa.
Agora num sou mais não. Sou velha, desarrumada. Estou arrumada agora
para dar entrevista. Você pega essa matéria e vai botar no jornal. O povo
vai me ver. Não posso estar rabugenta no jornal. Eu tenho que ajeitar o pi-
xaim, pra ver se chego à metade do que era.” Ra-rá.
Ouça a música
Moreninha do
dente de ouro
Peripécias de
um valente
Galo Preto
Tomaz Aquino Leão, Mestre Galo Preto, enfrenta uma vida de adver-
sidades e superação. Uma confusão o levou a um período de ostracis-
mo num momento decisivo para sua carreira. Em 1992, às vésperas das
eleições, o embolador e coquista foi preso acusado de liderar um grupo de
extermínio, em Peixinhos, uma das comunidades da periferia de Olinda.
Foram dois anos, dois meses e seis dias na cadeia. Ele sabe de cabeça. Não
havia prova que o condenasse. Nenhuma testemunha sequer. Mas ficou a
raiva e a vergonha. Nesse período, Galo Preto deixou de ver e viver a eclo-
são do manguebeat, a época em que uma nova geração em Pernambuco
exaltou os mestres da cultura popular.
NascidoemBomConselho,nodistritodePrincesaIsabel,noAgreste,ele
chegou ao Recife aos 12 anos. Veio com o irmão, o cantador Preto Limão.
“Fomos morar no bairro de Campo Grande. Meu pai não vivia em casa e
meu irmão terminou sendo um segundo pai. Naquela época, Preto Limão
fazia uma dupla de embolada com outro irmão nosso, Curió, cantando nas
praças e nos mercados do Recife. Muita gente me confundia com eles. Ma
seu não gostava de cantar na rua, de rodar o chapéu para pedir dinheiro”,
lembra o artista, hoje com 78 anos.
O jovem Tomaz, recém-chegado ao Recife, em 1947, sem ainda ter sido
batizado com apelido artístico, foi vender frutas nas ruas da capital e ter-
minou chamando a atenção do influente poeta Ascenso Ferreira. “Como
eu gostava de futebol e música, meu irmão me colocou para trabalhar
como ambulante. Disse que não queria que eu virasse vagabundo. Mas eu
saía vendendo fruta fazendo rima. E passava todo dia na porta de Ascenso
Ferreira,atéqueumdiaelemechamouedissequegostavadaminhamúsi-
ca.ElemedeuumcartãodeZilMatos,quetinhaumprogramaderádiona
época, e fui atrás. Lá cantei minha primeira música, que eu tinha feito aos
nove anos, chamada A pinta.” Dali pra frente, a vida foi de altos e baixos.
Galo Preto resolveu seguir carreira solo, sem a parceria de Curió, após
participar do programa de rádio. Participou
de caravanas culturais de uma emissora local.
Terminou sendo enganado e voltou sem cachê.
Nadécadade1970,épocaemqueastelevisõeslo-
caisveiculavamprogramaçãomusical,oartista–
àquela altura também tocando jazz – alimentou
parceriascomnomesimportantesdamúsicabra-
sileira,comoJacksondoPandeiro,CaubyPeixoto,
ArlindodosOitoBaixoseLuizGonzaga.Comsua
cantoria,foicriarjinglesemrepenteparaascam-
panhas políticas de Miguel Arraes. “Eu era pro-
curado por todo mundo, porque o repente fazia
sucesso com o povo. E dizem que nessa arte eu sou bom”, brinca o artista.
Décadas depois, se Galo Preto perdeu o bonde da história por conta de
sua prisão – quando tinha tudo para estar no elenco de artistas populares
das edições históricas do Abril pro Rock, como Lia de Itamaracá e Dona
Selma do Coco, em 1997 e 1998 –, ao tentar refazer a vida, ele foi valente.
Semdesistirdacarreira,GaloPretoconseguiuaospoucosabrirseuespaço
na atual cena musical pernambucana.
Em 2007, a convite da Secretaria de Saúde de Olinda, o coquista foi in-
tegrar um grupo de músicos locais que participou de uma campanha pu-
blicitária, ao lado de Beth de Oxum, Dona Selma, Aurinha do Coco e Zeca
do Rolete; e depois foi personagem-tema do documentário O menestrel do
coco, de Wilson Freire. De rima em rima foi limpando o seu nome, recon-
quistando a fama. Na semana passada, ele fez shows, em São Paulo, divi-
dindo o palco com o cantor pop pernambucano Otto.
Sempre elegante,
mestre Galo Preto
não dispença roupa
e chapéu brancos
Senhor elegante, ele não dispensa a roupa clara. Em toda apresentação,
está sempre com terno, calça e chapéu. “Recentemente eu estava com um
empresário que começou a dizer para o povo que eu era de candomblé, só
porque me visto todo de branco. Como sou negro, me ligavam a um preto
velho. Mas não sou do candomblé nem tenho nada contra. Só não quis que
alimentassem uma mentira”, conta.
Hoje o mestre mora na casa da filha, com ela e o genro. Ele se casou
cinco vezes, mas agora está viúvo. Galo Preto tem um herdeiro musi-
cal: o filho Telmo Anum, de 39 anos, que é guitarrista e percussionis-
ta. O título de Patrimônio Vivo, no caso de Galo Preto, foi mais do que
um reconhecimento artístico, um incentivo ao seu trabalho. Para ele,
foi uma resposta à sociedade.
Ouça a música
Preto é bonita cor
Música correndo
nas veias
Maestro Duda
Ofrevo, para o maestro Duda, não é um simples gênero musical – ou
um patrimônio da humanidade, como o próprio músico é do Estado
de Pernambuco. O gênero sempre esteve na trajetória e no cotidiano do
múltiplo instrumentista mais do que como acordes, partituras e arranjos.
Duda é capaz de se magoar com o frevo, demonstrar seu amor por ele, te-
mer o futuro, dar conselhos para o presente. São duas personalidades for-
tes, talvez, em uma relação de amor incondicional e mágoa reticente. Aos
78 anos, o maestro deve seu prestígio em Pernambuco ao frevo, mas a ale-
gria do título traz também o ressentimento com o pouco reconhecimento
das suas outras composições.
Porque,alémdemestredofrevo,JoséUrsicinodaSilva,nomedecartório
de Duda, é um maestro múltiplo, que passeia, como todo bom mestre, do
erudito ao popular. A música faz parte do seu corpo, como se corresse no
seu sangue. Mais do que contagiado pelo vírus da música, Duda acredita
que já nasceu com ele; estava fadado aos instrumentos, notas, partituras,
suítes, arranjos e, claro, suor. “Quando criança, aprendi a tocar em uma
banda, a mesma em que meu pai tocava, a mesma em que meu avô tocava.
Não tinha internet, porque hoje todo mundo nem sai dela. Naquele tempo
nãotinha internet, nãotinhatelevisão,músicaeraoqueeutinhaprafazer.
Eu não tinha outra opção, não”, aponta.
Diz logo que a sua história, que começa em Goiana, pode ser facilmente
encontrada na internet. E pode mesmo, nas mais diversas formas, de enci-
clopédias de música até duas dissertações de mestrado. “Mas, se você qui-
ser,contonovamente.”Pernambucanoeparaibanoaomesmotempo,Duda
seconsideraum“meeiro”,porternascidoa62kmdeRecife,pertodolimi-
te com a Paraíba. O começo na música, seguindo os passos paternos, foi na
bandaSaboeira,agranderivaldogrupoCurica.Ali,aosoitoanos,conheceu
o saxofone, seu companheiro de décadas que lhe introduziria ao frevo, à
partitura e a todo o universo musical. Dois anos depois, aos 10, já mostrava
a sua criatividade precoce: depois de ver um filme com o mesmo nome no
cinema, compôs Furacão, o seu primeiro frevo, com “um arranjo simples”.
A partir dali, foram mais de 500 discos gravados. Veio para o Recife em
1950 tocar na lendária Jazz Acadêmica, fundada por Capiba. Sua trajetória
se confunde com o frevo, mas ultrapassa em muito o gênero. A Suíte nor-
destina, por exemplo, já foi executada por orquestras americanas, japone-
sas e alemãs – “e todas as bandas brasileiras”. “As orquestras sinfônicas do
mundo todo e as bandas sinfônicas e filarmônicas do Brasil inteiro tocam
músicas minhas. Tem frevo no meio. Mas tem baião, tem xote, tem mara-
catu, tudo que é música nordestina tem”, conta. “O maestro Júlio Medalha
disse em uma entrevista que, se eu tivesse nascido nos Estados Unidos, eu
seria um Quincy Jones”, revela, com orgulho.
Nas composições eruditas, quase sempre arranja um modo de ressaltar
sua origem, carregando-as do popular. Só que sua capacidade de arranja-
dor não para aí. Vai de hinos de colégio (“Vez ou outra paro um estudante
do Colégio Bandeira, na frente de casa, digo ‘venha cá’ e peço pra ele can-
tar o hino, só para brincar. Depois digo que eu compus”) até arranjos para
CDs de igrejas, de suítes a frevos de rua. “Música para mim tem que ser
boa. Pode ser erudita, popular, sacra, evangélica.”
FREVO NÃO É PARA OUVIR SENTADO
Ao explicar uma música, Duda para o que estiver dizendo e começa a
cantarolar. Acompanha a voz com a mão, como se regesse a si mesmo. A
melodia é um idioma à parte para o maestro, uma linguagem afetiva, em
que ele é capaz de contar a história do Brasil, homenagear um filho ou um
amigo, representar uma região, contar suas dores ou alegrias.
AmúsicaéessalinguagemparticularparaDuda;ofrevo,asuaprimeirae
maisdúbiapaixão.Oritmoépartedasuavida.Compôsumparacadaumde
seusfilhos.Umdosmaisfamososéemhomenagemàquelequeseguiuseus
passosnamúsica,NinoPernambuquinho,hojeprofessordoConservatório
Pernambucano.Oproblemaéque,comoofrevoquasenãoélembradofora
do período carnavalesco, o maestro se ressente da falta de trabalho. “Só se
lembram de mim no Carnaval, durante três dias. E o resto do ano?”, diz.
“ParatocaraquiemPernambuco,tenhoqueenfatizarmaisofrevo,oresto
da minha obra é esquecida. Afinal, santo de casa não faz milagre.”
Nesse vaivém sentimental, em determinado período da vida deixou de
compor frevos. Até nas suítes com ritmos populares, escolhia o maracatu
e a ciranda. É a mágoa que continua viva. Duda, no entanto, não consegue
esconderpormuitotempoarelaçãoíntimacomomaispernambucanodos
ritmos: se preocupa com seu futuro como se ele fosse um filho que vai se-
guir aqui quando o maestro se for.
Outrodesapontamentoénãoserchamadoparamaisatividades.Otítulo
dePatrimônioéumorgulho,maselenãoquerserentronizadoemumtítulo:
quer continuar tocando o tanto quanto possível. “Já que eu estou vivo, sou
patrimônioeestoumelocomovendo,meusem!Estouprontoparatrabalhar,
euprecisotrabalhar”,avisa.“Apesardeestarcom78anosdeidade,euestou
vivo”,brinca.Seusonhoépodernãosótocar,masensinarseuconhecimen-
to sobre o frevo para alunos, até para conectá-los com a essência do ritmo.
“Estão descaracterizando o frevo. A juventude está pensando que o que
é feito hoje é o frevo de verdade. É preciso que se conheça o frevo, não se
podecolocarelenumavitrine,tombar,comoumaigreja,ummuseu”,alerta.
O problema, para ele, não é a modernização do ritmo, mas sim ver o frevo
servalorizadocadavezmaisnopalcoenãonarua.“Pormaismodernoque
um frevo seja, é a orquestra na rua que toca ele como ele é. Não tem solis-
ta, não, é só a orquestra tocando frevo”, ensina, lamentando que, em 2012,
entre os três primeiros lugares do concurso municipal, nenhuma canção
era de rua –todas seguiamarranjosquesóserviriamparashows.“O frevo
é contagiante, o frevo é para balançar o povo, não é formal. Ficar sentado
ouvindofrevocomonumvelório?Ofrevonãofoifeitopara isso”, sentencia.
DIOGO GUEDES
Ouça a música
Suíte nordestina,
executada pela
Orquestra do
Maestro Duda
Caso de Amor
com o Frevo
Maestro Nunes
Em 2003 o maestro Nunes, com a autoridade dos seus então 72 anos,
lançou dois álbuns de frevos, um de rua, outro canção. Ambos com
composições inéditas. Algo raro, numa época em que o ritmo andava por
baixo,vivendoderegravações.Elerepetiriaofeitocincoanosdepois,quan-
docompletouseis décadasdedicadasnãoapenasaogênero,masaosdiver-
sos ritmos pernambucanos.
Obviamente ele é mais conhecido pelos frevos instrumentais que
compôs, alguns quase de domínio público, como é o caso de Cabelo
de fogo, que divide com Vassourinhas (de Joana Batista e Matias da
Rocha) o título de marcha-frevo mais executada nas ruas do Estado du-
rante o Carnaval. É uma melodia que todo conterrâneo conhece de
Fotos: Marcos Michael/JC Imagem/22-1-2007
cor, embora boa parte não saiba o nome do autor.
Nascido em Vicência em 26 de junho de 1931, Patrimônio Vivo de
Pernambuco desde 2009, José Nunes de Souza tem uma trajetória artísti-
ca muito parecida com a de outros grandes nomes do frevo, como Levino
Ferreira, Capiba, José Menezes. Começou a tocar ainda de calças curtas,
passou por bandas de música do interior e veio desaguar no mar.
NoRecifepassoupordiversasagremiaçõesmusicais,comoBandaUnião
Operária, Banda Manoel Óleo, União Operária da Macaxeira e Banda do
Liceu de Artes e Ofícios, onde fez curso formal de música. Também tocou
na banda do Cassino Americano, no Pina, e foi funcionário da Banda da
Cidade do Recife. Sua ligação com o Partido Comunista do Brasil o levou à
trabalhar não apenas com as citadas orquestras operárias, como a ser um
dos mais atuantes músicos do Movimento de Cultura Popular,
o MCP, criado no primeiro governo Miguel Arraes.
Militância que não justifica, mas explica um pouco o ostra-
cismo pelo qual o maestro Nunes passou ao longo dos anos.
Ele tocou frevo na Assembleia Legislativa, na posse de Miguel
Arraes como governador em 1960, como também esteve no pa-
láciodoCampodasPrincesasnodia1ºdeabrilde1964,quando
o Exército ocupou o local e prendeu o governador. Ele costu-
mava contar que seguiu em passeata até o palácio para se soli-
darizar com o governo eleito pelo povo. No caminho, os mani-
festantes esbarraram nas forças militares que, embora o grupo
queprotestavaestivessedesarmado,dispararamosmosquetões
contra aqueles que faziam resistência ao golpe. No extinto pro-
grama do apresentador Roger de Renor na TV Universitária,
Nunes contou que correu da Praça da República, onde fica o
Paláciodogoverno,atéaPraçadoEntroncamento.Quandoche-
gou em casa, criou logo um frevo. Depois passou alguns meses
escondido no campo para não ser morto.
Além de ter trabalhado em vários projetos do MCP, que em-
pregava aculturapopularparapolitizar,alfabetizare,claro,di-
vertir, Nunes militava no PCB a ponto de dar uma de gazeteiro vendendo
o jornal Novos Rumos, órgão do partido que funcionou de 1959 a 1964 e
davadestaqueaosacontecimentosemPernambuco.Essaatuaçãoolevoua
ser demitido da banda municipal e amargar o isolamento de ser oposição,
num tempo em que muita gente fazia questão de ser situação.
Numa curta entrevista disponível no YouTube, Nunes afirma que nun-
ca compôs pensando em dinheiro. Atendia o apelo da música, que cor-
re no seu sangue desde que nasceu: “Aceito a música como se fosse uma
mulher que eu amasse e, ao mesmo tempo, ela fosse ingrata para mim”.
Talvez ingrata, mas nem por isso deixou de ser fonte de inspiração. Uma
fonte mais que generosa, que lhe rendeu cerca de três mil composições.
No citado álbum 60 anos de frevo, Nunes, a exemplo do fez Lamartine
Entre os frevos
clássicos
compostos por
Nunes, estão Cabelo
de fogo e É de
perder o sapato
Babo,homenageiadiversasagremiaçõescarnava-
lescas, dedicando-lhes frevos inéditos. Foi o caso
dos títulos Este cachorro é feio, mas não morde,
para a troça Cachorro Feio de Santo Amaro, ou
Pra você doutora Mércia, feito para a Turma da
Jaqueira Segurando o Talo. Entre seus clássicos
mais consagrados estão Cabelo de fogo, É de per-
derosapato(quebatizouoálbumduplodedicado
ao centenário do frevo em 2007), e Mosquetão.
Esta última é acitada composição inspirada nos
episódiosqueviveunofatídico1ºdeabrilde1964,
quando fugiu para não morrer dos tiros disparados pelos soldados, que
feriram e mataram manifestantes. A vingança do maestro foi um frevo:
“Onde o coronel usava o mosquetão, eu usava a alegria”.
Uma alegria que ele espalhou pelo Carnaval, apesar de durante muito
tempo ter sido subestimado como compositor, pela estrutura simples dos
seus frevos, nos quais incorriam poucos acidentes na execução. No en-
tanto, a geração que já há algum tempo dá as cartas no frevo tem Nunes
como uma das principais influências, chegando a estudar com ele, como
Francisco Amâncio de Souza, o Maestro Forró: “Com uma habilidade tal-
vez inconsciente, Nunes começou a compor de uma maneira que sua mú-
sica pode ser executada por uma orquestra de qualquer nível. Muita gen-
te criticava, mas acabou que a minha geração – eu, Spok e muitos outros
músicos – passou pela escola de Nunes. Meu primeiro professor de música
sugeriu que os alunos fossem ensaiar na escola de Nunes, ali no Pátio de
Santa Cruz. Fui várias vezes. Ele foi de grande importância para o frevo.
Conseguiucriarumfrevoinstrumentalbonito,simplesedefácilexecução,
o que é uma tarefa muito difícil”.
AescoladefrevodoMaestroNunes,dirigidaprincipalmenteparacrian-
ças, filhos de integrantes de agremiações carnavalescas, foi uma das res-
ponsáveis pela renovação de instrumentistas no Carnaval pernambuca-
no. Na sua oficina na Casa do Carnaval, no Pátio de Santa Cruz, ele cui-
dava com zelo e paciência da restauração de antigas partituras de fre-
vo. Aos 82 anos, infelizmente, o maestro do povo foi pego pelo mal de
Alzheimer. Fica a dúvida se realmente esqueceu a música, “mulher amada
e ingrata”, que o tratou com carinho e desprezo ao longo de mais de sete
décadas de vida a ela dedicadas.
JOSÉ TELES
Maestro Nunes
tem parcerias com
grandes nomes do
frevo pernambucano,
como Levino Ferreira,
Capiba e José
Menezes
Meu time é
uma filarmônica
Sociedade
Musical curica
Marianemquisveranovela,tirouosbobesdoscabelosesaiudecasaàs
pressasparanãoseatrasar.Antôniofoidiretodotrabalho.Francisco
levou os netos. Severina e João saíram correndo da escola, assim que as
aulas acabaram. Todo mundo foi chegando de mansinho, se sentando nas
cadeiras de plástico para assistir à apresentação. Todo mundo foi se cum-
primentando. Todo mundo se conhecia. Bastou o maestro abrir a pasta de
partituras e erguer a batuta para os cochichos silenciarem. E começou o
concerto em Goiana, na Zona da Mata Norte.
Patrimônio Vivo de Pernambuco, a banda filarmônica Curica se or-
gulha também do outro título: é a mais antiga em atividade da América
Latina. O grupo, inicialmente com 15 músicos,foi fundado em 1848 por
José Conrado de Souza Nunes, na Igreja de Nossa Senhora do Amparo
dos Homens Pardos, para tocar nas festas católicas da cidade. A origem do
nome da agremiação tem duas versões. Há quem diga que uma senhora
chamada Iria, ao ouvir o som que a banda fazia na rua, disse ao maestro
que a música parecia o grito de uma curica (um pássaro de canto estri-
dente). Outros afirmam que Iria, escutando uma das polcas do repertório,
achou que o refrão soava como “cu-ri-ca-cá”.
Se nenhuma dessas versões prevalece sobre a outra, é consenso que a fi-
larmônica acabou se transformando em um mimo dos moradores. Não de
todos,masdeumapartedeles.Osgoianensesdividemsuapaixãoentreduas
bandas, a Curica e a Saboeira, fundada anos depois, em 1855. “Filarmônica
de interior é que nem time de futebol da capital: cada família torce por
uma”, explica Edson Júnior, presidente da Curica.
Edsoneafamíliasãoexemplosdessadevoçãoàbanda.Elechegouàagre-
miação ainda criança, sonhava em ser músico. Lembra-se daquela época
com orgulho. “A gente mal tinha instrumento e uniforme, se mantinha a
partirdaajudadossócios-colaboradores.Quandoeuiafazeracobrança,não
dava nem um salário mínimo. Cada um contribuía com R$ 4, R$ 2”, diz.
Durante dois anos, ele ficou na filarmônica estudando teoria musi-
cal, já que seus pais não tinham dinheiro para comprar instrumento.
Um convite do maestro da Saboeira fez com que ele saísse da Curica e
fosse para o grupo rival. “Lá eu teria instrumento. A Saboeira sempre
teve mais condições, porque é uma banda de comerciantes, gente rica. A
Curica é do povo mais humilde, dos operários”, explica o músico. “Depois
que aprendi a tocar e com o dinheiro que juntei, comprei o trompete e
voltei para minha banda de origem.”
Orgulhoéumapalavra-chavedentrodaCurica.
Nahistóriaqueérepassadapelasgeraçõesdemú-
sicos, uma das lembranças sempre recontada é a
do dia em que a banda tocou com o batalhão da
Guarda Nacional que recebia o imperador Dom
Pedro II, quando ele visitou Goiana em dezembro
de1859.Essapresençaemmomentosimportantes
da história nacional, aliada à sua resistência em
fazer música no interior, terminou fortalecendo
a imagem da Curica no restante do Brasil e fora
do País. Em 1944, a filarmônica recebeu a visitado musicólogo uruguaio
Francisco Curt, para pesquisar de perto, na sede da banda, partituras do
século 19.
Patrimônio Vivo de Pernambuco desde 2005, atualmente o grupo se
reúne para os ensaios na rua da Igreja de Nossa Senhora de Rosário dos
Ouça a música
Vassorinhas,
composta por
Matias da Rocha e
Joana Batista
Filarmônica
do interior é
que nem time de
futebol da capital:
cada família torce
por uma.”
Edson Júnior, maestro
da Banda Curica
“
Negros,noCentrodeGoiana.Acasa-sedefoiuma
doação recebida no dia do centenário da filarmô-
nica.OacervodorepertóriodaCuricareúnecer-
ca de 800 peças, entre músicas religiosas, clássi-
cos da MPB, composições barrocas e dobrados.
Quando chega o Carnaval, os 60 músicos se di-
videm também nas orquestras de frevo que ani-
mam as festas locais.
Um dos integrantes mais jovens da Curica é
Victor, 14 anos, há quatro dentro da filarmônica.
São 165 anos que o distanciam da primeira geração do grupo. “Ninguém
me incentivou. Eu mesmo quis vir. Minha mãe não gosta que eu faça par-
te, porque quer que eu vá estudar, mas eu me esforcei e entrei. No começo
é difícil. Mas,quando a gente se acostuma, passa”, diz. Tímido, o pequeno
trompetista vai se entrelaçando aos mais experientes e é um dos desta-
ques das retretas. Dois dias por semana ele tem aula de música na sede da
banda. De Goiana já viajou para Maceió e Portugal,a fim de se apresentar.
Cursando o nono ano do ensino fundamental, o menino que adora tocar
frevo – “O meu preferido é Vassourinhas” – sonha com o futuro: “Quero
ser da Marinha ou do Exército, mas sem deixara música de lado. Meus
amigosdaescolaachamissochato,falamparaeusair.Maseunãovousair,
não. Gosto de futebol, mas prefiro a banda”.
Victor, trompetista, é
um dos integrantes
mais novos da
Banda Curica
festa no interior
euterpina
de timbaúba
Toda a cidade estava lá para assistir à estreia. Em Timbaúba, Zona da
Mata, o povo se aglomerava na Praça Dona Guiomar (hoje Praça João
Pessoa) para ver a primeira apresentação da banda Filarmônica Euterpina
de Timbaúba. Fundada em fevereiro de 1928, só dez meses depois ela fazia
seu primeiro dobrado, no mesmo lugar em que havia sido criada, como se
fosseumgritodeindependênciadadopeloprofessorJoséMendesdaSilva,
naépocaaos23anos.“ExistiaaSociedadeMusicalPrimeirodeNovembro,
mas a banda sozinha já não dava conta da demanda dos eventos da cidade.
As apresentações eram muitas e havia muitos músicos por aqui”, lembra o
atual presidente da Euterpina de Timbaúba, Eder Gomes.
Batizada com um nome que faz alusão à deusa da música, Euterpe, a
banda filarmônica é umorgulhodetimbaubenses.A sededogrupoficano
centro da cidade, ao alto, de onde se pode ver parte do comércio e das ave-
nidasprincipais.Abandasurgiuemnovedefevereirode1928.Atualmente
as coisas vão bem para a filarmônica, mas nem sempre foi fácil. Em 1962,
enquanto o Brasil fervilhava por causa dos movimentos político-sociais e
conflitos partidários, a falta de incentivo público
fez com que a Euterpina de Timbaúba fechasse as
portas. “Foram problemas externos, de persegui-
çãopolítica; einternos,dedivergênciasdaprópria
diretoria”,dizEder.Sóem1989équeogrupofoire-
montado,pordecisãodeex-integrantesecomaju-
da de sócios e colaboradores, agora na sede atual.
O prédio de dois galpões, que aos poucos vai
sendo reestruturado, guarda as lembranças e a
história da música de Timbaúba. Aqui 42 músicos com idades de 17 a 65
anos redescobrem todo dia o prazer da arte e lutam para se modernizar.
Desde 1995 à frente da regência da banda, o maestro Josivânio Rique de
Lima, 41 anos, deu uma revirada no repertório das apresentações, incor-
porou novos arranjos e canções contemporâneas às retretas, incluindo
uma feliz releitura de Toque de Luanda, criada a partirdas partituras do
Maestro Forró, da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério.“O público
jovem não estava muito interessado nas nossas apresentações. Mudamos
o repertório da banda, tocamos músicas mais jovens e fazemos algumas
coreografias desde que o novo maestro assumiu.”
O resultado é que, além de concertos mais atrativos, o grupo ganhou
mais alunos. A cada mês, graças a um projeto municipal, a Euterpina e
a Primeiro de Novembro circulam pelos bairros mais carentes da região
levando música para todos. A banda de Timbaúba é Patrimônio Vivo de
Pernambuco desde o final de 2012. Além da filarmônica, o grupo também
tem uma orquestra de frevo, criada em 2010.
Mudamos o
repertório da
banda, tocamos
músicas mais
jovens .”
Eder Gomes, presidente
da Euterpina Timbaúba
“
salvos pela retreta
orquestra capa-bode
“As bandas de interior equivalem aos conservatórios da capital.” A
afirmação é feita por João Paulo Ferreira da Hora, 42 anos, pre-
sidente e maestro da Banda Euterpina Juvenil Nazarena, de Nazaré
da Mata. Ele é o próprio exemplo de suas palavras. Foi no grupo que
começou a dar os primeiros passos como músico. Hoje ganha o País
como integrante da banda do cantor Siba.
A Juvenil Nazarena foi criada no dia 1º de janeiro de 1888. À época,
Nazaré era uma cidade pequena, onde existia um grêmio dos comercian-
tes locais–músicosnas horas vagas. Por isso surgiu a ideia de se criar uma
banda. Como é tradição no interior, o grupo passou a celebrar o aniversá-
rio de fundação comum churrasco de bode. O animal era capado meses
antes. “Quando o povo da cidade via os músicos passarem, dizia: ‘lá vão os
capa-bode’”, diz João, explicando a origem do nome popular que a banda
recebeu na cidade: Capa-Bode.
Num bonito casarão, em frente à Praça do Frevo, fica a sede do grupo,
onde acontecem ensaios e reuniões. Tem fachada de platibanda com de-
senho marcante e dentro um lindo piso de ladrilho hidráulico. Há cinco
anos o lugar passou por uma reforma para consertar o telhado, danificado
pelaschuvas.Nasparedes,asrecordaçõesdesses125anosdehistóriaestão
enfileiradas em fotografias e pôsteres, ao lado de uma imagem de Santa
Cecília, padroeira dos músicos.
Manter uma banda filarmônica não é tarefa fácil nem barata. Os custos
para comprar e manter os instrumentos são altíssimos. Graças ao título
de Patrimônio Vivo, que concede uma bolsa mensal à Capa-Bode, a situ-
ação melhorou um pouco, segundo João Paulo. “A gente pode dar uma
gratificação aos músicos. O trabalho é de inclusão social. A gente prepa-
ra o cidadão, dá uma profissão. Os professores que estão aqui muitas ve-
zes trabalham voluntariamente. Mas eles precisam ganhar alguma coisa,
têm família”, diz ele, que também é representante comercial. “Tiramos
muita gente do meio da rua e formamos profissionais. Há pessoas que sa-
íram daqui e hoje são professores do Conservatório Pernambucano ou
tocam em grupos de renome.”
Além da banda,a JuvenilNazarenamantémumaescoladeformaçãona
qual atende crianças a partir dos 8 anos. Ao todo, são 60 alunos. Eles tam-
bémsedividememumaorquestradefrevo.Umadasmaioresdificuldades
da agremiação, no entanto, é a preservação de sua memória. Com mais de
um século de existência, a filarmônica deixou de registrar vários fatos do
passado e agora não tem como resgatá-los.
Além de maestro
da Capa-Bode, João
Paulo integra a banda
do cantor Siba
Referência no Samba
Pagode do Didi
Opagode, no bar do Didi, acontece. Não é agendado. Tudo começa com
um encontro de amigos. Há 32 anos, Valdemir de Sousa resolveu dei-
xar o trabalho de gerente no restaurante português Adega da Mouraria,
no Bairro de Santo Antônio, para abrir seu próprio negócio. Levou consi-
go um violão, a coragem de viver um sonho e a ousadia de ser seu próprio
chefe. Ele nem esperava que as suas partituras de clássicos da MPB da-
riam lugar às rodas de samba que já trouxeram ao Recife grandes nomes
nacionais antes mesmo de se tornarem famosos.
No apertado estabelecimento da estreita Rua Ulhoa Cintra, em meio
ao caos do Centro do Recife, seu Didi relembra a vida de festas. Enquanto
arruma o bar para mais uma noite de rodas de samba, que tomam o es-
paço de quinta a sábado, das 18h às 23h, o senhor de cabelos grisalhos vai
fazendo listas. “Aqui eu deixo todos os meus instrumentos: violão, cava-
quinho, reco-reco, pandeiro. Mais tarde os meninos chegam e pegam os
instrumentos, aí vira pagode”, diz. Foi assim que
as coisas começaram.
Recifense, Didi viveu a infância na Bomba
Grande, Zona Oeste da capital, onde brincava à
beira do rio. Em casa, acompanhava a boemia do
pai, que virava a noite tocando boleros, tangos,
valsas e sambas no violão. O menino gostava de
ver o pai e seus amigos tocarem. Observava cada
nota,prestavaatençãonosacordeseaprendeuas-
sim, só de olhar. O pai não queria. “Naquela épo-
ca, andar com violão debaixo do braço era perigoso. Você podia ser preso
e era descriminado. Hoje a turma tem respeito.”
Já adulto, dominando o violão, Didi foi trabalhar na Adega da Mouraria.
Antes havia sido almoxarife, datilógrafo e auxiliar de escritório. Na Adega
da Mouraria, viu passar nomes importantes da música nacional e lusitana:
Jair Rodrigues, Cauby Peixoto, Amália Rodrigues, Pery Ribeiro e Agnaldo
Timóteo. Na mesma época, era aluno do Conservatório Pernambucano.
Foi no beco estreito do bairro de Santo Antônio que Didi conseguiu
unir suas paixões: a música e um restaurante só seu, de onde tirou sus-
tento para criar os três filhos. “Hoje eu sou a referência do pagode em
Pernambuco”, diz, com orgulho de ser pagodeiro.
O estabelecimento
fica numa rua
estreita do centro
do Recife, de
quinta a sábado
vira uma grande
roda de pagode
Um outro rei do baião
João Silva
João Silva, 78 anos, confirma o velho ditado sobre a força que as coisas
parecem ter quando precisam acontecer. Roupa do couro como único
patrimônio,16anosincompletos,resolveusemandarparaoRiodeJaneiro,
a então feérica capital federal. “Queria ser artista de todo jeito”, lembra ele,
que morava com a mãe no bairro recifense de Cajueiro. “Grande m...”, gar-
galhaele,donodeumhumortãoindomávelquantootalento.“Pegueiuma
carona em Garanhuns e fui-me embora até Alagoas.”
No caminho se ofereceu para trabalhar num trem. Como pagamento,
teria a passagem. “O sujeito perguntou quem conhecia o Rio e eu disse
logo que conhecia.”João nunca tinha saído de Pernambuco. O candidato a
artista chegou ao Rio para entregar a planilha de passageiros da viagem e,
sonho maior, conseguir uma vaga na Rádio Nacional. Morou por três dias
numalberguepúblico.“Seeunãoarrumasseemprego,teriaquesairdelá.”
Menos de três luas depois, tinha arrumado não só ocupação como
moradia. “Fui trabalhar na oficina de uns portugueses e fiquei moran-
do por lá. Lavava a roupa e ficava de cueca, esperando secar”, diz ele.
Uma semana depois, os primeiros sinais concretos da prosperidade:
já tinha dinheiro para mudar de trajes.
Aartelhedeumaisquecamisas.Comumacarreiraascendentenostem-
pos áureos da rádio brasileira, iria se tornar um dos maiores parceiros de
Luiz Gonzaga, conterrâneo que só conheceria na Cidade Maravilhosa. O
filho de Januário gravaria, ao longo da vida, nada menos que 140 canções
assinadas por João. Uma pequena parte, contudo, de seu enorme cancio-
neiro. Com mais de mil composições, ele costuma ser regravado por gente
como Ney Matogrosso, Gilberto Gil, Ivete Sangalo... “Ivete é uma danada,
uma beleza de cantora”, diz ele, que teve a sua Nem se despediu de mim
gravadarecentementepelasacolejantedivabaiana.“Étambémumaamiga
arretada. Vai longe na conversa de safadeza”, brinca.
GonzagaétãoimportantenavidadeJoãocomo
ele o foi na trajetória do amigo. “Faz uma falta
arretada, um buraco que ninguém tapa”, diz ele,
os olhos marejados ao se lembrar do Velho Lua.
QuandoJoãosetornouumbem-sucedidocantorde
baiõesnaRádioNacional,Gonzagajáeramajesta-
de. Mas, contraditoriamente, vendia muito pouco.
Atuando como produtor, João disparou as ven-
das do Trio Nordestino, que alcançou a marca de
280 mil unidades. Gonzaga, apesar da fama, ven-
dia mirradas 2,5 mil cópias por álbum. “A BMG
me chamou para produzir o disco de Gonzaga. E
eu disse que, se não desse um disco de ouro a ele,
nunca mais precisavam falar comigo”, lembra o
homem que aprendeu a tocar violão sozinho, aos
10 anos. Sua escola foram os cabarés de Arcoverde.
João Silva se dispôs a mexer, justamente, no espírito lírico do Rei do
Baião. “Gonzaga era um gênio, foi quem criou o baião. Mas só cantava la-
mento, Asa-Branca, o sofrimento do retirante... Eu disse que o povo queria
mais era esquecer, não lembrar o sofrimento.” Na ocasião, houve a primei-
ra das muitas brigas entre os dois. “Ele disse que não ia gravar embolada,
que aquilo não era coisa para ele. Mas faltavam só dois dias para entrar
no estúdio e eu disseque, se ele não gravasse, eu sairia do disco.” Com seis
músicas de João programadas para o álbum Danado de bom, Gonzaga não
teve escolha. Ou aceitava as imposições, ou ficava com o disco esvaziado
de última hora. “Eu ainda disse a ele: ‘Olhe, se eu tivesse chegado antes,
quem era oreidobaiãoeraeu,enãotu!’.”NoqueGonzagaassentiu: “Eera
mesmo!”.
Rebelde, João exigiu também o desmonte de um esquema mais ou me-
nos comum nas gravadoras. “Os caras gastavam uma fortuna. Ninguém
Gonzaga era
um gênio, foi
quem criou o
baião. Mas só
cantava lamento,
Asa-Branca, o
sofrimento do
retirante... Eu
disse que o povo
queria mais
era esquecer,
não lembrar o
sofrimento.”
“
sabia para onde ia aquele dinheiro.” Com um disco drasticamente mais
barato, ele impôs a aplicação da verba economizada. “Eu disse: vão pegar
o dinheiro e fazer dois Fantásticos e um Globo de ouro.” Estrategista impa-
gável do marketing, Silva dirigiu Gonzaga num clipe em que ele aparecia
nacaçambadeumpaudearara,anunciandoocaminhoinverso.“Gonzaga
dizia no vídeo que ia largar tudo e voltar ao sertão, que aquele era o último
disco dele. Gonzaga era um artista, um ator, chorou logo”, ri.
Disco pronto, João Silva voltou para Arcoverde tremendo de inseguran-
ça. “Passava os dias bebendo, com medo de não chegar ao Disco de Ouro”,
diz. Mas o álbum Danado de bom (1984) vendeu nada menos que 1,6 mi-
lhão de cópias. “Gonzaga só aprendeu a ganhar dinheiro comigo”, ri, mais
uma vez, dando um trago comedido no cigarro que fuma com cada vez
mais parcimônia. “Em três meses, Gonzaga vendeu três discos de ouro!”
Coautor de Sanfoninha choradeira, Pagode russo e Nem se despediu de mim,
João Silva seria o grande parceiro de Gonzaga a partir daí. O que ajudou o
mestre a ganhar um prêmio Shell.
João não ficou rico. Mas consegue, como poucos, viver de direitos auto-
rais, com mais de duas mil composições gravadas por grandes nomes da
MPB. Os 49 anos devida no Rio, precisamente no subúrbio de Duque de
Caxias, não foram suficientes para mudar o sotaque nitidamente pernam-
bucano do compositor. “E eu sou besta?! Tem gente que nem chega no Rio
e já está entronchando a boca”, ri mais uma vez.
Há seis anos, João Silva voltou ao Recife. Veio em busca de paz interior.
“Fiquei viúvo da mulher com quem passei minha vida toda, o maior amor,
minha grande amiga na vida”, diz. Como não conseguisse recobrar as for-
ças, ouviu os conselhos de um amigo psicanalista. O terapeuta disse para
arrumar as malas, largar as lembranças e a condição de viúvo coitado a
que estaria confinado na comunidade em que vivia. “Minha mulher era
tão arretada que disse que, se ela morresse antes, eu chorasse um pouqui-
nho, mas arrumasse logo um rabo de saia”, diz ele, as lágrimas rompendo
a moldura das pálpebras, ao se lembrar de dona Sebastiana Gomes.
Virou Patrimônio Vivo de Pernambuco há quatro anos. “O dinhei-
ro até que é bonzinho. Mas bom mesmo é o reconhecimento, o prestí-
gio, né?”, diz ele, que até largou a boemia. “Tinha todos os defeitos do bê-
bado, ficava rico e chato. Agora que sou patrimônio, tenho que manter a
compostura!”, gargalha.
BRUNO ALBERTIM
Ouça a música
Pagode russo,
composta por
João Silva e
Luiz Gonzaga
No ritmo da
Orquestra
Sanfônica
Camarão
ReginaldoAlvesFerreira,MestreCamarão,tinha7anosquandofezseu
primeiro grande show. Foi submetido ao crivo dos sanfoneiros da sua
família, numa das reuniões no quintal da Fazenda Camalaú, no interior da
Paraíba. Tinha sido levado pelo pai, Antônio, e a mãe, Josefa. Foi tão apro-
vadoquetomougosto.Continuaumnota10atéhoje,semprequeempunha
asanfonasobreospalcos–agoramaioresenapresençadeoutrospúblicos.
Nascido na véspera de São João de 1940, o músico, que foi apelidado aos
18anospelocantorJacintoSilva,porcausadassuasbochechasavermelha-
das, é natural de Brejo da Madre de Deus, no Agreste de Pernambuco. Ele
aprendeusanfonaolhandoopaitocar.AproveitavaaidadeAntônioàlavoura
paraensaiaralgumasnotasnoinstrumento.Aos10anos,foiparaCaruaru.
Aos 18, já fazia parte do elenco de músicos contratados da Rádio Difusora.
O trabalho em Caruaru foi ampliando a bagagem de Camarão. Em 1961,
mesmoanoemquerepresentouoEstadonafestadeaniversáriodeBrasília
com o Trio Nortista (ele, Jacinto Silva e Ivanildo Peba), gravou seu pri-
meiro disco, pela Rozenblit. Foi numa das apresentações na Difusora que
Camarão tocou com nomes como Hermeto Pascoal
e, claro, o onipresente Luiz Gonzaga. Novamente
o Rei do Baião deixa sua marca imprescindível na
história dos Patrimônios Vivos de Pernambuco.
O Velho Lua levou Camarão para gravar dois
discos com ele, em 1969 e 1970, na RCA.
“Nossa amizade durou enquanto ele foi vivo. Luiz
Gonzaga também lutou pelos sertanejos, pela famí-
lia dele, por Exu. Foi quem levou a (rodovia) BR até
em cima da Serra do Araripe. Ele chegou a trocar
shows por alimentos, na época de seca, para levar
para o povo dele”, lembra o sanfoneiro, em entrevista
no camarim da TV Jornal, no Recife.
No entanto, o que transformou Camarão em um grande mestre foi sua
ousadia e inovação. O sanfoneiro criou em 1968 a primeira banda de forró
do País, a Bandinha do Camarão, em que introduziu ao ritmo– até então
compassado pela zabumba, o triângulo, o pífano e a sanfona – instrumen-
tos de sopro como tuba, trombone e clarinete. No mesmo ano lançou a
Orquestra Sanfônica, projeto no qual a sanfona deu base também para o
frevo e o maracatu. Era um encontro de família.
AtualmenteCamarãodáaulasnaescolinhaAcordeondeOuro,quecriou
em casa, no bairro da Estância, no Recife. Ensina as primeiras lições do
instrumento a crianças e adultos. Com três filhos, todos músicos,ele ga-
rante a continuidade da sua obra, mas padece de uma saúde fragilizada.
Há quatro anos, fez uma cirurgia para a retirada dos rins e hoje precisa se
submeter a três sessões de hemodiálise por semana.
Em 1968, Camarão
criou a primeira
banda de forró do
País, a Bandinha
do Camarão
ARTES
cêni
cas
Cine
ma
&
As fotografias e os pôsteres pendurados na parede do terraço de casa
estão entre as histórias de que o cineasta Fernando Spencer ainda se
lembra com mais facilidade. Aos 86 anos, sentado na sua cadeira de balan-
ço, o artista e jornalista enumera momentos e fatos da sua vida numa con-
versa emaranhada de saudosismo. Junto à TV, na qual o grande nome do
Super 8 pernambucano hoje assiste a desenhos e clássicos da sétima arte,
estão algumas das homenagens que ele recebeu nos últimos anos: troféus,
certificados,cartasdehonraaomérito.Umacelebraçãoaohomemquede-
dicou sua vida ao cinema.
Os olhos, na infância, descobriram a alegria e os movimentos da sé-
tima arte nos trejeitos de Charles Chaplin e nas aventuras dos caubóis
CINEASTA DAS
TRÊS BITOLAS
fernando spencer
Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
Fernando Spencer
começou a sua
carreira em 1969
com o curta A busca
Assista ao filme
Evocações... Nelson
Ferreira de 1987, com
roteiro de Fernando
Spencer e Flávio
Rodrigues
norte-americanos. Descendente de alemães,
Spencer era levado pelo pai, Nicodemes Brasil
Hartmann, aos cinemas do Recife. Aos 12 anos,
ganhou seu maior presente: um projetor de fil-
mesde35mm.Alinasciaumapaixãoparaavida
toda.ElemontounoquintaldecasaoCineMetro,
para 20 pessoas.
Em1969,ocineastacomeçouacarreiraderea-
lizador. Filmou em preto e branco A busca, o pri-
meiro de seus 44 curtas-metragens, rodado em
16 mm. Nos anos 1970 ele descobriu o Super 8, uma bitola que tinha pelí-
culas mais baratas e fáceis de manusear, dispensando um aparato técnico
muito caro e sofisticado. Virou uma referência no formato, enfaticamente
defendido nas críticas que publicava no Diario de Pernambuco, jornal pelo
qual ele teve a honra de entrevistar nomes como Alfred Hitchcock. “Era,
sim, mais fácil de fazer cinema nos anos 1970 e 1980. Mas hoje há a van-
tagem do apoio da prefeitura e do governo, coisa que não se tinha, antes”,
diz o senhor que, como mestre, acompanha o que tem sido feito no cinema
local. Não se contém ao elogiar como “elegante e bom” o cineasta Kleber
Mendonça Filho, de O som ao redor: “Ele sabe onde bota as ventas”.
Spencer se tornou um grande cronista da cultura e do comportamento
pernambucano, contextualizando seus filmes num Recife de folguedos e
de desenvolvimento urbano. O diretor vive há 20 anos no calmo e poético
bairroPoçodaPanela,naZonaNortedacidade.“Éumlugarmuitobomde
morar,masconfessoqueesseaumentodeprédiosàsvezesmeimpressiona.
Está havendo um exagero”, diz ele, que agora busca recursos para trans-
formaremdigitaldoisfilmesrodadosnadécadade1970:umsobreManuel
Bandeira e outro, feito em parceria com o escritor Ariano Suassuna, sobre
os sons do Recife.
Atualmente, Spencer mora com uma filha e um neto. Há quatro meses,
ficou viúvo. Sua mulher, Inês, faleceu dentro de casa. Agora, a saudade não
deixa o cineasta em paz. “Já nem escuto mais música, porque me lembro
dela. A gente passava a tarde ouvindo bolero, valsa, orquestras”, desabafa.
Em janeiro do ano passado, para custear o tratamento médico dele e
da esposa, o cineasta vendeu parte do seu inestimável acervo à Fundação
Joaquim Nabuco. “Me arrependo, mas eu precisava”, conta o cineasta das
três bitolas, como ficou conhecido por já ter rodado em Super 8, 16 mm, 35
mm. A esses formatos, ele também somou trabalhos em vídeo e digitais.
Elesforamparaprovocar.Chegaramcompalavrascomplicadas,expres-
sõesacadêmicas,teoriasemetodologiasestranhasparaquemviviaali.
Aliás, desconhecidas pela maioria mesmo daqueles que subiam ao palco
para interpretar. O que a trupe de professores e atores vindos da universi-
dade da capital levou para o Agreste foi pura provocação.
OFestivaldeTeatroUniversitáriochegouaCaruarurasgandoahistória
da cidade em dois eixos, como aqueles que dividem a humanidade entre
antes e depois de um grande acontecimento, estabelecendo o fim e o início
O tablado é
espelho do povo
TEATRO EXPERIMENTAL
DE ARTE
Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
de uma época. Era junho de 1962. E, dali por dian-
te, amador passou a ser uma palavra incômoda – ou,
usandoalinguagemdeBertoltBrecht,otermopassou
acausarestranhamento.Naqueletempo,oTeatrode
AmadoresdeCaruaruatraíaasatençõeseosolhosda
sociedadeaindaimuneàfebredatelevisão.NoRecife
chegava a notícia de um festival universitário com
oficinas, palestras e espetáculos que, embora sim-
ples, prezavam por um trabalho ainda desconhecido
por ali: a preparação cênica e corporal dos  atores.
Até então fazer teatro em Caruaru seguia uma receita: escolher o tex-
to, dividir os papéis e correr para o ensaio. Tudo errado. Aquelas oficinas
mostraram isso. Apontaram o quanto era importante preparar o ator teo-
ricamente,mesmoqueeletivessemuitotalento.Todoaqueleescarcéufoia
gota d’água e o impulso que faltava para a criação do Teatro Experimental
de Arte (TEA). “Naquele momento, vimos o quanto estávamos atrasados
na nossa maneira de fazer teatro”, lembra a atriz Arary Marrocos, que co-
meçava a dar as primeiras lições como professora nas escolas caruaruen-
ses, quando a cidade vivia o auge de uma produção teatral.
Arary seguiu os passos do marido, Argemiro Pascoal, que foi o nome à
frentedafundaçãodacompanhia.Argemiroeseugrupopediramajudaao
professor Joel Pontes, que integrava a equipe dos acadêmicos. Eles solici-
taram e o mestre topou. “Arranjamos hospedagem e durante dois meses,
a cada final de semana, vinha um professor do Recife para cá nos dar au-
las. Parte do Teatro de Amadores não quis. Quem queria terminou saindo
e fundando o TEA, em 17 de julho de 1962.”
Durante 16 anos, os ensaios e encontros do Teatro Experimental ocor-
reram no auditório da Rádio Difusora de Caruaru. Em 1978 os ensaios
passaram a ser realizados na garagem da casa de Arary e Argemiro. O
casal decidiu então que era hora de construir uma sede própria. Tudo
aos poucos,tijolo por tijolo, moeda por moeda. Hoje o pequeno palco ita-
liano – com uma plateia de 60 cadeiras de plástico, coxias e camarim –
guarda nas paredes preenchidas por fotos e cartazes a memória de uma
história de mais de cinco décadas.
Desde a criação, o TEA encenou 54 espetáculos, além de promover cur-
sos e oficinas de teatro, palestras, debates e seminários. Levou ainda a sua
arte a 65 cidades brasileiras. Em agosto do ano passado,o grupo entrou em
uma nova fase. Argemiro morreu, aos 83 anos, deixando para Arary e o
filho Fábio a tarefa de sustentar um sonho de teatro numa cidade em que
os palcos que interessam à grande plateia já são outros: os do forró.
TEATRO PARATODOS
AcriaçãodoTEAfoiresultadodeumareverberaçãodeideias.Havia,sim,
Cena da peça Morte
e vida severina,
encenada pelo TEA em
1977, sob direção de
Agemiro Pascoal
odesejodeseprofissionalizar.Masoimpulsodetudo
foi a vontade de fazer do tablado o espelho do povo.
Quando a caravana acadêmica chegou a Caruaru,
Pernambuco assistia ao crescimento do Movimento
deCulturaPopular(MCP).GermanoCoelholançava
sua cartilha político-cultural com base nos rebuliços
que fervilhavam nas ruas e praças da Europa.
ArgemiroPascoalestavaentreosartistasquepar-
ticiparamdareuniãodoMCPnoRecife.Nascidoem
Bezerros, ele se mudou para Caruaru aos 18 anos
e lá iniciou a carreira teatral. O a-bê-cê da Cultura
Popular chegava à cena do Teatro de Amadores da cidade e, posterior-
mente, do TEA através de montagens de textos norteadas pelos pensa-
mentos brechtianos. A primeira peça encenada pelo grupo, em 1963, foi
Um elefante no caos. O texto de Millôr Fernandes causar a frisson três
anos antes no Rio de Janeiro e em São Paulo, mergulhando no teatro do
absurdo, refletindo sobre as hipocrisias e a corda bamba dos momentos
que antecediam o Golpe de 1964.
O TEA é referência nas artes cênicas pernambucanas. Além de for-
mar atores, o grupo foi responsável pelo fortalecimento da cena teatral
no interior, criando festival estudantil e mostra com espetáculos nacio-
nais. Mas nem tudo são luzes na ribalta. Este ano, Arary recusou o convi-
te do Festival de Teatro de Curitiba, um dos mais importantes do Brasil,
por falta de verba para arcar com as despesas de viagem, hospedagem e
alimentação durante a estada da trupe no Paraná. Em 2012 eles haviam
participado da mostra, mas conseguiram o dinheiro com muito sacrifí-
cio, pedindo ajuda a empresários locais. A bolsa de Patrimônio Vivo ofe-
rece ao grupo apenas uma parte da verba necessária para sua sustenta-
ção. Arary se vê dividida entre os cálculos do escritório de contabilidade e
as aulas de história do teatro no TEA.
Em 2012, o grupo
participou do
Festival de Teatro
de Curitiba com
a peça Auto da
Compadecida
Era mais uma noite de calouros no Circo Democratas e Margarida
Pereira de Alcântara queria participar do concurso. Tinha decidido
cantar o bolero Coração materno, de Vicente Celestino, um dos seus pre-
feridos. Ela precisava ganhar o corte de tecido e o par de sapatos. Quando
pisou no picadeiro, era evidente o seu nervosismo. De repente, uma vaia.
Ninguémtinhapagoingressoparaveraquelameninacompoucomaisde9
anos, franzina, catadora de crustáceo, malvestida e descuidada fazer qual-
quer coisa. Da plateia, alguém gritava para ela sair e ir tomar banho. “Era
preconceito daquele povo. Pedi o microfone e disse que eu estava malves-
tida porque não tinha condições de me arrumar e que catava siri para que
meus irmãos não precisassem ir para porta deles pedir esmola.”
A menina que fugiu
com o circo
Índia Morena
Osilêncionaarquibancadaevidenciouaperplexidadedopúblico.Alguém
ensaioubaterpalmas,ecomeçaramasurgirnovosgritos,destavezdiziam
que a menina já tinha ganhado. Talvez a resposta dada já bastasse e lhe
tivesse feito vencedora. “Eu disse que eles não podiam dizer que eu tinha
ganhadosemcantar.Ecantei.Todomundoparouparaescutar.”Épossível
queameninanemsoubesseoquesignificavamaquelestristesversossobre
a ingratidão de um filho. Sua voz firme e seu jeito precoce aumentaram o
espanto de quem a assistia e garantiram de vez a premiação. O pano, ela
dividiu com as duas irmãs e fez uma roupa para usar com os sapatos no
Natal, que estava próximo. Tudo que ganhasse era lucro. Havia perdido
o pai há pouco tempo e partilhava com a mãe as tarefas de casa para sus-
tentar os quatro irmãos mais novos. Na escola, sequer terminou a quarta
série. O Circo Democratas foi embora e a menina ficou.
Pouco tempo depois, uma nova trupe mambembe aparece na vida de
Margarida. Um macaquinho na porta de casa, de manhã cedo, assustou a
mãedamenina,quenaquelaépocajátinha10
anos.Oanimaltinhafugidodocircoqueaca-
bara de chegar à Vila São Miguel, no bairro
de Afogados, comunidade onde ela morava.
Margarida foi devolvê-lo ao grupo e conquis-
touaamizadedadonadocirco,quedepoisfoi
convidada para ser sua madrinha de crisma.
Arecompensadameninafoiiratodososespe-
táculos de graça. “Logo na primeira apresen-
tação que eu fui, a contorcionista me chamou
atenção. O nome dela era Linda Morena. Eu
olhei e disse: ‘Eu vou fazer aquilo que ela faz.
Vou fazer até melhor’. E todo dia eu ia lá ver.”
No dia em que o Circo Itaquatiara foi em-
bora, a menina deixou a casa e seguiu com a trupe, auto batizando-se de
Índia Morena. O pouco dinheiro que ganhava nas apresentações era o su-
ficiente para ajudar a mãe e os irmãos.
Índia, a mais famosa contorcionista do Estado e uma das artistas
Patrimônio Vivo de Pernambuco, reside hoje em uma casa simples e pe-
quena, em Muribeca dos Guararapes, uma comunidade pobre da Região
Metropolitana do Recife, bem próxima a um aterro sanitário. As paredes
rachadas chamam a atenção para o perigo em que vivem a artista e sua fa-
mília. Ela mora com o marido, uma filha e um neto. Enquanto aguarda o
início da reforma a ser bancada pelo Governo do Estado, a mulher guarda
entulhados,nasestantesdasala,pastascomrecortesdejornais,troféus,car-
tasdeautoridades,prêmios,fotosevídeosqueduranteosquase60anosde
carreiraformamoacervodeumavidadedicadaàartecircense.Navéspera
destaentrevista,elatinhaganhadootítulodeMulherEvidência–concedi-
dopelaCâmaraMunicipaldoJaboatãodosGuararapes.Umdiadepois,foi
Em dezembro de 2011,
um incêndio destruiu o
trailer do circo da artista.
Só restou a lona
tituladacidadãjaboatonense.“Pareceserumdosmaio-
res reconhecimentos da minha vida. O que eu não tive
na juventude estou recebendo agora na velhice.”
Emdezembrode2011,umincêndiodestruiuotrailer
do seu Gran Londres Circo. Um dos artistas da trupe
acendeuumavelaeterminoudormindo.“Conseguimos
salvaralonaporsorte,porqueestavalonge.Agoraestou
semmeapresentar.”Emquaseseisdécadas,éaprimeira
vezqueelaficalongedopicadeiro.Índiapassoupor50companhias,integrou
oGarciaeoNewAmericanCircus,quealevaramàArgentina,aoParaguai
e à Bolívia. Além de contorcionismo,a artista já se apresentou no trapézio
voador, na escada giratória e no arame vertical. Aos 69 anos, ela é mestre
de cerimônias; mas decidiu também se aventurar na corda bamba social
da defesa da classe mambembe.
Com uma vida marcada por tristezas – seu ex-marido, pai de dois dos
seus filhos,que morreram ainda bebês, a traiu com uma parceira de circo
–,Índiafoipararnohospital.Umproblemadepulmão,hácercade30anos,
deixou a artista internada. “Eu passei dois meses hospitalizada. Aí, como
eufiz amizade comopessoal,omédicomedeixouficarmaisummês,para
eu me recuperar melhor. Foi quando conheci Maviael, também internado
por causa do pulmão”, conta. Maviael é o seu atual marido.
Hoje os dois compartilham o amor, a responsabilidade de cuidar da
família e do circo. O casal pretende inaugurar um circo-escola e tam-
bém está à frente da Associação dos Proprietários e Artistas Circenses
do Estado de Pernambuco. O trabalho é duro, requer sacrifícios, recur-
sos e valorização. “Eu tenho lutado é por uma classe de minorias. Hoje
eu tenho lutado por alcoólatras, drogados, esquecidos e abandonados.
Ser artistas de circo não é fácil”, desabafa.
Eu tenho
lutado por
uma classe
de minorias.
(...) Ser artista
de circo não
é fácil.”
“
GRA
VURA
COR
DEL
&
Pelejas de um mundo fantástico
Mestre Dila
Foto:RicardoB.Labastier/JCImagem
Lampião é moreno, chocho e tem olhos azuis. Em Caruaru, no Agreste
dePernambuco,viveescondidoemumacasapequena,comdoisquar-
tos apertados e uma sala minúscula, longe de luxos, pratarias, ouros e cou-
ros. As paredes frágeis guardam o cangaceiro de traços fortes e pele ama-
deirada em tons de verde, preto e azul. Lampião está vivo com esses traços
e cores dentro da memória e da obra de José Soares da Silva, Mestre Dila.
O xilogravurista e cordelista, que nasceu em 23 de setembro de 1937 (em-
bora durante a entrevista ele diga ter nascido em 12 de agosto do mesmo
ano)novilarejoPirauá,nomunicípiodeMacaparana,ZonadaMataNorte
do Estado, veio ao mundo dez meses antes de Lampião desaparecer (ou
morrer assassinado pelas volantes, como narra a história).
Na sua memória de infância, entretanto, ainda sobrevivem não só o se-
nhor do cangaço, como detalhes de sua fisionomia e seus feitos. Há 60
anos, Dila descobriu os versos da poesia popular e os desenhos en-
talhados na madeira com o pai caricaturista, Domingos Soares da
Silva, num sítio na cidade natal. A ligação com cangaceiros também
seria herança paterna: Meu pai e alguns dos meus irmãos eram do
cangaço. Conheciam Lampião. Eu vi Lampião”. Dila teve 11 irmãos.
Na casa em que mora no Centro de Caruaru – cidade para a qual
semudoudesde1952–,MestreDilaempilhaasmarcasdeVirgulino
em uma estante de cinco prateleiras, no canto da sala, perto da por-
tade entrada. Nas matrizes de madeira e borracha em que talha
formas, rostos, animais e palavras, reconstrói com a imaginação as
aventuras e as histórias de mitos nordestinos. “Eu gosto de escrever
sobre Lampião. É o que vende mais. Sempre falei sobre o cangaço.
Escreviaevendiabem.Tinhapessoasdafamíliadoscangaceirosque
compravam de uma vez só uns 100 ou 200 folhetos para distribuir.”
É por detrás do Parque Luiz Gonzaga, principal polo das festas
juninasdeCaruaru,queficaacasadeDila.Nafachadaháumaplaca
com sua foto. A casa de dois quartos, de sala e cozinha espremidas,
é um destino de turistas. Eram mais numerosos quando se vendia cordel
emdezenas.Hojeapessoacompranomáximodoisoutrês,aopreçodeR$
1 cada. A tradição ensaia desaparecer, mas o desejo de mantê-la viva não
para de aflorar.
Os rostos sorridentes nos porta-retratos espalhados pela sala, sob a in-
tercessão dos santos e santas enfileirados ao lado da televisão, já não têm
nome. Dila, entre olhares baixos e risos de canto de boca, teima com a
memória, mas fica nas reticências. Aos 76 anos, as únicas certezas que ha-
bitam sua cabeça são escritas em rimas. Nas mais de seis décadas como
cordelista e xilogravurista, percorrendo as feiras livres de Pernambuco,
Paraíba, Ceará e Alagoas, a vida lhe rendeu bons causos. Nesse caminho,
revelou-se sua fé em padre Cícero Romão e frei Damião, além do seu res-
peito por Lampião.
Opoetaaindaserecuperadeumacidentevascularcerebral(AVC),sofrido
Capa de cordel escrito e
ilustrado pelo mestre Dila
em junho de 2012. Depois de cinco dias internado no Hospital Regional
do Agreste, em Caruaru, ele passou a viver sob cuidados da esposa, dona
Valdeci, e dos seis filhos. Dila passou meses se mandar e falar. Agora vai
aos poucos reaprendendo tudo, com calma e timidez. A mulher pede para
que encare a câmara,mas o rosto continua curvado sob a mesinha em que
trabalha diariamente,das 8h às 16h. Há muito o que se falar de Lampião,
não há tempo para perder.
A vida que Dila leva como poeta popular é a mesma de muitos outros
artistas. Para ele, pouco importa a origem dos folhetos no medievo euro-
peu. A tradição chegou a esses homens do interior nordestino como ex-
pressão de uma cultura oralizada, rimada e ritmada, sob tom de humor e
sarcasmo, que foi ganhando espaço nas feiras. Debaixo do sol, com varais
de livretos, os cordelistas contam suas narrativas, provocam o público, re-
criam o épico e o mítico. No caso de mestre Dila, sua técnica foi cada vez
mais aperfeiçoada.
Ele descobriu os artifícios da fabricação de carimbos e passou a usar
a borracha na produção de seus trabalhos. Dila lançou um modo par-
ticular de imprimir seus cordéis (o que o pesquisador pernambucano
Roberto Benjamin chama de “folk-off-set”): seja nas cores diversas que
usa em uma só matriz ou nas combinações de várias formas separadas e
depois unidas em um conjunto único. A partir dos anos 1970, ele inova e
passa a imprimir folhetos coloridos.
AutordecordéiscomoOsonhodeumromeirocomopadreCíceroRomãoe
AbagagemdoNordeste,opoetausaodinheiroquerecebecomoPatrimônio
Vivo de Pernambuco para ajudar a manter a casa e a comprar os remédios
para hipertensão e diabetes. Ele torce para que o dinheiro não atrase. A
família se vira como pode. Na sua casa, Dila mantém a editora Art Folheto
São José. Além de imprimir os livretos populares, faz rótulos de bebida.
“LAMPIÃO MORREU HÁ DOIS ANOS,
NUM INTERIOR DE MINAS GERAIS”
Há sempre um segredo prestes a ser revelado pelo artista. O homem
que no passado tagarelava, mas hoje vive de poucas palavras, é dono de
uma doçura,mansidão e carinho emaranhados de mistério. A conversa é
quase sempre uma visita às memórias. Esquecido pela plateia que o aplau-
dia nos anos 1970, o mestre já chegou a ser internado três vezes para tra-
tamento psiquiátrico. A fantasia lhe rendeu, socialmente, o nome de lou-
co. Mas seu talentos e sobressai. Dentro do mestre poeta,um mundo se
move, e a figura de Lampião retorna frequentemente: homem moreno,
chocho e com olhos azuis.
O universo dos bandos armados que espalhavam o medo pelo Sertão
nordestino no embrião da República (início do século passado), com re-
latos de saques a fazendas, ataques a comboios e sequestros, é tão bem
Assista ao vídeo com
Mestre Dila
desenhado aos olhos de Dila que arrebatam as grades do inconsciente dele
para se erguer com veracidadenosouvidosdequemescutaafaladopoeta.
Os netos dele, seus sucessores, já não sabem falar de cangaço. Não sabem
porque não entendem nada sobre o tema – é o mestre que diz. Na verda-
de, Dila parece estar tão a par do que narra, que agora conta uma histó-
ria de um Nordeste muito seu. Um Nordeste que talvez só ele conheça.
Uma história da qual  ele é próprio dono.
Lampião – que para Mestre Dila é uma espécie de Dom Sebastião, o rei
português Desaparecido numa batalha contra os mouros e eternamente
aguardado–talveznuncatenhasidotãocultuadoquantodentrodestacasa
pequena e apertada. Sentado, encostado na parede, com o rosto que vez ou
outra escapa do flash fotográfico, Dila olha a rua e suspira.
Ensaia dizer algo. Os segredos e as histórias vão se moven-
dodentrodelecomasreticências.Umsilênciodequemquer
lembrar ou procura a fala: “Morreu há dois anos,num inte-
rior de Minas Gerais. Vivia escondido por lá. Muita gente
se passava por ele, inclusive aquele que mataram em 1938”,
diz, retomando a conversa. O rosto moreno, o corpo cho-
cho, os olhos azuis de Virgulino Ferreira da Silva jamais vão
sair das lembranças de Dila, que continua a vida talhando
madeiras, contado histórias e criando seus próprios fatos:
“Para realizar, eu não tenho mais nada”.
TRECHO DE CORDEL
Caruaru de hoje
Deus criou Caruaru!
José Rodrigues de Jesus
Lembra 150 anos;
Caruaru me conduz
De 1952
Me dando conforto e luz
Ipojuca corta ao meio
Da fazenda Caruara
Aonde Rodrigues Sá
A sua terra não para
A igreja da conceição
Ponto zero não é rara
Dr. José Carlos Florêncio
Muitos e Pontes Vieira
Vanguarda, A Defesa, Agreste,
E locutores têm fronteira
E o saudoso Lídio
Teve voz bem lisonjeira
Luiz Gonzaga de Oliveira
O saudoso Lula da Vanguarda
Me ensinou artegrafia
Gilvan José da Silva, cada camarada,
Como Edvaldo Barros,
Ivan Galvão e todas gráficas na parada
Caruaru tem a benção
Que Deus deu a cada filho
Apenas sou cordelista
Adotado e sem empecilho
Meu pai foi igual a mim
Aquela pequena sala do burocrático prédio da reitoria da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife, nunca serviu como cená-
rio para tantas fotografias como foi naquele dia da coletiva de imprensa
convocada pelo professor e escritor Ariano Suassuna. Ainda mais quan-
do o cheiro do livro recém-lançado por ele dava pano para as mangas aos
jornais do País. Quatro repórteres corriam a caneta sobre o bloquinho de
papel.Arianodestaveznãoeraofocodoencontro,sóadjetivavasuadesco-
berta:umilustradorquenuncasequerhaviaescutadofalard’ORomanceda
Pedra do Reino, nem mesmo do escritor paraibano, virou notícia no Brasil.
“O melhor gravador popular do Nordeste”, dizia Suassuna. J. Borges ja-
mais esqueceu tudo aquilo – e jamais foi esquecido.
Xilogravurista e cordelista, o mais pop dos artistas Patrimônios Vivos
mora em Bezerros, numa boa casa às margens da BR 232, principal rota
que liga o Litoral ao Sertão de Pernambuco. J. Borges nasceu num sítio
A talho seco
J. Borges
Foto:RicardoB.Labastier/JCImagem
a 16 km do centro da cidade, em 1935. “Eu comecei a tra-
balhar aos 16 anos, na agricultura, com o meu pai. Aí fo-
mos morar na Zona da Mata Sul, em Ribeirão e depois em
Escada. Foi lá que comecei a trabalhar com cordel, fazer
gravura”, diz José Francisco Borges, 78 anos.
“Chegavanascidades,colocavaotripécomfolhetoseabria
amala.Depoiscompreiumalto-falante.Quemtinhaissoera
chamadode‘camelôrico’.Pobredeclamavaeranopeitobra-
bo. Às vezes, a polícia dava uma bronca, proibia o som. Era uma confusão.
Eu vendia bastante”, relembra.
Em meados da década de 1970, Suassuna vivia um auto-exílio. Mas re-
solveuabrirumaexceção.Precisavaconheceraquelehomemquesabiatra-
duzir tão bem a sua obra através da xilogravura. “Mandou me levarem até
ele. Eu tive sorte.” A entrevista foi numa terça-feira. “No sábado da mesma
semana, já começaram a chegar carros lá em casa e até hoje eu não tive
mais sossego na vida”, brinca J. Borges, que só estudou dez
meses e abandonou a escola ainda na infância, por determi-
nação da avó, que temia que o neto fosse atacado pelo papa-
-figo nas ruas de Bezerros.
Foitudomuitorápido.NemopróprioJ.Borgessedavaconta
doquantosuavidaiamudando.Famoso,étalvezoPatrimônio
Vivoquemaissabeovalorcomercialdoseutrabalho.Calcula
opreçodecadapeçafeitanagrandeprensaqueocupaumes-
paço enorme de uma das salas anexas ao seu ateliê. Já levou
sua arte para a Europa, países da América Latina e do Norte,
ilustrou obras do uruguaio Eduardo Galeano, mas continua
gravando as coisas de Pernambuco, “porque os turistas que-
rem as coisas daqui”.
“A palavra do velho (Ariano Suassuna) é muito forte. Ele
mechamoudemelhorgravadorpopulardoNordeste,naopi-
nião dele. E o povo acreditou, rapaz. O povo é besta. Depois
elecomeçou,nasandançasdele,dizendoqueeueraomelhor
do Brasil. Agora, que ele já não sabe mais o que diz, fala que
souomelhordomundo”,brincaJ.Borges,antesdeconfessar
a razão de tudo isso: “Trabalho no meu traço, nunca mudei.
E nunca saí de dentro da minha região”.
TRECHO DE CORDEL
Em 2012, J. Borges
ilustrou o livro que
reunia contos dos
Irmãos Grimm da
editora Cosac Naify
A chegada
da prostituta
ao inferno
Todas as religiões
pra ela escala uma pena
se o homem lhe abraça
a mulher casada condena
mas sabemos que Jesus
perdoou a Madalena
Falar sobre prostituta
é um caso muito sério
que é um ser sofredor
sua vida é de mistério
e para sobreviver
sempre usa o adultério
Perante a sociedade
ela é marginalizada
existe umas mais calmas
e outras mais depravadas
e quem tem mais ódio delas
é a própria mulher casada
Ela vive aqui na terra
enfrentando um sacrifício
se vende para os homens
muitas se entrega a o vício
enquanto nova se estraga
e faz da miséria ofício
a vida severina
de um poeta
josé costa leite
Ele nasceu na Paraíba, viajou o Nordeste
todo, foi à França, mora em Pernambuco e
está apaixonado por Mossoró. Todo dia é sem-
preigual:MarinêseGonzagacantamnavitrola
enquanto o cordelista vai colocando em versos,
num papel, a criatividade que ferve dentro dele
nos365diasdoano.“Ninguémvirapoeta.Agen-
te nasce poeta”, garante José Costa Leite, que,
aos 86 anos, conta todos os causos do mundo.
Costa Leite – “tão importante para o Brasil
quanto Goeldi”, segundo o seu conterrâneo
Ariano Suassuna – é natural de Sapé, um município de pouco mais de 50
mil habitantes na ZonadaMataparaibana,maschegouaPernambucoaos
8anos,ficandoatéhojeemCondado.Comoumdaquelespersonagensreti-
rantes de João Cabral de Melo Neto, ele e sua família fugiam de uma seca
ainda mais estorricante: o pai acabara de ser envenenado a mando de um
feitor de usina. “Foi após uma briga por causa de jogo do bicho. O meu pai
passavabicho,eofeitorfoidizerquetinhatiradooprêmio,masnaverdade
otalãodojogodeleeradeumdiaanterior.Ele mandou envenenar meu pai.”
Sem jamais frequentar uma escola, o menino foi observando nas feiras
públicas as rimas dos poetas. Foi assim, garante, que aprendeu a escre-
ver. Costa Leite viveu a infância como um adulto. Foi cambista, mascate e
camelô de feira. Em 1947 começou a vender cordel pelas ruas e dois anos
depois criou suas próprias histórias: Eduardo e Alzira e Discussão de José
Costa com Manuel Vicente. Aos poucos, também foi aprendendo a ilustrar
suas rimas com xilogravura, tornando-se, anos depois, uma das grandes
referências dos traços nordestinos talhados em madeira.
Atualmente,JoséCostaLeitejánãovaimaisàsfeiras.Viveemcasacom
a esposa e um neto, mas passa o dia no seu ateliê, nos fundos da residên-
cia, escrevendo e ilustrando. Não trabalha sem ouvir as músicas de Luiz
Gonzaga e Marinês. É aí que se lembra também do tempo em que com-
punha canções, algumas delas gravadas em três LPs pelo Conservatório
Pernambuco de Música. “Ave-Maria, hoje, sem voz, não canto nem rapa-
riga”, brinca o senhor, que atualmente aproveita o tempo livre para conti-
nuar viajando pelo Nordeste, só que agora é por puro divertimento.
O tempo vai dando sinal de fim para o ofício de cordelista. Entulhados
em quatro prateleiras num quarto dentro de casa, o escritor guarda 10 mil
folhetos, além de matrizes. Não sabe o que fazer com o acervo: “Por favor,
anuncieissonasuamatéria.Precisododinheiro.Vendo tudo por R$ 20 mil”.
José Costa Leite
aprendeu a escrever
observando as
rimas dos poetas
nas feiras públicas
CERÂ
MICA
pin
tura
&
Entre raízes e asas
Zé do Carmo
Fotos:PriscilaBuhr/JCImagem
Antigo Testamento, livro de Gênesis, 2,7: “O Senhor Deus formou, pois,
o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de
vida e o homem se tornou um ser vivente”. Zé do Carmo, que completa 80
anos em dezembro de 2013, é temente a Deus. Nunca quis ser Deus, mas
passou a fazer do barro a imagem e semelhança do universo divino. Em
Goiana, cidade da Zona da Mata Norte do Estado, o artista vive entre ima-
gens sacras e lembranças barrocas. Sua mãe queria que ele fosse padre. O
desejo materno, no entanto, perdeu para o preconceito. Diante da imagem
de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, o padre renegou o menino de 12
anos.Osemináriodificilmenteaceitariaumpadrenegro.Restariaasacris-
tia, aceita como um amém. Mas entre as Ave-Marias, hóstias e novenas,
o menino desafiava os dogmas com a inocência de quem não
aceita que dois mais dois são quatro antes de ouvir uma boa
explicação. “Por que numa igreja dedicada aos negros as ima-
gens dos anjos e dos santos tinham rostos de gente europeia?”,
indagava, recriminado pela mãe por heresia.
Aos 6 anos, José do Carmo Souza aprendeu em casa o ofí-
cio de artista. Sua mãe, Joana Izabel de Assunção, era lava-
deira e uma das mais famosas ceramistas de Goiana. O pai,
Manuel de Souza dos Santos, era padeiro e nas horas vagas
fazia máscaras de papel machê para serem vendidas nas fei-
ras livres. Dos primeiros contatos com o barro foram surgin-
do criaturas com feições humanas, que, com toques de ima-
ginação de criança, anunciavam uma arte classificada depois
de irreverente, desafiadora e nordestina.
“Quando eu era pequeno, costumava ir com os outros meni-
nos caçar passarinho,derrubar com badoque. Minha mãe di-
zia que eu não fizesse aquilo. Por isso eu geralmente ficava só
olhando os pássaros. Um dia, quando voltei para casa, resolvi
colocarasasemumdosbonecosqueeutinhafeito.Eficoucomo
um anjo. Minha mãe reclamou, disse que aquilo era errado.”
Era tudo muito complexo para a cabeça de uma criança. Havia um due-
lo entre o que pensava ser certo e errado. Enquanto andava por entre os
bancos da igreja, sob as estátuas santas que compunham a decoração, Zé,
menino,nãoconseguiaassociaraspalavrasdeigualdadedaspregaçõesaos
rostos que, a dois palmos dos seus olhos, destoavam dos termos proferidos
na igreja. Não dava para entender que os anjos não tivessem as expressões
nordestinas, caboclas. E porque harpas, e não sanfonas? Incompreensível
também para sua mãe, que logo se opôs à arte do filho. Talvez ela tam-
bém tivesse a mesma dúvida, mas preferia silenciar e aceitar com mais um
amém tudo o que o padre, a Bíblia e o papa diziam: é assim e acabou-se.
“Minha mãe me proibiu de fazer imagens.”
Atualmente, Zé do Carmo
deixou o barro para se
dedicar às pinturas
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Pernambuco Vivo

  • 1.
  • 2. DIRETOR DE REDAÇÃO: IVANILDO SAMPAIO DIRETOR-ADJUNTO DE REDAÇÃO: LAURINDO FERREIRA EDITORA-EXECUTIVA: MARIA LUIZA BORGES EDIÇÃO: DIANA MOURA, MARCELO PEREIRA, OLÍVIA MINDÊLO EDIÇÃO DE ARTE: BRUNO FALCONE, FABIANA MARTINS, KARLA TENÓRIO EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA: ARNALDO CARVALHO, HEUDES REGIS E CHICO PORTO CONCEPÇÃO E REPORTAGEM: MATEUS ARAÚJO CONCEPÇÃO GRÁFICA, ILUSTRAÇÃO E DIAGRAMAÇÃO: ÍCARO BIONE FOTOGRAFIA E VÍDEO: HEUDES REGIS EDIÇÃO DE VÍDEO: CAIQUE MULATINHO TRATAMENTO DE IMAGEM: JAIR TEIXEIRA REVISÃO: RITA KRAMER WEB DESIGNER: FÁBIO MONTEIRO AGRADECIMENTOS: ACERVO DO MUSEU DO HOMEM DO NORDESTE – FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO, PELA PERMISSÃO PARA FOTOGRAFAR A CALUNGA DONA JOVENTINA. RECIFE - PE, BRASIL Novembro de 2013 expediente
  • 3. sumário PREFÁCIO APRESENTAÇÃO DEPOIMENTOS MÚSICA LIA DE ITAMARACÁ SELMA DO COCO GALO PRETO MAESTRO DUDA MAESTRO NUNES SOCIEDADE MUSICAL CURICA EUTERPINA DE TIMBAÚBA ORQUESTRA CAPA-BODE PAGODE DO DIDI JOÃO SILVA CAMARÃO ARTES CÊNICAS & CINEMA FERNANDO SPENCER TEATRO EXPERIMENTAL DE ARTE ÍNDIA MORENA GRAVURA E CORDEL MESTRE DILA J. BORGES JOSÉ COSTA LEITE CERÂMICA & PINTURA ZÉ DO CARMO MARIA AMÉLIA ZEZINHO DE TRACUNHAÉM MESTRE NUCA MANUEL EUDÓCIO AGREMIAÇÕES CABOCLINHO SETE FLEXAS CABOCLINHO CANINDÉ MARACATU LEÃO COROADO MARACATU ESTRELA DE OURO DE ALIANÇA MARACATU ESTRELA BRILHANTE DE IGARASSU O HOMEM DA MEIA-NOITE CONFRARIA DO ROSÁRIO IN MEMORIAN BASTIDORES
  • 4. Quem são eles, de onde vêm, que alegria é essa tão contagiante, que nem os dias tristes abalam o seu canto e o seu viver? Que mundo é esse, fei- to de sonho e poesia, onde cantar é lei, criar é dote? Quem são esses filhos do povo, irmãos da arte, esses pastores da divina criação, ungidos que se escondiam no anonimato e que agora saem do seu pequeno mundo para a posteridade? Foram por toda sua existência pelotiqueiros e saltimbancos da grande comédia humana – que agora são resgatados para obra e graça dos seus contemporâneos, porque homenagem póstuma é uma visão dis- torcida da história presente. Alguns deram vida ao barro, outros perpetu- aram a imagem. Todos eles honraram a vida e escreveram uma pequena epopeia. Esses homens e essas mulheres que hoje são personagens deste caderno especial Pernambuco Vivo, essas instituições sacrossantas mais amadas do que conhecidas, são um pedaço vivo do povo de suor e sandá- lias, da história e do orgulho de Pernambuco. Que sejam todos louvados, com licença de Vinicius de Morais. Louvada seja Selma do Coco, preta e sábia, elegante na sua echarpe co- lorida, faceira nos brincos de ametista – guardiã das melhores tradições do nosso cancioneiro popular: o coco, sob suas mais diversas manifestações. Coco que já rendeu a Selma nove discos, um DVD e cinco filmes, patrimô- nio tão expressivo que bate o de muitos famosos do showbiz norte-ameri- cano. Seja louvada Lia de Itamaracá, cujo nome e cuja fama se espalham poressesbrasistãobrasileiros,dadoqueaelasecreditaoresgatedaautên- tica ciranda. E ciranda, como se sabe, não é coisa para amador. Louvada seja Índia Morena, que mambembou pelos picadeiros dos circos mais fa- mosos aos mais humildes, fazendo da cobertura de lona o teto seu de cada caminhada – e que neste mundo de fantasia corre chão há mais de meio século. Não ganhou dinheiro, não fez fortuna, não tem patrimônio – mas virou Patrimônio e tem o riso largo dos que carregam nas mãos os praze- res da vida. Seja louvada Maria Amélia, rainha do barro e da criação – as imagens moldadas pelas suas mãos talentosas são ornamentos admira- dos bem para lá do horizonte. E o que dizer de Galo Preto, hoje de barba branca, com seu pandeiro e seu improviso, cortante como o chicote de um feitor – vaidoso sempre com seu chapéu quebrado? Este suplemento especial que hoje estamos entregando aos leitores, com textos de Mateus Araújo, fotos de Heudes Regis, criação gráfica de Ícaro BioneeediçãodeDianaMoura,tembemmaisnoseuricoconteúdo.Elefala de personagens e instituições que se tornaram, por justiça e merecimento, PREFÁCIO
  • 5. PatrimôniosVivosdePernambuco.Perfilamnestahonrosagaleriaosgran- des ceramistas Zezinho de Tracunhaém e Zé do Carmo, o Mestre Dila da gravura, o cordelista José Costa Leite, o xilogravurista J. Borges, parceiro do não menos famoso Ariano Suassuna, instituições como os Maracatus LeãoCoroadoeEstreladeOuro,aConfrariadoRosárioeoCaboclinhoSete Flexas.Pioneirodocinemapernambucano,louvadosejaFernandoSpencer, há mais de meio século envolvido coma sétima arte. Dá para ver, portanto, que a leitura deste suplemento será prazerosa e enriquecedora – um dife- rencial que estamos colocando hoje nas mãos de nossos leitores. IVANILDO SAMPAIO Diretor de Redação
  • 6. Eles são 29 homens, mulheres e agremiações. Com poesia, escrevem a cultura pernambucana todos os dias. E fazem parte dela. Alimentam ummundoimagináriohabitadoporbois,gigantes,calungas,bichosquefa- lamesantosquesetransfiguram.Vivemempequenascasascoloridas,pin- tadaspordentroeporfora.Quasetodosvêmdaperiferia,dosarredores,de onde o vento faz a curva. Talvez por isso, não falem em linha reta, mas em voltas.Contamdeummundosódeles,queencantae,àsvezes,fazdoer.São osPatrimôniosVivosdePernambucoquemantêmaricatradiçãodacultu- rapopulardoEstadoedãocores,sonsevozesàidentidadepernambucana. Pela imensa contribuição que oferecem ao seu povo, eles mereceram o título de Patrimônios Vivos. O reconhecimento oficial é oferecido pelo go- vernodoEstado,pormeiodeumeditaldaSecretariadeCultura/Fundarpe. Anualmente,umacomissãoestadual,formadaespecificamenteparaaelei- ção, reúne-se, avalia os nomes inscritos e seleciona três novos membros paraogrupo.OprocessopassapeloavaldoConselhoEstadualdeCultura. Oreconhecimentofoiestabelecidoporleiem2002–aindaqueosprimeiros 15 nomes só tenham sido anunciados em 2005, retroativamente. Desde então, a cada ano, três novos artistas ou agremiações são escolhi- dos.ElestêmquemorarnoEstadohápelomenos20anosecomprovaratua- çãodentrodaculturalocal.Mensalmente,recebemumabolsavitalícia–R$ 1.021,62parapessoasfísicas;ouR$2.043,24parainstituiçõessemfinslucra- tivos. É um incentivo para que se mantenham em atuação e repassem seus conhecimentos.Emoutubro,oJornaldoCommerciopublicoudoiscader- nos Pernambuco Vivo, apresentando aos leitores um pouco da trajetória de arteeencantamentodessesguerreiros.Omaterial,queresultounestee-book, reflete a própria formação cultural do Estado, em sua diversidade ímpar. Maracatus,caboclinhos,frevos,forrós,sambaseafoxés.Poetasdamadei- ra, da cerâmica e das letras. Atores e bailarinos. Desenho, pintura e escul- tura. É uma incrível multiplicidade de manifestações culturais que se des- dobram neste Pernambuco Vivo. Nomes que vão além do Carnaval, do São JoãoedoNatal.Artistasque,comojáhaviaalertadoopoetaPadreAntônio Vieira, deveriam estar na boca do povo, nas salas de aula. Para contar um pouco dessa história, nos dedicamos por 18 meses. Os Patrimônios Vivos de Pernambuco abriram as portas de suas casas, ate- liês e sedes de instituições. Às vezes, as memórias se diluem no tempo, e os registros se inscrevem nas entrelinhas. Suas biografias se confun- dem com a arte que professam. Nas reportagens, o leitor vai perceber APRESENTAÇÃO
  • 7. que, para essas pessoas, vida e obra são uma coisa só. Durante toda a viagem, impressiona o sorriso no rosto de cada um deles. Com orgulho, deixaram que seu mundo fosse compartilhado. Só assim foi possível narrar o retorno ao sucesso da cirandeira Lia de Itamaracá e da coquista Selma do Coco, hoje grandes amigas. A contor- cionista Índia Morena redescobre a infância. O elegante Galo Preto fala de superação. As criações dos xilogravuristas e cordelistas Dila, J. Borges e José Costa Leite revelam cores e rimas. Abrem-se as cortinas do Teatro ExperimentaldeArte.ZédoCarmo,MariaAméliaeNucafazemoraçõesem forma de esculturas. Arte e fé se encontram na Confraria do Rosário e nos batuquesdosmaracatusLeãoCoroado,EstrelaBrilhanteeEstrela de Ouro. EmPernambucoVivotambémpasseiammestresdoCarnavalmaiscolo- ridodomundo.ReverenciamosOHomemdaMeia-Noite,descemosladeiras aosomdosfrevosrasgadosdosmaestrosDudaeNunesenosemocionamos aoritmohipnotizantedoscaboclinhosSeteFlexaseCanindé.Tambémtri- lhamosestradasparaentrarnossalõesdoforróquemarcaoSertão,comJoão SilvaeCamarão;econhecemosovigordasbandasfilarmônicasdaZonada Mata:EuterpinaTimbaúba,Capa-BodeeCurica.DoAgresteedaMatache- gam escultores como os mestres Nuca e Manuel Eudócio. Neste livro, por fim,nos despedimos dos Patrimônios que já se foram: Manuel Salustiano, Arlindo dos Oito Baixos, Ana das Carrancas e Canhoto da Paraíba. Comdelicadosenredosdevida,essesartistasdescreveramsonhos,amo- res, canções; e confidenciaram medos. Mesmo aqueles que esqueceram al- guma parte da história pelo caminho, todos ainda acreditam num final fe- liz. Salvaguardados por um título que os torna representantes oficiais da arte pernambucana, mestres do barro, músicos, cineasta e carnavalescos recontam narrativas tão suas, ao mesmo tempo tão nossas. O projeto Pernambuco Vivo foi concebido por Mateus Araújo, autor da maior parte dos textos, com algumas reportagens assinadas por José Teles,BrunoAlbertimeDiogoGuedes.AsfotografiassãodeHeudesRégis, com colaborações de Ricardo Labastier e Priscila Buhr. Todo o conceito visual dos dois cadernos especiais e deste e-book foi pensado pelo desig- ner gráfico Ícaro Bione. O hotsite hospedado no JC Online foi desenhado por Fábio Monteiro. O material do e-book é muito enriquecido ainda pelos vídeos editados por Caíque Mulatinho.
  • 8. Falar de universos muitas vezes estereotipados, mundos talvez esquecidos. Dar voz aos artistas, permitir que contem suas próprias histórias. Foi isso que propusemos no especial Pernambuco Vivo. A partir de horas de entrevistas gravadas, fui seguindo narrativas, desvelando lembranças ora confusas, ora tão vivas. Um desafio de apuração e um desejo de revelar para Pernambuco os seus grandes Patrimônios. É muito honroso entregar este especial, um trabalho de equipe. Um grupo dedicado e sempre disponível. Dois cadernos nossos, e, antes de tudo, desses 30 orgulhos pernambucanos.” MATEUS ARAÚJO Repórter O grande desafio desse trabalho foi entrar na casa dos personagens, na intimidade de cada um, sem que a nossa presença interferisse no universo deles. Sem que os apetrechos guardados para ocasiões especiais saíssem das gavetas e armários, em reverência à “visita da imprensa”. Precisamos nos desprender do olhar viciado para desnudar suas verdadeiras identidades. Queríamos nos surpreender, como no Turista aprendiz, de Mário de Andrade, e experimentar o prazer da descoberta a cada encontro. Praticamos o exercício de desconstruir a imagem desses artistas (sedimentada nos jornais, na TV ou no rádio) para trazer, em retratos do cotidiano, um pouco da elegância e dignidade que lhes são merecidas.” HEUDES REGIS Fotógrafo Ser não é a única questão para eles, mas sim o quanto podemos compartilhar o que cada um deles é para nós. A pura e crua cultura pernambucana permeada em nosso imaginário. Cada morador do Estado tem em si um pouco da realidade desses 30 personagens, talvez não no cotidiano, mas em nossas raízes. Símbolos, cores, vestimentas, rosas e lanças são representados aqui por um outro ângulo, um olhar contemporâneo, numa estrutura que procura harmonia, leveza e ritmo para incitar o leitor a passear por cada história como se fosse uma única - nossa - própria história.” ÍCARO BIONE Designer “ “ “ depoimentos
  • 10. A PRIMEIRA VOZ DA CIRANDA LIA DE ITAMARACÁ Lia tinha um medo. Em abril de 1998, a cirandeira da Ilha de Itamaracá foi convidada para cantar no festival Abril pro Rock (APR), no Recife. “Olha, eu me meti no meio dos roqueiros. Menino, me deu um medo. Eu pensei: ciranda com essa batucada será que casa, meu Deus?. E fui embo- ra.” Lia estava longe da mídia. Lançou um LP em 1977, A rainha da ciran- da, e sumiu do mapa. O convite representava uma possível volta. “Rapaz, o show foi tão bom, mas tão bom, que, se eu pudesse, estava lá todo dia. Os roqueiros ficaram doidos. Dançaram, cantaram, bateram palma. Parecia que eu estava ali dentro há séculos.” Depois disso, já gravou mais dois ál- buns, Eu sou Lia (2000) e Ciranda de ritmos (2008), e participou de fil- mes, entre eles o incrível Recife frio, de Kleber Mendonça Filho. Lia é um Patrimônio Vivo de Pernambuco. O título lhe engrandece a alma. “É bom ter o trabalho reconhecido com apessoaviva.Sealguémtiverdefazeralgumagraçapramim,façacomigo Fotos: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
  • 11. viva, para eu ver. Não faça depois de eu morrer, não. Esse negócio de a Rua de Lia, a Praça de Lia, a estátua de Lia... Faça comigo viva”, avisa. Além da projeçãonacional,conquistourespeitoaoredordomundo.Foichamadade “divadamúsicanegra”,pelojornalnorte-americanoTheNewYorkTimes, e comparada à voz da cabo-verdiana Cesária Évora, pelo jornal francês Le Parisien. Mas sua história não é feita só de alegrias. Aos 69 anos, completados em 12 de janeiro de 2013, a artista vive um momento tranquilo depois de muitos altos e baixos. A cantora, que nos anos 1970 experimentou o apogeu da ciranda, conheceu o aban- dono na década seguinte e voltou a brilhar fora da ilha depois de ser apadrinhada pelo movimento manguebeat, no APR. Altiva e elegante, Lia era chamada de Rainha da Ciranda na década de 1970.Aclassemédiaeopúblicouniversitáriosaíamdacapitalnosfinaisde semanaembuscadasrodasdecantigaàbeira-mar.OdestinoeraItamaracá ou a praia do Janga – onde morava a famosa Dona Duda. No livro Do frevo ao manguebeat, o crítico musical do JC, José Teles, explica que outros ar- tistas também foram importantes na afirmação da ciranda. Em 1967, Teca Calazans lançou um disco com a canção mais conhecida da cirandeira, Quem me deu foi Lia, gravada inicialmente por Expedito Baracho. A auto- ria da música foi discutida por muito tempo. “E no fim das contas a músi- ca termina sendo minha mesmo, né? Quem deu foi Lia e acabou”, brinca. Hoje a composição é de domínio público. DE SOL E DE SAL Foinoaugedapopularidade,em1977,queLialançouseuprimeiroálbum. Logodepoisfoiesquecida.Naviradadosanos1970paraadécadaseguinte, as indústrias fonográfica e cultural passaram a marginalizar a música po- pularbrasileiranãoelitizada.Esseostracismo,somadoaoalcoolismoeàmá administração da carreira, levou a cantora a uma crise artística e pessoal. “Euviviadentrodeumpoço.”Hojeelacreditaafamaeavidaestávelque tem ao trabalho do seu empresário Beto. Depois do show do APR, ela con- quistou a admiração do público jovem e ganhou o mundo. “Perdi a conta de lugares por onde já andei. Eu pensei que nunca ia sair dessa ilha. Aqui é ummatosemcachorro.Ninguémolhapelacultura.MasjáfuiàAlemanha, Paris, Lisboa. Menino, eu já bati o mundo, Jesus!”, sorri, sem esconder a satisfação. Mesmo assim, diz que não quer ser a “rainha da cocada preta”. Lia tem a humildade daqueles que já perderam tudo e tiveram que re- começar. Não uma vez. Mas várias. No verão de 1988 para 89, ela teve a residência incendiada. Eram 2h da madrugada quando a casa detaipa co- meçou a pegar fogo. “Foi muita inveja. Eu tinha acabado de ganhar uma geladeira, e os vizinhos estavam de olho grande. No outro dia, acharam uma espécie de tocha no chão. Alguém tinha tocado fogo na minha casa.” As idas e vindas da vida e da ciranda obrigaram Lia a ser, por 28 anos,
  • 12. merendeira em uma escola pública da ilha, trabalho que lhe deu sustento durante o período longe dos palcos. A casa onde mora com o marido foi herdada da mãe adotiva – a quem Liafoidada,aosdezanos,porfaltadecondiçõesfinanceirasdospaisbioló- gicos. Chegar até lá é tarefa fácil. Ela mora em Jaguaribe, uma comunida- de periférica da Ilha de Itamaracá, no Litoral Norte do Estado, que ainda vive da pesca e do verão. “Chegando em Jaguaribe, é só perguntar onde é minhacasaquetodomundosabe.”Esabemesmo.“Pegueàdireitaeváem frente. A casa dela tem uns nomes no muro”, diz um ilhéu. São os nomes da própria artista, grafados em mosaico na parede. Uma batida na porta, e a mulher de 1,87m de altura atende com um sorriso largo e um abraço forte. Morena da beira do mar, queimada do sal e do sol, Lia é doce. Aconversaénoterraço,defrenteaojardim.Asparedesdapequenacasa guardam emolduradas as lembranças dos 50 anos de carreira. Entre re- portagens e cartazes,elatambémeternizaseuamorpelomarido,Antônio. As fotografias dos dois são intercaladas por pequenas frases de declara- ções deamor. “Acho que vi um gatinho” é uma delas. Uma foto de Mestre Salustiano relembra a amizade dos dois. No jardim, entre plantas e flores, estãoesculturasdepássaros,sapos,golfinhoedeNossaSenhoradaGraças. IEMANJÁ, RAINHA Como boa filha de Iemanjá, Lia gosta de azul e de enfeites. Usa cola- res, pulseira e brincos. Adora batom. Da Rainha das Águas, diz que her- dou o amor pelo mar, mas não frequenta o candomblé. “Só vou num ter- reiro quando estou precisando de ajuda. Aí faço uns trabalhos. Não faço o mal para ninguém, só peço ajuda para mim.” Transitando pelo sagrado e o profano que se unem na cultura afro-brasileira, Lia é amiga do padre da capela de Jaguaribe, a quem prometeu só come- çar suas apresentações após às 21h, quando termina a missa. O templo está localizado bem pertinho do Centro Cultural Estrela de Lia. “Às vezes a gente es- tava ali com a ciranda, aí tinha maracatu, tinha coco. Tudo quase na porta da igreja. E o padre coma hóstia na mão. Eu via a hora o santo cair. Aí ele pediu para eu só começar quando a missa acabasse”, explica. NaslembrançasquetemdainfânciaemItamaracá,Liaguardaasimagens e a alegria das noites de pastoril e cavalo-marinho na praça de Jaguaribe. Entre seus 21 irmãos, ninguém canta, dança nem participa dos brinque- dos. Só ela. Desde criança se interessou pela ciranda. Aos 12 anos, já dava entrevista a jornais e rádios e aos 18 se firmava como cantora. Atualmente a senhora de sorriso largo faz da beira do mar seu palco e sua inspiração. Há três quarteirões de casa fica o Centro Cultural Estrela de Lia, na areia da praia. Às noites de sábado, o lugar recebe a famosa roda de cirandeiros, Ouça a música Eu sou Lia Já fui à Alemanha, Paris, Lisboa. Menino, eu já bati o mundo, Jesus!”“
  • 13. com cerca de 500 pessoas, entre ilhéus e turistas. A cantora fez da sua vida uma roda de ciranda. A velhice que chega lhe aflige. Há um medo do esquecimento, como também há um medo do ócio. À beira das águas, ela compõe suas músicas. Sentada na praia, escreve as letras que são apa- gadas pelas ondas, e reescritas, e cantadas. “É da areia para o cérebro, do cérebro para o papel. Depois eu canto.” Há15anos,Liatinhamedodesubirnopalcodosroqueiros. Agoratemmedodofuturo.Elaseressentedafaltadeumsuces- sor. A artista conta que teve quatro filhos, “mas nenhum quis cirandar”.Todosmorreramrecém-nascidos.Jáperdeuaespe- rançaquedepositavanosobrinhoEzaquiel,22anos:“Onegócio deleéfutebol”,lamenta.“Tantacoisaquevocêtem.Seutraba- lho,suaforça,sualuta.Evocêvaiemboraenãotemninguém que diga ‘eu vou cantar hoje, vou fazer o trabalho dela, vou fazer o show dela’. Infelizmente, cada cabeça é um mundo.” Às noites de sábado, a cantora realiza sua famosa roda de ciranda, no Centro Cultural Estrela de Lia, em Itamaracá
  • 14. Nove discos, um DVD e cinco filmes SELMA DO COCO “Ra-rá.Êêêê,tchá.Ra-rá.Tchá,tchá,tchá,tchá”.DonaSelmadoCoco, 78anos,entoaessaonomatopeiaemtodamúsicaquecanta.Repete-a também, intercalando às suas respostas, durante a entrevista. Virou uma fórmula, um cacoete indispensável quando ela sobe ao palco ou assume a postura da figura pública que conquistou fama no Estado, no Brasil e fora daqui, graças ao melô da rolinha fujona, sucesso no final dos anos 1990. Assim como Lia de Itamaracá, a coquista também foi redescoberta pela mídia nacional numa edição do Abril pro Rock, em 1997, um ano antes que a amiga.Aprojeçãoconquistadacolocouaex-tapioqueiradoAltodaSéem pontes aéreas até então inimagináveis por ela. Aquela noite continua bem viva nas lembranças da senhora cuja boca
  • 15. reluz ouro a cada sorriso desde os 15 anos. Ela escancara com orgulho o pivô dourado que já vi- rou refrão de uma de suas músicas: “Moreninha do dente de ouro, parece um tesouro a boqui- nha dela. Se eu pudesse e tivesse dinheiro, eu ia em Barreiros e casava com ela”. O show no APR foi, de certa forma, fruto da ligação que a cantora alimentava com Chico Science (1966- 1997). O ícone do manguebeat gostava de be- ber da fonte do trabalho, da experiência e da sa- bedoria de Selma do Coco, como afirma o crí- tico musical José Teles, no livro Do frevo ao manguebeat. Acostumada a cantar na praieira e popular Festa da Lavadeira, Dona Selma padecia do mesmo medo que afligia Lia em relação aos roqueiros. “Oúnicoshowqueeufizemquefiqueicismadadeninguémmederrubar do palco foi o Abril pro Rock. Ali é dose, né? É um perigo para não cair do palco. Misturar cococomrock,Ave-Maria,nãofoifácil,não.Eufuiporque sou doida mesmo. Ra-rá. Sempre penso assim: se perdi, perdi; se ganhei, ganhei. Menino, o povo gostou mais do meu show do que do show dos ro- queiros.Osroqueirosficaramarretadoscomigo.Pegaramospanosdebun- da e foram embora.Ra-rá.Eu dei tanta entrevista depois daquilo”, recorda. Antes desinibida e alegre, Dona Selma tem se dobrado ao tempo e às in- tempéries da vida. Tornou-se uma mulher de humor retraído, demora a se soltar e traz o sorriso acompanhado por um olhar evasivo. Na casa em que mora com uma nora e as netas, passa os dias sentada em frente à televisão: “Se chegar gente, eu converso. Se não chegar, eu não converso”. Quando nãoestáseapresentando,elarimanacabeçaasaudadequeguardadofilho Zezinho, que era seu braço direito, amigo e produtor musical. Ele morreu em abril de 2010. “Nem sempre a gente tem o que quer. Não vou dizer que nãosoufeliz.DependendodomeuDeus,eusoufeliz,edomeucoco.Sónão sou mais feliz porque eu tinha uma pessoa que vivia do meu lado, era tudo na minha vida, mas Deus levou.” “MORRE QUEM CANTA, MAS A CULTURA NÃO MORRE NUNCA” Ela recebe a equipe de reportagem numa sala pequena, no térreo de uma casa de primeiro andar bem conhecida entre os moradores do Largo do Amparo, no sítio histórico de Olinda. Sarcástica e com respostas curtas no início da conversa, Dona Selma atropela palavras ao narrar lembranças com uma voz cansada, marcada pelo peso da idade. Diz que chegou à mú- sica encaminhada pela família. “Meu pai e minha mãe. Minha avó e meu avô.Todoselescantavam.Quandoeucanteioprimeirococo,tinhanabase de uns dez anos.” Mas ainda não pensava na música como um ganha-pão. Nascida em VitóriadeSantoAntão,DonaSelma– osobrenomeFerreira Dona Selma do Coco, durante apresentação na Festa da Lavadeira, na Praia do Paiva, em 2005
  • 16. Durante seu anonimato, Dona Selma trabalhou como tapioqueira no Alto da Sé, em Olinda da Silva ela quase nem se lembra de usar – veio para o Recife aos 10 anos e por muito tempo foi apenas mais uma entre os milhares de mo- radoras do bairro da Mustardinha, Zona Oeste do Recife. “Eu vivia abandonada. Ninguém me conhecia na rua. Hoje todo mundo me conhe- ce. Tu me conheceria se eu morasse lá ainda?”, pergunta a coquista. O anonimato saiu de sua vida quando ela pas- sou a vender tapioca no Alto da Sé, em Olinda. Foi peneirar a goma de mandioca e fazer a ale- gria dos turistas. “Tapioqueira, antes, só tinha na Sé. Agora tem em todo canto. Como o coco de roda. Antes só havia perto de onde tinha escravi- dão. Agora tem em tudo que é lugar. Mas não tem a mesma qualidade”, alfineta. “Aliás, tem. Não vou nem dizer que não tem qualidade, pra não dar confusão”, desconversa. Ra-rá. Era exatamente na Sé que a coquista dialogava sobre música e cultura com Chico Science. Na febre dos anos 1990, que misturava lama e caos, alfaia e guitarra, Dona Selma viu seu trabalho ser aproximado do pop – o mesmo processo que contagiou a ciranda de Lia de Itamaracá. Nesse pe- ríodo, as duas se tornaram grandes amigas. “Quando eu estou arretada, esculhambo com ela. Digo: ‘canta aí, nêga safada’”, comenta Dona Selma, numagargalhada.Amulher,quenãotempapasnalíngua,começaasesol- tar na entrevista. Trinta minutos depois, ela se convence de que a reporta- gem chegou para conversar. Mas alerta: “Não gosto de dar entrevista não. Estougostandodedarentrevistaavocêsporqueeugosteidevocês”.Rá-rá. Em 60 anos de carreira, Selma do Coco já gravou nove discos, um DVD, fez participação em trabalhos de outros artistas e em cinco filmes per- nambucanos. Ela sabe todos os números de cor. Em casa, há uma sala só para guardar discos, títulos, troféus e recordações– espaço que ela e a nora pretendem transformaremumpequenomuseu.“Morrequemcanta, mas a cultura num morre nunca.” ESTOU ENSINANDO E VOU ENSINAR A neta Polyana, aos 9 anos, olha de lado a avó fazendo pose para as fotos. A menina talvez não compreenda algumas frases tristes, ditas displicente- mente,entregargalhadas,porDonaSelma.“Euestoumorrendo.”Amulher que já gravou disco na Alemanha, conheceu a Europa e fez shows no Brasil inteiro aos poucos vai preparando a neta mais nova para cantar. Já tem ou- trasnetasquelheacompanhamnospalcos,masPolyanaagoraéasuaprio- ridade.“Voucolocarelaparadartrêspalavrasparaovídeodevocês.Vouco- locarelaaquidomeulado.Euestouensinadoevouensinar.Porque,quando eu morrer, ela vai ficar com a mãe dela tomando conta do meu trabalho.
  • 17. A metodologia que naquela casa se segue não tem mistério. É sem ro- deios. Cantar coco é abrir a boca e cantar. Aprender a letra e sair entoan- do. A única exigência da matriarca é que a pessoa tenha energia e ritmo. “Num é todo mundo que tem não”, diz Dona Selma. “Rará”, solta Poly ao finalizar uma das músicas, no colo da avó, imitando a coquista. A senhora já não tem a mesma força que antes. Nos shows, alterna-se ao microfone com outras pessoas. A idade vai dando os seus sinais. Algumas lembranças começam a lhe escapar da memória. Saudosista, ela confron- ta o presente com um certo ressentimento sobre o vaivém da cultura pop. “As pessoas chamam para os shows quem tem fama, quem é bonita, quem todo mundo conhece. Se você pudesse escolher entre eu e aquela menina da Bahia (Ivete Sangalo), para contratar para um show, escolheria quem? Aí é uma questão de gosto.” Dona Selma, que em 2011 ganhou o prêmio Afro-latino como destaque de mulher negra do País – ficou em segundo lugar, depois da atriz Zezé Mota eà frenteda cantora Margareth Menezes –, agora leva uma vida cal- ma, depois de ter se dedicado à família e à música. A vaidade virou apenas obrigação de quem é famosa, deixou de ser um prazer. “Eu era vaidosa. Agora num sou mais não. Sou velha, desarrumada. Estou arrumada agora para dar entrevista. Você pega essa matéria e vai botar no jornal. O povo vai me ver. Não posso estar rabugenta no jornal. Eu tenho que ajeitar o pi- xaim, pra ver se chego à metade do que era.” Ra-rá. Ouça a música Moreninha do dente de ouro
  • 18. Peripécias de um valente Galo Preto Tomaz Aquino Leão, Mestre Galo Preto, enfrenta uma vida de adver- sidades e superação. Uma confusão o levou a um período de ostracis- mo num momento decisivo para sua carreira. Em 1992, às vésperas das eleições, o embolador e coquista foi preso acusado de liderar um grupo de extermínio, em Peixinhos, uma das comunidades da periferia de Olinda. Foram dois anos, dois meses e seis dias na cadeia. Ele sabe de cabeça. Não havia prova que o condenasse. Nenhuma testemunha sequer. Mas ficou a raiva e a vergonha. Nesse período, Galo Preto deixou de ver e viver a eclo- são do manguebeat, a época em que uma nova geração em Pernambuco exaltou os mestres da cultura popular. NascidoemBomConselho,nodistritodePrincesaIsabel,noAgreste,ele
  • 19. chegou ao Recife aos 12 anos. Veio com o irmão, o cantador Preto Limão. “Fomos morar no bairro de Campo Grande. Meu pai não vivia em casa e meu irmão terminou sendo um segundo pai. Naquela época, Preto Limão fazia uma dupla de embolada com outro irmão nosso, Curió, cantando nas praças e nos mercados do Recife. Muita gente me confundia com eles. Ma seu não gostava de cantar na rua, de rodar o chapéu para pedir dinheiro”, lembra o artista, hoje com 78 anos. O jovem Tomaz, recém-chegado ao Recife, em 1947, sem ainda ter sido batizado com apelido artístico, foi vender frutas nas ruas da capital e ter- minou chamando a atenção do influente poeta Ascenso Ferreira. “Como eu gostava de futebol e música, meu irmão me colocou para trabalhar como ambulante. Disse que não queria que eu virasse vagabundo. Mas eu saía vendendo fruta fazendo rima. E passava todo dia na porta de Ascenso Ferreira,atéqueumdiaelemechamouedissequegostavadaminhamúsi- ca.ElemedeuumcartãodeZilMatos,quetinhaumprogramaderádiona época, e fui atrás. Lá cantei minha primeira música, que eu tinha feito aos nove anos, chamada A pinta.” Dali pra frente, a vida foi de altos e baixos. Galo Preto resolveu seguir carreira solo, sem a parceria de Curió, após participar do programa de rádio. Participou de caravanas culturais de uma emissora local. Terminou sendo enganado e voltou sem cachê. Nadécadade1970,épocaemqueastelevisõeslo- caisveiculavamprogramaçãomusical,oartista– àquela altura também tocando jazz – alimentou parceriascomnomesimportantesdamúsicabra- sileira,comoJacksondoPandeiro,CaubyPeixoto, ArlindodosOitoBaixoseLuizGonzaga.Comsua cantoria,foicriarjinglesemrepenteparaascam- panhas políticas de Miguel Arraes. “Eu era pro- curado por todo mundo, porque o repente fazia sucesso com o povo. E dizem que nessa arte eu sou bom”, brinca o artista. Décadas depois, se Galo Preto perdeu o bonde da história por conta de sua prisão – quando tinha tudo para estar no elenco de artistas populares das edições históricas do Abril pro Rock, como Lia de Itamaracá e Dona Selma do Coco, em 1997 e 1998 –, ao tentar refazer a vida, ele foi valente. Semdesistirdacarreira,GaloPretoconseguiuaospoucosabrirseuespaço na atual cena musical pernambucana. Em 2007, a convite da Secretaria de Saúde de Olinda, o coquista foi in- tegrar um grupo de músicos locais que participou de uma campanha pu- blicitária, ao lado de Beth de Oxum, Dona Selma, Aurinha do Coco e Zeca do Rolete; e depois foi personagem-tema do documentário O menestrel do coco, de Wilson Freire. De rima em rima foi limpando o seu nome, recon- quistando a fama. Na semana passada, ele fez shows, em São Paulo, divi- dindo o palco com o cantor pop pernambucano Otto. Sempre elegante, mestre Galo Preto não dispença roupa e chapéu brancos
  • 20. Senhor elegante, ele não dispensa a roupa clara. Em toda apresentação, está sempre com terno, calça e chapéu. “Recentemente eu estava com um empresário que começou a dizer para o povo que eu era de candomblé, só porque me visto todo de branco. Como sou negro, me ligavam a um preto velho. Mas não sou do candomblé nem tenho nada contra. Só não quis que alimentassem uma mentira”, conta. Hoje o mestre mora na casa da filha, com ela e o genro. Ele se casou cinco vezes, mas agora está viúvo. Galo Preto tem um herdeiro musi- cal: o filho Telmo Anum, de 39 anos, que é guitarrista e percussionis- ta. O título de Patrimônio Vivo, no caso de Galo Preto, foi mais do que um reconhecimento artístico, um incentivo ao seu trabalho. Para ele, foi uma resposta à sociedade. Ouça a música Preto é bonita cor
  • 21. Música correndo nas veias Maestro Duda Ofrevo, para o maestro Duda, não é um simples gênero musical – ou um patrimônio da humanidade, como o próprio músico é do Estado de Pernambuco. O gênero sempre esteve na trajetória e no cotidiano do múltiplo instrumentista mais do que como acordes, partituras e arranjos. Duda é capaz de se magoar com o frevo, demonstrar seu amor por ele, te- mer o futuro, dar conselhos para o presente. São duas personalidades for- tes, talvez, em uma relação de amor incondicional e mágoa reticente. Aos 78 anos, o maestro deve seu prestígio em Pernambuco ao frevo, mas a ale- gria do título traz também o ressentimento com o pouco reconhecimento das suas outras composições. Porque,alémdemestredofrevo,JoséUrsicinodaSilva,nomedecartório
  • 22. de Duda, é um maestro múltiplo, que passeia, como todo bom mestre, do erudito ao popular. A música faz parte do seu corpo, como se corresse no seu sangue. Mais do que contagiado pelo vírus da música, Duda acredita que já nasceu com ele; estava fadado aos instrumentos, notas, partituras, suítes, arranjos e, claro, suor. “Quando criança, aprendi a tocar em uma banda, a mesma em que meu pai tocava, a mesma em que meu avô tocava. Não tinha internet, porque hoje todo mundo nem sai dela. Naquele tempo nãotinha internet, nãotinhatelevisão,músicaeraoqueeutinhaprafazer. Eu não tinha outra opção, não”, aponta. Diz logo que a sua história, que começa em Goiana, pode ser facilmente encontrada na internet. E pode mesmo, nas mais diversas formas, de enci- clopédias de música até duas dissertações de mestrado. “Mas, se você qui- ser,contonovamente.”Pernambucanoeparaibanoaomesmotempo,Duda seconsideraum“meeiro”,porternascidoa62kmdeRecife,pertodolimi- te com a Paraíba. O começo na música, seguindo os passos paternos, foi na bandaSaboeira,agranderivaldogrupoCurica.Ali,aosoitoanos,conheceu o saxofone, seu companheiro de décadas que lhe introduziria ao frevo, à partitura e a todo o universo musical. Dois anos depois, aos 10, já mostrava a sua criatividade precoce: depois de ver um filme com o mesmo nome no cinema, compôs Furacão, o seu primeiro frevo, com “um arranjo simples”. A partir dali, foram mais de 500 discos gravados. Veio para o Recife em 1950 tocar na lendária Jazz Acadêmica, fundada por Capiba. Sua trajetória se confunde com o frevo, mas ultrapassa em muito o gênero. A Suíte nor- destina, por exemplo, já foi executada por orquestras americanas, japone- sas e alemãs – “e todas as bandas brasileiras”. “As orquestras sinfônicas do mundo todo e as bandas sinfônicas e filarmônicas do Brasil inteiro tocam músicas minhas. Tem frevo no meio. Mas tem baião, tem xote, tem mara- catu, tudo que é música nordestina tem”, conta. “O maestro Júlio Medalha disse em uma entrevista que, se eu tivesse nascido nos Estados Unidos, eu seria um Quincy Jones”, revela, com orgulho. Nas composições eruditas, quase sempre arranja um modo de ressaltar sua origem, carregando-as do popular. Só que sua capacidade de arranja- dor não para aí. Vai de hinos de colégio (“Vez ou outra paro um estudante do Colégio Bandeira, na frente de casa, digo ‘venha cá’ e peço pra ele can- tar o hino, só para brincar. Depois digo que eu compus”) até arranjos para CDs de igrejas, de suítes a frevos de rua. “Música para mim tem que ser boa. Pode ser erudita, popular, sacra, evangélica.” FREVO NÃO É PARA OUVIR SENTADO Ao explicar uma música, Duda para o que estiver dizendo e começa a cantarolar. Acompanha a voz com a mão, como se regesse a si mesmo. A melodia é um idioma à parte para o maestro, uma linguagem afetiva, em que ele é capaz de contar a história do Brasil, homenagear um filho ou um
  • 23. amigo, representar uma região, contar suas dores ou alegrias. AmúsicaéessalinguagemparticularparaDuda;ofrevo,asuaprimeirae maisdúbiapaixão.Oritmoépartedasuavida.Compôsumparacadaumde seusfilhos.Umdosmaisfamososéemhomenagemàquelequeseguiuseus passosnamúsica,NinoPernambuquinho,hojeprofessordoConservatório Pernambucano.Oproblemaéque,comoofrevoquasenãoélembradofora do período carnavalesco, o maestro se ressente da falta de trabalho. “Só se lembram de mim no Carnaval, durante três dias. E o resto do ano?”, diz. “ParatocaraquiemPernambuco,tenhoqueenfatizarmaisofrevo,oresto da minha obra é esquecida. Afinal, santo de casa não faz milagre.” Nesse vaivém sentimental, em determinado período da vida deixou de compor frevos. Até nas suítes com ritmos populares, escolhia o maracatu e a ciranda. É a mágoa que continua viva. Duda, no entanto, não consegue esconderpormuitotempoarelaçãoíntimacomomaispernambucanodos ritmos: se preocupa com seu futuro como se ele fosse um filho que vai se- guir aqui quando o maestro se for. Outrodesapontamentoénãoserchamadoparamaisatividades.Otítulo dePatrimônioéumorgulho,maselenãoquerserentronizadoemumtítulo: quer continuar tocando o tanto quanto possível. “Já que eu estou vivo, sou patrimônioeestoumelocomovendo,meusem!Estouprontoparatrabalhar, euprecisotrabalhar”,avisa.“Apesardeestarcom78anosdeidade,euestou vivo”,brinca.Seusonhoépodernãosótocar,masensinarseuconhecimen- to sobre o frevo para alunos, até para conectá-los com a essência do ritmo. “Estão descaracterizando o frevo. A juventude está pensando que o que é feito hoje é o frevo de verdade. É preciso que se conheça o frevo, não se podecolocarelenumavitrine,tombar,comoumaigreja,ummuseu”,alerta. O problema, para ele, não é a modernização do ritmo, mas sim ver o frevo servalorizadocadavezmaisnopalcoenãonarua.“Pormaismodernoque um frevo seja, é a orquestra na rua que toca ele como ele é. Não tem solis- ta, não, é só a orquestra tocando frevo”, ensina, lamentando que, em 2012, entre os três primeiros lugares do concurso municipal, nenhuma canção era de rua –todas seguiamarranjosquesóserviriamparashows.“O frevo é contagiante, o frevo é para balançar o povo, não é formal. Ficar sentado ouvindofrevocomonumvelório?Ofrevonãofoifeitopara isso”, sentencia. DIOGO GUEDES Ouça a música Suíte nordestina, executada pela Orquestra do Maestro Duda
  • 24. Caso de Amor com o Frevo Maestro Nunes Em 2003 o maestro Nunes, com a autoridade dos seus então 72 anos, lançou dois álbuns de frevos, um de rua, outro canção. Ambos com composições inéditas. Algo raro, numa época em que o ritmo andava por baixo,vivendoderegravações.Elerepetiriaofeitocincoanosdepois,quan- docompletouseis décadasdedicadasnãoapenasaogênero,masaosdiver- sos ritmos pernambucanos. Obviamente ele é mais conhecido pelos frevos instrumentais que compôs, alguns quase de domínio público, como é o caso de Cabelo de fogo, que divide com Vassourinhas (de Joana Batista e Matias da Rocha) o título de marcha-frevo mais executada nas ruas do Estado du- rante o Carnaval. É uma melodia que todo conterrâneo conhece de Fotos: Marcos Michael/JC Imagem/22-1-2007
  • 25. cor, embora boa parte não saiba o nome do autor. Nascido em Vicência em 26 de junho de 1931, Patrimônio Vivo de Pernambuco desde 2009, José Nunes de Souza tem uma trajetória artísti- ca muito parecida com a de outros grandes nomes do frevo, como Levino Ferreira, Capiba, José Menezes. Começou a tocar ainda de calças curtas, passou por bandas de música do interior e veio desaguar no mar. NoRecifepassoupordiversasagremiaçõesmusicais,comoBandaUnião Operária, Banda Manoel Óleo, União Operária da Macaxeira e Banda do Liceu de Artes e Ofícios, onde fez curso formal de música. Também tocou na banda do Cassino Americano, no Pina, e foi funcionário da Banda da Cidade do Recife. Sua ligação com o Partido Comunista do Brasil o levou à trabalhar não apenas com as citadas orquestras operárias, como a ser um dos mais atuantes músicos do Movimento de Cultura Popular, o MCP, criado no primeiro governo Miguel Arraes. Militância que não justifica, mas explica um pouco o ostra- cismo pelo qual o maestro Nunes passou ao longo dos anos. Ele tocou frevo na Assembleia Legislativa, na posse de Miguel Arraes como governador em 1960, como também esteve no pa- láciodoCampodasPrincesasnodia1ºdeabrilde1964,quando o Exército ocupou o local e prendeu o governador. Ele costu- mava contar que seguiu em passeata até o palácio para se soli- darizar com o governo eleito pelo povo. No caminho, os mani- festantes esbarraram nas forças militares que, embora o grupo queprotestavaestivessedesarmado,dispararamosmosquetões contra aqueles que faziam resistência ao golpe. No extinto pro- grama do apresentador Roger de Renor na TV Universitária, Nunes contou que correu da Praça da República, onde fica o Paláciodogoverno,atéaPraçadoEntroncamento.Quandoche- gou em casa, criou logo um frevo. Depois passou alguns meses escondido no campo para não ser morto. Além de ter trabalhado em vários projetos do MCP, que em- pregava aculturapopularparapolitizar,alfabetizare,claro,di- vertir, Nunes militava no PCB a ponto de dar uma de gazeteiro vendendo o jornal Novos Rumos, órgão do partido que funcionou de 1959 a 1964 e davadestaqueaosacontecimentosemPernambuco.Essaatuaçãoolevoua ser demitido da banda municipal e amargar o isolamento de ser oposição, num tempo em que muita gente fazia questão de ser situação. Numa curta entrevista disponível no YouTube, Nunes afirma que nun- ca compôs pensando em dinheiro. Atendia o apelo da música, que cor- re no seu sangue desde que nasceu: “Aceito a música como se fosse uma mulher que eu amasse e, ao mesmo tempo, ela fosse ingrata para mim”. Talvez ingrata, mas nem por isso deixou de ser fonte de inspiração. Uma fonte mais que generosa, que lhe rendeu cerca de três mil composições. No citado álbum 60 anos de frevo, Nunes, a exemplo do fez Lamartine Entre os frevos clássicos compostos por Nunes, estão Cabelo de fogo e É de perder o sapato
  • 26. Babo,homenageiadiversasagremiaçõescarnava- lescas, dedicando-lhes frevos inéditos. Foi o caso dos títulos Este cachorro é feio, mas não morde, para a troça Cachorro Feio de Santo Amaro, ou Pra você doutora Mércia, feito para a Turma da Jaqueira Segurando o Talo. Entre seus clássicos mais consagrados estão Cabelo de fogo, É de per- derosapato(quebatizouoálbumduplodedicado ao centenário do frevo em 2007), e Mosquetão. Esta última é acitada composição inspirada nos episódiosqueviveunofatídico1ºdeabrilde1964, quando fugiu para não morrer dos tiros disparados pelos soldados, que feriram e mataram manifestantes. A vingança do maestro foi um frevo: “Onde o coronel usava o mosquetão, eu usava a alegria”. Uma alegria que ele espalhou pelo Carnaval, apesar de durante muito tempo ter sido subestimado como compositor, pela estrutura simples dos seus frevos, nos quais incorriam poucos acidentes na execução. No en- tanto, a geração que já há algum tempo dá as cartas no frevo tem Nunes como uma das principais influências, chegando a estudar com ele, como Francisco Amâncio de Souza, o Maestro Forró: “Com uma habilidade tal- vez inconsciente, Nunes começou a compor de uma maneira que sua mú- sica pode ser executada por uma orquestra de qualquer nível. Muita gen- te criticava, mas acabou que a minha geração – eu, Spok e muitos outros músicos – passou pela escola de Nunes. Meu primeiro professor de música sugeriu que os alunos fossem ensaiar na escola de Nunes, ali no Pátio de Santa Cruz. Fui várias vezes. Ele foi de grande importância para o frevo. Conseguiucriarumfrevoinstrumentalbonito,simplesedefácilexecução, o que é uma tarefa muito difícil”. AescoladefrevodoMaestroNunes,dirigidaprincipalmenteparacrian- ças, filhos de integrantes de agremiações carnavalescas, foi uma das res- ponsáveis pela renovação de instrumentistas no Carnaval pernambuca- no. Na sua oficina na Casa do Carnaval, no Pátio de Santa Cruz, ele cui- dava com zelo e paciência da restauração de antigas partituras de fre- vo. Aos 82 anos, infelizmente, o maestro do povo foi pego pelo mal de Alzheimer. Fica a dúvida se realmente esqueceu a música, “mulher amada e ingrata”, que o tratou com carinho e desprezo ao longo de mais de sete décadas de vida a ela dedicadas. JOSÉ TELES Maestro Nunes tem parcerias com grandes nomes do frevo pernambucano, como Levino Ferreira, Capiba e José Menezes
  • 27. Meu time é uma filarmônica Sociedade Musical curica Marianemquisveranovela,tirouosbobesdoscabelosesaiudecasaàs pressasparanãoseatrasar.Antôniofoidiretodotrabalho.Francisco levou os netos. Severina e João saíram correndo da escola, assim que as aulas acabaram. Todo mundo foi chegando de mansinho, se sentando nas cadeiras de plástico para assistir à apresentação. Todo mundo foi se cum- primentando. Todo mundo se conhecia. Bastou o maestro abrir a pasta de partituras e erguer a batuta para os cochichos silenciarem. E começou o concerto em Goiana, na Zona da Mata Norte.
  • 28. Patrimônio Vivo de Pernambuco, a banda filarmônica Curica se or- gulha também do outro título: é a mais antiga em atividade da América Latina. O grupo, inicialmente com 15 músicos,foi fundado em 1848 por José Conrado de Souza Nunes, na Igreja de Nossa Senhora do Amparo dos Homens Pardos, para tocar nas festas católicas da cidade. A origem do nome da agremiação tem duas versões. Há quem diga que uma senhora chamada Iria, ao ouvir o som que a banda fazia na rua, disse ao maestro que a música parecia o grito de uma curica (um pássaro de canto estri- dente). Outros afirmam que Iria, escutando uma das polcas do repertório, achou que o refrão soava como “cu-ri-ca-cá”. Se nenhuma dessas versões prevalece sobre a outra, é consenso que a fi- larmônica acabou se transformando em um mimo dos moradores. Não de todos,masdeumapartedeles.Osgoianensesdividemsuapaixãoentreduas bandas, a Curica e a Saboeira, fundada anos depois, em 1855. “Filarmônica de interior é que nem time de futebol da capital: cada família torce por uma”, explica Edson Júnior, presidente da Curica. Edsoneafamíliasãoexemplosdessadevoçãoàbanda.Elechegouàagre- miação ainda criança, sonhava em ser músico. Lembra-se daquela época com orgulho. “A gente mal tinha instrumento e uniforme, se mantinha a partirdaajudadossócios-colaboradores.Quandoeuiafazeracobrança,não dava nem um salário mínimo. Cada um contribuía com R$ 4, R$ 2”, diz. Durante dois anos, ele ficou na filarmônica estudando teoria musi- cal, já que seus pais não tinham dinheiro para comprar instrumento. Um convite do maestro da Saboeira fez com que ele saísse da Curica e fosse para o grupo rival. “Lá eu teria instrumento. A Saboeira sempre teve mais condições, porque é uma banda de comerciantes, gente rica. A Curica é do povo mais humilde, dos operários”, explica o músico. “Depois que aprendi a tocar e com o dinheiro que juntei, comprei o trompete e voltei para minha banda de origem.” Orgulhoéumapalavra-chavedentrodaCurica. Nahistóriaqueérepassadapelasgeraçõesdemú- sicos, uma das lembranças sempre recontada é a do dia em que a banda tocou com o batalhão da Guarda Nacional que recebia o imperador Dom Pedro II, quando ele visitou Goiana em dezembro de1859.Essapresençaemmomentosimportantes da história nacional, aliada à sua resistência em fazer música no interior, terminou fortalecendo a imagem da Curica no restante do Brasil e fora do País. Em 1944, a filarmônica recebeu a visitado musicólogo uruguaio Francisco Curt, para pesquisar de perto, na sede da banda, partituras do século 19. Patrimônio Vivo de Pernambuco desde 2005, atualmente o grupo se reúne para os ensaios na rua da Igreja de Nossa Senhora de Rosário dos Ouça a música Vassorinhas, composta por Matias da Rocha e Joana Batista Filarmônica do interior é que nem time de futebol da capital: cada família torce por uma.” Edson Júnior, maestro da Banda Curica “
  • 29. Negros,noCentrodeGoiana.Acasa-sedefoiuma doação recebida no dia do centenário da filarmô- nica.OacervodorepertóriodaCuricareúnecer- ca de 800 peças, entre músicas religiosas, clássi- cos da MPB, composições barrocas e dobrados. Quando chega o Carnaval, os 60 músicos se di- videm também nas orquestras de frevo que ani- mam as festas locais. Um dos integrantes mais jovens da Curica é Victor, 14 anos, há quatro dentro da filarmônica. São 165 anos que o distanciam da primeira geração do grupo. “Ninguém me incentivou. Eu mesmo quis vir. Minha mãe não gosta que eu faça par- te, porque quer que eu vá estudar, mas eu me esforcei e entrei. No começo é difícil. Mas,quando a gente se acostuma, passa”, diz. Tímido, o pequeno trompetista vai se entrelaçando aos mais experientes e é um dos desta- ques das retretas. Dois dias por semana ele tem aula de música na sede da banda. De Goiana já viajou para Maceió e Portugal,a fim de se apresentar. Cursando o nono ano do ensino fundamental, o menino que adora tocar frevo – “O meu preferido é Vassourinhas” – sonha com o futuro: “Quero ser da Marinha ou do Exército, mas sem deixara música de lado. Meus amigosdaescolaachamissochato,falamparaeusair.Maseunãovousair, não. Gosto de futebol, mas prefiro a banda”. Victor, trompetista, é um dos integrantes mais novos da Banda Curica
  • 31. Toda a cidade estava lá para assistir à estreia. Em Timbaúba, Zona da Mata, o povo se aglomerava na Praça Dona Guiomar (hoje Praça João Pessoa) para ver a primeira apresentação da banda Filarmônica Euterpina de Timbaúba. Fundada em fevereiro de 1928, só dez meses depois ela fazia seu primeiro dobrado, no mesmo lugar em que havia sido criada, como se fosseumgritodeindependênciadadopeloprofessorJoséMendesdaSilva, naépocaaos23anos.“ExistiaaSociedadeMusicalPrimeirodeNovembro, mas a banda sozinha já não dava conta da demanda dos eventos da cidade. As apresentações eram muitas e havia muitos músicos por aqui”, lembra o atual presidente da Euterpina de Timbaúba, Eder Gomes. Batizada com um nome que faz alusão à deusa da música, Euterpe, a banda filarmônica é umorgulhodetimbaubenses.A sededogrupoficano centro da cidade, ao alto, de onde se pode ver parte do comércio e das ave- nidasprincipais.Abandasurgiuemnovedefevereirode1928.Atualmente as coisas vão bem para a filarmônica, mas nem sempre foi fácil. Em 1962, enquanto o Brasil fervilhava por causa dos movimentos político-sociais e conflitos partidários, a falta de incentivo público fez com que a Euterpina de Timbaúba fechasse as portas. “Foram problemas externos, de persegui- çãopolítica; einternos,dedivergênciasdaprópria diretoria”,dizEder.Sóem1989équeogrupofoire- montado,pordecisãodeex-integrantesecomaju- da de sócios e colaboradores, agora na sede atual. O prédio de dois galpões, que aos poucos vai sendo reestruturado, guarda as lembranças e a história da música de Timbaúba. Aqui 42 músicos com idades de 17 a 65 anos redescobrem todo dia o prazer da arte e lutam para se modernizar. Desde 1995 à frente da regência da banda, o maestro Josivânio Rique de Lima, 41 anos, deu uma revirada no repertório das apresentações, incor- porou novos arranjos e canções contemporâneas às retretas, incluindo uma feliz releitura de Toque de Luanda, criada a partirdas partituras do Maestro Forró, da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério.“O público jovem não estava muito interessado nas nossas apresentações. Mudamos o repertório da banda, tocamos músicas mais jovens e fazemos algumas coreografias desde que o novo maestro assumiu.” O resultado é que, além de concertos mais atrativos, o grupo ganhou mais alunos. A cada mês, graças a um projeto municipal, a Euterpina e a Primeiro de Novembro circulam pelos bairros mais carentes da região levando música para todos. A banda de Timbaúba é Patrimônio Vivo de Pernambuco desde o final de 2012. Além da filarmônica, o grupo também tem uma orquestra de frevo, criada em 2010. Mudamos o repertório da banda, tocamos músicas mais jovens .” Eder Gomes, presidente da Euterpina Timbaúba “
  • 32. salvos pela retreta orquestra capa-bode “As bandas de interior equivalem aos conservatórios da capital.” A afirmação é feita por João Paulo Ferreira da Hora, 42 anos, pre- sidente e maestro da Banda Euterpina Juvenil Nazarena, de Nazaré da Mata. Ele é o próprio exemplo de suas palavras. Foi no grupo que começou a dar os primeiros passos como músico. Hoje ganha o País como integrante da banda do cantor Siba. A Juvenil Nazarena foi criada no dia 1º de janeiro de 1888. À época, Nazaré era uma cidade pequena, onde existia um grêmio dos comercian- tes locais–músicosnas horas vagas. Por isso surgiu a ideia de se criar uma banda. Como é tradição no interior, o grupo passou a celebrar o aniversá- rio de fundação comum churrasco de bode. O animal era capado meses antes. “Quando o povo da cidade via os músicos passarem, dizia: ‘lá vão os capa-bode’”, diz João, explicando a origem do nome popular que a banda recebeu na cidade: Capa-Bode.
  • 33. Num bonito casarão, em frente à Praça do Frevo, fica a sede do grupo, onde acontecem ensaios e reuniões. Tem fachada de platibanda com de- senho marcante e dentro um lindo piso de ladrilho hidráulico. Há cinco anos o lugar passou por uma reforma para consertar o telhado, danificado pelaschuvas.Nasparedes,asrecordaçõesdesses125anosdehistóriaestão enfileiradas em fotografias e pôsteres, ao lado de uma imagem de Santa Cecília, padroeira dos músicos. Manter uma banda filarmônica não é tarefa fácil nem barata. Os custos para comprar e manter os instrumentos são altíssimos. Graças ao título de Patrimônio Vivo, que concede uma bolsa mensal à Capa-Bode, a situ- ação melhorou um pouco, segundo João Paulo. “A gente pode dar uma gratificação aos músicos. O trabalho é de inclusão social. A gente prepa- ra o cidadão, dá uma profissão. Os professores que estão aqui muitas ve- zes trabalham voluntariamente. Mas eles precisam ganhar alguma coisa, têm família”, diz ele, que também é representante comercial. “Tiramos muita gente do meio da rua e formamos profissionais. Há pessoas que sa- íram daqui e hoje são professores do Conservatório Pernambucano ou tocam em grupos de renome.” Além da banda,a JuvenilNazarenamantémumaescoladeformaçãona qual atende crianças a partir dos 8 anos. Ao todo, são 60 alunos. Eles tam- bémsedividememumaorquestradefrevo.Umadasmaioresdificuldades da agremiação, no entanto, é a preservação de sua memória. Com mais de um século de existência, a filarmônica deixou de registrar vários fatos do passado e agora não tem como resgatá-los. Além de maestro da Capa-Bode, João Paulo integra a banda do cantor Siba
  • 34. Referência no Samba Pagode do Didi Opagode, no bar do Didi, acontece. Não é agendado. Tudo começa com um encontro de amigos. Há 32 anos, Valdemir de Sousa resolveu dei- xar o trabalho de gerente no restaurante português Adega da Mouraria, no Bairro de Santo Antônio, para abrir seu próprio negócio. Levou consi- go um violão, a coragem de viver um sonho e a ousadia de ser seu próprio chefe. Ele nem esperava que as suas partituras de clássicos da MPB da- riam lugar às rodas de samba que já trouxeram ao Recife grandes nomes nacionais antes mesmo de se tornarem famosos. No apertado estabelecimento da estreita Rua Ulhoa Cintra, em meio ao caos do Centro do Recife, seu Didi relembra a vida de festas. Enquanto arruma o bar para mais uma noite de rodas de samba, que tomam o es- paço de quinta a sábado, das 18h às 23h, o senhor de cabelos grisalhos vai fazendo listas. “Aqui eu deixo todos os meus instrumentos: violão, cava- quinho, reco-reco, pandeiro. Mais tarde os meninos chegam e pegam os
  • 35. instrumentos, aí vira pagode”, diz. Foi assim que as coisas começaram. Recifense, Didi viveu a infância na Bomba Grande, Zona Oeste da capital, onde brincava à beira do rio. Em casa, acompanhava a boemia do pai, que virava a noite tocando boleros, tangos, valsas e sambas no violão. O menino gostava de ver o pai e seus amigos tocarem. Observava cada nota,prestavaatençãonosacordeseaprendeuas- sim, só de olhar. O pai não queria. “Naquela épo- ca, andar com violão debaixo do braço era perigoso. Você podia ser preso e era descriminado. Hoje a turma tem respeito.” Já adulto, dominando o violão, Didi foi trabalhar na Adega da Mouraria. Antes havia sido almoxarife, datilógrafo e auxiliar de escritório. Na Adega da Mouraria, viu passar nomes importantes da música nacional e lusitana: Jair Rodrigues, Cauby Peixoto, Amália Rodrigues, Pery Ribeiro e Agnaldo Timóteo. Na mesma época, era aluno do Conservatório Pernambucano. Foi no beco estreito do bairro de Santo Antônio que Didi conseguiu unir suas paixões: a música e um restaurante só seu, de onde tirou sus- tento para criar os três filhos. “Hoje eu sou a referência do pagode em Pernambuco”, diz, com orgulho de ser pagodeiro. O estabelecimento fica numa rua estreita do centro do Recife, de quinta a sábado vira uma grande roda de pagode
  • 36. Um outro rei do baião João Silva João Silva, 78 anos, confirma o velho ditado sobre a força que as coisas parecem ter quando precisam acontecer. Roupa do couro como único patrimônio,16anosincompletos,resolveusemandarparaoRiodeJaneiro, a então feérica capital federal. “Queria ser artista de todo jeito”, lembra ele, que morava com a mãe no bairro recifense de Cajueiro. “Grande m...”, gar- galhaele,donodeumhumortãoindomávelquantootalento.“Pegueiuma carona em Garanhuns e fui-me embora até Alagoas.” No caminho se ofereceu para trabalhar num trem. Como pagamento, teria a passagem. “O sujeito perguntou quem conhecia o Rio e eu disse logo que conhecia.”João nunca tinha saído de Pernambuco. O candidato a artista chegou ao Rio para entregar a planilha de passageiros da viagem e, sonho maior, conseguir uma vaga na Rádio Nacional. Morou por três dias numalberguepúblico.“Seeunãoarrumasseemprego,teriaquesairdelá.” Menos de três luas depois, tinha arrumado não só ocupação como
  • 37. moradia. “Fui trabalhar na oficina de uns portugueses e fiquei moran- do por lá. Lavava a roupa e ficava de cueca, esperando secar”, diz ele. Uma semana depois, os primeiros sinais concretos da prosperidade: já tinha dinheiro para mudar de trajes. Aartelhedeumaisquecamisas.Comumacarreiraascendentenostem- pos áureos da rádio brasileira, iria se tornar um dos maiores parceiros de Luiz Gonzaga, conterrâneo que só conheceria na Cidade Maravilhosa. O filho de Januário gravaria, ao longo da vida, nada menos que 140 canções assinadas por João. Uma pequena parte, contudo, de seu enorme cancio- neiro. Com mais de mil composições, ele costuma ser regravado por gente como Ney Matogrosso, Gilberto Gil, Ivete Sangalo... “Ivete é uma danada, uma beleza de cantora”, diz ele, que teve a sua Nem se despediu de mim gravadarecentementepelasacolejantedivabaiana.“Étambémumaamiga arretada. Vai longe na conversa de safadeza”, brinca. GonzagaétãoimportantenavidadeJoãocomo ele o foi na trajetória do amigo. “Faz uma falta arretada, um buraco que ninguém tapa”, diz ele, os olhos marejados ao se lembrar do Velho Lua. QuandoJoãosetornouumbem-sucedidocantorde baiõesnaRádioNacional,Gonzagajáeramajesta- de. Mas, contraditoriamente, vendia muito pouco. Atuando como produtor, João disparou as ven- das do Trio Nordestino, que alcançou a marca de 280 mil unidades. Gonzaga, apesar da fama, ven- dia mirradas 2,5 mil cópias por álbum. “A BMG me chamou para produzir o disco de Gonzaga. E eu disse que, se não desse um disco de ouro a ele, nunca mais precisavam falar comigo”, lembra o homem que aprendeu a tocar violão sozinho, aos 10 anos. Sua escola foram os cabarés de Arcoverde. João Silva se dispôs a mexer, justamente, no espírito lírico do Rei do Baião. “Gonzaga era um gênio, foi quem criou o baião. Mas só cantava la- mento, Asa-Branca, o sofrimento do retirante... Eu disse que o povo queria mais era esquecer, não lembrar o sofrimento.” Na ocasião, houve a primei- ra das muitas brigas entre os dois. “Ele disse que não ia gravar embolada, que aquilo não era coisa para ele. Mas faltavam só dois dias para entrar no estúdio e eu disseque, se ele não gravasse, eu sairia do disco.” Com seis músicas de João programadas para o álbum Danado de bom, Gonzaga não teve escolha. Ou aceitava as imposições, ou ficava com o disco esvaziado de última hora. “Eu ainda disse a ele: ‘Olhe, se eu tivesse chegado antes, quem era oreidobaiãoeraeu,enãotu!’.”NoqueGonzagaassentiu: “Eera mesmo!”. Rebelde, João exigiu também o desmonte de um esquema mais ou me- nos comum nas gravadoras. “Os caras gastavam uma fortuna. Ninguém Gonzaga era um gênio, foi quem criou o baião. Mas só cantava lamento, Asa-Branca, o sofrimento do retirante... Eu disse que o povo queria mais era esquecer, não lembrar o sofrimento.” “
  • 38. sabia para onde ia aquele dinheiro.” Com um disco drasticamente mais barato, ele impôs a aplicação da verba economizada. “Eu disse: vão pegar o dinheiro e fazer dois Fantásticos e um Globo de ouro.” Estrategista impa- gável do marketing, Silva dirigiu Gonzaga num clipe em que ele aparecia nacaçambadeumpaudearara,anunciandoocaminhoinverso.“Gonzaga dizia no vídeo que ia largar tudo e voltar ao sertão, que aquele era o último disco dele. Gonzaga era um artista, um ator, chorou logo”, ri. Disco pronto, João Silva voltou para Arcoverde tremendo de inseguran- ça. “Passava os dias bebendo, com medo de não chegar ao Disco de Ouro”, diz. Mas o álbum Danado de bom (1984) vendeu nada menos que 1,6 mi- lhão de cópias. “Gonzaga só aprendeu a ganhar dinheiro comigo”, ri, mais uma vez, dando um trago comedido no cigarro que fuma com cada vez mais parcimônia. “Em três meses, Gonzaga vendeu três discos de ouro!” Coautor de Sanfoninha choradeira, Pagode russo e Nem se despediu de mim, João Silva seria o grande parceiro de Gonzaga a partir daí. O que ajudou o mestre a ganhar um prêmio Shell. João não ficou rico. Mas consegue, como poucos, viver de direitos auto- rais, com mais de duas mil composições gravadas por grandes nomes da MPB. Os 49 anos devida no Rio, precisamente no subúrbio de Duque de Caxias, não foram suficientes para mudar o sotaque nitidamente pernam- bucano do compositor. “E eu sou besta?! Tem gente que nem chega no Rio e já está entronchando a boca”, ri mais uma vez. Há seis anos, João Silva voltou ao Recife. Veio em busca de paz interior. “Fiquei viúvo da mulher com quem passei minha vida toda, o maior amor, minha grande amiga na vida”, diz. Como não conseguisse recobrar as for- ças, ouviu os conselhos de um amigo psicanalista. O terapeuta disse para arrumar as malas, largar as lembranças e a condição de viúvo coitado a que estaria confinado na comunidade em que vivia. “Minha mulher era tão arretada que disse que, se ela morresse antes, eu chorasse um pouqui- nho, mas arrumasse logo um rabo de saia”, diz ele, as lágrimas rompendo a moldura das pálpebras, ao se lembrar de dona Sebastiana Gomes. Virou Patrimônio Vivo de Pernambuco há quatro anos. “O dinhei- ro até que é bonzinho. Mas bom mesmo é o reconhecimento, o prestí- gio, né?”, diz ele, que até largou a boemia. “Tinha todos os defeitos do bê- bado, ficava rico e chato. Agora que sou patrimônio, tenho que manter a compostura!”, gargalha. BRUNO ALBERTIM Ouça a música Pagode russo, composta por João Silva e Luiz Gonzaga
  • 40. ReginaldoAlvesFerreira,MestreCamarão,tinha7anosquandofezseu primeiro grande show. Foi submetido ao crivo dos sanfoneiros da sua família, numa das reuniões no quintal da Fazenda Camalaú, no interior da Paraíba. Tinha sido levado pelo pai, Antônio, e a mãe, Josefa. Foi tão apro- vadoquetomougosto.Continuaumnota10atéhoje,semprequeempunha asanfonasobreospalcos–agoramaioresenapresençadeoutrospúblicos. Nascido na véspera de São João de 1940, o músico, que foi apelidado aos 18anospelocantorJacintoSilva,porcausadassuasbochechasavermelha- das, é natural de Brejo da Madre de Deus, no Agreste de Pernambuco. Ele aprendeusanfonaolhandoopaitocar.AproveitavaaidadeAntônioàlavoura paraensaiaralgumasnotasnoinstrumento.Aos10anos,foiparaCaruaru. Aos 18, já fazia parte do elenco de músicos contratados da Rádio Difusora. O trabalho em Caruaru foi ampliando a bagagem de Camarão. Em 1961, mesmoanoemquerepresentouoEstadonafestadeaniversáriodeBrasília com o Trio Nortista (ele, Jacinto Silva e Ivanildo Peba), gravou seu pri- meiro disco, pela Rozenblit. Foi numa das apresentações na Difusora que Camarão tocou com nomes como Hermeto Pascoal e, claro, o onipresente Luiz Gonzaga. Novamente o Rei do Baião deixa sua marca imprescindível na história dos Patrimônios Vivos de Pernambuco. O Velho Lua levou Camarão para gravar dois discos com ele, em 1969 e 1970, na RCA. “Nossa amizade durou enquanto ele foi vivo. Luiz Gonzaga também lutou pelos sertanejos, pela famí- lia dele, por Exu. Foi quem levou a (rodovia) BR até em cima da Serra do Araripe. Ele chegou a trocar shows por alimentos, na época de seca, para levar para o povo dele”, lembra o sanfoneiro, em entrevista no camarim da TV Jornal, no Recife. No entanto, o que transformou Camarão em um grande mestre foi sua ousadia e inovação. O sanfoneiro criou em 1968 a primeira banda de forró do País, a Bandinha do Camarão, em que introduziu ao ritmo– até então compassado pela zabumba, o triângulo, o pífano e a sanfona – instrumen- tos de sopro como tuba, trombone e clarinete. No mesmo ano lançou a Orquestra Sanfônica, projeto no qual a sanfona deu base também para o frevo e o maracatu. Era um encontro de família. AtualmenteCamarãodáaulasnaescolinhaAcordeondeOuro,quecriou em casa, no bairro da Estância, no Recife. Ensina as primeiras lições do instrumento a crianças e adultos. Com três filhos, todos músicos,ele ga- rante a continuidade da sua obra, mas padece de uma saúde fragilizada. Há quatro anos, fez uma cirurgia para a retirada dos rins e hoje precisa se submeter a três sessões de hemodiálise por semana. Em 1968, Camarão criou a primeira banda de forró do País, a Bandinha do Camarão
  • 42. As fotografias e os pôsteres pendurados na parede do terraço de casa estão entre as histórias de que o cineasta Fernando Spencer ainda se lembra com mais facilidade. Aos 86 anos, sentado na sua cadeira de balan- ço, o artista e jornalista enumera momentos e fatos da sua vida numa con- versa emaranhada de saudosismo. Junto à TV, na qual o grande nome do Super 8 pernambucano hoje assiste a desenhos e clássicos da sétima arte, estão algumas das homenagens que ele recebeu nos últimos anos: troféus, certificados,cartasdehonraaomérito.Umacelebraçãoaohomemquede- dicou sua vida ao cinema. Os olhos, na infância, descobriram a alegria e os movimentos da sé- tima arte nos trejeitos de Charles Chaplin e nas aventuras dos caubóis CINEASTA DAS TRÊS BITOLAS fernando spencer Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
  • 43. Fernando Spencer começou a sua carreira em 1969 com o curta A busca Assista ao filme Evocações... Nelson Ferreira de 1987, com roteiro de Fernando Spencer e Flávio Rodrigues norte-americanos. Descendente de alemães, Spencer era levado pelo pai, Nicodemes Brasil Hartmann, aos cinemas do Recife. Aos 12 anos, ganhou seu maior presente: um projetor de fil- mesde35mm.Alinasciaumapaixãoparaavida toda.ElemontounoquintaldecasaoCineMetro, para 20 pessoas. Em1969,ocineastacomeçouacarreiraderea- lizador. Filmou em preto e branco A busca, o pri- meiro de seus 44 curtas-metragens, rodado em 16 mm. Nos anos 1970 ele descobriu o Super 8, uma bitola que tinha pelí- culas mais baratas e fáceis de manusear, dispensando um aparato técnico muito caro e sofisticado. Virou uma referência no formato, enfaticamente defendido nas críticas que publicava no Diario de Pernambuco, jornal pelo qual ele teve a honra de entrevistar nomes como Alfred Hitchcock. “Era, sim, mais fácil de fazer cinema nos anos 1970 e 1980. Mas hoje há a van- tagem do apoio da prefeitura e do governo, coisa que não se tinha, antes”, diz o senhor que, como mestre, acompanha o que tem sido feito no cinema local. Não se contém ao elogiar como “elegante e bom” o cineasta Kleber Mendonça Filho, de O som ao redor: “Ele sabe onde bota as ventas”. Spencer se tornou um grande cronista da cultura e do comportamento pernambucano, contextualizando seus filmes num Recife de folguedos e de desenvolvimento urbano. O diretor vive há 20 anos no calmo e poético bairroPoçodaPanela,naZonaNortedacidade.“Éumlugarmuitobomde morar,masconfessoqueesseaumentodeprédiosàsvezesmeimpressiona. Está havendo um exagero”, diz ele, que agora busca recursos para trans- formaremdigitaldoisfilmesrodadosnadécadade1970:umsobreManuel Bandeira e outro, feito em parceria com o escritor Ariano Suassuna, sobre os sons do Recife. Atualmente, Spencer mora com uma filha e um neto. Há quatro meses, ficou viúvo. Sua mulher, Inês, faleceu dentro de casa. Agora, a saudade não deixa o cineasta em paz. “Já nem escuto mais música, porque me lembro dela. A gente passava a tarde ouvindo bolero, valsa, orquestras”, desabafa. Em janeiro do ano passado, para custear o tratamento médico dele e da esposa, o cineasta vendeu parte do seu inestimável acervo à Fundação Joaquim Nabuco. “Me arrependo, mas eu precisava”, conta o cineasta das três bitolas, como ficou conhecido por já ter rodado em Super 8, 16 mm, 35 mm. A esses formatos, ele também somou trabalhos em vídeo e digitais.
  • 44. Elesforamparaprovocar.Chegaramcompalavrascomplicadas,expres- sõesacadêmicas,teoriasemetodologiasestranhasparaquemviviaali. Aliás, desconhecidas pela maioria mesmo daqueles que subiam ao palco para interpretar. O que a trupe de professores e atores vindos da universi- dade da capital levou para o Agreste foi pura provocação. OFestivaldeTeatroUniversitáriochegouaCaruarurasgandoahistória da cidade em dois eixos, como aqueles que dividem a humanidade entre antes e depois de um grande acontecimento, estabelecendo o fim e o início O tablado é espelho do povo TEATRO EXPERIMENTAL DE ARTE Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
  • 45. de uma época. Era junho de 1962. E, dali por dian- te, amador passou a ser uma palavra incômoda – ou, usandoalinguagemdeBertoltBrecht,otermopassou acausarestranhamento.Naqueletempo,oTeatrode AmadoresdeCaruaruatraíaasatençõeseosolhosda sociedadeaindaimuneàfebredatelevisão.NoRecife chegava a notícia de um festival universitário com oficinas, palestras e espetáculos que, embora sim- ples, prezavam por um trabalho ainda desconhecido por ali: a preparação cênica e corporal dos  atores. Até então fazer teatro em Caruaru seguia uma receita: escolher o tex- to, dividir os papéis e correr para o ensaio. Tudo errado. Aquelas oficinas mostraram isso. Apontaram o quanto era importante preparar o ator teo- ricamente,mesmoqueeletivessemuitotalento.Todoaqueleescarcéufoia gota d’água e o impulso que faltava para a criação do Teatro Experimental de Arte (TEA). “Naquele momento, vimos o quanto estávamos atrasados na nossa maneira de fazer teatro”, lembra a atriz Arary Marrocos, que co- meçava a dar as primeiras lições como professora nas escolas caruaruen- ses, quando a cidade vivia o auge de uma produção teatral. Arary seguiu os passos do marido, Argemiro Pascoal, que foi o nome à frentedafundaçãodacompanhia.Argemiroeseugrupopediramajudaao professor Joel Pontes, que integrava a equipe dos acadêmicos. Eles solici- taram e o mestre topou. “Arranjamos hospedagem e durante dois meses, a cada final de semana, vinha um professor do Recife para cá nos dar au- las. Parte do Teatro de Amadores não quis. Quem queria terminou saindo e fundando o TEA, em 17 de julho de 1962.” Durante 16 anos, os ensaios e encontros do Teatro Experimental ocor- reram no auditório da Rádio Difusora de Caruaru. Em 1978 os ensaios passaram a ser realizados na garagem da casa de Arary e Argemiro. O casal decidiu então que era hora de construir uma sede própria. Tudo aos poucos,tijolo por tijolo, moeda por moeda. Hoje o pequeno palco ita- liano – com uma plateia de 60 cadeiras de plástico, coxias e camarim – guarda nas paredes preenchidas por fotos e cartazes a memória de uma história de mais de cinco décadas. Desde a criação, o TEA encenou 54 espetáculos, além de promover cur- sos e oficinas de teatro, palestras, debates e seminários. Levou ainda a sua arte a 65 cidades brasileiras. Em agosto do ano passado,o grupo entrou em uma nova fase. Argemiro morreu, aos 83 anos, deixando para Arary e o filho Fábio a tarefa de sustentar um sonho de teatro numa cidade em que os palcos que interessam à grande plateia já são outros: os do forró. TEATRO PARATODOS AcriaçãodoTEAfoiresultadodeumareverberaçãodeideias.Havia,sim, Cena da peça Morte e vida severina, encenada pelo TEA em 1977, sob direção de Agemiro Pascoal
  • 46. odesejodeseprofissionalizar.Masoimpulsodetudo foi a vontade de fazer do tablado o espelho do povo. Quando a caravana acadêmica chegou a Caruaru, Pernambuco assistia ao crescimento do Movimento deCulturaPopular(MCP).GermanoCoelholançava sua cartilha político-cultural com base nos rebuliços que fervilhavam nas ruas e praças da Europa. ArgemiroPascoalestavaentreosartistasquepar- ticiparamdareuniãodoMCPnoRecife.Nascidoem Bezerros, ele se mudou para Caruaru aos 18 anos e lá iniciou a carreira teatral. O a-bê-cê da Cultura Popular chegava à cena do Teatro de Amadores da cidade e, posterior- mente, do TEA através de montagens de textos norteadas pelos pensa- mentos brechtianos. A primeira peça encenada pelo grupo, em 1963, foi Um elefante no caos. O texto de Millôr Fernandes causar a frisson três anos antes no Rio de Janeiro e em São Paulo, mergulhando no teatro do absurdo, refletindo sobre as hipocrisias e a corda bamba dos momentos que antecediam o Golpe de 1964. O TEA é referência nas artes cênicas pernambucanas. Além de for- mar atores, o grupo foi responsável pelo fortalecimento da cena teatral no interior, criando festival estudantil e mostra com espetáculos nacio- nais. Mas nem tudo são luzes na ribalta. Este ano, Arary recusou o convi- te do Festival de Teatro de Curitiba, um dos mais importantes do Brasil, por falta de verba para arcar com as despesas de viagem, hospedagem e alimentação durante a estada da trupe no Paraná. Em 2012 eles haviam participado da mostra, mas conseguiram o dinheiro com muito sacrifí- cio, pedindo ajuda a empresários locais. A bolsa de Patrimônio Vivo ofe- rece ao grupo apenas uma parte da verba necessária para sua sustenta- ção. Arary se vê dividida entre os cálculos do escritório de contabilidade e as aulas de história do teatro no TEA. Em 2012, o grupo participou do Festival de Teatro de Curitiba com a peça Auto da Compadecida
  • 47. Era mais uma noite de calouros no Circo Democratas e Margarida Pereira de Alcântara queria participar do concurso. Tinha decidido cantar o bolero Coração materno, de Vicente Celestino, um dos seus pre- feridos. Ela precisava ganhar o corte de tecido e o par de sapatos. Quando pisou no picadeiro, era evidente o seu nervosismo. De repente, uma vaia. Ninguémtinhapagoingressoparaveraquelameninacompoucomaisde9 anos, franzina, catadora de crustáceo, malvestida e descuidada fazer qual- quer coisa. Da plateia, alguém gritava para ela sair e ir tomar banho. “Era preconceito daquele povo. Pedi o microfone e disse que eu estava malves- tida porque não tinha condições de me arrumar e que catava siri para que meus irmãos não precisassem ir para porta deles pedir esmola.” A menina que fugiu com o circo Índia Morena
  • 48. Osilêncionaarquibancadaevidenciouaperplexidadedopúblico.Alguém ensaioubaterpalmas,ecomeçaramasurgirnovosgritos,destavezdiziam que a menina já tinha ganhado. Talvez a resposta dada já bastasse e lhe tivesse feito vencedora. “Eu disse que eles não podiam dizer que eu tinha ganhadosemcantar.Ecantei.Todomundoparouparaescutar.”Épossível queameninanemsoubesseoquesignificavamaquelestristesversossobre a ingratidão de um filho. Sua voz firme e seu jeito precoce aumentaram o espanto de quem a assistia e garantiram de vez a premiação. O pano, ela dividiu com as duas irmãs e fez uma roupa para usar com os sapatos no Natal, que estava próximo. Tudo que ganhasse era lucro. Havia perdido o pai há pouco tempo e partilhava com a mãe as tarefas de casa para sus- tentar os quatro irmãos mais novos. Na escola, sequer terminou a quarta série. O Circo Democratas foi embora e a menina ficou. Pouco tempo depois, uma nova trupe mambembe aparece na vida de Margarida. Um macaquinho na porta de casa, de manhã cedo, assustou a mãedamenina,quenaquelaépocajátinha10 anos.Oanimaltinhafugidodocircoqueaca- bara de chegar à Vila São Miguel, no bairro de Afogados, comunidade onde ela morava. Margarida foi devolvê-lo ao grupo e conquis- touaamizadedadonadocirco,quedepoisfoi convidada para ser sua madrinha de crisma. Arecompensadameninafoiiratodososespe- táculos de graça. “Logo na primeira apresen- tação que eu fui, a contorcionista me chamou atenção. O nome dela era Linda Morena. Eu olhei e disse: ‘Eu vou fazer aquilo que ela faz. Vou fazer até melhor’. E todo dia eu ia lá ver.” No dia em que o Circo Itaquatiara foi em- bora, a menina deixou a casa e seguiu com a trupe, auto batizando-se de Índia Morena. O pouco dinheiro que ganhava nas apresentações era o su- ficiente para ajudar a mãe e os irmãos. Índia, a mais famosa contorcionista do Estado e uma das artistas Patrimônio Vivo de Pernambuco, reside hoje em uma casa simples e pe- quena, em Muribeca dos Guararapes, uma comunidade pobre da Região Metropolitana do Recife, bem próxima a um aterro sanitário. As paredes rachadas chamam a atenção para o perigo em que vivem a artista e sua fa- mília. Ela mora com o marido, uma filha e um neto. Enquanto aguarda o início da reforma a ser bancada pelo Governo do Estado, a mulher guarda entulhados,nasestantesdasala,pastascomrecortesdejornais,troféus,car- tasdeautoridades,prêmios,fotosevídeosqueduranteosquase60anosde carreiraformamoacervodeumavidadedicadaàartecircense.Navéspera destaentrevista,elatinhaganhadootítulodeMulherEvidência–concedi- dopelaCâmaraMunicipaldoJaboatãodosGuararapes.Umdiadepois,foi Em dezembro de 2011, um incêndio destruiu o trailer do circo da artista. Só restou a lona
  • 49. tituladacidadãjaboatonense.“Pareceserumdosmaio- res reconhecimentos da minha vida. O que eu não tive na juventude estou recebendo agora na velhice.” Emdezembrode2011,umincêndiodestruiuotrailer do seu Gran Londres Circo. Um dos artistas da trupe acendeuumavelaeterminoudormindo.“Conseguimos salvaralonaporsorte,porqueestavalonge.Agoraestou semmeapresentar.”Emquaseseisdécadas,éaprimeira vezqueelaficalongedopicadeiro.Índiapassoupor50companhias,integrou oGarciaeoNewAmericanCircus,quealevaramàArgentina,aoParaguai e à Bolívia. Além de contorcionismo,a artista já se apresentou no trapézio voador, na escada giratória e no arame vertical. Aos 69 anos, ela é mestre de cerimônias; mas decidiu também se aventurar na corda bamba social da defesa da classe mambembe. Com uma vida marcada por tristezas – seu ex-marido, pai de dois dos seus filhos,que morreram ainda bebês, a traiu com uma parceira de circo –,Índiafoipararnohospital.Umproblemadepulmão,hácercade30anos, deixou a artista internada. “Eu passei dois meses hospitalizada. Aí, como eufiz amizade comopessoal,omédicomedeixouficarmaisummês,para eu me recuperar melhor. Foi quando conheci Maviael, também internado por causa do pulmão”, conta. Maviael é o seu atual marido. Hoje os dois compartilham o amor, a responsabilidade de cuidar da família e do circo. O casal pretende inaugurar um circo-escola e tam- bém está à frente da Associação dos Proprietários e Artistas Circenses do Estado de Pernambuco. O trabalho é duro, requer sacrifícios, recur- sos e valorização. “Eu tenho lutado é por uma classe de minorias. Hoje eu tenho lutado por alcoólatras, drogados, esquecidos e abandonados. Ser artistas de circo não é fácil”, desabafa. Eu tenho lutado por uma classe de minorias. (...) Ser artista de circo não é fácil.” “
  • 51. Pelejas de um mundo fantástico Mestre Dila Foto:RicardoB.Labastier/JCImagem
  • 52. Lampião é moreno, chocho e tem olhos azuis. Em Caruaru, no Agreste dePernambuco,viveescondidoemumacasapequena,comdoisquar- tos apertados e uma sala minúscula, longe de luxos, pratarias, ouros e cou- ros. As paredes frágeis guardam o cangaceiro de traços fortes e pele ama- deirada em tons de verde, preto e azul. Lampião está vivo com esses traços e cores dentro da memória e da obra de José Soares da Silva, Mestre Dila. O xilogravurista e cordelista, que nasceu em 23 de setembro de 1937 (em- bora durante a entrevista ele diga ter nascido em 12 de agosto do mesmo ano)novilarejoPirauá,nomunicípiodeMacaparana,ZonadaMataNorte do Estado, veio ao mundo dez meses antes de Lampião desaparecer (ou morrer assassinado pelas volantes, como narra a história). Na sua memória de infância, entretanto, ainda sobrevivem não só o se- nhor do cangaço, como detalhes de sua fisionomia e seus feitos. Há 60 anos, Dila descobriu os versos da poesia popular e os desenhos en- talhados na madeira com o pai caricaturista, Domingos Soares da Silva, num sítio na cidade natal. A ligação com cangaceiros também seria herança paterna: Meu pai e alguns dos meus irmãos eram do cangaço. Conheciam Lampião. Eu vi Lampião”. Dila teve 11 irmãos. Na casa em que mora no Centro de Caruaru – cidade para a qual semudoudesde1952–,MestreDilaempilhaasmarcasdeVirgulino em uma estante de cinco prateleiras, no canto da sala, perto da por- tade entrada. Nas matrizes de madeira e borracha em que talha formas, rostos, animais e palavras, reconstrói com a imaginação as aventuras e as histórias de mitos nordestinos. “Eu gosto de escrever sobre Lampião. É o que vende mais. Sempre falei sobre o cangaço. Escreviaevendiabem.Tinhapessoasdafamíliadoscangaceirosque compravam de uma vez só uns 100 ou 200 folhetos para distribuir.” É por detrás do Parque Luiz Gonzaga, principal polo das festas juninasdeCaruaru,queficaacasadeDila.Nafachadaháumaplaca com sua foto. A casa de dois quartos, de sala e cozinha espremidas, é um destino de turistas. Eram mais numerosos quando se vendia cordel emdezenas.Hojeapessoacompranomáximodoisoutrês,aopreçodeR$ 1 cada. A tradição ensaia desaparecer, mas o desejo de mantê-la viva não para de aflorar. Os rostos sorridentes nos porta-retratos espalhados pela sala, sob a in- tercessão dos santos e santas enfileirados ao lado da televisão, já não têm nome. Dila, entre olhares baixos e risos de canto de boca, teima com a memória, mas fica nas reticências. Aos 76 anos, as únicas certezas que ha- bitam sua cabeça são escritas em rimas. Nas mais de seis décadas como cordelista e xilogravurista, percorrendo as feiras livres de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Alagoas, a vida lhe rendeu bons causos. Nesse caminho, revelou-se sua fé em padre Cícero Romão e frei Damião, além do seu res- peito por Lampião. Opoetaaindaserecuperadeumacidentevascularcerebral(AVC),sofrido Capa de cordel escrito e ilustrado pelo mestre Dila
  • 53. em junho de 2012. Depois de cinco dias internado no Hospital Regional do Agreste, em Caruaru, ele passou a viver sob cuidados da esposa, dona Valdeci, e dos seis filhos. Dila passou meses se mandar e falar. Agora vai aos poucos reaprendendo tudo, com calma e timidez. A mulher pede para que encare a câmara,mas o rosto continua curvado sob a mesinha em que trabalha diariamente,das 8h às 16h. Há muito o que se falar de Lampião, não há tempo para perder. A vida que Dila leva como poeta popular é a mesma de muitos outros artistas. Para ele, pouco importa a origem dos folhetos no medievo euro- peu. A tradição chegou a esses homens do interior nordestino como ex- pressão de uma cultura oralizada, rimada e ritmada, sob tom de humor e sarcasmo, que foi ganhando espaço nas feiras. Debaixo do sol, com varais de livretos, os cordelistas contam suas narrativas, provocam o público, re- criam o épico e o mítico. No caso de mestre Dila, sua técnica foi cada vez mais aperfeiçoada. Ele descobriu os artifícios da fabricação de carimbos e passou a usar a borracha na produção de seus trabalhos. Dila lançou um modo par- ticular de imprimir seus cordéis (o que o pesquisador pernambucano Roberto Benjamin chama de “folk-off-set”): seja nas cores diversas que usa em uma só matriz ou nas combinações de várias formas separadas e depois unidas em um conjunto único. A partir dos anos 1970, ele inova e passa a imprimir folhetos coloridos. AutordecordéiscomoOsonhodeumromeirocomopadreCíceroRomãoe AbagagemdoNordeste,opoetausaodinheiroquerecebecomoPatrimônio Vivo de Pernambuco para ajudar a manter a casa e a comprar os remédios para hipertensão e diabetes. Ele torce para que o dinheiro não atrase. A família se vira como pode. Na sua casa, Dila mantém a editora Art Folheto São José. Além de imprimir os livretos populares, faz rótulos de bebida. “LAMPIÃO MORREU HÁ DOIS ANOS, NUM INTERIOR DE MINAS GERAIS” Há sempre um segredo prestes a ser revelado pelo artista. O homem que no passado tagarelava, mas hoje vive de poucas palavras, é dono de uma doçura,mansidão e carinho emaranhados de mistério. A conversa é quase sempre uma visita às memórias. Esquecido pela plateia que o aplau- dia nos anos 1970, o mestre já chegou a ser internado três vezes para tra- tamento psiquiátrico. A fantasia lhe rendeu, socialmente, o nome de lou- co. Mas seu talentos e sobressai. Dentro do mestre poeta,um mundo se move, e a figura de Lampião retorna frequentemente: homem moreno, chocho e com olhos azuis. O universo dos bandos armados que espalhavam o medo pelo Sertão nordestino no embrião da República (início do século passado), com re- latos de saques a fazendas, ataques a comboios e sequestros, é tão bem Assista ao vídeo com Mestre Dila
  • 54. desenhado aos olhos de Dila que arrebatam as grades do inconsciente dele para se erguer com veracidadenosouvidosdequemescutaafaladopoeta. Os netos dele, seus sucessores, já não sabem falar de cangaço. Não sabem porque não entendem nada sobre o tema – é o mestre que diz. Na verda- de, Dila parece estar tão a par do que narra, que agora conta uma histó- ria de um Nordeste muito seu. Um Nordeste que talvez só ele conheça. Uma história da qual  ele é próprio dono. Lampião – que para Mestre Dila é uma espécie de Dom Sebastião, o rei português Desaparecido numa batalha contra os mouros e eternamente aguardado–talveznuncatenhasidotãocultuadoquantodentrodestacasa pequena e apertada. Sentado, encostado na parede, com o rosto que vez ou outra escapa do flash fotográfico, Dila olha a rua e suspira. Ensaia dizer algo. Os segredos e as histórias vão se moven- dodentrodelecomasreticências.Umsilênciodequemquer lembrar ou procura a fala: “Morreu há dois anos,num inte- rior de Minas Gerais. Vivia escondido por lá. Muita gente se passava por ele, inclusive aquele que mataram em 1938”, diz, retomando a conversa. O rosto moreno, o corpo cho- cho, os olhos azuis de Virgulino Ferreira da Silva jamais vão sair das lembranças de Dila, que continua a vida talhando madeiras, contado histórias e criando seus próprios fatos: “Para realizar, eu não tenho mais nada”. TRECHO DE CORDEL Caruaru de hoje Deus criou Caruaru! José Rodrigues de Jesus Lembra 150 anos; Caruaru me conduz De 1952 Me dando conforto e luz Ipojuca corta ao meio Da fazenda Caruara Aonde Rodrigues Sá A sua terra não para A igreja da conceição Ponto zero não é rara Dr. José Carlos Florêncio Muitos e Pontes Vieira Vanguarda, A Defesa, Agreste, E locutores têm fronteira E o saudoso Lídio Teve voz bem lisonjeira Luiz Gonzaga de Oliveira O saudoso Lula da Vanguarda Me ensinou artegrafia Gilvan José da Silva, cada camarada, Como Edvaldo Barros, Ivan Galvão e todas gráficas na parada Caruaru tem a benção Que Deus deu a cada filho Apenas sou cordelista Adotado e sem empecilho Meu pai foi igual a mim
  • 55. Aquela pequena sala do burocrático prédio da reitoria da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife, nunca serviu como cená- rio para tantas fotografias como foi naquele dia da coletiva de imprensa convocada pelo professor e escritor Ariano Suassuna. Ainda mais quan- do o cheiro do livro recém-lançado por ele dava pano para as mangas aos jornais do País. Quatro repórteres corriam a caneta sobre o bloquinho de papel.Arianodestaveznãoeraofocodoencontro,sóadjetivavasuadesco- berta:umilustradorquenuncasequerhaviaescutadofalard’ORomanceda Pedra do Reino, nem mesmo do escritor paraibano, virou notícia no Brasil. “O melhor gravador popular do Nordeste”, dizia Suassuna. J. Borges ja- mais esqueceu tudo aquilo – e jamais foi esquecido. Xilogravurista e cordelista, o mais pop dos artistas Patrimônios Vivos mora em Bezerros, numa boa casa às margens da BR 232, principal rota que liga o Litoral ao Sertão de Pernambuco. J. Borges nasceu num sítio A talho seco J. Borges Foto:RicardoB.Labastier/JCImagem
  • 56. a 16 km do centro da cidade, em 1935. “Eu comecei a tra- balhar aos 16 anos, na agricultura, com o meu pai. Aí fo- mos morar na Zona da Mata Sul, em Ribeirão e depois em Escada. Foi lá que comecei a trabalhar com cordel, fazer gravura”, diz José Francisco Borges, 78 anos. “Chegavanascidades,colocavaotripécomfolhetoseabria amala.Depoiscompreiumalto-falante.Quemtinhaissoera chamadode‘camelôrico’.Pobredeclamavaeranopeitobra- bo. Às vezes, a polícia dava uma bronca, proibia o som. Era uma confusão. Eu vendia bastante”, relembra. Em meados da década de 1970, Suassuna vivia um auto-exílio. Mas re- solveuabrirumaexceção.Precisavaconheceraquelehomemquesabiatra- duzir tão bem a sua obra através da xilogravura. “Mandou me levarem até ele. Eu tive sorte.” A entrevista foi numa terça-feira. “No sábado da mesma semana, já começaram a chegar carros lá em casa e até hoje eu não tive mais sossego na vida”, brinca J. Borges, que só estudou dez meses e abandonou a escola ainda na infância, por determi- nação da avó, que temia que o neto fosse atacado pelo papa- -figo nas ruas de Bezerros. Foitudomuitorápido.NemopróprioJ.Borgessedavaconta doquantosuavidaiamudando.Famoso,étalvezoPatrimônio Vivoquemaissabeovalorcomercialdoseutrabalho.Calcula opreçodecadapeçafeitanagrandeprensaqueocupaumes- paço enorme de uma das salas anexas ao seu ateliê. Já levou sua arte para a Europa, países da América Latina e do Norte, ilustrou obras do uruguaio Eduardo Galeano, mas continua gravando as coisas de Pernambuco, “porque os turistas que- rem as coisas daqui”. “A palavra do velho (Ariano Suassuna) é muito forte. Ele mechamoudemelhorgravadorpopulardoNordeste,naopi- nião dele. E o povo acreditou, rapaz. O povo é besta. Depois elecomeçou,nasandançasdele,dizendoqueeueraomelhor do Brasil. Agora, que ele já não sabe mais o que diz, fala que souomelhordomundo”,brincaJ.Borges,antesdeconfessar a razão de tudo isso: “Trabalho no meu traço, nunca mudei. E nunca saí de dentro da minha região”. TRECHO DE CORDEL Em 2012, J. Borges ilustrou o livro que reunia contos dos Irmãos Grimm da editora Cosac Naify A chegada da prostituta ao inferno Todas as religiões pra ela escala uma pena se o homem lhe abraça a mulher casada condena mas sabemos que Jesus perdoou a Madalena Falar sobre prostituta é um caso muito sério que é um ser sofredor sua vida é de mistério e para sobreviver sempre usa o adultério Perante a sociedade ela é marginalizada existe umas mais calmas e outras mais depravadas e quem tem mais ódio delas é a própria mulher casada Ela vive aqui na terra enfrentando um sacrifício se vende para os homens muitas se entrega a o vício enquanto nova se estraga e faz da miséria ofício
  • 57. a vida severina de um poeta josé costa leite
  • 58. Ele nasceu na Paraíba, viajou o Nordeste todo, foi à França, mora em Pernambuco e está apaixonado por Mossoró. Todo dia é sem- preigual:MarinêseGonzagacantamnavitrola enquanto o cordelista vai colocando em versos, num papel, a criatividade que ferve dentro dele nos365diasdoano.“Ninguémvirapoeta.Agen- te nasce poeta”, garante José Costa Leite, que, aos 86 anos, conta todos os causos do mundo. Costa Leite – “tão importante para o Brasil quanto Goeldi”, segundo o seu conterrâneo Ariano Suassuna – é natural de Sapé, um município de pouco mais de 50 mil habitantes na ZonadaMataparaibana,maschegouaPernambucoaos 8anos,ficandoatéhojeemCondado.Comoumdaquelespersonagensreti- rantes de João Cabral de Melo Neto, ele e sua família fugiam de uma seca ainda mais estorricante: o pai acabara de ser envenenado a mando de um feitor de usina. “Foi após uma briga por causa de jogo do bicho. O meu pai passavabicho,eofeitorfoidizerquetinhatiradooprêmio,masnaverdade otalãodojogodeleeradeumdiaanterior.Ele mandou envenenar meu pai.” Sem jamais frequentar uma escola, o menino foi observando nas feiras públicas as rimas dos poetas. Foi assim, garante, que aprendeu a escre- ver. Costa Leite viveu a infância como um adulto. Foi cambista, mascate e camelô de feira. Em 1947 começou a vender cordel pelas ruas e dois anos depois criou suas próprias histórias: Eduardo e Alzira e Discussão de José Costa com Manuel Vicente. Aos poucos, também foi aprendendo a ilustrar suas rimas com xilogravura, tornando-se, anos depois, uma das grandes referências dos traços nordestinos talhados em madeira. Atualmente,JoséCostaLeitejánãovaimaisàsfeiras.Viveemcasacom a esposa e um neto, mas passa o dia no seu ateliê, nos fundos da residên- cia, escrevendo e ilustrando. Não trabalha sem ouvir as músicas de Luiz Gonzaga e Marinês. É aí que se lembra também do tempo em que com- punha canções, algumas delas gravadas em três LPs pelo Conservatório Pernambuco de Música. “Ave-Maria, hoje, sem voz, não canto nem rapa- riga”, brinca o senhor, que atualmente aproveita o tempo livre para conti- nuar viajando pelo Nordeste, só que agora é por puro divertimento. O tempo vai dando sinal de fim para o ofício de cordelista. Entulhados em quatro prateleiras num quarto dentro de casa, o escritor guarda 10 mil folhetos, além de matrizes. Não sabe o que fazer com o acervo: “Por favor, anuncieissonasuamatéria.Precisododinheiro.Vendo tudo por R$ 20 mil”. José Costa Leite aprendeu a escrever observando as rimas dos poetas nas feiras públicas
  • 60. Entre raízes e asas Zé do Carmo Fotos:PriscilaBuhr/JCImagem
  • 61. Antigo Testamento, livro de Gênesis, 2,7: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente”. Zé do Carmo, que completa 80 anos em dezembro de 2013, é temente a Deus. Nunca quis ser Deus, mas passou a fazer do barro a imagem e semelhança do universo divino. Em Goiana, cidade da Zona da Mata Norte do Estado, o artista vive entre ima- gens sacras e lembranças barrocas. Sua mãe queria que ele fosse padre. O desejo materno, no entanto, perdeu para o preconceito. Diante da imagem de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, o padre renegou o menino de 12 anos.Osemináriodificilmenteaceitariaumpadrenegro.Restariaasacris- tia, aceita como um amém. Mas entre as Ave-Marias, hóstias e novenas, o menino desafiava os dogmas com a inocência de quem não aceita que dois mais dois são quatro antes de ouvir uma boa explicação. “Por que numa igreja dedicada aos negros as ima- gens dos anjos e dos santos tinham rostos de gente europeia?”, indagava, recriminado pela mãe por heresia. Aos 6 anos, José do Carmo Souza aprendeu em casa o ofí- cio de artista. Sua mãe, Joana Izabel de Assunção, era lava- deira e uma das mais famosas ceramistas de Goiana. O pai, Manuel de Souza dos Santos, era padeiro e nas horas vagas fazia máscaras de papel machê para serem vendidas nas fei- ras livres. Dos primeiros contatos com o barro foram surgin- do criaturas com feições humanas, que, com toques de ima- ginação de criança, anunciavam uma arte classificada depois de irreverente, desafiadora e nordestina. “Quando eu era pequeno, costumava ir com os outros meni- nos caçar passarinho,derrubar com badoque. Minha mãe di- zia que eu não fizesse aquilo. Por isso eu geralmente ficava só olhando os pássaros. Um dia, quando voltei para casa, resolvi colocarasasemumdosbonecosqueeutinhafeito.Eficoucomo um anjo. Minha mãe reclamou, disse que aquilo era errado.” Era tudo muito complexo para a cabeça de uma criança. Havia um due- lo entre o que pensava ser certo e errado. Enquanto andava por entre os bancos da igreja, sob as estátuas santas que compunham a decoração, Zé, menino,nãoconseguiaassociaraspalavrasdeigualdadedaspregaçõesaos rostos que, a dois palmos dos seus olhos, destoavam dos termos proferidos na igreja. Não dava para entender que os anjos não tivessem as expressões nordestinas, caboclas. E porque harpas, e não sanfonas? Incompreensível também para sua mãe, que logo se opôs à arte do filho. Talvez ela tam- bém tivesse a mesma dúvida, mas preferia silenciar e aceitar com mais um amém tudo o que o padre, a Bíblia e o papa diziam: é assim e acabou-se. “Minha mãe me proibiu de fazer imagens.” Atualmente, Zé do Carmo deixou o barro para se dedicar às pinturas