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POUL ANDERSON
O Viajante das Estrelas
POUL ANDERSON
O Viajante das Estrelas
Tradução de
José Eduardo Ribeiro Moretzsohn
LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.
Para Gordon Dickson
Recomeça a grande era do mundo...
Assim como começou um dia, e recomeçará no futuro. As idas e vindas do
homem têm suas estações.
Não mais misteriosas que o ciclo anual do planeta, tampouco menos. Por
navegarmos hoje por entre as estrelas, nos assemelhamos mais aos europeus
invasores da América ou aos gregos colonizadores do litoral mediterrâneo que a
nossos ancestrais de gerações recentes. Nós também somos descobridores, pioneiros,
comerciantes, missionários, compositores do épico e da saga. Mais que seus pais,
nosso povo é hoje mais afoito, mais ambicioso e individualista. No lado obscuro, a
cobiça, a insensibilidade, a negligência para com o futuro, a violência, e até mesmo o
banditismo desenfreado, retornaram. É essa a natureza das sociedades contidas por
fronteiras.
Mas não há duas primaveras idênticas. A civilização técnica não é clássica
nem ocidental, e à medida que se dissemina, cada vez mais diluída, por estirões de
espaço cada vez mais inimagináveis, seus postos avançados, seu âmago, apreendem,
para o bem ou para o mal, aquilo que os seres não-humanos têm a ensinar: que ela
muda de maneiras imprevisíveis. Vivemos, hoje, num mundo impossível de ser
compreendido por qualquer homem restrito aos limites da Terra.
É possível, por exemplo, que esse homem estabeleça uma analogia entre a
Liga para a Ciência do Sol Polar e as guildas de mercadores da Europa medieval.
Descobrirá, entretanto, na primeira, num exame mais detido, algo novo, herdado, de
fato, de conceitos do passado terrestre, embora com mutação e miscigenação em seus
vasos sangüíneos.
Impossível predizer o que dela advirá. Não sabemos para onde vamos. E
nem nos preocupamos com isso, em nossa grande maioria. Basta, para nós, que
estejamos em nosso próprio caminho.
Le Matelot
Esconderijo
O Capitão Bahadur Torrance recebeu a notícia como convém a um
Comandante da Irmandade Federada dos Espaçonautas. Ouviu-a até o fim, e
interrompeu apenas com uma ou outra pergunta inteligente. Ao final, estava calmo.
— Bom trabalho, Cidadão Yamamura. Por favor mantenha isso em segredo
até notificação posterior. Tenho que pensar para ver o que fazer. Prossiga.
Quando, porém, o oficial engenheiro deixou a cabine — a notícia não era
do tipo das que se podem transmitir pelo intercomunicador —, serviu-se de um
uísque triplo, sentou-se e, distante, contemplou o visor.
Já viajara distâncias, vira muito, e fora bem recompensado. E embora, nesse
tipo de trabalho tão difícil, conquistasse rápida promoção, sentia-se ainda muito
jovem e, portanto, não deixou de congelar ao ouvir sua sentença de morte.
O visor exibia tamanha multidão de estrelas, de um brilho duro e
invernoso, que só um astronauta seria capaz de identificar as unidades isoladas.
Torrance procurou além da Via-láctea, até detectar a Estrela Polar. E ali estava
Valhala, a uns tantos graus de distância na outra direção. Não que ele conseguisse, a
essa distância, ver um sol do tipo G sem instrumentos óticos mais fortes que os
existentes na Hebe G.B. Apenas sentia-se reconfortado em saber que seus olhos
estavam apontados para a base mais próxima da Liga (casas, naves, humanos,
aninhados num vale verde de Freia), nesse setor, ainda pouco mapeado, de nosso
braço galático. E principalmente agora, quando se esvaiu, para nunca mais, a
esperança de ali aterrissar novamente.
Em volta, a nave zunia, pulsava e se contraía, no espaço quadrático, a uma
velocidade limite que, embora deixasse a luz bem para trás, era ainda muito lenta
para salvá-lo.
Bem... Outra vez o capitão, tinha que pensar antes dos outros. Torrance
suspirou, levantou-se. Gastou alguns instantes para verificar a aparência; agora, mais
do que nunca, o moral era importante. Ao guarda-pó habitual, cinza, da tripulação,
ele preferia o uniforme completo: túnica azul, pelerine e culotes brancos, galão
dourado. E como cidadão do planeta Ramanujan, usava, na cabeça morena, aquilina,
um turbante com o broche “Nave e Sol Irradiante”, da Liga para a Ciência do Sol
Polar.
Por um corredor, foi à suíte do proprietário. O comissário de bordo acabara
de sair, uma bandeja nas mãos. Torrance fez sinal para que a porta permanecesse
aberta, bateu os calcanhares, curvou-se.
— Peço desculpas pela interrupção, senhor. Posso conversar em particular
com o senhor? É urgente.
Nicholas van Rijn ergueu o garrafão de dois litros que acabara de chegar-
lhe às mãos. Por baixo do cavanhaque teso, palpitaram os diversos queixos; o ruído
do sorvo encheu o aposento, desde a escrivaninha com papéis espalhados até a
tapeçaria, de Huy Braseal, incrustada de jóias, colocada na antepara do lado oposto.
Algo semelhante a Mozart cantava, cadenciado, melodioso, num toca-fitas. Loura, de
olhos grandes, inteiramente tridimensional, Jeri Kofoed coleava no canapé, ao
alcance daquele homem escarrapachado no divã. Casado, mas ausente de casa já há
algum tempo, Torrance forçou o olhar de volta para o mercador.
— Ahhh!
Van Rijn bateu a caneca de cerveja na mesa e enxugou a espuma do bigode.
— Pela sífilis! Pela peste bubônica! Como é boa a primeira cerveja da
manhã! Tem um quê de gelado, de... Caramba! Qual é mesmo a palavra?
O punho cabeludo golpeou a testa inclinada.
— A cada semana que passa eu fico mais desmemoriado! Ah, Torrance, no
dia em que você for um sujeito gordo, solitário, carente de todas as suas forças, vai
olhar para trás, vai se lembrar de mim e desejar ter agido melhor comigo. Tarde
demais, então.
Van Rijn suspirou — como um tufão ligeiro — e coçou os cabelos do peito.
Àquela temperatura quase tropical, em que fazia questão de manter o escritório,
precisou apenas enrolar um sarão no corpanzil.
— Qual é a bobagem agora, que vai me afastar do meu trabalho, que já é
muito, e que eu vou ter que resolver para você, hein?
O tom era jovial. Van Rijn, de fato, estivera de bom humor desde que
conseguiram escapar da Patrulha-Cobra (Quem não estaria? Para uma simples nave
de passeio, mesmo armada com equipamento ultrapoderoso, escapar de três
cruzadores era muito mais que uma façanha, era quase um milagre. Van Rijn ainda
mantinha, em gratidão, quatro velas acesas diante da estatueta de São Dismas, feita
de raízes arenosas marcianas). É bem verdade que, algumas vezes, ele costumava
jogar pratos no comissário de bordo, quando a bebida demorava um pouco mais que
o desejado, e despedir todos a bordo ao menos uma vez ao dia. Mas isso era normal.
Jeri Kofoed arqueou as sobrancelhas, murmurou:
— É mesmo a primeira cerveja, Nicky? Na verdade, duas horas atrás...
— Claro! Mas isso foi antes da meia-noite. Mesmo que não tenha sido à
meia-noite de Greenwich, com certeza foi a de qualquer outro planeta, nie? Portanto,
hoje é um novo dia.
Na mesa, Van Rijn apanhou o cachimbo comprido, de argila e começou a
enchê-lo.
— Bem, sente-se, Capitão Torrance, fique à vontade, e me empreste o
isqueiro. Filho, você está com o aspecto de creme dinamitado. Os seus rapazes não
têm estamina. Quando eu trabalhava como espaçonauta, por Judas, nós tínhamos
que resolver nossos próprios problemas. Hoje em dia, juro pela morte e pelo diabo,
vocês vêm me perguntar até mesmo como é que vão limpar o nariz! Eu sou o único
aqui com coragem. Van Rijn bateu na barriga de barril.
— E então, o que há de errado com o fuzuê agora?
Timothy umedeceu os lábios.
— Eu preferia conversar a sós, senhor.
E viu a cor sumir do rosto de Jeri. Ela não era covarde. Os planetas
fronteiriços, mesmo os agradáveis, como Freia, não costumavam produzir esse tipo
de gente. Ela viera nessa viagem, que sabia arriscada, pois uma chance assim —
envolver-se com o príncipe mercador da Companhia Solar de Condimentos &
Bebidas, uma das maiores forças em toda a Liga para a Ciência do Sol Polar — era
boa demais para ser recusada por uma garota oportunista. Durante a luta, e a fuga
subseqüente, soubera manter a calma, embora tivesse sentido a morte de perto.
Ainda estavam, porém, muito distantes de seu planeta, entre estrelas desconhecidas,
com o inimigo a persegui-los.
— Vá para o quarto.
Van Rijn ordenou. Jeri murmurou:
— Eu gostaria de ouvir a verdade.
Os olhos negros, pequenos, dispostos junto ao nariz adunco de Van Rijn,
fuzilaram. Ele berrou:
— Dormideirazinha petulante! Quando eu disser para pular fora, você tem
que pular fora.
De um salto, Jeri ficou de pé, revoltada. Sem se levantar, Van Rijn deu-lhe
um tapinha no local adequado, que ressoou como o disparo de uma pistola. Em seco,
chocada, Jeri inspirou um ganido de indignação e irrompeu para o interior da suíte.
Van Rijn apertou a campainha, para chamar o comissário de bordo, e disse a
Torrance:
— Isso exige mais cerveja. Bem, não fique aí parado com esses olhos de
louco. Não tenho tempo a perder com constrangimentos, ao contrário de um lerdo
como você, que ganha muito mais do que merece. Tenho que rever a programação
dos preços da pimenta e da noz-moscada para Freia, antes de chegarmos. Por Satã!
Pelos fedorentos! Aquele fabricante idiota poderia ter cobrado uns dez por cento a
mais, em vez de reduzir o volume de vendas. Eu juro! Que meus bons santos me
escutem, e ajudem este pobre homem atrelado a trabalhadores que mais parecem
caixeiros com papa de aveia na cabeça!
Com esforço, Torrance subjugou a irritação.
— Muito bem, senhor. Acabo de receber um relatório de Yamamura. O
senhor sabe que recebemos um tiro de raspão durante a luta, e que nos acertou na
casa das máquinas. O conversor não parece avariado, embora, depois que o buraco
foi remendado, a turma ainda esteja averiguando para ter certeza. E acontece que
metade dos circuitos do gerador da couraça de proteção derreteu, e podemos repor
apenas parte dele. Se continuarmos à velocidade-limite, em cinqüenta horas todo o
conversor se fundirá.
— Ah, então é isso?
Van Rijn ficou sério. O isqueiro tocou o cachimbo, e o estalido surpreendeu,
de tão alto.
— Não podemos parar e fazer os reparos? Se desligarmos a hiper-
propulsão, ficaremos tão pequenos que os fedorentos da patrulha não poderão nos
encontrar. E então?
— Não podemos, não senhor. Como eu disse, não temos peças de reposição
suficientes. Isto é uma nave de passeio, não uma nave de guerra.
— Está bem. Então vamos continuar com a hiperpropulsão. A que
velocidade temos que baixar para conseguirmos chegar a uma distância em que
possamos nos comunicar com Freia antes que nossas máquinas derretam?
— A um décimo da velocidade-limite. Levaríamos uns seis meses.
— Não, meu caro capitão, não levaríamos tanto tempo assim. A Patrulha
nos encontraria antes disso.
— É, creio que sim. E, de qualquer modo, não temos suprimentos para seis
meses a bordo.
Torrance olhou o painel.
— O que me ocorre agora é que, bem ... talvez possamos chegar a uma
estrela próxima. Há uma remota possibilidade de existir algum planeta com
civilização industrial, cujo povo possa aprender a fazer os circuitos de que
precisamos. No mínimo, um planeta habitável, quem sabe?
— Nie!
Van Rijn balançou a cabeça. Sobre os ombros, giraram os cachos de cabelo
negro e oleoso.
— Homens como nós, e uma mulher, irem viver numa rocha imunda, sem
videiras? Prefiro descer numa cápsula da Patrulha, como um cavalheiro, claro!
O comissário chegou.
— Andou cochilando por aí, não foi? Minha cerveja! Que as pragas de Deus
caiam sobre você! Preciso dela para pensar. Como é que você quer que eu pense com
a boca assim, um deserto em pleno verão?
Torrance foi cuidadoso na escolha das palavras. Teria de lembrar a Van Rijn
que, no espaço, a última palavra sempre cabia ao capitão; sem antagonizá-lo, pois o
velho diabo tinha a fama de debater-se entre alternativas de um dilema.
— Eu aceito sugestões, senhor, mas não posso assumir a responsabilidade
de atrair ataque inimigo.
Van Rijn levantou-se e, pesado, arrastou-se pela cabine, fumegando
obscenidades e nuvens vulcânicas. Ao passar pela prateleira de São Dismas, com os
dedos, de maneira marcante, apagou as velas, e algo pareceu despertar nele. Virou-
se.
- Ah! Civilizações industriais, ja, quem sabe? Não é só a Patrulha pestilenta
que navega nessa região do espaço! Talvez entremos no raio de detecção de alguma
nave em boas condições, nie? Mande Yamamura aumentar a sensibilidade de nosso
detector até conseguirmos ouvir baterem as asas dos borrachudos no meu escritório
em Jacarta, na Terra. Aqueles faxineiros são uns preguiçosos! Depois tomamos essa
rota em frente e vamos navegá-la num plano de vôo de sondagem, em velocidade
reduzida.
— E se encontrarmos uma nave? Talvez ela seja do inimigo, o senhor sabe.
— Vamos correr o risco.
— De todo jeito, senhor, vamos perder tempo. A perseguição nos alcançará
enquanto procuramos uma hélice de sonda. Principalmente se tivermos de perder
muitos dias para persuadir uma tripulação de não-humanos, que nunca ouviu falar
da raça humana, de que temos que ser levados imediatamente, e mais rápido ainda,
para Valhala.
— Quando entrarmos, queimamos a ponte. Você tem algum esquema mais
promissor?
— Bem...
Sombrio, Torrance ponderou por um momento. O comissário entrou com
um novo garrafão. Van Rijn esticou-se, apanhou-o.
— ... Talvez o senhor tenha tazão. Eu vou ... Van Rijn exultou:
— Ah, virginal! Era essa a palavra que eu estava procurando! Para a
primeira cerveja do dia, seu imbecil!
♦♦♦
A porta da cabine soou. Torrance resmungou. Esperava dormir ao menos
um pouco, depois de tantas horas, mais do que conseguiu enumerar, na cabine de
comando. Mas quando a nave rondava na escuridão em busca de outra que podia, ou
não, existir, e os perseguidores se aproximaram...
— Entre.
Jeri Kofoed entrou. Embasbacado, Torrance levantou-se, de um salto, e
curvou em reverência.
— Cidadã! Que ... surpresa! Posso ajudá-la em alguma coisa?
— Sim, por favor.
Ela pousou a mão sobre a dele. Jeri usava uma toga de corte espalhafatoso,
sem pudores, pois fora o único tipo que Van Rijn encontrara para oferecer a ela. Mas
o olhar que ela agora lançava a Torrance não tinha qualquer relação com isso.
— Tive que vir, Comandante. Se o senhor for um homem piedoso, vai me
escutar.
Torrance acenou para que ela se sentasse na poltrona, ofereceu cigarros, e
acendeu um. A fumaça, inalada até o fundo dos pulmões, acalmou-o um pouco.
Sentou-se do outro lado da mesa.
— Se eu puder ajudá-la, Cidadã Kofoed, sabe que terei prazer em fazê-lo. E
... e o Cidadão Van Rijn ...
— Está dormindo. Não que ele tenha qualquer direito sobre mim, eu não
assinei contrato algum, nem nada parecido.
A irritação deu lugar a um sorriso irônico.
— Bem, admito que sejamos inferiores a ele, de fato e em status. Eu não
estou propriamente transgredindo os desejos dele. É só que ele não quer responder às
minhas perguntas, e se eu não descobrir o que de fato está acontecendo, vou ter que
começar a gritar.
Torrance ponderou alguns fatores. Uma explicação particular, mais
detalhada que a exigida para a tripulação, seria, de fato, a melhor solução para ela.
— Como quiser, Cidadã.
Torrance relatou o que acontecera ao conversor, e concluiu:
— E não temos condições de consertá-lo nós mesmos. Se continuássemos
viajando à velocidade-limite máxima, iríamos derretê-lo antes de chegarmos; e então,
sem energia, logo morreríamos. E se prosseguirmos a uma velocidade lenta, de modo
a preservá-lo, levaríamos meio ano para chegar a Valhala, tempo superior à duração
de nossas provisões. E, além disso, sem dúvida alguma, a Patrulha-Cobra nos
encontraria em uma ou duas semanas.
Jeri estremeceu.
—Por quê? Não compreendo.
Fitou, por um momento, a ponta do cigarro, até retomar um certo grau de
serenidade, e um certo toque de humor.
— Eu bem que poderia passar por uma garota fácil, sofisticada, em Freia,
Capitão. Mas, melhor do que eu, o senhor sabe que Freia é um planeta primitivo, no
último contorno da civilização humana. Mal temos tráfego espacial, a não ser a nave
mercante da Liga. E, mesmo assim, ela não passa muito tempo no espaçoporto.
Quanto à tecnologia militar ou política, desconheço inteiramente. Essa, para mim,
não passava de uma missão de reconhecimento. Ninguém me disse nada, e
perguntar não me passou pela cabeça. Por que a Patrulha-Cobra está tão ávida para
nos pegar?
Antes de estruturar a resposta, Torrance considerou o quadro geral. Como
espaçonauta da Liga, deve fazer um esforço antes de julgar a insignificância do
inimigo com relação aos colonos que pouco se afastam de seu mundo natal. O nome
“Patrulha-Cobra” era originário de Freia, um termo de depreciação designativo dos
marginais expulsos do planeta há um século. Desde essa época, entretanto, os
freianos jamais tiveram com eles um novo contato. Em algum lugar das profundezas
inexploradas, para lá de Valhala, os fugitivos se estabeleceram num planeta
desconhecido. As gerações passaram, e eles cresceram em quantidade, e também suas
naves de guerra. Mas Freia ainda era muito forte para ser invadida por eles, e não
possuía empreendimentos extraplanetarios para ser saqueados. Freia não tinha com
que se preocupar.
Torrance optou pela explicação sistemática, mesmo que tivesse que repetir
o óbvio.
— Bem, os homens da Patrulha-Cobra não são estúpidos. De algum modo,
procuram manter-se a par dos acontecimentos; sabem que a Liga para a Ciência do
Sol Polar deseja expandir suas operações naquela região e não querem que isso
aconteça. Para eles, isso significaria o fim dos ataques aos Planetas hoje
impossibilitados de se defender, o fim do arrocho tributário e do comércio realizado
a preços extorsivos. Não que os membros da Liga sejam santos, pois não toleramos
santos, mas apenas porque a pirataria interfere nos lucros de nossas companhias-
membros. E a Patrulha-Cobra, portanto, lançou-se, não a uma guerra declarada
contra nós, mas a hostilidade contra nossos postos avançados para que os
considerássemos “mau negócio” e desistíssemos deles. A Patrulha conta com a
vantagem de conhecer o setor do espaço em que atuam, e nós não fazemos a mínima
idéia do nosso. E, na verdade, chegamos ao ponto de apagar essa região do mapa e ir
tentar em outro lugar. O Cidadão Van Rijn quis fazer uma última tentativa, mas a
oposição foi tão grande que ele próprio teve que vir para liderar a expedição. E você
deve saber como ele agiu. Usou a arte profana do suborno e do blefe para extrair até
a última gota de informação dos prisioneiros que fizemos, e para juntar fatos
estranhos. Conseguiu uma pista de um segmento inexplorado, e voamos para lá.
Seguindo uma trilha de neutrinos, fomos parar num planeta colonizado por
humanos, planeta que é, com certeza quase absoluta, como você deve saber, o mundo
natal dos próprios flibusteiros. Se voltarmos com a informação, não teremos mais
problemas com a Patrulha. Não depois que a Liga enviar para lá algumas naves de
guerra do tipo Astéria e ameaçar bombardear o planeta. E eles sabem disso. Então,
fomos detectados e atacados por muitas naves de guerra, e tivemos sorte em
conseguir escapar. As naves da Patrulha são obsoletas e, até o momento, só temos
fugido, mantendo uma boa distância deles. Mas não creio que tenham desistido de
nos perseguir. E vão enviar toda a armada de cruzadores em nossa busca. As
vibrações da hiperpropulsão se transmitem instantaneamente e podem ser
detectadas a uma distância de cerca de um ano-luz. Portanto, se alguma patrulha
identificar nossa “esteira”, e entrar nela — e nós, acidentados — será o fim.
Jeri puxou uma tragada forte no cigarro; mas permanecia calma.
— E seus planos, quais são?
— Um contramovimento. Em vez de tentar chegar a Freia .. . bem, quer
dizer... vamos prosseguir em hélice-sonda a uma velocidade média, forçando nossos
próprios detectores. Se descobrirmos outra nave, usaremos o último suspiro de nosso
motor para abordá-la. Se for um vaso-patrulha, bem, talvez possamos apreendê-lo,
ou qualquer coisa assim. Nós temos um par de armas leves em nossa torre de tiro.
Mas pode ser, também, que seja uma nave não-humana. Os relatórios de nossa
espionagem, os interrogatórios de prisioneiros, a avaliação das observações dos
exploradores, e tudo o mais, revelam que três ou quatro espécies diferentes desta
região possuem hiperpropulsão. Os próprios homens da Patrulha-Cobra não as
conhecem todas. Esse espaço é grande demais!
— E se for mesmo não-humana?
— Então faremos o que parece mais indicado.
— Entendo...
Esperta, Jeri acenou com a cabeça. Sentou-se por um momento, sem falar, e
depois fascinou-o com um sorriso.
— Obrigado Capitão. O senhor não sabe o quanto me aiudou.
Torrance reprimiu um sorriso bobo.
— Foi um prazer, Cidadã.
— Eu vou para a Terra com o senhor. O senhor sabia disso? O Cidadão Van
Rijn prometeu me arrumar um bom emprego lá.
Como sempre promete, Torrance pensou.
Jeri inclinou-se, aproximou.
— Espero que tenhamos oportunidade de nos conhecermos melhor,
Capitão, durante a viagem rumo à Terra. Ou, quem sabe, agora mesmo?
Naquele exato momento, soou a campainha de alarme.
♦♦♦
A Hebe G.B. era uma nave de passeio, não uma fragata de piratas do
espaço. Entretanto, com Nicholas van Rijn a bordo, a diferença, algumas vezes,
parecia algo confusa. Assim, possuía mais esporas que as demais naves, detectores de
sensibilidade incomum, e uma tripulação tarimbada em tática de inspeção.
A nave conseguiu detectar a hiperemissão da outra nave antes que as
próprias vibrações fossem observadas. E ao seguir o objeto ainda não visível,
conseguiu identificar seu plano de curso e, portanto, despejar toda sorte de material
viscoso para interceptá-la. Se o estranho tivesse mantido a velocidade-limite, haveria
contato em três ou quatro horas. Em vez disso, porém, a esteira indicava uma
mudança de rumo, uma tentativa de fuga. A Hebe G.B também mudou de rota, e
continuou ganhando terreno em relação à presa, de menor porte.
— Estão com medo de nós — concluiu Torrance — E não estão voltando
para o sol da Patrulha-Cobra, dois fatos que indicam que eles mesmos não são de lá,
mas têm motivos para temer estranhos.
Soturno, Torrance confirmou com a cabeça, pois, durante as investigações
preliminares, inspecionara alguns planetas visitados pelos piratas.
Ao perceber que o perseguidor encurtava a distância, o perseguido
desligou a hiperpropulsão. E reverteu à velocidade abaixo da luz, essencial; o
conversor fechou-se até atingir a emissão mínima. E a nave converteu-se num ponto
infinitesimal no espaço efetivamente infinito. A manobra costuma funcionar, pois,
depois de procurar em vão por alguns momentos, o inimigo desiste e se retira. Mas a
Hebe G.B. estava preparada. O conhecido vetor superluz, em conjunto com o
instante do desligamento, forneceram aos computadores uma idéia aproximada da
localização da presa. E prosseguiu naquele volume de espaço e, em seguida,
deslocou-se de um lado para outro num plano de sondagem bem concebido,
revertendo ao estado normal, em intervalos, para colher amostras da névoa de
neutrino, emitida por qualquer motor nuclear. Os verdadeiros motores nucleares
conhecidos pelo nome de estrelas são os que a emitem em maior quantidade; mas,
através da análise estatística, os computadores agora isolavam uma fonte próxima,
débil. A nave de passeio dirigiu-se para lá ... Baça, contra o céu bruxuleante, a outra
nave surgiu nas telas.
O tamanho, muitas vezes maior. Um cilindro de ogiva arredondada,
rombuda, e cones de propulsão maciços, com inúmeros encaixes para embarcações
auxiliares, e uma única torre de tiro. Ditam os princípios da física que a conformação
das naves feitas para uma mesma finalidade deve ser, grosso modo, a mesma.
Qualquer espaçonauta, porém, perceberia que aquela nave, ali adiante, não fora
construída por membros da civilização da Liga.
Veio, então, o disparo. Mesmo com o desligamento automático do visor,
Torrance ficou enceguecido por um momento. Os instrumentos disseram-lhe que o
estranho havia disparado uma cápsula de fusão, interceptada por um míssil
disparado pelos atiradores-robôs de Torrance. O ataque fora muito lento, muito
débil. Aquela nave não era, de modo algum, um vaso de guerra; e não era rival para a
Hebe G.B., como esta não o era para o cruzador da Patrulha-Cobra que a perseguia.
— Muito bem — disse Van Rijn —, agora que já nos desvencilha-mos dessa
bobagenzinha, podemos falar de negócios. Coloque-os no telecomunicador e
estabeleça uma linguagem comum. Rápido! Depois explique que não queremos
prejudicá-los, queremos apenas uma carona para Valhala.
Hesitou, num titubeio nítido, e acrescentou:
— Pagamos bem.
Torrance ponderou:
— Talvez encontremos dificuldades, senhor. Embora eles possam
identificar nossa nave como de construção humana, é possível que os únicos
humanos que já tenham encontrado sejam os da Patrulha-Cobra.
— Bem, se for necessário, podemos abordá-los e forçá-los a nos transportar,
nie? Mas ande depressa, pelo diabo! Se ficarmos muito tempo parados, como
dorminhocos vadios, vamos ser apanhados.
Torrance estava prestes a deixar bem claro que a nave estava em segurança
quase absoluta. E que a Patrulha-Cobra estava muito atrás da nave da Terra, bem
mais veloz, e nem poderia imaginar que a hiperpropulsão estivesse desligada. Que,
quando começassem a desconfiar, não haveria probabilidade mensurável de
encontrá-la. Mas lembrou-se de que o caso não era tão simples assim. Se a
parlamentação com os estranhos demorasse mais que o esperado — mais que uma
semana, na melhor das hipóteses — os esquadrões da Patrulha-Cobra poderiam
penetrar nessa região genérica e até mesmo ultrapassá-la. E, por meses, poderiam
ficar na espreita, o que os humanos não poderiam fazer por falta de alimentos.
Quando a hiperpropulsão fosse ligada, eles a detectariam e, com facilidade,
alcançariam esse tão estranho mercador. A única esperança seria conseguir,
rapidamente, uma carona para Valhala, utilizando a dianteira já obtida para
compensar a desvantagem da velocidade reduzida.
— Estamos tentando todas as faixas, senhor. Até agora, nenhuma resposta.
Preocupado, Torrance franziu o cenho.
— Eu não compreendo. Eles devem saber que os congelamos, e devem ter
recebido nossos chamados e percebido que queremos conversar. Por que, então, não
respondem? Não custa nada.
— Talvez tenham abandonado a nave — sugeriu o oficial de comunicações.
—Talvez tenham salva-vidas movidos a hiperpropulsão.
— Não ...
Torrance sacudiu a cabeça.
— ... Teríamos detectado ... Continue tentando, Cidadão Be-tancourt. Se
não conseguirmos resposta em uma hora, vamos encostar e abordar.
As telas receptoras permaneceram vazias. Ao final, porém, do período
estipulado, no momento em que Torrance determinava ação espacial belicosa,
Yamamura relatou novidades. Aumentara a emanação de neutrino numa fonte
próxima à popa do estranho. Algum processo envolvendo pequenas quantidades de
energia encontrava-se em evolução.
Torrance vestiu o capacete, prendeu-o.
— Vamos dar uma olhada.
A postos, deixou uma tripulação mínima — o próprio Van Rijn, sob
veementes protestos, assumiu a ponte de comando — e conduziu a comitiva de
abordagem à câmara de ar. Suave, como o deslizar de um tubarão (o velho suíno,
afinal, era um espaçonauta fíta-azul, o Capitão constatou algo surpreso), a Hebe G. B.
entrou numa trilha de tração e projetou-se até a nave maior.
Mas a nave maior desapareceu. A retirada fez sacudir a nave de passeio.
Van Rijn rosnou:
— Por Belzebu! Pelo botulismo! Entrou em hiper de novo, hein? Já damos
um jeito nisso!
Solicitado, o conversor ulcerado esganiçou, mas a força chegou aos
motores. Num sopro e meio, a nave terrestre dominou a forasteira. E tamanha
naturalidade de Van Rijn ao executar a transformação de fases fez Torrance esquecer-
se de que a operação era considerada difícil até mesmo por pilotos-mestres. Van Rijn
esquivou-se de um jato de compressão frenético e engatou a nave ao casco maior
emanando faixas indestrutíveis de força. Mais uma vez, desligou a hiperpropulsão,
pois o conversor não conseguiria suportar muito mais. A Hebe G.B. deixou-se
arrastar pelo campo de força do estranho, cuja velocidade-limite foi
consideravelmente reduzida com o “rebocar” daquela massa extra. Se Van Rijn
esperava que a nave aprisionada desistisse e revertesse ao estado normal, ficou
desapontado. Mais velozes que a luz, as duas fuselagens, unidas, continuaram
mergulhando rumo a uma constelação sem nome.
Torrance engoliu uma promessa, convocou seus homens e saiu.
Jamais tentara forçar a entrada numa nave hostil. Presumiu, porém, que
não deveria ser muito diferente do que abrir caminho a fogo numa nave
abandonada. Depois de escolher o local, Torrance inflou um balão para conservar ar;
não havia porquê dizimar a tripulação do inimigo. As tochas de seus homens
vomitavam labaredas; as azuis fagulhas actínicas eram expelidas para trás, em
chafariz, e dançavam na gravidade zero. Entrementes, o resto da equipe aguardava
com desintegradores e granadas.
Lá fora, os contornos das duas fuselagens pareciam sumir no infinito. Sem
os visores eletrônicos de compensação, o céu distorcia-se, fantástico, pela aberração e
pelo efeito Doppler, como se os homens já estivessem mortos, como se se debatessem
na outra existência, rumo ao Juízo Final. Com firmeza, Torrance concentrou a mente
em preocupações práticas. Assim que entrasse, e aprisionasse os não-humanos, como
iria comunicar-se com eles? Principalmente se, primeiro, tivesse que abater uns
tantos?
A carcaça exterior foi desmontada. Torrance, fascinado, estudou a estrutura
interna das placas. Jamais vira algo assim antes. Esta raça, com certeza, desenvolvera
sua espaçonáutica de maneira bem independente com relação à espécie humana.
Embora a engenharia obedecesse às mesmas leis naturais, no detalhe, entretanto, era
radicalmente diferente. Que substância seria aquela, dura,cortiçosa, que revestia a
cápsula interna? E os circuitos, estariam embutidos nela? Torrance não os via em
lugar algum.
A última defesa cedeu. Torrance engoliu em seco, e apontou um facho de
luz pelo interior adentro. A escuridão e o vácuo vieram encontrá-lo. Ao penetrar no
casco, flutuou, despojado de peso; a gravidade artificial fora desligada. Nalgum
lugar, a tripulação se escondia. E ...
E...
Em uma hora Torrance retornou à nave de passeio. Subiu à ponte e
encontrou Van Rijn sentado ao lado de Jeri. A jovem começou a falar, olhou
detidamente a fisionomia do Capitão, e trincou os dentes. O mercador, mal-
humorado, indagou:
— E então?
Torrance pigarreou. A voz saiu, desconhecida, distante.
— Acho melhor o senhor vir dar uma olhada.
— Você descobriu em que raio de inferno se escondeu a tripulação? Como
são eles? E de que tipo é a nave que aprisionamos, hein?
Torrance preferiu, em primeiro lugar, responder à última pergunta.
— Parece uma nave de carga interestelar, coletora de animais. O
compartimento principal é cheio de jaulas — ou melhor, compartimentos de controle
ambiente — com uma variedade infernal de criaturas, a maior que já vi depois do
Zoológico de Luna City.
— Isso não significa coisa alguma para mim. Eu quero o coletor em pessoa,
e seus amiguinhos caçadores!
Torrance engoliu em seco.
— Bem, senhor. A esta altura podemos afirmar que estão se escondendo de
nós. Entre os próprios animais.
Um tubo foi estendido entre a câmara de descompressão principal da nave
de passeio e o corte de entrada na outra. Por ali, o ar era bombeado, e a fiação elétrica
foi passada para iluminar a presa. Utilizando-se de um truque extravagante no
gerador gravítico da Hebe G.B., Yamamura forneceu à nave desconhecida cerca de
um quarto do peso-Terra; como, entretanto, não conseguisse mantê-la em rumo
uniforme, as plataformas estavam sujeitas a inclinações violentas e súbitas.
Mesmo em tais condições, Van Rijn caminhava, pesado. Com um salame
numa das mãos e uma cebola crua na outra, lançava um olhar feroz à ponte
capturada. Só podia ser isso mesmo, embora à altura do pescoço, e não da cintura. Os
visores ainda funcionavam; pequenos, desconfortáveis para o olho humano,
revelavam, entretanto, o mesmo desenho dos astros com, é claro, o mesmo tipo de
compensadores óticos. Um console de controle descrevia um semicírculo ao longo da
parede frontal, grande demais para ser operada por um único homem. Mas o
projetista, presumivelmente, concebera-a para um só piloto, pois um único assento
fora colocado no meio do arco.
Fora colocado. Uma estaca metálica, curta, erigia-se no convés. Estruturas
similares eram vistas em outros pontos, e cavilhas indicavam os locais onde se
fixavam as poltronas. Os assentos, porém, haviam sido retirados.
Torrance arriscou:
— O piloto senta-se ao centro, suponho; isto quando não estão navegando
simplesmente no automático. O navegador e o oficial de comunicações... aqui e ali?
Não posso afirmar. De qualquer modo, é provável que não usem co-piloto, mas
aquela estaca na popa parece sugerir a cadeira de um oficial extra, de reserva, pronto,
para assumir.
Van Rijn ruminava a cebola, puxava os fios do cavanhaque.
— Grande que nem a peste, este painel. Parece uma raça desgraçada de
polvos! Olha como é complicado!
E acenou o salame ao longo do meio-círculo. O console, feito, ao que
parecia, de algum polímero fluorocarbônico, possuía poucos interruptores e botões, e
uma infinidade de placas chatas, luminosas, todas de cerca de vinte centímetros
quadrados. Algumas encontravam-se comprimidas. Não havia dúvida de que eram
os controles. A experimentação cautelosa evidenciara que, para acioná-los, era
necessário apertar com força. Mas a experimentação terminava ali, agora, pois a
câmara de carga se abriu e boa parte do ar se perdeu antes que Torrance conseguisse
força suficiente para apertar a placa que, como veio provar a experiência, viria lacrar
novamente a fuselagem. Não se deve brincar a esmo com o desconhecido atômico,
principalmente no espaço galático.
Van Rijn prosseguiu: — Eles devem ser fortes como mulas, para manobrar
esse sistema sem ficar exaustos. O tamanho das coisas parece provar o que eu digo,
nie?
— Não é bem assim, senhor — retrucou Torrance. — Os visores parecem
feitos para anões. Os medidores ainda mais.
Torrance apontou para um jogo de instrumentos do tamanho de botões; em
cada um deles, luzia um único número. (Ou letra, ou ideograma, ou o quê? Pareciam,
vagamente, chinês antigo). De quando em quando, um símbolo mudava de valor.
— Um humano não conseguiria operá-los por muito tempo sem chegar a
uma grave fadiga visual. É claro que o fato de terem olhos mais adaptados que os
nossos para ver de perto não significa que não sejam gigantes. E aquele interruptor,
para ser alcançado daqui, exige braços longos, e parece ter sido projetado para mãos
grandes.
Torrance ficou na ponta dos pés, tocou o interruptor. Uma coisa
descomunal, semelhante a uma haste dupla, estava fixa no teto, bem acima do
assento hipotético do piloto.
0 interruptor desprendeu-se.
Um ronco veio da popa. Torrance cambaleou para trás, puxado por uma
força repentina. Para firmar-se, teve que agarrar-se a uma prateleira à frente. Ao
agarrá-la, o fino metal envergou.
— Seus polvos imbecis!
Van Rijn berrou e esticou as pernas coluniformes; alcançou o interruptor e
colocou-o de volta na posição original. Cessou o ruído. A normalidade voltou.
Torrance apressou-se até a porta da ponte, um arco bem alto, e gritou para
o interior do corredor:
— Está tudo bem! Não se preocupem! Está tudo sob controle!
— O que aconteceu com esse pisca-pisca azul? — perguntou Van Rijn, com
palavras ligeiramente mais vigorosas.
Torrance dominou o leve estado de nervosismo.
— Interruptor de emergência, suponho... O tom de voz titubeou:
— ... Liga o campo gravítico a toda velocidade de propulsão, sem
desperdiçar força com os compensadores de aceleração. Claro que, como estamos em
hiperpropulsão, a coisa não foi muito eficiente. Ocasionou apenas um impulso
intrínseco menor que 1-G. Em estado normal, teríamos acelerado, no mínimo, muitos
Gs. E para fugas rápidas e... e ...
— E você, com seu cérebro de molho de carne fermentado, com seus dedos
de banana, puxou-o com toda força!
Torrance enrubesceu.
— Como eu iria saber, senhor? Devo ter aplicado menos de meio-quilo de
força. Interruptores de emergência não são para ser acionados por fios de cabelo,
afinal! E se pensarmos na força necessária para movimentar estas placas, quem
poderia pensar que esse interruptor reagiria com tão pouco?
Van Rijn aproximou-se para uma olhadela mais acurada.
— Posso ver que este gancho aqui é para prender o interruptor. Talvez o
usem para passar por planetas de alta gravidade.
E viu um orifício próximo ao centro do painel, de um centímetro de
diâmetro e de quinze centímetros de profundidade. Lá no fundo, emergia uma
pequena chave.
— Isso deve ser outro controle especial, não? É mais seguro que aquele
interruptor. Para girá-lo, são necessários alicates muito finos.
Van Rijn coçou os cachos tratados com creme fixador.
— Mas... e os alicates? Por que não estão à mão? Não vejo nenhum gancho,
suporte ou gaveta para guardá-los.
— Isso não faz diferença. O interior da nave está todo destruído. Na sala de
máquinas, tudo o que sobrou foi um montículo de escória metálica. É... metal
fundido, plástico carbonizado... revestimento, mobília, tudo que julgaram possíveis
pistas para os identificarmos, tudo derretido numa caldeira improvisada. E usaram o
próprio conversor para gerar calor. E essa foi a causa daquele fluxo de neutrino
detectado por Yamamura. Devem ter trabalhado mais que o diabo!
— Mas claro que não destruíram todas as ferramentas, todo o equipamento
necessário! Teria sido mais simples fazer explodir a nave. E nós iríamos junto. Eu suei
como um porco, temendo que fizessem isso. Para mim, um velho pecador,
desgraçado, não seria uma maneira agradável de terminar meus dias, estilhaçado em
gases radioativos, fedorentos, a trezentos anos-luz de distância dos vinhedos da
Terra.
— Claro que não. No exame superficial que fizemos, podemos dizer que
não chegaram a sabotar o essencialmente vital. Não temos certeza absoluta, é claro.
A equipe de Yamamura precisaria de muitas semanas apenas para formar uma idéia
geral de como esta nave foi montada, excluindo os detalhes práticos de como operá-
la. Concordo, porém, que a tripulação não apresenta pendores para o suicídio.
Conseguiram nos pegar, e muito mais do que pensam. Indefesos, acoplados no
espaço — quem sabe, até mesmo, rumando para o próprio astro-natal dessas
criaturas — em ângulos quase perpendiculares à rota que desejamos.
Torrance foi o primeiro a sair.
— Que tal irmos dar uma olhada mais acurada no zoológico, senhor?
Yamamura falou algo a respeito de montar um equipamento... para ajudar-nos a
identificar a tripulação dentre os animais!
♦♦♦
O recinto principal compreendia quase a metade do volume da imensa
nave. Um corredor, por baixo, e um passadiço estrito, por cima, estendiam-se no
meio de duas fileiras de cubículos de dois andades, que somavam noventa e seis, e
eram idênticos. Cada um com cinco metros em um dos lados, e placas fluorescentes,
ajustáveis, no teto; no chão, um plástico flexível, presumivelmente inerte. Prateleiras
e barras paralelas estendiam-se ao longo das paredes laterais, para uso de animais
que gostassem de pular e escalar. À parede dos fundos, ligavam-se máquinas bem
capeadas. Yamamura, que não ousou violá-las, disse apenas que serviam, era óbvio,
para regular a atmosfera, a temperatura, a gravidade, as condições sanitárias e outros
fatores ambientais em cada “jaula”. As paredes frontais, de frente para o corredor e
para o passadiço, eram transparentes, com câmaras de descompressão compactas,
quase da mesma altura do próprio cubículo, e motorizadas, embora controladas por
rodas simples, do lado de dentro e do lado de fora. Apenas alguns compartimentos
estavam vazios.
Os humanos não haviam instalado luminárias no local, pois eram
desnecessárias. Torrance e Van Rijn atravessaram as sombras, por entre os animais; a
luz simulada, de uns doze sóis distintos, fluía à volta dos dois: vermelha, laranja,
amarela, esverdeada e azul-elétrico forte.
Algo que poderia ser um tubarão, não fossem os cachos de pêlos a esvoaçar
na cabeça, nadava num cubículo d’água em meio a algas frondosas. Na jaula ao lado,
repleta, minúsculos répteis voadores, com escamas que faiscavam matizes
prismáticos, coleavam e tintavam o ar. Do outro lado, quatro mamíferos estavam
agachados em meio a uma bruma amarela; belas criaturas, do tamanho de um urso,
com listras de tigre, de tons fortes, caminhavam nas quatro patas e, de vez em
quando, levantavam-se. E notavam-se, nos dedos curtos, as garras retrácteis, e, nas
cabeças maciças, mandíbulas de carnívoros. Adiante, os humanos passaram por umas
seis feras lustrosas, semelhantes a lontras hexápodes, que brincavam num tanque
d’água apropriado. As máquinas ambientais deviam ter decidido que era hora da
refeição, pois um alimentador jorrava, numa canaleta, nacos de material proteínico e
as lontras refestelavam-se para cortá-los com as presas.
— Alimentação automática — observou Torrance. — É provável que o
alimento seja sintetizado na hora, segundo as especificações de cada espécie,
determinada por métodos bioquímicos. Para a tripulação também. Pelo menos, não
vejo nada por aqui que se pareça com uma cozinha de bordo.
Van Rijn encolheu os ombros.
— Mas... tudo sintético? Não tem nem um copinho de genebra holandesa
para antes do jantar?
E iluminou-se:
— Ah, talvez estejamos diante de um novo mercado. E bom! E até que eles
descubram a situação, podemos cobrar preços triplicados.
— Mas antes — emendou Torrance — precisamos encontrá-los!
Próximo ao centro do recinto, Yamamura focava uma série de instrumentos
na direção de determinada jaula. Jeri estava ao lado, e entregava o que ele pedia,
ligando e desligando numa pequena fonte de alimentação. Van Rijn apareceu à vista
e perguntou:
— Mas o que há aqui?
O engenheiro-chefe voltou o rosto moreno na direção de Van Rijn.
— O resto da tripulação está examinando a nave em detalhe, senhor, e eu
vou me juntar a eles assim que conseguir treinar a Cidadã Kofoed nessa tarefa
específica. Ela pode dar conta da rotina enquanto o resto de nós usa nossas
capacidades especiais para...
As palavras fugiram-lhe. Yamamura resmungou, pesaroso:
— ... para fuçar e fustigar coisas que não temos possibilidade de
compreender em menos de um mês de trabalho, com nossas limitadas ferramentas
de pesquisa.
Van Rijn interveio:
— Um mês nós não temos. Você está verificando as condições dentro de
cada jaula, isoladamente?
— Estou sim, senhor. Elas contêm medições, é claro, mas não sabemos lê-
las. Portanto, temos que traçar nossas próprias medidas. Eu amarrei essas coisas para
avaliar o valor aproximado da gravidade, da pressão e composição atmosféricas, da
temperatura, do espectro de iluminação, e assim por diante. É um trabalho lento,
principalmente por causa da aritmética necessária a converter a leitura do medidor
em tais informações. Por sorte, não temos que testar cubículo por cubículo, e nem
mesmo a maioria deles.
— Claro — exclamou Van Rijn. — Mesmo para um organizador sindical, é
óbvio que esta nave não foi feita por peixes ou pássaros. Para fazê-la, algum tipo de
mão deve ter sido necessário!
— Ou tentáculos!
Com a cabeça, Yamamura apontou para o compartimento em frente. Lá
dentro, uma luz vermelha, tênue. Diversas criaturas negras, afobadas, andavam de
um lado para outro. Dos corpos quadrúpedes, de membros atarracados, saíam torsos
à maneira dos centauros, que culminavam em cabeças encarapaçadas com um certo
material ósseo. Abaixo das cabeças, sem rosto, viam-se seis braços grossos e fibrosos,
dispostos em grupos de três, e dois deles culminavam em três dedos sem articulações
ósseas, embora provavelmente fortes.
— Desconfio que sejam nossos amigos assustadiços — comentou
Yamamura. Se for verdade, vamos perder o dobro do tempo com eles. Respiram
hidrogênio a alta pressão e a gravidade tripla, a uma temperatura de setenta graus
abaixo de zero.
Torrance perguntou:
— Eles são os únicos que gostam desse tipo de clima? Yamamura lançou-
lhe um olhar penetrante.
— Já sei aonde quer chegar, Capitão. Não, não são não. Enquanto eu
montava e testava o equipamento, encontrei três outros cubículos com condições
similares, e neles os animais são apenas animais, cobras e outros, que jamais
poderiam ter construído esta nave.
Tímida, Jeri aparteou:
— Quer dizer, então, que esses cavalos-polvos não podem ser a tripulação,
não é mesmo? Quer dizer, se a tripulação está à cata de animais de outros planetas,
certamente não vai carregar, a bordo, animais domésticos.
— Por que não? — observou Van Rijn. — Nós temos um gato e um par de
papagaios a bordo da Hebe G.B., nie? Além disso, existem muitos planetas com
condições bem semelhantes, do tipo hidrogenado. A Terra e Freia, por exemplo, são
planetas oxigenados, e são muito semelhantes. Portanto, isso não prova nada.
Qual um globo em rotação, Van Rijn virou-se para Yamamura.
— Mas, veja. Se a tripulação de fato esvaziou todo o ar da nave antes de
entrarmos, por que não vamos verificar os tanques de reserva? Se encontrarmos ar
armazenado, do tipo que esses embromadores aqui estão respirando...
— Eu já pensei nisso — retrucou Yamamura. — De fato, foi a primeira coisa
que pedi que meus homens procurassem. E eles não encontraram nada. E nem acho
que encontrarão. O que encontraram, isso sim, foi um fole catalítico, ajustável, de
muitas dobras. Ao menos parece um fole, embora precisemos de muitos dias para
nos certificarmos. Minha suposição é de que esse fole serve para renovar o ar
expelido e agir como químiossintetizador para repor as perdas, usando, como carga,
compostos inorgânicos simples. Antes de entrarmos, provavelmente, a tripulação
sangrou todo o ar da nave, lançou-o no espaço. Assim que sairmos, se sairmos, vão
abrir a porta da jaula em que estão, apenas um pouquinho, e vão deixar o ar escoar
pouco a pouco. O ajuste ambiental irá, automaticamente, forçar o
químiossintetizador a repor o ar. Em dado instante, a nave já conterá ar suficiente, do
tipo de que precisam, e eles poderão aventurar-se a sair e ajustar as coisas com maior
precisão...
Yamamura estremeceu.
— ... Isto é, se é que terão que ajustá-las! Talvez as condições terrestres os
satisfaçam plenamente.
Torrance concordou:
— É possível. Por que não damos mais uma olhada por aí para
selecionarmos as espécies que apresentem possibilidade de inteligência?
Pesado, Van Rijn girou e acompanhou Torrance. Resmungou:
— Que tipo de inteligência podem ter esses cuspidos? E por que levar
avante essa idiotice?
Seco, Torrance respondeu:
— Não foi idiotice termos trabalhado até agora. Estamos sendo conduzidos
numa nave que não sabemos como parar. Eles devem estar esperando que
desistamos, ou partamos, ou então que nos mantenhamos fora do curso até que a
nave entre em sua região natal. Nessa ocasião, é bem provável que uma astronave
oficial — ou o que quer que possuam — nos detenha, se aproxime de nós e nos
aborde para verificar o que está acontecendo.
Diante de um compartimento, Torrance fez uma pausa.
— Isso me faz pensar...
Lá dentro, o quadrúpede era do tamanho de um elefante, embora com uma
compleição um pouco mais delgada, o que indicava gravidade menor que a da Terra.
A pele era verde, levemente escamada. Uma franja de pêlos escorria pelas costas
abaixo. Os olhos com que espiava para fora eram vigilantes e enigmáticos. A tromba,
parecida com a de um elefante, terminava num anel de pseudodáctilos, fortes e
sensíveis, talvez, como os dedos humanos.
Torrance falou, pensativo:
— O que poderia conseguir uma raça de um braço só? Talvez o mesmo que
nós, e talvez com a mesma facilidade. A simples força compensaria. Essa tromba é
bem capaz de envergar uma barra de ferro.
Van Rijn rosnou, passou por um cubículo de ungulados plumosos. Em
frente ao cubículo seguinte, parou.
— Ah, essas feras aqui devem nos servir. Já tivemos uma dessas lá na Terra,
um dia. Como é mesmo o nome? Quintila? Gorila? Não, melhor chamar de
chimpanzé do tamanho de um gorila.
Torrance sentiu o coração vibrar. Duas seções contíguas abrigavam, cada
uma, quatro animais, de um tipo que parecia bastante promissor. Eram bípedes, de
pernas curtas e braços longos. Com dois metros de altura, e com um raio de alcance
de três metros nos braços, qualquer um deles sozinho conseguiria operar a mesa de
controle. Os pulsos, grossos, com coxas humanas, terminavam em mãos
proporcionais, de quatro dedos, incluindo um polegar verdadeiro. Os pés de três
dedos eram, como os pés humanos, destinados ao caminhar. Os corpos eram cobertos
de uma penugem marrom. A cabeça era relativamente pequena; afílava-se até quase
formar um ponto. Por sob as sobrancelhas espessas, olhos grandes e redondos
emergiam das órbitas cavernosas. Os focinhos eram massudos. Andavam sem rumo,
de um lado para outro, e Torrance percebeu que se dividiam em machos e fêmeas.
Em cada lado do pescoço, distinguiam-se dois lúmens, fechados por esfíncteres.
Envolvia-os a conhecida luz branco-amarelada das estrelas do tipo Sol.
Torrance forçou-se a comentar:
— Não sei. Estas mandíbulas imensas devem exigir músculos maxilares à
altura, que se liguem a uma borda no topo do crânio, e isto restringiria a capacidade
craniana.
— Mas, e se tiverem os cérebros na barriga? — sugeriu Van Rijn.
— Bem, algumas pessoas têm mesmo — murmurou Torrance, e como o
mercador silenciasse, acrescentou logo: — Não. Na verdade, senhor, isto é muito
difícil de acreditar. As trilhas nervosas teriam que ser muito compridas, e tudo o
mais. Os animais que conheço, que possuem algum tipo de sistema nervoso central,
têm o cérebro junto aos órgãos sensitivos principais, em geral localizados na cabeça.
Posso assegurar que o fato de estas criaturas terem o cérebro relativamente pequeno,
dentro de certos limites, não significa que não sejam inteligentes. Seus neurônios
podem ser muito mais eficientes que os nossos.
— Valham-me meus bolos confeitádos! — exclamou Van Rijn. —
Suposições e suposições!
E, prosseguindo por entre outras formas estranhas.
— E tampouco podemos nos guiar pela atmosfera, ou pela luz. Se a
tripulação está se escondendo, pode fazer variar em muito as condições normais, sem
se prejudicar. E a gravidade também, em vinte ou trinta por cento.
— Eu só espero que respirem oxigênio. Epa...
Torrance parou. Um instante depois, percebeu o que havia de tão estranho
naquelas tantas formas iluminadas pelo brilho alaranjado. Possuíam carapaças
quitinosas, pouco maiores que capacetes militares, e mais ou menos da mesma forma.
Quatro pernas atarracadas projetavam-se sob o ventre: caminhavam desajeitados,
apoiados em pés providos de garras. E mais um par de tentáculos curtos terminando
num tufo de cílios. Não havia nada de especial neles, como costuma ocorrer com os
animais extraterrestres, exceto os dois olhos que fitavam fixos por baixo dos
capacetes: tão grandes e, de certo modo, tão humanos como... bem... os olhos de um
polvo.
— Tartarugas! — bufou Van Rijn. — No máximo, tatus!
— Creio que não há mal nenhum em deixar Jer. .. a Srta. Kofoed verificar o
ambiente deles também — disse Torrance.
— Perda de tempo!
— O que será que comem? Não vejo boca nenhuma.
— Aqueles tentáculos parecem capilares de sucção. Aposto que são
parasitas, ou sanguessugas superdesenvolvidas, ou algo semelhante a um dos meus
concorrentes. Venha.
— O que faremos depois de estabelecermos quais as espécies que
apresentam possibilidades de ser a tripulação? Tentar nos comunicar com cada uma
delas?
— Isso seria inútil. Eles estão se escondendo porque não querem se
comunicar. A menos que possamos provar a eles que não pertencemos à Patrulha-
Cobra. Mas, agora, difícil prever.
— Um momento! Afinal, por que iriam se esconder se já tivessem tido
contato com os bandidos da Patrulha? Não iria adiantar nada.
— Com os diabos! Vou explicar porquê. Vamos escolher um nome para
eles. Chamemos de Eksers a esta raça desconhecida. Muito bem. Os Eksers estão
viajando pelo espaço já há algum tempo, mas o espaço é tão grande que jamais se
haviam deparado com humanos. E, então, surge a nação da Patrulha-Cobra, neste
setor até então inatingido por seres humanos. Os Eksers tomam conhecimento de
que uma espécie sinistra acaba de adentrar o espaço. E pousam nos planetas
primitivos saqueados pela Patrulha-Cobra, conversam com os nativos e instalam,
talvez, câmaras automáticas nos locais onde julguem que novas invasões ocorrerão.
Talvez espionem, de longe, os acampamentos da Patrulha, ou capturem uma nave
solitária desses piratas. E assim sabem qual o aspecto dos humanos, e apenas isso; e
não querem que os humanos saibam a respeito deles, e evitam contato. Não querem
confusão. Não antes, pelo menos, de estar preparados para a guerra. Pelo inferno
escaldante! Nós temos que deixar patente a nossa boa fé para com essa tripulação,
para que ela nos leve a Freia e diga a seus líderes que os seres humanos não são todos
tão maus como os salteadores da Patrulha! Caso contrário, um dia vamos acordar
com alguns planetas sendo atacados pelos Eksers, e antes que a batalha termine, já
teremos desperdiçado bilhões de créditos.
Como um touro ferido, Van Rijn brandiu os punhos no ar e berrou:
— E nosso dever é evitar que isto aconteça!
Ríspido, Torrance retrucou:
— Eu diria que nosso primeiro dever é chegarmos em casa vivos. Eu tenho
esposa e filhos.
— Então é melhor parar de lançar esses olhares derretidos para Jeri Kofoed.
Eu a vi primeiro.
A investigação produziu uma nova possibilidade. Quatro organismos, do
tamanho de um homem, e com a compleição de lagartos de pernas grossas, viviam
sob uma luz esverdeada. Os corpos eram azuis-escuros, salpicados de prata. O torso,
semelhante ao dos centauróides tentaculares, embora mais robustos, apresentava
dois braços verdadeiros. As mãos careciam de polegares, mas os seis dedos dispostos
em três quartos de círculo seriam capazes de realizar as mesmas coisas. Isso não
queria dizer que mãos adequadas constituíssem prova de inteligência superior; na
Terra, os símios e certo número de répteis e anfíbios possuem mãos eficientes, ainda
que as do Homem sejam mais aptas, e os ancestrais simiescos do Homo sapiens
tinham mãos tão boas como as nossas hoje em dia. Entretanto, as cabeças desses
seres, de rostos achatados e arredondados, os olhos grandes e claros por trás de
antenas emplumadas, de função obscura, as pequenas mandíbulas e os lábios
delicados, tudo parecia promissor.
Promissor de quê?, pensou Torrance.
Três dias terrenos depois, Torrance desceria, apressado, ao corredor central,
rumo à sala das máquinas dos Eksers.
A passagem consistia de um grande hemicilindro, revestido com o mesmo
plástico borrachoso e cinzento das jaulas; os passos, portanto, eram silenciosos, e as
palavras, quando pronunciadas, não produziam, estranhamente, ressonância. Mas
uma vibração mais profunda a atravessava, o zumbido quase subliminar do
hipermotor, que conduzia a nave dentro da escuridão, rumo a uma estrela
desconhecida, e anunciava sua presença a qualquer caçador que vagasse num raio de
um ano-luz dali. As luminárias instaladas pelos humanos estavam distantes umas das
outras, e assim, quem passasse por ali, via tiras de sombras. Recintos sem portas
escancaravam-se para o corredor. Alguns, ainda repletos de suprimento, e por mais
peculiares que fossem as formas das ferramentas e das embalagens, eram uma
reafirmação de que ali ainda se vivia, de que ainda não se era uma alma a bordo do
Fantasma-Voador. Entretanto, a nudez de certas cabines, antes habitadas, fez arrepiar
a pele de Torrance.
Em canto algum, havia vestígios pessoais. Restavam livros, em folhas e
microfilmes, de impressão primorosa, com a simbologia do planeta alienígena. Nas
prateleiras, os lugares vazios faziam adivinhar que os volumes ilustrados haviam sido
sacrificados. Claro, era possível perceber, nas paredes, que os locais onde se
penduravam quadros estavam danificados. Nas grandes cabines particulares, e na
maior delas, que bem poderia ter sido o compartimento-salão, na sala de máquinas,
na oficina e na ponte, só tinham sido deixadas as estacas onde se aparafusavam os
móveis. Nichos compridos, baixos, e cochichós, haviam sido construídos na antepara
da cabine. Mas como saber onde teria sido o dormitório quando todo revestimento
fora atirado numa caldeira branca, de tão quente? Se é que havia dormitório! As
roupas, os ornamentos, os utensílios culinários, os talheres ou coisas do gênero, todos
destruídos. Um dos recintos talvez tivesse sido um lavatório, embora todas as
instalações tivessem sido arrancadas. E um outro talvez houvesse sido utilizado para
estudos científicos, presumivelmente de animais capturados. Tão desmantelado
estava, no entanto, que seria impossível a qualquer humano afirmá-lo.
“Por Deus, temos mesmo que admirá-los,” pensou Torrance. Capturados
por seres que, com toda razão, podem bem considerar monstros sem consciência, os
alienígenas preferiram não optar pela solução mais fácil, a explosão atômica que viria
aniquilar as duas tripulações. Talvez a tivessem adotado, não fosse a possibilidade de
esta nave ser um parque zoológico. Mas mantiveram a esperança de sobreviver, e
agarraram-na com uma ousadia imaginativa só ao alcance de poucos humanos. E
agora ali permaneciam, à vista de todos, à espera de que os monstros partissem —
sem destruir a nave por mera malevolência — ou de que uma nave de combate, de
sua própria gente, viesse socorrê-los. Não tinham meios de saber que seus captores
não eram da Patrulha-Cobra, e nem tampouco de saber se o setor não estaria, em
breve, pululando com esquadrilhas da patrulha; os bandidos ousavam, embora raras
vezes, aventurar-se a esta proximidade de Valhala. Dentro dos limites da informação
disponível, os alienígenas agiam com lógica absoluta. Mas, para fazê-lo, só com
nervos de aço!
“Eu gostaria de poder identificá-los, e travar amizade com eles, pensou
Torrance. Os Eksers dariam ótimos amigos para a Terra — ou para Ramanujan, Freia
ou toda a Liga para Ciência do Sol Polar.” E, com um sorriso irônico, enviesado:
“Aposto que eles não são tão fáceis de enganar como pensa o Velho Nick. É mais
provável que eles o enganem. Ah, como eu gostaria que isso acontecesse!”.
“Meus motivos são mais pessoais,” pensou, invadido novamente pelo
desânimo. “Se não esclarecermos logo este mal-entendido, nem eles nem nós
sobreviveremos. E tem que ser logo. Se conseguirmos mais uns três ou quatro dias de
cortesia, estaremos com sorte.”
A passagem desembocava num vão, e rampas curvas, em declive, abriam-se
para os dois lados; culminavam em duas portas automáticas. A primeira porta,
Torrance sabia, conduzir à sala de máquinas. Lá dentro, um conversor nuclear
alimentava o sistema elétrico da nave, os cones gravíticos e a hiperpropulsão; os
princípios com que isto era feito eram conhecidos de Torrance. As máquinas, porém,
eram enigmas acondicionados em metal e em símbolos desconhecidos. Torrance
abriu a outra porta, entrou na oficina. Conseguia identificar boa parte do
equipamento, embora distorcido diante de seus olhos: um torno, uma prensa de
brocar, um osciloscópio e um aparelho de cristal para provas. Outras coisas, muitas,
eram um mistério. Yamamura ali estava sentado à bancada improvisada, montando
uma peça de equipamento eletrônico. Diversos outros aparelhos, presos em painéis
de papelão, encontravam-se próximos. O rosto de Yamamura parecia conturbado, e
suas mãos tremiam. Estivera todo esse tempo à base de estimulantes que o
mantinham acordado.
No momento em que Torrance se aproximou, o engenheiro conversava
com Betancourt, o encarregado das comunicações. Toda a tripulação da Hebe G.B.
encontrava-se sob a direção de Yamamura, numa tentativa frenética de flanquear os
Eksers através do aprendizado autodidático, do modo de operar a nave.
Betancourt dizia:
— Consegui identificar a disposição elétrica básica, senhor. Eles não
acionam o conversor diretamente, como nós fazemos. Isto é tão evidente quanto o
fato de não terem desenvolvido nossos métodos de redução. Em vez disso, usam um
cambiador de calor para movimentar um gerador imenso... é, aquilo que o senhor
pensou que fosse um dínamo do tipo induzido... onde geram a corrente alternada
para a nave. Quando há necessidade de corrente contínua, a corrente alternada
atravessa uma série de placas retificadoras e, pelo que pude ver, tenho certeza de que
são de óxido de cobre. Estão descobertas, atrás de uma tela de segurança; mas estão
tão aquecidas, devido à quantidade de energia que as atravessa, que seria difícil olhá-
las de perto. Para mim, tudo isso parece meio primitivo.
Yamamura suspirou:
— Ou, quem sabe, apenas diferente. Nós usamos um conversor à base de
fusão de elementos leves, que apresenta a vantagem, dentre outras, de propagar
diretamente a corrente elétrica. É possível que eles tenham aperfeiçoado um tipo de
usina elétrica que utilize elementos moderadamente pesados, com pequenas frações
positivas de alimentação. Lembro-me de que isto já foi tentado na Terra, há muito
tempo, e que foi considerado impraticável. Mas pode ser que os Eksers sejam
melhores engenheiros que nós. Este tipo de sistema apresentaria a vantagem de
menor necessidade de refinamento de combustível — o que seria uma vantagem real
para uma nave que se encontra aos tropeções em meio a planetas inexplorados. E
isto, por si só, serviria para justificar a ingenuidade do cambiador de calor e do
sistema de retificação. Mas, na verdade, não sabemos.
Yamamura soldava os fios e fitava-os, sacudindo a cabeça.
— Nós não sabemos droga nenhuma!
E, ao ver Torrance:
— Bem, prossiga, Cidadão Betancourt. E lembre-se, festina lente.
— Por medo de destruir a nave? — perguntou o Capitão.
Yamamura confirmou com a cabeça:
— Os Eksers saberiam que uma nave como a nossa, pequena, não
conseguiria gerar um campo de hiperforça capaz de rebocar-lhes a nave para o
planeta de onde vieram. E assim resolveram assegurar-se de que sua tripulação não
seria aprisionada para realizar o trabalho para nós. Se não as manusearmos com
cuidado, estas coisas poderão destruir-se como um brinquedinho de criança; e aí,
como conseguiremos consertá-las? Portanto, procedemos com a mais absoluta
cautela, com tanta cautela que não temos a menor esperança de desvendar os
controles antes que a Patrulha-Cobra nos descubra.
— E é uma boa maneira de manter a tripulação ocupada.
— O que, por sinal, é muito bom. Ha! Ha! Bem, senhor, eu já consegui
montar quase todo o aparato básico. Segundo os testes, tudo parece em ordem.
Agora, gostaria que o senhor me dissesse que animal o senhor prefere investigar
primeiro.
Diante da hesitação de Torrance, o engenheiro explicou:
— Terei que adaptar o equipamento para a criatura em questão,
principalmente se a criatura respirar hidrogênio.
Torrance balançou a cabeça.
— Oxigênio. Na verdade, as condições em que vivem são tão semelhantes
às nossas que podemos entrar nas aulas com facilidade. Os gorilóides. Foi assim que
Jeri e eu os chamamos. Aqueles bípedes peludos, de dois metros de altura, com cara
de macaco.
Yamamura fez, ele próprio, uma careta de macaco.
— Esses brutamontes terão tanta força assim? Chegaram a mostrar algum
sinal de inteligência?
— Não. Mas você espera que os Eksers dêem qualquer sinal que os
identifique? Jeri Kofoede e eu andamos desfilando diante de todas as espécies, pela
frente das jaulas, fazendo sinais, tirando fotografias, tudo o que conseguimos
imaginar, na tentativa de transmitir a mensagem de que não somos da Patrulha-
Cobra, e que o artigo genuíno está em nosso encalço. Não tivemos sorte, é claro.
Todos os animais nos lançaram um olhar interessado, com exceção dos gorilóides... o
que, talvez, venha ou não a provar alguma coisa.
— Mas que animais foram esses? Eu estou tão ocupado que...
— Bem, podemos chamá-los os macacos-tigres, os centauros tentaculares, o
elefantóide, os bichos de capacete e os lagartos-suínos. Mas isso seria ampliar demais
as coisas, sei disso; os macacos-tigres e os bichos de capacete, são muito improváveis,
no mínimo, e o elefantóide também não é nada convincente. Os gorilóides possuem
o tamanho ideal, e mãos de aspecto mais eficiente, além de respirarem oxigênio,
como já disse. Assim, devemos começar com eles. O próximo, por ordem de
similitude, suponho, são os lagartos-suínos e os centauros tentaculares. Mas os
lagartos-suínos, embora respirem oxigênio, vêm de um planeta de alta gravidade; a
pressão do ar nos deixaria imediatamente narcotizados. Os centauros tentaculares
respiram hidrogênio. Nos dois casos, teremos que trabalhar com o escafandro
espacial.
— Ora, os gorilas já vão nos dar enorme trabalho, muito obrigado!
Torrance olhou a bancada.
— Quais são exatamente seus planos? Estou tão ocupado com a minha
parte do trabalho que não consegui saber nada a respeito da sua.
— Adaptei algumas peças com o estojo médico. Uma espécie de
oftalmoscópio, por exemplo. Afinal, os instrumentos da nave usam códigos de cor e
símbolos de primorosa impressão. Portanto, é provável que os olhos dos Eksers
sejam, no mínimo, tão bons quanto os nossos. E isso aqui é um traçador de impulsos
nervosos. Detecta os fluxos sinápticos e joga a imagem tridimensional numa caixa de
cristal de corte Y, para podermos observar o funcionamento de todo o sistema
nervoso como um conjunto de traços luminosos, que, correlacionado com a anatomia
bruta permite identificar, a grosso modo, os sistemas simpáticos e parassimpáticos,
ou seus equivalentes, espero. E o cérebro. E mais importante ainda, o grau de
atividade do cérebro, mais ou menos independente dos outros centros nervosos. Isto
é, caso o animal pense. — Yamamura encolheu os ombros. — Comigo funciona.
Agora, se vai funcionar num não-humano, e principalmente num tipo diverso de
atmosfera, não sei. Mas tenho certeza de que vai nos deixar intrigados. Torrance
deitou uma citação:
— “Tudo o que podemos fazer é tentar”.
Com uma voz impaciente, Yamamura observou:
— E o velho Nick? Continua sentado, pensando? Já faz muito tempo que
não o vejo.
— Ele não tem ajudado a mim e a Jeri também. Disse-nos que nossa
tentativa de comunicação seria fútil a menos que conseguíssemos provar aos Eksers
que sabíamos quem eles eram. E, mesmo depois disso, segundo ele, a única
comunicação inicial deveria estabelecer-se através de gestos feitos com uma pistola.
— Talvez ele tenha razão.
— Não, não tem não. Em termos lógicos, talvez. Mas, em termos
psicológicos, não; nem morais. Ele fica lá, na suíte, com aquela caixa de brandy e a
caixa de charutos. O cozinheiro, que muito bem poderia estar aqui ajudando você, é
mantido a bordo da nave apenas para preparar-lhe as malditas refeições
gastronômicas. Dá para pensar que ele nem ligaria se nos visse explodir nos céus!
Torrance lembrou-se do juramento de fidelidade, da posição oficial que
ocupava, e tudo o mais. Agora, ali, no limiar da morte, pareciam não fazer muito
sentido. Mas o hábito é coisa muito forte. Engoliu, e amargurou:
— Desculpe-me. Por favor, esqueça o que eu disse. Quando estiver pronto,
Cidadão Yamamura, vamos testar os gorilóides.
♦♦♦
Jeri, juntamente com seis homens, permaneceu de pé, na passagem, com os
lança-raios apontados. Era esperença de Torrance, fervorosa, que não tivessem que
atirar. E, mais ainda: que, se tivessem que fazê-lo, ele próprio pudesse escapar vivo.
Fez um gesto para os quatro tripulantes às suas costas.
— Muito bem, rapazes!
E umedeceu os lábios. O coração disparou. É muito bom ser capitão, ser
comandante, mas, num momento como esse, a gente é obrigado a devolver todos os
privilégios especiais.
Torrance girou a roda de controle externa. O motor da câmara de
descompressão zuniu, abriu as portas. Ele as atravessou e entrou na jaula dos
gorilóides.
Embora as diferenças de pressão não merecessem preocupação, entrar num
campo com dez por cento a menos que a Terra, depois de todo esse tempo a um
quarto de G, foi como uma pancada. Torrance cambaleou, quase caiu, e engoliu um
ar quente, grosso, repleto de gases malcheirosos, inomináveis. Apoiou-se de costas
contra a parede, e olhou, do outro lado, para os quatro bípedes. Os corpos marrons,
lanudos, agigantaram-se, absurdamente altos, muito altos, até o topo das cabeças
grosseiras. Olhos quase ocultos por sobrancelhas espessas o fitavam. Torrance levou a
mão à pistola de estontear, embora ele, também, não desejasse dispará-la. Não era
preciso dizer que as ondas ultra-sônicas são capazes de causar ao sistema nervoso de
um não-humano; e se esses que ali estavam, fossem na verdade a tripulação, feri-los
seria a pior coisa a acontecer. Mas Torrance não estava acostumado a sentir-se
pequeno e frágil. Aquela coronha nodosa era, de fato, reconfortante.
Um macho rosnou, do fundo do tórax e deu um passo à frente. A cabeça
pontuda projetou-se, os esfíncteres no pescoço abriram-se e fecharam-se como
embocaduras de sucção; as mandíbulas escancararam-se e exibiram dentes brancos.
Torrance recuou até o canto, e anunciou em voz baixa:
— Vou tentar separar esse dos demais. Então, peguem-no.
— Eeee ...
Um ajudante espacial, um nômade de Altai, robusto, de olhos puxados,
desenrolou um laço.. Atrás dele, os outros três estenderam uma rede confeccionada
para esse fim.
O gorilóide fez uma pausa. Uma fêmea soltou um pio agudo. Dela, o macho
pareceu extrair resolução. Acenou para os demais com um gesto estranho, quase
humano e, sorrateiramente, aproximou-se de Torrance.
O Capitão sacou a pistola, apontou-a, trêmulo. Depois, recolocou-a no
coldre, estendeu a duas mãos, e berrou:
— Amigo...
A esperança de que toda aquela encenação ruísse por terra tornou-se, de
repente, ridícula. Torrance deu um salto para trás, na direção da câmara de ar. O
gorilóide rosnou e tentou agarrá-lo. Torrance não foi suficientemente rápido. A pata
rasgou-lhe o blusão e deixou-lhe no peito um fio de sangue. Torrance caiu de joelhos,
apoiou-se nas mãos, varado de dor. O laço do altaiano, girou, cortou o ar. Laçado nos
tornozelos, o gorilóide desmoronou. O peso fez estremecer o cubículo.
— Peguem-no! Cuidado com as patas! Aqui...
Aos tropeços, Torrance pôs-se novamente de pé. Para além da refrega, em
que os quatro homens tentavam amarrar, na rede, aquele monstro que urrava, se
debatia, viu as outras três criaturas. Espremidas no canto oposto, uivavam num tom
baixo. O compartimento parecia o interior de um tambor.
A voz de Torrance saiu embargada:
— Tragam-no para fora, antes que os outros ataquem!
E apontou a pistola, mais uma vez. Se fossem inteligentes, saberiam que era
uma arma. Mesmo sendo, talvez atacassem... Com habilidade, o homem de Altai
amarrou uma das patas, e passou um laço naquele torso colossal. Apertou com um nó
corrediço. A rede entrou em posição. Imobilizado pelas cordas de fibra fortes como
aço, o gorilóide foi arrastado até a entrada. Um outro macho avançou, passo a passo.
Torrance fincou pé. O ulular dos animais e a gritaria humana envolveram-no,
penetraram-no. A ferida latejava. E ele percebeu, com toda clareza, aquela focinheira
cheia de dentes, que bem poderia arrancar-lhe a cabeça, aqueles olhos pequenos,
foscos, agora vermelhos de fúria, aquelas mãos, tão parecidas com as suas, não
fossem a pele preta, os quatro dedos, e o tamanho enorme .. .
— Já terminamos, Capitão.
O gorilóide investiu. Atabalhoado. Torrance atravessou a câmara de
descompressão. O gorilóide o seguiu. Torrance firmou-se no corredor, e apontou a
pistola. O gorilóide parou, estremeceu, olhou em volta com um quê de espantado, e
recuou. Torrance fechou a câmara.
E então, sentou-se, e estremeceu.
Jeri debruçou-se sobre ele, ofegante:
— Você está bem? Oh! Você está ferido!
— Ora, não foi nada. Me dê um cigarro.
Jeri apanhou um cigarro no bolso do cinto, e disse, com a rispidez que
Torrance tanto admirava:
— Só um hematoma, e um arranhão profundo. Mas é melhor irmos
verificar, de qualquer modo, e esterilizar. Pode infeccionar.
Torrance concordou com a cabeça, mas permaneceu sentado, até terminar o
cigarro. Um pouco mais adiante, no corredor, os homens de Yamamura mantinham a
presa trancafiada numa armação de aço. Ileso mas inerme, o brutamontes gania e
tentava morder o engenheiro, que se aproximava com o equipamento. Colocá-lo de
volta no cubículo, depois, seria provavelmente tão difícil quanto o fora retirá-lo.
Torrance levantou-se. Pela parede transparente, viu um gorilóide fêmea
rasgar, furiosa, em tiras, um pedaço de alguma coisa. E percebeu que perdera o
turbante no momento em que fora derrubado. Suspirou:
— Bem, nada mais a fazer até que Yamamura nos dê seu veredicto. Vamos,
vamos descansar um pouco.
Jeri foi firme:
— Primeiro, a enfermaria.
E tomou-o pelo braço. Dirigiram-se ao vão da entrada, atravessaram o tubo
e alcançaram a Hebe G.B. Quase nada foi dito enquanto Jeri retirava o blusáo de
Torrance, limpava, com desinfetante universal, a ferida que ardia demais, e fazia os
curativos. Depois, Torrance sugeriu um aperitivo.
Foram para o salão. Para surpresa dos dois, e para desprazer de Torrance,
Van Rijn estava lá, sentado à mesa de mogno, embutida, com uma blusa manchada
de tabaco e o habitual sarão. Numa das mãos, uma garrafa, na outra, um charuto.
Papéis jogados espalhavam-se ao redor.
Van Rijn ergueu os olhos.
— Até que enfim! O que houve?
— Estão testando um gorilóide.
Torrance deixou-se cair numa poltrona. Como o comissário de bordo fora
recrutado para a equipe de captura, Jeri foi buscar os aperitivos. Sua voz deixou um
rastro flutuante, desafiador.
— O Capitão Torrance quase morreu na operação. Por que você ao menos
não foi dar uma espiada, Nick?
O mercador escarneceu:
— Que utilidade teria? Ficar olhando, como turista, com olhos de hadoque?
Não vamos transformar a coisa numa história de terror. Eu já estou muito velho,
muito gordo, para caçar macacos tamanho-família. E nem sou tão técnico a ponto de
poder ajudar Yamamura a girar botões.
Van Rijn tirou uma baforada do charuto. E, complacente:
— Além disso, essa não é minha função. Não sou nenhum especialista, não
tenho diplomas requintados, de universidades, aprendi na escola dos que dão duro. E
o que aprendi foi a mandar outros fazer as coisas para mim, e a transformar o que
fazem em coisas lucrativas.
Torrance expirou, devagar e longamente. Relaxada a tensão, começava a
sentir-se terrivelmente cansado. Perguntou:
— Que é que o senhor está examinando?
— Os relatórios dos engenheiros sobre a nave Ekser. Eu disse a todos que
fizessem anotações completas sobre tudo o que observarem. Em algum lugar, nestas
notas, talvez esteja a pista que possamos utilizar. Isto se os gorilóides não forem os
Eksers. Os gorilóides são uma possibilidade, e a única maneira que vejo para eliminá-
los é através das verificações de Yamamura.
Torrance esfregou os olhos.
— Os gorilóides não são tão plausíveis assim. Boa parte do que
encontramos parece ter sido projetada para mãos grandes. Algumas ferramentas,
porém, são tão pequenas... Bem, na verdade, qualquer não-humano ficaria também
muito intrigado com o nosso instrumental. Faria sentido, por exemplo, uma mesma
raça usar, ao mesmo tempo, marretas e pontas-secas?
Jeri trouxe duas doses fortes de uísque com soda. O olhar de Torrance a
acompanhou. Naquela blusa apertada, naquela saia à altura do joelho, bem merecia
ser acompanhada. Jeri sentou-se junto a ele, e não junto a Van Rijn. Os olhos de Van
Rijn, de azeviche, contraíram-se.
Contudo, o mercador falou com delicadeza:
— Eu gostaria que você me relacionasse, agora, aqui, as outras
possibilidades, e os motivos que você tem para considerá-las. Eu também já pensei
em algumas, é natural, mas minhas idéias não estão ainda muito claras e, talvez, algo
que tenha ocorrido a você possa iluminá-las.
Torrance assentiu com a cabeça. Melhor mesmo seria conversar sobre seu
trabalho, embora ele já tivesse quase esgotado o assunto em conversas com Jeri e
Yamamura.
— Bem, os centauros tentaculares parecem bastante prováveis. O senhor já
os conhece. Eles vivem em luz vermelha, e numa gravidade superior à metade da
gravidade da Terra. O sol tênue e a temperatura baixa talvez possibilitem a retenção
de hidrogênio em seu planeta natal, pois é exatamente isso que respiram, hidrogênio
e argônio. E o senhor já lhes conhece o aspecto: corpos do tipo rinoceronte, torsos
com cabeças recobertas por placas ósseas, e tentáculos cheios de dedos. Assim como
os gorilóides, são grandes demais para dirigirem esta nave com facilidade. Todos os
outros respiram oxigênio. Os que eu chamo de lagartos-suínos — aqueles compridos,
com muitas pernas, de cor azul-prateada, com mãos peculiares e rostos de aspecto
particularmente inteligente provêm de um mundo excêntrico. Deve ser grande. Na
jaula, estão a uma pressão de 3 G, que a esta altura dos acontecimentos, já não deve
ser mais um mar de rosas. Se estiverem acostumados a um peso muito menor, o
ajuste do fluido corporal poderá desordenar-se. Mesmo assim, o planeta de onde vêm
possui oxigênio e nitrogênio — e não hidrogênio - a uma pressão de doze atmosferas
terrestres. A temperatura é muito alta: cinqüenta graus. Creio que o mundo em que
vivem, embora de massa quase jupiteriana, esteja tão próximo ao sol que todo o
hidrogênio já se tenha evaporado, deixando, nitidamente, um campo de evolução
semelhante ao da Terra. O elefantóide vem de um planeta cuja gravidade é apenas
metade da nossa. É aquela figura enorme, com uma tromba que termina em dedos. O
ar que respira é muito rarefeito para nós, e isto revela que a gravidade, no cubículo
em que estão, também não foi adulterada.
Torrance sorveu um gole demorado e continuou:
— Quanto ao resto, todos vivem em condições bastante terrestróides; e, por
esse motivo, desejaria que fossem os mais prováveis. Na verdade, porém com exceção
dos gorilóides, são todos possibilidades remotas. Os bichos de capacete...
— Que bichos são esses? — interrompeu Van Rijn.
— Você se lembra deles — interveio Jeri. — São aquelas coisas, umas oito
ou nove, que parecem tartarugas corcundas, não muito maiores que sua cabeça.
Arrastam-se, de um lado para o outro; têm os pés cheios de garras. E os tentáculos,
que estão sempre acenando, terminam em filamentos, por onde comem os alimentos,
aquele caldo grosso que as máquinas jogam na canaleta. E embora não apresentem
nada que se pareça com mãos eficientes — os tentáculos seriam capazes de executar
apenas coisas muito simples — resolvemos dedicar um certo tempo a eles, pois
parecem possuir olhos bem desenvolvidos para ser simples parasitas.
— Parasitas não desenvolvem inteligência - observou Van Rijn. — Possuem
meios de vida mais eficazes, caramba. É melhor certificar-se se esses bichos de
capacete são, na verdade, parasitas, em seu ambiente de origem, e se não estão
escondendo as mãos debaixo daquelas carapaças, antes de cortá-los da lista. E os
outros?
— Há os macacos-tigres — respondeu Torrance. — Rajados como gatos, são
carnívoros, de compleição algo semelhante à de um urso. Passam quase o tempo todo
de quatro, mas, de vez em quando, levantam-se e caminham com as patas traseiras. E
possuem mãos — malconformadas, sem polegares, com garras retrácteis — em todos
os membros. Quatro mãos sem polegares valem tanto quanto duas mãos com
polegares? Não sei. Estou muito cansado para pensar.
— E é só isso, não?
Van Rijn ergueu a garrafa, levou-a aos lábios. Após demorado gargarejo,
pousou-a, arrotou, e, pelo nariz majestoso, expeliu fumaça.
— E se não conseguirmos nada com os gorilóides, quem será o próximo?
— É melhor que sejam os lagartos-suínos — respondeu Jeri — apesar da
pressão do ar. Depois... Bem... os centauros tentaculares, creio. E depois, talvez os. ..
— Tentativas! Tentativas! — O punho de Van Rijn golpeou a mesa;
balançaram os copos e a garrafa. — Quanto tempo vai demorar para agarrá-los e
verificar cada um deles? Horas, nie? E, nos entretempos, outras tantas horas para
ajustar o aparelho e eliminar todas as falhas surgidas nas novas condições.
Yamamura vai ter um colapso. Ele tem que ir dormir. E que outra pessoa vai fazer o
trabalho dele? Enquanto isso, esses bandidos fedorentos da Patrulha-Cobra estão se
aproximando! Nós não temos tempo para esse método! Se os gorilóides não
vingarem, a única coisa que nos vai ajudar será a lógica. Temos que deduzir, dos fatos
que temos, quem são os Eksers.
Torrance esvaziou o copo.
— Pois vá em frente. Eu vou dormir um pouco. Van Rijn ficou roxo.
— Está bem — bufou. — Seja como os outros. Folgue, se divirta, dance,
cante, aproveite o dia. Claro, voce sempre tem o coitado do velho Nicholas van Rijn
para acumular trabalho e ficar com toda a preocupação nas costas. Valha-me São
Dismas! Por que o senhor não faz ao menos uma pessoa, em todo esse Universo, que
faça alguma coisa útil.
... Torrance foi acordado por Yamamura. Os gorilóides não eram os Eksers.
Eram insensíveis à cor e incapazes de focar os instrumentos da nave. Os cérebros
eram pequenos, quase toda a massa era dedicada a funções meramente animais. E
sua inteligência não devia ser superior à de um cachorro.
♦♦♦
O Capitão permaneceu na ponte da nave, pois conhecia o lugar. Procurava
acostumar-se ao fato de ser um condenado.
O espaço estava maravilhoso. Jamais o vira assim antes. Embora Torrance
não estivesse familiarizado com as constelações locais, o olhar treinado identificou
Perseu, Auriga, Touro, sem muita distorção, pois estavam situadas na direção da
Terra. (E de Ramanujan, onde torres douradas emergem, por entre as brumas, para o
primeiro banho de sol, brilhando vivamente contra o azul do Monte Gandhi). Umas
poucas estrelas isoladas também podiam ser identificadas: a rubicunda Betelgeuse, a
ambarina Spica, estrelas-guia pelas quais navegara em toda a sua vida de trabalho.
No plano geral, o céu fervilhava de fagulhinhas congeladas, contra a escuridão sem
nuvens e sem fim. A Via-láctea era uma fria faixa prateada; além, uma nebulosa
brilhava, tênue e verde; e uma outra galáxia girava, em espiral, no limiar misterioso
da visibilidade. Nos planetas em que estivera, mesmo em seu próprio planeta,
pensava menos do que nesta viagem que agora fazia entre eles, e que estava prestes a
terminar. Pois ela terminaria, numa explosão de violência tão rápida que mal seria
sentida. Melhor sair disto limpo, quando chegassem os homens da Patrulha-Cobra,
do que agonizar em suas masmorras.
Torrance amassou o cigarro. Ao retornar, a mão acariciou as formas dos
controles, tão estimadas. Conhecia cada interruptor, cada botão, tão bem quanto os
próprios dedos. Esta nave era sua e, de certo modo, era ele próprio. Não era como a
outra, cujo painel de controle, insensível, necessitava de um gigante e de um anão,
cujo botão de emergência cairia com um simples toque caso não estivesse no gancho
apropriado, cujo...
Um passo leve fê-lo virar-se. De modo irracional, tão esgotado se sentia, o
coração disparou dentro do peito. Quando viu que era Jeri, relaxou os músculos, mas
a pulsação continuou rápida, no sangue.
Devagar, Jeri aproximou-se. A luz do teto, refletia naqueles cabelos louros e
no azul daqueles olhos. Mas Jeri evitou o olhar de Torrance, com os lábios não muito
firmes.
— O que a traz aqui?
O tom veio mais suave do que Torrance pretendera.
— Ora, o mesmo que você.
Jeri contemplou o visor. Durante todo o tempo, desde que haviam
capturado a nave alienígena, ou esta a eles, uma estrela vermelha, na direção da
curvatura da vigia, crescera visivelmente. E agora ardia, funesta, a um ano-luz de
distância, Jeri fez uma careta e voltou as costas para a estrela.
— Yamamura está reajustando o aparelho dos testes. — disse, numa voz
sumida. — Não há ninguém aqui que saiba o suficiente para ajudá-lo, e ele já está tão
exausto que não pára de tremer, e mal consegue fazer o trabalho. E o velho Nick fica
lá, sentado naquela suíte, fumando e bebendo. Até já acabou aquela garrafa, e
começou outra. Eu não conseguia mais respirar, de tanta fumaça. E ele não diz nada,
só fala para si mesmo, em malaio, ou qualquer coisa assim. Não pude suportar.
— Temos que esperar. Já fizemos tudo o que podíamos, até verificarmos o
lagarto-suíno. Teremos que fazê-lo com nossas roupas espaciais, na própria jaula
deles. Espero que não nos ataquem.
Jeri desabafou:
— Para que nos incomodarmos com isso? Eu conheço a situação tão bem
quanto você. Mesmo que os lagartos-suínos sejam os Eksers, vamos precisar de uns
dois dias para prová-lo, dadas as condições. E eu não acho que possamos dispor de
tanto tempo assim. Se demoramos dois dias para seguirmos para Valhala, aposto que
seremos detectados e interceptados antes de chegarmos lá. E, ainda, caso os lagartos-
suínos sejam meros animais, não teremos tempo para testar uma terceira espécie.
Então, por que nos incomodarmos?
— É a única coisa que temos a fazer.
— Não. Não é não. Não essa preocupação odiosa, fútil, que nos deixa como
ratos encurralados. Por que não admitimos que vamos mesmo morrer, e
aproveitamos o tempo para ... sermos humanos de novo?
Espantado, Torrance, que olhava o céu, virou-se para Jeri.
— O que você quer dizer com isso? Os cílios de Jeri tremeram e baixaram.
— Bem, isso vai depender do que cada um de nós prefira. Talvez, você...
bem, queira colocar os pensamentos em ordem, ou qualquer coisa assim.
O coração de Torrance palpitava.
— E você? O que prefere?
Jeri sorriu, desconsolada.
Eu não sou uma filósofa. Sou apenas uma pessoa meio superficial, e gosto
de viver a vida enquanto a tenho nas mãos... Jeri virou-se, ficando quase de costas
para Torrance.
— ... Mas não consigo encontrar alguém para vivê-la comigo.
Torrance, ou as mãos de Torrance, tocaram aqueles ombros nus, e viraram-
na, deixando-os frente à frente. Jeri sentiu-lhe as palmas sedosas das mãos. A voz de
Torrance veio, rouca:
— Não mesmo?
Jeri cerrou os olhos e inclinou o rosto, os lábios entreabertos. Torrance
beijou-a. Um segundo depois ela retribuiu. Nicholas van Rijn surgiu na soleira da
porta.
Ali permaneceu um instante, com o cachimbo na mão, a arma enfiada no
cinto. E logo esbravejou com o mordomo, mandou-o ir para a plataforma. Berrou:
— O que é isso?
— Oh ... — desculpou-se Jeri.
E desvencilhou-se. Torrance foi tomado por uma onda de raiva. Cerrou os
punhos e partiu na direção de Van Rijn.
— O que é isso? — insistiu o mercador.
As anteparas pareceram estremecer com o ribombo daquela voz.
— Seus piolhentos! Entro aqui, e o que vejo? O rabo de Satã preso numa
armadilha de ratos! Eu fico horas a fio a gastar o meu cérebro, os meus ossos, por
vocês, inúteis e, enquanto isso, seu bastardo, filho de uma cobra caspenta com um
bicho de queijo, enquanto isso você agarra minha própria secretária, contratada com
meu dinheiro suado. Pelas gárgulas e Gõtterdammeraung! Ajoelhe-se, e peça perdão,
ou vou esmagá-lo e vendê-lo como alimento para cães.
Torrance parou, a alguns centímetros de Van Rijn. Era ligeiramente mais
alto do que o mercador, embora menos corpulento, e pelo menos trinta anos mais
jovem.
— Saia! — falou, numa voz estrangulada.
O rosto de Van Rijn mudou de cor, de sua garganta saiu um ruído
engasgado.
— Saia! — repetiu Torrance. — Eu ainda sou o Capitão desta nave, e vou
fazer o que bem entender, sem interferência de qualquer parasita espalhafatoso. Saia
da ponte, antes que eu o bote daqui para fora!
Van Rijn perdeu a cor das bochechas. Por uns bons segundos, ficou imóvel.
Depois, por fim, sussurrou:
— Pelo Diabo! Pelo Diabo e pela Morte, ao cubo! Não é que ele tem a
petulância de responder!
O punho esquerdo de Van Rijn abriu o compasso e desferiu um soco.
Torrance bloqueou-o, embora a força fosse tanta que quase o desequilibrou. Torrance
devolveu a esquerda no estômago do mercador e, depois de afundar um pouco na
gordura, encontrou músculos, e recuou a mão machucada. A direita de Van Rijn
acertou-o. À volta de Torrance, o cosmo explodiu. Torrance subiu, caiu para trás; e
caído ficou.
Quando recuperou a consciência. Van Rijn lhe acariciava a cabeça e oferecia
brandy que uma lacrimosa Jeri fora buscar.
— Aqui, rapaz. Calminha, aí. Que tal um traguinho? Vai fazer bem. Tome,
você só perdeu um dente, e, vamos dar um jeito nele em Freia. Coloque na conta de
despesa. Isso já o deixa mais animado, nie? Agora, menina, Jarry, Jelly, como é
mesmo o seu nome? Me passe o estimulante. Acabaram-se os trabalhos no porão,
menino. E agora, levante-se, não quero que você perca o espetáculo.
Com uma das mãos, Van Rijn o pôs em pé. Por um instante, o Capitão
apoiou-se no mercador, até que o estimulante veio eliminar as dores e a tonteira.
Então, brusco, com os lábios inchados, perguntou:
— Eu ouvi o senhor falar que...
— É, eu já sei quem são os Eksers. Eu tinha ido procurá-lo, para irmos
apanhá-los na jaula.
Com o polegar grande, envergado, Van Rijn cutucou Torrance e, com a
leveza de um furacão, segredou:
— Não vá contar a ninguém . .. pois, do contrário, vou ter que brigar toda
hora.. . mas eu gosto de pessoas assim como você, com nervos de aço. Quando
chegarmos em casa, estou pensando em transferi-lo desta nave de passeio para
comandar uma frota mercante. Que tal? Mas venha, ainda temos muito trabalho.
Atordoado, Torrance o acompanhou. Atravessaram a pequena nave, o tubo,
e entraram na outra, passaram pelo corredor, pela rampa, e chegaram ao recinto do
zoológico. Van Rijn fez um gesto para os tripulantes, ali postados em guarda para
evitar que os Eksers tentassem escapar. Os guardas sacaram as armas e juntaram-se a
ele, com uma postura exausta, relaxada que se aprumou, alerta, quando Van Rijn
parou diante da câmara de ar.
Torrance quase explodiu:
— Não é possível! Esses aí? Caramba, eu... eu pensei que...
— Você pensou o que eles queriam que você pensasse — sentenciou Van
Rijn pomposamente. — O esquema era bom. E teria dado certo, mesmo com a
perseguição da Patrulha-Cobra, se não estivesse aqui Nicholas van Rijn. Bem, mas
vamos ao que interessa. Vamos entrar e apanhá-los; nossas armas servirão como
demonstração de força. Espero não ter que agir com muita severidade com eles.
Creio que não vai ser preciso, quando explicarmos a eles, por desenhos, que já
descobrimos o segredo. E eles vão nos levar a Valhala, guiados por aqueles lindos
diagramas astronáuticos feitos pelo Capitão Torrance. Ameaçados, irão cooperar.
Primeiro, como prisioneiros. Durante a viagem, porém, podemos nos utilizar dos
meios normais para estabelecermos comunicações alimentares... Não! Pelo terror dos
impostos! Alimentares não. Queria dizer, rudimentares... Bem, de qualquer modo,
vamos incutir-lhes a idéia de que nem todos os humanos são dessa perversa
Patrulha-Cobra, e que queremos ser amigos e vender-lhes, coisas. Está bem? Então
vamos.
Em passadas largas, Van Rijn atravessou a câmara de descompressãoo e
com a manopla agarrou um bicho de capacete e levou-o, debatendo-se, para fora da
jaula.
♦♦♦
Torrance teve que dedicar todo o tempo ao próprio trabalho. Primeiro, a
entrada que fizeram na nave aprisionada teria que ser fechada. Enquanto isso,
trariam da Hebe G.B. todos os suprimentos e equipamentos. Depois, teriam de soltar
a nave de passeio, com a própria hiper-propulsão. Algumas horas antes de queimar-
se o conversor, ela talvez atraísse uma Patrulha-Cobra, que iria em seu encalço. Aí,
então, a viagem começaria, e embora os Eksers tivessem traçado a rota indicada,
deveriam ser vigiados sem descanso para que não tentassem alguma façanha suicida.
Todo momento livre devia ser dedicado à tarefa urgente de conseguir estabelecer
com eles uma linguagem comum e simples. Seria dever de Torrance, também,
supervisionar a tripulação, acalmar-lhe os receios, observar o radar-detector de vasos
inimigos. Se alguma nave inimiga fosse detectada, os humanos teriam de se lançar
em hiper-propulsão e esperar poder despistar o inimigo. Isso ainda não acontecera,
mas a tensão era considerável.
De vez em quando, Torrance tirava um cochilo.
E assim não teve muita chance de conversar a fundo com Van Rijn. Para ele,
o mercador tivera apenas um palpite de sorte. Mas deixou ficar como estava.
Até despontar Valhala, um disco minúsculo amarelo, que brilhava mais que
as outras estrelas; uma nave-patrulha da Liga aproximou-se, e, depois das
explicações, escoltou-os no trajeto rumo a Freia, a uma velocidade subluz.
O capitão da nave-patrulha declarou que gostaria de subir a bordo.
Torrance o dissuadiu prontamente:
— Quando estivermos em órbita, Cidadão Agilik, terei muito prazer em
recebê-lo. Agora, porém, as coisas estão desorganizadas. O senhor compreende, é
claro.
E desligou o telecomunicador, que, a esta altura, já sabia operar.
— Bem, acho que vou descer e tomar um banho. Não tomo banho desde
que deixamos a Hebe G.B. Assuma, Cidadão Laferge...
Torrance hesitou.
— Junto com... Uh... o Cidadão Jukh-Barklakh — completou.
Jukh rosnou algo. O gorilóide estava muito ocupado para conversas,
escarrapachado no lugar que antes marcava o assento do piloto. As mãos grandes,
com força, apertavam placas de controle, ao conduzirem a nave numa rota
hiperbólica. Barklakh, o bicho de capacete, montado nas costas do gorilóide, não
possuía cordas vocais próprias; acenou um tentáculo e enfiou-o num orifício de
proteção, para girar uma delicada chave de ajuste. O outro tentáculo permaneceu
agarrado, no mesmo lado em que estava, no pescoço maciço do gorilóide, de onde
extraía alimento da corrente sangüínea, recebia impulsos sensoriais e emitia os
comandos motores nervosos, dignos de um piloto espacial qualificado.
No começo, á combinação parecera, a Torrance, meio vampiresca. Porém,
embora os ancestrais dos bichos de capacete devessem ter sido parasitas dos
ancestrais dos gorilóides, agora já não o eram mais. Eram simbiontes. Os bichos de
capacete forneciam os olhos e o intelecto, enquanto os gorilóides entravam com a
força e as mãos. Isoladas, as duas espécies não valiam nada. Combinadas, eram algo
muito especial. Assim que se acostumou à idéia, Torrance percebeu que o fato de um
bicho de capacete usar as garras para montar o gorilóide, não era mais desagradável
que o ato de um homem, num esteréopico histórico, montar um cavalo. E assim que
os bichos de capacete se acostumaram à idéia de nem todos os humanos eram
inimigos, evidenciaram uma afeição positiva por eles.
Eles, sem dúvida — refletiu Torrance — estão pensando que conseguiram
novos e excelentes espécimes para vender ao seu zoológico. Torrance deu um
tapinha na carapaça de Barklakh, acariciou o pêlo de Jukh, e deixou aponte.
O banho de esponja, regado a essências, e a roupa limpa apagaram-lhe as
marcas do cansaço. Pensou em ir alertar Van Rijn. Bateu na porta da cabine que o
mercador resolvera tomar como sua.
Um vozeirão de baixo ribombou:
— Entre.
Torrance entrou num cubículo azul de tanta fumaça. Van Rijn sentava-se
num caixote vazio de brandy. Numa das mãos,um charuto; na outra, a cabeça de Jeri,
que se lhe aninhava no colo.
— Bem, sente-se. Sente-se. Veja se encontra uma garrafa no meio da roupa
suja, ali no canto — trovejou Van Rijn, muito cordial.
— Eu passei para dizer-lhe, senhor, que teremos que receber a bordo o
capitão da nossa escolta, assim que entrarmos na órbita de Freia, o que acontecerá em
breve. Cortesia profissional, o senhor sabe. É natural que ele esteja ansioso para
conhecer os Ek ..., quer dizer, os Togru-Kon-Tanakh.
Van Rijn franziu o cenho.
— Muito bem, companheiro. Coloque o tubo. Deixe-o vir a bordo. Só peça a
ele que traga a própria garrafa, e que não fique muito tempo. Quero aterrissar, já não
agüento mais o espaço. Quando chegar em Freia, juro, vou correr descalço por todos
aqueles campos frescos e macios.
— Talvez o senhor queira trocar de roupa — insinuou Torrance. Jeri soltou
um gritinho agudo e correu para a cabine que, às vezes, ocupava. Van Rijn recostou-
se na parede, apanhou o sarão e cruzou as pernas cabeludas.
— O capitão quer conhecer os Eksers. Pois então que conheça os Eksers. Eu
vou ficar no meu conforto. E não vou entretê-los contando como foi que descobri
quem eram eles. Isso será exclusividade minha, para vender ao sindicato de notícias
que fizer a melhor oferta. Você compreende, não?
Van Rijn lançou-lhe um olhar desconcertantemente penetrante. Torrance
engoliu em seco.
— Compreendo, sim senhor.
— Agora sente-se, rapaz. Me ajude a colocar minha estória em ordem. Eu
não tive a sua boa educação. Sempre fui um velho pobre, e solitário, trabalhando
duro desde os doze anos de idade. Portanto, vou precisar de ajuda para que minhas
palavras sejam tão elegantes como minha lógica.
— Lógica? — Torrance ecoou, intrigado. Ergueu a garrafa, pois, afinal, a
nuvem de tabaco fazia-lhe arder os olhos. - Pensei que o senhor tivesse adivinhado...
— Adivinhado? Você me considera tão pouco assim? Não, não. Nada disso.
Nicholas van Rijn jamais adivinha. Eu sabia.
Van Rijn apanhou a garrafa, tomou um gole vigoroso e, magnânimo,
acrescentou:
— Quer dizer, depois que Yamamura descobriu que os gorilóides, sozinhos,
não poderiam ser o povo que queríamos. Então, me sentei, juntei os pensamentos e
resolvi analisar a coisa. Pois veja, tudo aconteceu por simples eliminação. O
elefantóide foi eliminado logo. Só havia um. Talvez, numa emergência, seria possível
a uma só pessoa pilotar esta nave. Mas não aterrissá-la, apanhar animais selvagens,
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O viajante das estrelas poul anderson

  • 1.
  • 3. POUL ANDERSON O Viajante das Estrelas Tradução de José Eduardo Ribeiro Moretzsohn LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.
  • 5. Recomeça a grande era do mundo... Assim como começou um dia, e recomeçará no futuro. As idas e vindas do homem têm suas estações. Não mais misteriosas que o ciclo anual do planeta, tampouco menos. Por navegarmos hoje por entre as estrelas, nos assemelhamos mais aos europeus invasores da América ou aos gregos colonizadores do litoral mediterrâneo que a nossos ancestrais de gerações recentes. Nós também somos descobridores, pioneiros, comerciantes, missionários, compositores do épico e da saga. Mais que seus pais, nosso povo é hoje mais afoito, mais ambicioso e individualista. No lado obscuro, a cobiça, a insensibilidade, a negligência para com o futuro, a violência, e até mesmo o banditismo desenfreado, retornaram. É essa a natureza das sociedades contidas por fronteiras. Mas não há duas primaveras idênticas. A civilização técnica não é clássica nem ocidental, e à medida que se dissemina, cada vez mais diluída, por estirões de espaço cada vez mais inimagináveis, seus postos avançados, seu âmago, apreendem, para o bem ou para o mal, aquilo que os seres não-humanos têm a ensinar: que ela muda de maneiras imprevisíveis. Vivemos, hoje, num mundo impossível de ser compreendido por qualquer homem restrito aos limites da Terra. É possível, por exemplo, que esse homem estabeleça uma analogia entre a Liga para a Ciência do Sol Polar e as guildas de mercadores da Europa medieval. Descobrirá, entretanto, na primeira, num exame mais detido, algo novo, herdado, de fato, de conceitos do passado terrestre, embora com mutação e miscigenação em seus vasos sangüíneos. Impossível predizer o que dela advirá. Não sabemos para onde vamos. E nem nos preocupamos com isso, em nossa grande maioria. Basta, para nós, que estejamos em nosso próprio caminho. Le Matelot
  • 6. Esconderijo O Capitão Bahadur Torrance recebeu a notícia como convém a um Comandante da Irmandade Federada dos Espaçonautas. Ouviu-a até o fim, e interrompeu apenas com uma ou outra pergunta inteligente. Ao final, estava calmo. — Bom trabalho, Cidadão Yamamura. Por favor mantenha isso em segredo até notificação posterior. Tenho que pensar para ver o que fazer. Prossiga. Quando, porém, o oficial engenheiro deixou a cabine — a notícia não era do tipo das que se podem transmitir pelo intercomunicador —, serviu-se de um uísque triplo, sentou-se e, distante, contemplou o visor. Já viajara distâncias, vira muito, e fora bem recompensado. E embora, nesse tipo de trabalho tão difícil, conquistasse rápida promoção, sentia-se ainda muito jovem e, portanto, não deixou de congelar ao ouvir sua sentença de morte. O visor exibia tamanha multidão de estrelas, de um brilho duro e invernoso, que só um astronauta seria capaz de identificar as unidades isoladas. Torrance procurou além da Via-láctea, até detectar a Estrela Polar. E ali estava Valhala, a uns tantos graus de distância na outra direção. Não que ele conseguisse, a essa distância, ver um sol do tipo G sem instrumentos óticos mais fortes que os existentes na Hebe G.B. Apenas sentia-se reconfortado em saber que seus olhos estavam apontados para a base mais próxima da Liga (casas, naves, humanos, aninhados num vale verde de Freia), nesse setor, ainda pouco mapeado, de nosso braço galático. E principalmente agora, quando se esvaiu, para nunca mais, a esperança de ali aterrissar novamente. Em volta, a nave zunia, pulsava e se contraía, no espaço quadrático, a uma velocidade limite que, embora deixasse a luz bem para trás, era ainda muito lenta para salvá-lo. Bem... Outra vez o capitão, tinha que pensar antes dos outros. Torrance suspirou, levantou-se. Gastou alguns instantes para verificar a aparência; agora, mais
  • 7. do que nunca, o moral era importante. Ao guarda-pó habitual, cinza, da tripulação, ele preferia o uniforme completo: túnica azul, pelerine e culotes brancos, galão dourado. E como cidadão do planeta Ramanujan, usava, na cabeça morena, aquilina, um turbante com o broche “Nave e Sol Irradiante”, da Liga para a Ciência do Sol Polar. Por um corredor, foi à suíte do proprietário. O comissário de bordo acabara de sair, uma bandeja nas mãos. Torrance fez sinal para que a porta permanecesse aberta, bateu os calcanhares, curvou-se. — Peço desculpas pela interrupção, senhor. Posso conversar em particular com o senhor? É urgente. Nicholas van Rijn ergueu o garrafão de dois litros que acabara de chegar- lhe às mãos. Por baixo do cavanhaque teso, palpitaram os diversos queixos; o ruído do sorvo encheu o aposento, desde a escrivaninha com papéis espalhados até a tapeçaria, de Huy Braseal, incrustada de jóias, colocada na antepara do lado oposto. Algo semelhante a Mozart cantava, cadenciado, melodioso, num toca-fitas. Loura, de olhos grandes, inteiramente tridimensional, Jeri Kofoed coleava no canapé, ao alcance daquele homem escarrapachado no divã. Casado, mas ausente de casa já há algum tempo, Torrance forçou o olhar de volta para o mercador. — Ahhh! Van Rijn bateu a caneca de cerveja na mesa e enxugou a espuma do bigode. — Pela sífilis! Pela peste bubônica! Como é boa a primeira cerveja da manhã! Tem um quê de gelado, de... Caramba! Qual é mesmo a palavra? O punho cabeludo golpeou a testa inclinada. — A cada semana que passa eu fico mais desmemoriado! Ah, Torrance, no dia em que você for um sujeito gordo, solitário, carente de todas as suas forças, vai olhar para trás, vai se lembrar de mim e desejar ter agido melhor comigo. Tarde demais, então. Van Rijn suspirou — como um tufão ligeiro — e coçou os cabelos do peito. Àquela temperatura quase tropical, em que fazia questão de manter o escritório,
  • 8. precisou apenas enrolar um sarão no corpanzil. — Qual é a bobagem agora, que vai me afastar do meu trabalho, que já é muito, e que eu vou ter que resolver para você, hein? O tom era jovial. Van Rijn, de fato, estivera de bom humor desde que conseguiram escapar da Patrulha-Cobra (Quem não estaria? Para uma simples nave de passeio, mesmo armada com equipamento ultrapoderoso, escapar de três cruzadores era muito mais que uma façanha, era quase um milagre. Van Rijn ainda mantinha, em gratidão, quatro velas acesas diante da estatueta de São Dismas, feita de raízes arenosas marcianas). É bem verdade que, algumas vezes, ele costumava jogar pratos no comissário de bordo, quando a bebida demorava um pouco mais que o desejado, e despedir todos a bordo ao menos uma vez ao dia. Mas isso era normal. Jeri Kofoed arqueou as sobrancelhas, murmurou: — É mesmo a primeira cerveja, Nicky? Na verdade, duas horas atrás... — Claro! Mas isso foi antes da meia-noite. Mesmo que não tenha sido à meia-noite de Greenwich, com certeza foi a de qualquer outro planeta, nie? Portanto, hoje é um novo dia. Na mesa, Van Rijn apanhou o cachimbo comprido, de argila e começou a enchê-lo. — Bem, sente-se, Capitão Torrance, fique à vontade, e me empreste o isqueiro. Filho, você está com o aspecto de creme dinamitado. Os seus rapazes não têm estamina. Quando eu trabalhava como espaçonauta, por Judas, nós tínhamos que resolver nossos próprios problemas. Hoje em dia, juro pela morte e pelo diabo, vocês vêm me perguntar até mesmo como é que vão limpar o nariz! Eu sou o único aqui com coragem. Van Rijn bateu na barriga de barril. — E então, o que há de errado com o fuzuê agora? Timothy umedeceu os lábios. — Eu preferia conversar a sós, senhor. E viu a cor sumir do rosto de Jeri. Ela não era covarde. Os planetas fronteiriços, mesmo os agradáveis, como Freia, não costumavam produzir esse tipo
  • 9. de gente. Ela viera nessa viagem, que sabia arriscada, pois uma chance assim — envolver-se com o príncipe mercador da Companhia Solar de Condimentos & Bebidas, uma das maiores forças em toda a Liga para a Ciência do Sol Polar — era boa demais para ser recusada por uma garota oportunista. Durante a luta, e a fuga subseqüente, soubera manter a calma, embora tivesse sentido a morte de perto. Ainda estavam, porém, muito distantes de seu planeta, entre estrelas desconhecidas, com o inimigo a persegui-los. — Vá para o quarto. Van Rijn ordenou. Jeri murmurou: — Eu gostaria de ouvir a verdade. Os olhos negros, pequenos, dispostos junto ao nariz adunco de Van Rijn, fuzilaram. Ele berrou: — Dormideirazinha petulante! Quando eu disser para pular fora, você tem que pular fora. De um salto, Jeri ficou de pé, revoltada. Sem se levantar, Van Rijn deu-lhe um tapinha no local adequado, que ressoou como o disparo de uma pistola. Em seco, chocada, Jeri inspirou um ganido de indignação e irrompeu para o interior da suíte. Van Rijn apertou a campainha, para chamar o comissário de bordo, e disse a Torrance: — Isso exige mais cerveja. Bem, não fique aí parado com esses olhos de louco. Não tenho tempo a perder com constrangimentos, ao contrário de um lerdo como você, que ganha muito mais do que merece. Tenho que rever a programação dos preços da pimenta e da noz-moscada para Freia, antes de chegarmos. Por Satã! Pelos fedorentos! Aquele fabricante idiota poderia ter cobrado uns dez por cento a mais, em vez de reduzir o volume de vendas. Eu juro! Que meus bons santos me escutem, e ajudem este pobre homem atrelado a trabalhadores que mais parecem caixeiros com papa de aveia na cabeça! Com esforço, Torrance subjugou a irritação. — Muito bem, senhor. Acabo de receber um relatório de Yamamura. O
  • 10. senhor sabe que recebemos um tiro de raspão durante a luta, e que nos acertou na casa das máquinas. O conversor não parece avariado, embora, depois que o buraco foi remendado, a turma ainda esteja averiguando para ter certeza. E acontece que metade dos circuitos do gerador da couraça de proteção derreteu, e podemos repor apenas parte dele. Se continuarmos à velocidade-limite, em cinqüenta horas todo o conversor se fundirá. — Ah, então é isso? Van Rijn ficou sério. O isqueiro tocou o cachimbo, e o estalido surpreendeu, de tão alto. — Não podemos parar e fazer os reparos? Se desligarmos a hiper- propulsão, ficaremos tão pequenos que os fedorentos da patrulha não poderão nos encontrar. E então? — Não podemos, não senhor. Como eu disse, não temos peças de reposição suficientes. Isto é uma nave de passeio, não uma nave de guerra. — Está bem. Então vamos continuar com a hiperpropulsão. A que velocidade temos que baixar para conseguirmos chegar a uma distância em que possamos nos comunicar com Freia antes que nossas máquinas derretam? — A um décimo da velocidade-limite. Levaríamos uns seis meses. — Não, meu caro capitão, não levaríamos tanto tempo assim. A Patrulha nos encontraria antes disso. — É, creio que sim. E, de qualquer modo, não temos suprimentos para seis meses a bordo. Torrance olhou o painel. — O que me ocorre agora é que, bem ... talvez possamos chegar a uma estrela próxima. Há uma remota possibilidade de existir algum planeta com civilização industrial, cujo povo possa aprender a fazer os circuitos de que precisamos. No mínimo, um planeta habitável, quem sabe? — Nie!
  • 11. Van Rijn balançou a cabeça. Sobre os ombros, giraram os cachos de cabelo negro e oleoso. — Homens como nós, e uma mulher, irem viver numa rocha imunda, sem videiras? Prefiro descer numa cápsula da Patrulha, como um cavalheiro, claro! O comissário chegou. — Andou cochilando por aí, não foi? Minha cerveja! Que as pragas de Deus caiam sobre você! Preciso dela para pensar. Como é que você quer que eu pense com a boca assim, um deserto em pleno verão? Torrance foi cuidadoso na escolha das palavras. Teria de lembrar a Van Rijn que, no espaço, a última palavra sempre cabia ao capitão; sem antagonizá-lo, pois o velho diabo tinha a fama de debater-se entre alternativas de um dilema. — Eu aceito sugestões, senhor, mas não posso assumir a responsabilidade de atrair ataque inimigo. Van Rijn levantou-se e, pesado, arrastou-se pela cabine, fumegando obscenidades e nuvens vulcânicas. Ao passar pela prateleira de São Dismas, com os dedos, de maneira marcante, apagou as velas, e algo pareceu despertar nele. Virou- se. - Ah! Civilizações industriais, ja, quem sabe? Não é só a Patrulha pestilenta que navega nessa região do espaço! Talvez entremos no raio de detecção de alguma nave em boas condições, nie? Mande Yamamura aumentar a sensibilidade de nosso detector até conseguirmos ouvir baterem as asas dos borrachudos no meu escritório em Jacarta, na Terra. Aqueles faxineiros são uns preguiçosos! Depois tomamos essa rota em frente e vamos navegá-la num plano de vôo de sondagem, em velocidade reduzida. — E se encontrarmos uma nave? Talvez ela seja do inimigo, o senhor sabe. — Vamos correr o risco. — De todo jeito, senhor, vamos perder tempo. A perseguição nos alcançará enquanto procuramos uma hélice de sonda. Principalmente se tivermos de perder muitos dias para persuadir uma tripulação de não-humanos, que nunca ouviu falar
  • 12. da raça humana, de que temos que ser levados imediatamente, e mais rápido ainda, para Valhala. — Quando entrarmos, queimamos a ponte. Você tem algum esquema mais promissor? — Bem... Sombrio, Torrance ponderou por um momento. O comissário entrou com um novo garrafão. Van Rijn esticou-se, apanhou-o. — ... Talvez o senhor tenha tazão. Eu vou ... Van Rijn exultou: — Ah, virginal! Era essa a palavra que eu estava procurando! Para a primeira cerveja do dia, seu imbecil! ♦♦♦ A porta da cabine soou. Torrance resmungou. Esperava dormir ao menos um pouco, depois de tantas horas, mais do que conseguiu enumerar, na cabine de comando. Mas quando a nave rondava na escuridão em busca de outra que podia, ou não, existir, e os perseguidores se aproximaram... — Entre. Jeri Kofoed entrou. Embasbacado, Torrance levantou-se, de um salto, e curvou em reverência. — Cidadã! Que ... surpresa! Posso ajudá-la em alguma coisa? — Sim, por favor. Ela pousou a mão sobre a dele. Jeri usava uma toga de corte espalhafatoso, sem pudores, pois fora o único tipo que Van Rijn encontrara para oferecer a ela. Mas o olhar que ela agora lançava a Torrance não tinha qualquer relação com isso. — Tive que vir, Comandante. Se o senhor for um homem piedoso, vai me escutar.
  • 13. Torrance acenou para que ela se sentasse na poltrona, ofereceu cigarros, e acendeu um. A fumaça, inalada até o fundo dos pulmões, acalmou-o um pouco. Sentou-se do outro lado da mesa. — Se eu puder ajudá-la, Cidadã Kofoed, sabe que terei prazer em fazê-lo. E ... e o Cidadão Van Rijn ... — Está dormindo. Não que ele tenha qualquer direito sobre mim, eu não assinei contrato algum, nem nada parecido. A irritação deu lugar a um sorriso irônico. — Bem, admito que sejamos inferiores a ele, de fato e em status. Eu não estou propriamente transgredindo os desejos dele. É só que ele não quer responder às minhas perguntas, e se eu não descobrir o que de fato está acontecendo, vou ter que começar a gritar. Torrance ponderou alguns fatores. Uma explicação particular, mais detalhada que a exigida para a tripulação, seria, de fato, a melhor solução para ela. — Como quiser, Cidadã. Torrance relatou o que acontecera ao conversor, e concluiu: — E não temos condições de consertá-lo nós mesmos. Se continuássemos viajando à velocidade-limite máxima, iríamos derretê-lo antes de chegarmos; e então, sem energia, logo morreríamos. E se prosseguirmos a uma velocidade lenta, de modo a preservá-lo, levaríamos meio ano para chegar a Valhala, tempo superior à duração de nossas provisões. E, além disso, sem dúvida alguma, a Patrulha-Cobra nos encontraria em uma ou duas semanas. Jeri estremeceu. —Por quê? Não compreendo. Fitou, por um momento, a ponta do cigarro, até retomar um certo grau de serenidade, e um certo toque de humor. — Eu bem que poderia passar por uma garota fácil, sofisticada, em Freia, Capitão. Mas, melhor do que eu, o senhor sabe que Freia é um planeta primitivo, no
  • 14. último contorno da civilização humana. Mal temos tráfego espacial, a não ser a nave mercante da Liga. E, mesmo assim, ela não passa muito tempo no espaçoporto. Quanto à tecnologia militar ou política, desconheço inteiramente. Essa, para mim, não passava de uma missão de reconhecimento. Ninguém me disse nada, e perguntar não me passou pela cabeça. Por que a Patrulha-Cobra está tão ávida para nos pegar? Antes de estruturar a resposta, Torrance considerou o quadro geral. Como espaçonauta da Liga, deve fazer um esforço antes de julgar a insignificância do inimigo com relação aos colonos que pouco se afastam de seu mundo natal. O nome “Patrulha-Cobra” era originário de Freia, um termo de depreciação designativo dos marginais expulsos do planeta há um século. Desde essa época, entretanto, os freianos jamais tiveram com eles um novo contato. Em algum lugar das profundezas inexploradas, para lá de Valhala, os fugitivos se estabeleceram num planeta desconhecido. As gerações passaram, e eles cresceram em quantidade, e também suas naves de guerra. Mas Freia ainda era muito forte para ser invadida por eles, e não possuía empreendimentos extraplanetarios para ser saqueados. Freia não tinha com que se preocupar. Torrance optou pela explicação sistemática, mesmo que tivesse que repetir o óbvio. — Bem, os homens da Patrulha-Cobra não são estúpidos. De algum modo, procuram manter-se a par dos acontecimentos; sabem que a Liga para a Ciência do Sol Polar deseja expandir suas operações naquela região e não querem que isso aconteça. Para eles, isso significaria o fim dos ataques aos Planetas hoje impossibilitados de se defender, o fim do arrocho tributário e do comércio realizado a preços extorsivos. Não que os membros da Liga sejam santos, pois não toleramos santos, mas apenas porque a pirataria interfere nos lucros de nossas companhias- membros. E a Patrulha-Cobra, portanto, lançou-se, não a uma guerra declarada contra nós, mas a hostilidade contra nossos postos avançados para que os considerássemos “mau negócio” e desistíssemos deles. A Patrulha conta com a vantagem de conhecer o setor do espaço em que atuam, e nós não fazemos a mínima idéia do nosso. E, na verdade, chegamos ao ponto de apagar essa região do mapa e ir tentar em outro lugar. O Cidadão Van Rijn quis fazer uma última tentativa, mas a
  • 15. oposição foi tão grande que ele próprio teve que vir para liderar a expedição. E você deve saber como ele agiu. Usou a arte profana do suborno e do blefe para extrair até a última gota de informação dos prisioneiros que fizemos, e para juntar fatos estranhos. Conseguiu uma pista de um segmento inexplorado, e voamos para lá. Seguindo uma trilha de neutrinos, fomos parar num planeta colonizado por humanos, planeta que é, com certeza quase absoluta, como você deve saber, o mundo natal dos próprios flibusteiros. Se voltarmos com a informação, não teremos mais problemas com a Patrulha. Não depois que a Liga enviar para lá algumas naves de guerra do tipo Astéria e ameaçar bombardear o planeta. E eles sabem disso. Então, fomos detectados e atacados por muitas naves de guerra, e tivemos sorte em conseguir escapar. As naves da Patrulha são obsoletas e, até o momento, só temos fugido, mantendo uma boa distância deles. Mas não creio que tenham desistido de nos perseguir. E vão enviar toda a armada de cruzadores em nossa busca. As vibrações da hiperpropulsão se transmitem instantaneamente e podem ser detectadas a uma distância de cerca de um ano-luz. Portanto, se alguma patrulha identificar nossa “esteira”, e entrar nela — e nós, acidentados — será o fim. Jeri puxou uma tragada forte no cigarro; mas permanecia calma. — E seus planos, quais são? — Um contramovimento. Em vez de tentar chegar a Freia .. . bem, quer dizer... vamos prosseguir em hélice-sonda a uma velocidade média, forçando nossos próprios detectores. Se descobrirmos outra nave, usaremos o último suspiro de nosso motor para abordá-la. Se for um vaso-patrulha, bem, talvez possamos apreendê-lo, ou qualquer coisa assim. Nós temos um par de armas leves em nossa torre de tiro. Mas pode ser, também, que seja uma nave não-humana. Os relatórios de nossa espionagem, os interrogatórios de prisioneiros, a avaliação das observações dos exploradores, e tudo o mais, revelam que três ou quatro espécies diferentes desta região possuem hiperpropulsão. Os próprios homens da Patrulha-Cobra não as conhecem todas. Esse espaço é grande demais! — E se for mesmo não-humana? — Então faremos o que parece mais indicado. — Entendo...
  • 16. Esperta, Jeri acenou com a cabeça. Sentou-se por um momento, sem falar, e depois fascinou-o com um sorriso. — Obrigado Capitão. O senhor não sabe o quanto me aiudou. Torrance reprimiu um sorriso bobo. — Foi um prazer, Cidadã. — Eu vou para a Terra com o senhor. O senhor sabia disso? O Cidadão Van Rijn prometeu me arrumar um bom emprego lá. Como sempre promete, Torrance pensou. Jeri inclinou-se, aproximou. — Espero que tenhamos oportunidade de nos conhecermos melhor, Capitão, durante a viagem rumo à Terra. Ou, quem sabe, agora mesmo? Naquele exato momento, soou a campainha de alarme. ♦♦♦ A Hebe G.B. era uma nave de passeio, não uma fragata de piratas do espaço. Entretanto, com Nicholas van Rijn a bordo, a diferença, algumas vezes, parecia algo confusa. Assim, possuía mais esporas que as demais naves, detectores de sensibilidade incomum, e uma tripulação tarimbada em tática de inspeção. A nave conseguiu detectar a hiperemissão da outra nave antes que as próprias vibrações fossem observadas. E ao seguir o objeto ainda não visível, conseguiu identificar seu plano de curso e, portanto, despejar toda sorte de material viscoso para interceptá-la. Se o estranho tivesse mantido a velocidade-limite, haveria contato em três ou quatro horas. Em vez disso, porém, a esteira indicava uma mudança de rumo, uma tentativa de fuga. A Hebe G.B também mudou de rota, e continuou ganhando terreno em relação à presa, de menor porte. — Estão com medo de nós — concluiu Torrance — E não estão voltando
  • 17. para o sol da Patrulha-Cobra, dois fatos que indicam que eles mesmos não são de lá, mas têm motivos para temer estranhos. Soturno, Torrance confirmou com a cabeça, pois, durante as investigações preliminares, inspecionara alguns planetas visitados pelos piratas. Ao perceber que o perseguidor encurtava a distância, o perseguido desligou a hiperpropulsão. E reverteu à velocidade abaixo da luz, essencial; o conversor fechou-se até atingir a emissão mínima. E a nave converteu-se num ponto infinitesimal no espaço efetivamente infinito. A manobra costuma funcionar, pois, depois de procurar em vão por alguns momentos, o inimigo desiste e se retira. Mas a Hebe G.B. estava preparada. O conhecido vetor superluz, em conjunto com o instante do desligamento, forneceram aos computadores uma idéia aproximada da localização da presa. E prosseguiu naquele volume de espaço e, em seguida, deslocou-se de um lado para outro num plano de sondagem bem concebido, revertendo ao estado normal, em intervalos, para colher amostras da névoa de neutrino, emitida por qualquer motor nuclear. Os verdadeiros motores nucleares conhecidos pelo nome de estrelas são os que a emitem em maior quantidade; mas, através da análise estatística, os computadores agora isolavam uma fonte próxima, débil. A nave de passeio dirigiu-se para lá ... Baça, contra o céu bruxuleante, a outra nave surgiu nas telas. O tamanho, muitas vezes maior. Um cilindro de ogiva arredondada, rombuda, e cones de propulsão maciços, com inúmeros encaixes para embarcações auxiliares, e uma única torre de tiro. Ditam os princípios da física que a conformação das naves feitas para uma mesma finalidade deve ser, grosso modo, a mesma. Qualquer espaçonauta, porém, perceberia que aquela nave, ali adiante, não fora construída por membros da civilização da Liga. Veio, então, o disparo. Mesmo com o desligamento automático do visor, Torrance ficou enceguecido por um momento. Os instrumentos disseram-lhe que o estranho havia disparado uma cápsula de fusão, interceptada por um míssil disparado pelos atiradores-robôs de Torrance. O ataque fora muito lento, muito débil. Aquela nave não era, de modo algum, um vaso de guerra; e não era rival para a Hebe G.B., como esta não o era para o cruzador da Patrulha-Cobra que a perseguia.
  • 18. — Muito bem — disse Van Rijn —, agora que já nos desvencilha-mos dessa bobagenzinha, podemos falar de negócios. Coloque-os no telecomunicador e estabeleça uma linguagem comum. Rápido! Depois explique que não queremos prejudicá-los, queremos apenas uma carona para Valhala. Hesitou, num titubeio nítido, e acrescentou: — Pagamos bem. Torrance ponderou: — Talvez encontremos dificuldades, senhor. Embora eles possam identificar nossa nave como de construção humana, é possível que os únicos humanos que já tenham encontrado sejam os da Patrulha-Cobra. — Bem, se for necessário, podemos abordá-los e forçá-los a nos transportar, nie? Mas ande depressa, pelo diabo! Se ficarmos muito tempo parados, como dorminhocos vadios, vamos ser apanhados. Torrance estava prestes a deixar bem claro que a nave estava em segurança quase absoluta. E que a Patrulha-Cobra estava muito atrás da nave da Terra, bem mais veloz, e nem poderia imaginar que a hiperpropulsão estivesse desligada. Que, quando começassem a desconfiar, não haveria probabilidade mensurável de encontrá-la. Mas lembrou-se de que o caso não era tão simples assim. Se a parlamentação com os estranhos demorasse mais que o esperado — mais que uma semana, na melhor das hipóteses — os esquadrões da Patrulha-Cobra poderiam penetrar nessa região genérica e até mesmo ultrapassá-la. E, por meses, poderiam ficar na espreita, o que os humanos não poderiam fazer por falta de alimentos. Quando a hiperpropulsão fosse ligada, eles a detectariam e, com facilidade, alcançariam esse tão estranho mercador. A única esperança seria conseguir, rapidamente, uma carona para Valhala, utilizando a dianteira já obtida para compensar a desvantagem da velocidade reduzida. — Estamos tentando todas as faixas, senhor. Até agora, nenhuma resposta. Preocupado, Torrance franziu o cenho. — Eu não compreendo. Eles devem saber que os congelamos, e devem ter
  • 19. recebido nossos chamados e percebido que queremos conversar. Por que, então, não respondem? Não custa nada. — Talvez tenham abandonado a nave — sugeriu o oficial de comunicações. —Talvez tenham salva-vidas movidos a hiperpropulsão. — Não ... Torrance sacudiu a cabeça. — ... Teríamos detectado ... Continue tentando, Cidadão Be-tancourt. Se não conseguirmos resposta em uma hora, vamos encostar e abordar. As telas receptoras permaneceram vazias. Ao final, porém, do período estipulado, no momento em que Torrance determinava ação espacial belicosa, Yamamura relatou novidades. Aumentara a emanação de neutrino numa fonte próxima à popa do estranho. Algum processo envolvendo pequenas quantidades de energia encontrava-se em evolução. Torrance vestiu o capacete, prendeu-o. — Vamos dar uma olhada. A postos, deixou uma tripulação mínima — o próprio Van Rijn, sob veementes protestos, assumiu a ponte de comando — e conduziu a comitiva de abordagem à câmara de ar. Suave, como o deslizar de um tubarão (o velho suíno, afinal, era um espaçonauta fíta-azul, o Capitão constatou algo surpreso), a Hebe G. B. entrou numa trilha de tração e projetou-se até a nave maior. Mas a nave maior desapareceu. A retirada fez sacudir a nave de passeio. Van Rijn rosnou: — Por Belzebu! Pelo botulismo! Entrou em hiper de novo, hein? Já damos um jeito nisso! Solicitado, o conversor ulcerado esganiçou, mas a força chegou aos motores. Num sopro e meio, a nave terrestre dominou a forasteira. E tamanha naturalidade de Van Rijn ao executar a transformação de fases fez Torrance esquecer- se de que a operação era considerada difícil até mesmo por pilotos-mestres. Van Rijn esquivou-se de um jato de compressão frenético e engatou a nave ao casco maior
  • 20. emanando faixas indestrutíveis de força. Mais uma vez, desligou a hiperpropulsão, pois o conversor não conseguiria suportar muito mais. A Hebe G.B. deixou-se arrastar pelo campo de força do estranho, cuja velocidade-limite foi consideravelmente reduzida com o “rebocar” daquela massa extra. Se Van Rijn esperava que a nave aprisionada desistisse e revertesse ao estado normal, ficou desapontado. Mais velozes que a luz, as duas fuselagens, unidas, continuaram mergulhando rumo a uma constelação sem nome. Torrance engoliu uma promessa, convocou seus homens e saiu. Jamais tentara forçar a entrada numa nave hostil. Presumiu, porém, que não deveria ser muito diferente do que abrir caminho a fogo numa nave abandonada. Depois de escolher o local, Torrance inflou um balão para conservar ar; não havia porquê dizimar a tripulação do inimigo. As tochas de seus homens vomitavam labaredas; as azuis fagulhas actínicas eram expelidas para trás, em chafariz, e dançavam na gravidade zero. Entrementes, o resto da equipe aguardava com desintegradores e granadas. Lá fora, os contornos das duas fuselagens pareciam sumir no infinito. Sem os visores eletrônicos de compensação, o céu distorcia-se, fantástico, pela aberração e pelo efeito Doppler, como se os homens já estivessem mortos, como se se debatessem na outra existência, rumo ao Juízo Final. Com firmeza, Torrance concentrou a mente em preocupações práticas. Assim que entrasse, e aprisionasse os não-humanos, como iria comunicar-se com eles? Principalmente se, primeiro, tivesse que abater uns tantos? A carcaça exterior foi desmontada. Torrance, fascinado, estudou a estrutura interna das placas. Jamais vira algo assim antes. Esta raça, com certeza, desenvolvera sua espaçonáutica de maneira bem independente com relação à espécie humana. Embora a engenharia obedecesse às mesmas leis naturais, no detalhe, entretanto, era radicalmente diferente. Que substância seria aquela, dura,cortiçosa, que revestia a cápsula interna? E os circuitos, estariam embutidos nela? Torrance não os via em lugar algum. A última defesa cedeu. Torrance engoliu em seco, e apontou um facho de luz pelo interior adentro. A escuridão e o vácuo vieram encontrá-lo. Ao penetrar no
  • 21. casco, flutuou, despojado de peso; a gravidade artificial fora desligada. Nalgum lugar, a tripulação se escondia. E ... E... Em uma hora Torrance retornou à nave de passeio. Subiu à ponte e encontrou Van Rijn sentado ao lado de Jeri. A jovem começou a falar, olhou detidamente a fisionomia do Capitão, e trincou os dentes. O mercador, mal- humorado, indagou: — E então? Torrance pigarreou. A voz saiu, desconhecida, distante. — Acho melhor o senhor vir dar uma olhada. — Você descobriu em que raio de inferno se escondeu a tripulação? Como são eles? E de que tipo é a nave que aprisionamos, hein? Torrance preferiu, em primeiro lugar, responder à última pergunta. — Parece uma nave de carga interestelar, coletora de animais. O compartimento principal é cheio de jaulas — ou melhor, compartimentos de controle ambiente — com uma variedade infernal de criaturas, a maior que já vi depois do Zoológico de Luna City. — Isso não significa coisa alguma para mim. Eu quero o coletor em pessoa, e seus amiguinhos caçadores! Torrance engoliu em seco. — Bem, senhor. A esta altura podemos afirmar que estão se escondendo de nós. Entre os próprios animais. Um tubo foi estendido entre a câmara de descompressão principal da nave de passeio e o corte de entrada na outra. Por ali, o ar era bombeado, e a fiação elétrica foi passada para iluminar a presa. Utilizando-se de um truque extravagante no gerador gravítico da Hebe G.B., Yamamura forneceu à nave desconhecida cerca de um quarto do peso-Terra; como, entretanto, não conseguisse mantê-la em rumo uniforme, as plataformas estavam sujeitas a inclinações violentas e súbitas.
  • 22. Mesmo em tais condições, Van Rijn caminhava, pesado. Com um salame numa das mãos e uma cebola crua na outra, lançava um olhar feroz à ponte capturada. Só podia ser isso mesmo, embora à altura do pescoço, e não da cintura. Os visores ainda funcionavam; pequenos, desconfortáveis para o olho humano, revelavam, entretanto, o mesmo desenho dos astros com, é claro, o mesmo tipo de compensadores óticos. Um console de controle descrevia um semicírculo ao longo da parede frontal, grande demais para ser operada por um único homem. Mas o projetista, presumivelmente, concebera-a para um só piloto, pois um único assento fora colocado no meio do arco. Fora colocado. Uma estaca metálica, curta, erigia-se no convés. Estruturas similares eram vistas em outros pontos, e cavilhas indicavam os locais onde se fixavam as poltronas. Os assentos, porém, haviam sido retirados. Torrance arriscou: — O piloto senta-se ao centro, suponho; isto quando não estão navegando simplesmente no automático. O navegador e o oficial de comunicações... aqui e ali? Não posso afirmar. De qualquer modo, é provável que não usem co-piloto, mas aquela estaca na popa parece sugerir a cadeira de um oficial extra, de reserva, pronto, para assumir. Van Rijn ruminava a cebola, puxava os fios do cavanhaque. — Grande que nem a peste, este painel. Parece uma raça desgraçada de polvos! Olha como é complicado! E acenou o salame ao longo do meio-círculo. O console, feito, ao que parecia, de algum polímero fluorocarbônico, possuía poucos interruptores e botões, e uma infinidade de placas chatas, luminosas, todas de cerca de vinte centímetros quadrados. Algumas encontravam-se comprimidas. Não havia dúvida de que eram os controles. A experimentação cautelosa evidenciara que, para acioná-los, era necessário apertar com força. Mas a experimentação terminava ali, agora, pois a câmara de carga se abriu e boa parte do ar se perdeu antes que Torrance conseguisse força suficiente para apertar a placa que, como veio provar a experiência, viria lacrar novamente a fuselagem. Não se deve brincar a esmo com o desconhecido atômico, principalmente no espaço galático.
  • 23. Van Rijn prosseguiu: — Eles devem ser fortes como mulas, para manobrar esse sistema sem ficar exaustos. O tamanho das coisas parece provar o que eu digo, nie? — Não é bem assim, senhor — retrucou Torrance. — Os visores parecem feitos para anões. Os medidores ainda mais. Torrance apontou para um jogo de instrumentos do tamanho de botões; em cada um deles, luzia um único número. (Ou letra, ou ideograma, ou o quê? Pareciam, vagamente, chinês antigo). De quando em quando, um símbolo mudava de valor. — Um humano não conseguiria operá-los por muito tempo sem chegar a uma grave fadiga visual. É claro que o fato de terem olhos mais adaptados que os nossos para ver de perto não significa que não sejam gigantes. E aquele interruptor, para ser alcançado daqui, exige braços longos, e parece ter sido projetado para mãos grandes. Torrance ficou na ponta dos pés, tocou o interruptor. Uma coisa descomunal, semelhante a uma haste dupla, estava fixa no teto, bem acima do assento hipotético do piloto. 0 interruptor desprendeu-se. Um ronco veio da popa. Torrance cambaleou para trás, puxado por uma força repentina. Para firmar-se, teve que agarrar-se a uma prateleira à frente. Ao agarrá-la, o fino metal envergou. — Seus polvos imbecis! Van Rijn berrou e esticou as pernas coluniformes; alcançou o interruptor e colocou-o de volta na posição original. Cessou o ruído. A normalidade voltou. Torrance apressou-se até a porta da ponte, um arco bem alto, e gritou para o interior do corredor: — Está tudo bem! Não se preocupem! Está tudo sob controle! — O que aconteceu com esse pisca-pisca azul? — perguntou Van Rijn, com palavras ligeiramente mais vigorosas.
  • 24. Torrance dominou o leve estado de nervosismo. — Interruptor de emergência, suponho... O tom de voz titubeou: — ... Liga o campo gravítico a toda velocidade de propulsão, sem desperdiçar força com os compensadores de aceleração. Claro que, como estamos em hiperpropulsão, a coisa não foi muito eficiente. Ocasionou apenas um impulso intrínseco menor que 1-G. Em estado normal, teríamos acelerado, no mínimo, muitos Gs. E para fugas rápidas e... e ... — E você, com seu cérebro de molho de carne fermentado, com seus dedos de banana, puxou-o com toda força! Torrance enrubesceu. — Como eu iria saber, senhor? Devo ter aplicado menos de meio-quilo de força. Interruptores de emergência não são para ser acionados por fios de cabelo, afinal! E se pensarmos na força necessária para movimentar estas placas, quem poderia pensar que esse interruptor reagiria com tão pouco? Van Rijn aproximou-se para uma olhadela mais acurada. — Posso ver que este gancho aqui é para prender o interruptor. Talvez o usem para passar por planetas de alta gravidade. E viu um orifício próximo ao centro do painel, de um centímetro de diâmetro e de quinze centímetros de profundidade. Lá no fundo, emergia uma pequena chave. — Isso deve ser outro controle especial, não? É mais seguro que aquele interruptor. Para girá-lo, são necessários alicates muito finos. Van Rijn coçou os cachos tratados com creme fixador. — Mas... e os alicates? Por que não estão à mão? Não vejo nenhum gancho, suporte ou gaveta para guardá-los. — Isso não faz diferença. O interior da nave está todo destruído. Na sala de máquinas, tudo o que sobrou foi um montículo de escória metálica. É... metal fundido, plástico carbonizado... revestimento, mobília, tudo que julgaram possíveis
  • 25. pistas para os identificarmos, tudo derretido numa caldeira improvisada. E usaram o próprio conversor para gerar calor. E essa foi a causa daquele fluxo de neutrino detectado por Yamamura. Devem ter trabalhado mais que o diabo! — Mas claro que não destruíram todas as ferramentas, todo o equipamento necessário! Teria sido mais simples fazer explodir a nave. E nós iríamos junto. Eu suei como um porco, temendo que fizessem isso. Para mim, um velho pecador, desgraçado, não seria uma maneira agradável de terminar meus dias, estilhaçado em gases radioativos, fedorentos, a trezentos anos-luz de distância dos vinhedos da Terra. — Claro que não. No exame superficial que fizemos, podemos dizer que não chegaram a sabotar o essencialmente vital. Não temos certeza absoluta, é claro. A equipe de Yamamura precisaria de muitas semanas apenas para formar uma idéia geral de como esta nave foi montada, excluindo os detalhes práticos de como operá- la. Concordo, porém, que a tripulação não apresenta pendores para o suicídio. Conseguiram nos pegar, e muito mais do que pensam. Indefesos, acoplados no espaço — quem sabe, até mesmo, rumando para o próprio astro-natal dessas criaturas — em ângulos quase perpendiculares à rota que desejamos. Torrance foi o primeiro a sair. — Que tal irmos dar uma olhada mais acurada no zoológico, senhor? Yamamura falou algo a respeito de montar um equipamento... para ajudar-nos a identificar a tripulação dentre os animais! ♦♦♦ O recinto principal compreendia quase a metade do volume da imensa nave. Um corredor, por baixo, e um passadiço estrito, por cima, estendiam-se no meio de duas fileiras de cubículos de dois andades, que somavam noventa e seis, e eram idênticos. Cada um com cinco metros em um dos lados, e placas fluorescentes, ajustáveis, no teto; no chão, um plástico flexível, presumivelmente inerte. Prateleiras
  • 26. e barras paralelas estendiam-se ao longo das paredes laterais, para uso de animais que gostassem de pular e escalar. À parede dos fundos, ligavam-se máquinas bem capeadas. Yamamura, que não ousou violá-las, disse apenas que serviam, era óbvio, para regular a atmosfera, a temperatura, a gravidade, as condições sanitárias e outros fatores ambientais em cada “jaula”. As paredes frontais, de frente para o corredor e para o passadiço, eram transparentes, com câmaras de descompressão compactas, quase da mesma altura do próprio cubículo, e motorizadas, embora controladas por rodas simples, do lado de dentro e do lado de fora. Apenas alguns compartimentos estavam vazios. Os humanos não haviam instalado luminárias no local, pois eram desnecessárias. Torrance e Van Rijn atravessaram as sombras, por entre os animais; a luz simulada, de uns doze sóis distintos, fluía à volta dos dois: vermelha, laranja, amarela, esverdeada e azul-elétrico forte. Algo que poderia ser um tubarão, não fossem os cachos de pêlos a esvoaçar na cabeça, nadava num cubículo d’água em meio a algas frondosas. Na jaula ao lado, repleta, minúsculos répteis voadores, com escamas que faiscavam matizes prismáticos, coleavam e tintavam o ar. Do outro lado, quatro mamíferos estavam agachados em meio a uma bruma amarela; belas criaturas, do tamanho de um urso, com listras de tigre, de tons fortes, caminhavam nas quatro patas e, de vez em quando, levantavam-se. E notavam-se, nos dedos curtos, as garras retrácteis, e, nas cabeças maciças, mandíbulas de carnívoros. Adiante, os humanos passaram por umas seis feras lustrosas, semelhantes a lontras hexápodes, que brincavam num tanque d’água apropriado. As máquinas ambientais deviam ter decidido que era hora da refeição, pois um alimentador jorrava, numa canaleta, nacos de material proteínico e as lontras refestelavam-se para cortá-los com as presas. — Alimentação automática — observou Torrance. — É provável que o alimento seja sintetizado na hora, segundo as especificações de cada espécie, determinada por métodos bioquímicos. Para a tripulação também. Pelo menos, não vejo nada por aqui que se pareça com uma cozinha de bordo. Van Rijn encolheu os ombros. — Mas... tudo sintético? Não tem nem um copinho de genebra holandesa
  • 27. para antes do jantar? E iluminou-se: — Ah, talvez estejamos diante de um novo mercado. E bom! E até que eles descubram a situação, podemos cobrar preços triplicados. — Mas antes — emendou Torrance — precisamos encontrá-los! Próximo ao centro do recinto, Yamamura focava uma série de instrumentos na direção de determinada jaula. Jeri estava ao lado, e entregava o que ele pedia, ligando e desligando numa pequena fonte de alimentação. Van Rijn apareceu à vista e perguntou: — Mas o que há aqui? O engenheiro-chefe voltou o rosto moreno na direção de Van Rijn. — O resto da tripulação está examinando a nave em detalhe, senhor, e eu vou me juntar a eles assim que conseguir treinar a Cidadã Kofoed nessa tarefa específica. Ela pode dar conta da rotina enquanto o resto de nós usa nossas capacidades especiais para... As palavras fugiram-lhe. Yamamura resmungou, pesaroso: — ... para fuçar e fustigar coisas que não temos possibilidade de compreender em menos de um mês de trabalho, com nossas limitadas ferramentas de pesquisa. Van Rijn interveio: — Um mês nós não temos. Você está verificando as condições dentro de cada jaula, isoladamente? — Estou sim, senhor. Elas contêm medições, é claro, mas não sabemos lê- las. Portanto, temos que traçar nossas próprias medidas. Eu amarrei essas coisas para avaliar o valor aproximado da gravidade, da pressão e composição atmosféricas, da temperatura, do espectro de iluminação, e assim por diante. É um trabalho lento, principalmente por causa da aritmética necessária a converter a leitura do medidor em tais informações. Por sorte, não temos que testar cubículo por cubículo, e nem
  • 28. mesmo a maioria deles. — Claro — exclamou Van Rijn. — Mesmo para um organizador sindical, é óbvio que esta nave não foi feita por peixes ou pássaros. Para fazê-la, algum tipo de mão deve ter sido necessário! — Ou tentáculos! Com a cabeça, Yamamura apontou para o compartimento em frente. Lá dentro, uma luz vermelha, tênue. Diversas criaturas negras, afobadas, andavam de um lado para outro. Dos corpos quadrúpedes, de membros atarracados, saíam torsos à maneira dos centauros, que culminavam em cabeças encarapaçadas com um certo material ósseo. Abaixo das cabeças, sem rosto, viam-se seis braços grossos e fibrosos, dispostos em grupos de três, e dois deles culminavam em três dedos sem articulações ósseas, embora provavelmente fortes. — Desconfio que sejam nossos amigos assustadiços — comentou Yamamura. Se for verdade, vamos perder o dobro do tempo com eles. Respiram hidrogênio a alta pressão e a gravidade tripla, a uma temperatura de setenta graus abaixo de zero. Torrance perguntou: — Eles são os únicos que gostam desse tipo de clima? Yamamura lançou- lhe um olhar penetrante. — Já sei aonde quer chegar, Capitão. Não, não são não. Enquanto eu montava e testava o equipamento, encontrei três outros cubículos com condições similares, e neles os animais são apenas animais, cobras e outros, que jamais poderiam ter construído esta nave. Tímida, Jeri aparteou: — Quer dizer, então, que esses cavalos-polvos não podem ser a tripulação, não é mesmo? Quer dizer, se a tripulação está à cata de animais de outros planetas, certamente não vai carregar, a bordo, animais domésticos. — Por que não? — observou Van Rijn. — Nós temos um gato e um par de papagaios a bordo da Hebe G.B., nie? Além disso, existem muitos planetas com
  • 29. condições bem semelhantes, do tipo hidrogenado. A Terra e Freia, por exemplo, são planetas oxigenados, e são muito semelhantes. Portanto, isso não prova nada. Qual um globo em rotação, Van Rijn virou-se para Yamamura. — Mas, veja. Se a tripulação de fato esvaziou todo o ar da nave antes de entrarmos, por que não vamos verificar os tanques de reserva? Se encontrarmos ar armazenado, do tipo que esses embromadores aqui estão respirando... — Eu já pensei nisso — retrucou Yamamura. — De fato, foi a primeira coisa que pedi que meus homens procurassem. E eles não encontraram nada. E nem acho que encontrarão. O que encontraram, isso sim, foi um fole catalítico, ajustável, de muitas dobras. Ao menos parece um fole, embora precisemos de muitos dias para nos certificarmos. Minha suposição é de que esse fole serve para renovar o ar expelido e agir como químiossintetizador para repor as perdas, usando, como carga, compostos inorgânicos simples. Antes de entrarmos, provavelmente, a tripulação sangrou todo o ar da nave, lançou-o no espaço. Assim que sairmos, se sairmos, vão abrir a porta da jaula em que estão, apenas um pouquinho, e vão deixar o ar escoar pouco a pouco. O ajuste ambiental irá, automaticamente, forçar o químiossintetizador a repor o ar. Em dado instante, a nave já conterá ar suficiente, do tipo de que precisam, e eles poderão aventurar-se a sair e ajustar as coisas com maior precisão... Yamamura estremeceu. — ... Isto é, se é que terão que ajustá-las! Talvez as condições terrestres os satisfaçam plenamente. Torrance concordou: — É possível. Por que não damos mais uma olhada por aí para selecionarmos as espécies que apresentem possibilidade de inteligência? Pesado, Van Rijn girou e acompanhou Torrance. Resmungou: — Que tipo de inteligência podem ter esses cuspidos? E por que levar avante essa idiotice? Seco, Torrance respondeu:
  • 30. — Não foi idiotice termos trabalhado até agora. Estamos sendo conduzidos numa nave que não sabemos como parar. Eles devem estar esperando que desistamos, ou partamos, ou então que nos mantenhamos fora do curso até que a nave entre em sua região natal. Nessa ocasião, é bem provável que uma astronave oficial — ou o que quer que possuam — nos detenha, se aproxime de nós e nos aborde para verificar o que está acontecendo. Diante de um compartimento, Torrance fez uma pausa. — Isso me faz pensar... Lá dentro, o quadrúpede era do tamanho de um elefante, embora com uma compleição um pouco mais delgada, o que indicava gravidade menor que a da Terra. A pele era verde, levemente escamada. Uma franja de pêlos escorria pelas costas abaixo. Os olhos com que espiava para fora eram vigilantes e enigmáticos. A tromba, parecida com a de um elefante, terminava num anel de pseudodáctilos, fortes e sensíveis, talvez, como os dedos humanos. Torrance falou, pensativo: — O que poderia conseguir uma raça de um braço só? Talvez o mesmo que nós, e talvez com a mesma facilidade. A simples força compensaria. Essa tromba é bem capaz de envergar uma barra de ferro. Van Rijn rosnou, passou por um cubículo de ungulados plumosos. Em frente ao cubículo seguinte, parou. — Ah, essas feras aqui devem nos servir. Já tivemos uma dessas lá na Terra, um dia. Como é mesmo o nome? Quintila? Gorila? Não, melhor chamar de chimpanzé do tamanho de um gorila. Torrance sentiu o coração vibrar. Duas seções contíguas abrigavam, cada uma, quatro animais, de um tipo que parecia bastante promissor. Eram bípedes, de pernas curtas e braços longos. Com dois metros de altura, e com um raio de alcance de três metros nos braços, qualquer um deles sozinho conseguiria operar a mesa de controle. Os pulsos, grossos, com coxas humanas, terminavam em mãos proporcionais, de quatro dedos, incluindo um polegar verdadeiro. Os pés de três dedos eram, como os pés humanos, destinados ao caminhar. Os corpos eram cobertos
  • 31. de uma penugem marrom. A cabeça era relativamente pequena; afílava-se até quase formar um ponto. Por sob as sobrancelhas espessas, olhos grandes e redondos emergiam das órbitas cavernosas. Os focinhos eram massudos. Andavam sem rumo, de um lado para outro, e Torrance percebeu que se dividiam em machos e fêmeas. Em cada lado do pescoço, distinguiam-se dois lúmens, fechados por esfíncteres. Envolvia-os a conhecida luz branco-amarelada das estrelas do tipo Sol. Torrance forçou-se a comentar: — Não sei. Estas mandíbulas imensas devem exigir músculos maxilares à altura, que se liguem a uma borda no topo do crânio, e isto restringiria a capacidade craniana. — Mas, e se tiverem os cérebros na barriga? — sugeriu Van Rijn. — Bem, algumas pessoas têm mesmo — murmurou Torrance, e como o mercador silenciasse, acrescentou logo: — Não. Na verdade, senhor, isto é muito difícil de acreditar. As trilhas nervosas teriam que ser muito compridas, e tudo o mais. Os animais que conheço, que possuem algum tipo de sistema nervoso central, têm o cérebro junto aos órgãos sensitivos principais, em geral localizados na cabeça. Posso assegurar que o fato de estas criaturas terem o cérebro relativamente pequeno, dentro de certos limites, não significa que não sejam inteligentes. Seus neurônios podem ser muito mais eficientes que os nossos. — Valham-me meus bolos confeitádos! — exclamou Van Rijn. — Suposições e suposições! E, prosseguindo por entre outras formas estranhas. — E tampouco podemos nos guiar pela atmosfera, ou pela luz. Se a tripulação está se escondendo, pode fazer variar em muito as condições normais, sem se prejudicar. E a gravidade também, em vinte ou trinta por cento. — Eu só espero que respirem oxigênio. Epa... Torrance parou. Um instante depois, percebeu o que havia de tão estranho naquelas tantas formas iluminadas pelo brilho alaranjado. Possuíam carapaças quitinosas, pouco maiores que capacetes militares, e mais ou menos da mesma forma.
  • 32. Quatro pernas atarracadas projetavam-se sob o ventre: caminhavam desajeitados, apoiados em pés providos de garras. E mais um par de tentáculos curtos terminando num tufo de cílios. Não havia nada de especial neles, como costuma ocorrer com os animais extraterrestres, exceto os dois olhos que fitavam fixos por baixo dos capacetes: tão grandes e, de certo modo, tão humanos como... bem... os olhos de um polvo. — Tartarugas! — bufou Van Rijn. — No máximo, tatus! — Creio que não há mal nenhum em deixar Jer. .. a Srta. Kofoed verificar o ambiente deles também — disse Torrance. — Perda de tempo! — O que será que comem? Não vejo boca nenhuma. — Aqueles tentáculos parecem capilares de sucção. Aposto que são parasitas, ou sanguessugas superdesenvolvidas, ou algo semelhante a um dos meus concorrentes. Venha. — O que faremos depois de estabelecermos quais as espécies que apresentam possibilidades de ser a tripulação? Tentar nos comunicar com cada uma delas? — Isso seria inútil. Eles estão se escondendo porque não querem se comunicar. A menos que possamos provar a eles que não pertencemos à Patrulha- Cobra. Mas, agora, difícil prever. — Um momento! Afinal, por que iriam se esconder se já tivessem tido contato com os bandidos da Patrulha? Não iria adiantar nada. — Com os diabos! Vou explicar porquê. Vamos escolher um nome para eles. Chamemos de Eksers a esta raça desconhecida. Muito bem. Os Eksers estão viajando pelo espaço já há algum tempo, mas o espaço é tão grande que jamais se haviam deparado com humanos. E, então, surge a nação da Patrulha-Cobra, neste setor até então inatingido por seres humanos. Os Eksers tomam conhecimento de que uma espécie sinistra acaba de adentrar o espaço. E pousam nos planetas primitivos saqueados pela Patrulha-Cobra, conversam com os nativos e instalam,
  • 33. talvez, câmaras automáticas nos locais onde julguem que novas invasões ocorrerão. Talvez espionem, de longe, os acampamentos da Patrulha, ou capturem uma nave solitária desses piratas. E assim sabem qual o aspecto dos humanos, e apenas isso; e não querem que os humanos saibam a respeito deles, e evitam contato. Não querem confusão. Não antes, pelo menos, de estar preparados para a guerra. Pelo inferno escaldante! Nós temos que deixar patente a nossa boa fé para com essa tripulação, para que ela nos leve a Freia e diga a seus líderes que os seres humanos não são todos tão maus como os salteadores da Patrulha! Caso contrário, um dia vamos acordar com alguns planetas sendo atacados pelos Eksers, e antes que a batalha termine, já teremos desperdiçado bilhões de créditos. Como um touro ferido, Van Rijn brandiu os punhos no ar e berrou: — E nosso dever é evitar que isto aconteça! Ríspido, Torrance retrucou: — Eu diria que nosso primeiro dever é chegarmos em casa vivos. Eu tenho esposa e filhos. — Então é melhor parar de lançar esses olhares derretidos para Jeri Kofoed. Eu a vi primeiro. A investigação produziu uma nova possibilidade. Quatro organismos, do tamanho de um homem, e com a compleição de lagartos de pernas grossas, viviam sob uma luz esverdeada. Os corpos eram azuis-escuros, salpicados de prata. O torso, semelhante ao dos centauróides tentaculares, embora mais robustos, apresentava dois braços verdadeiros. As mãos careciam de polegares, mas os seis dedos dispostos em três quartos de círculo seriam capazes de realizar as mesmas coisas. Isso não queria dizer que mãos adequadas constituíssem prova de inteligência superior; na Terra, os símios e certo número de répteis e anfíbios possuem mãos eficientes, ainda que as do Homem sejam mais aptas, e os ancestrais simiescos do Homo sapiens tinham mãos tão boas como as nossas hoje em dia. Entretanto, as cabeças desses seres, de rostos achatados e arredondados, os olhos grandes e claros por trás de antenas emplumadas, de função obscura, as pequenas mandíbulas e os lábios delicados, tudo parecia promissor.
  • 34. Promissor de quê?, pensou Torrance. Três dias terrenos depois, Torrance desceria, apressado, ao corredor central, rumo à sala das máquinas dos Eksers. A passagem consistia de um grande hemicilindro, revestido com o mesmo plástico borrachoso e cinzento das jaulas; os passos, portanto, eram silenciosos, e as palavras, quando pronunciadas, não produziam, estranhamente, ressonância. Mas uma vibração mais profunda a atravessava, o zumbido quase subliminar do hipermotor, que conduzia a nave dentro da escuridão, rumo a uma estrela desconhecida, e anunciava sua presença a qualquer caçador que vagasse num raio de um ano-luz dali. As luminárias instaladas pelos humanos estavam distantes umas das outras, e assim, quem passasse por ali, via tiras de sombras. Recintos sem portas escancaravam-se para o corredor. Alguns, ainda repletos de suprimento, e por mais peculiares que fossem as formas das ferramentas e das embalagens, eram uma reafirmação de que ali ainda se vivia, de que ainda não se era uma alma a bordo do Fantasma-Voador. Entretanto, a nudez de certas cabines, antes habitadas, fez arrepiar a pele de Torrance. Em canto algum, havia vestígios pessoais. Restavam livros, em folhas e microfilmes, de impressão primorosa, com a simbologia do planeta alienígena. Nas prateleiras, os lugares vazios faziam adivinhar que os volumes ilustrados haviam sido sacrificados. Claro, era possível perceber, nas paredes, que os locais onde se penduravam quadros estavam danificados. Nas grandes cabines particulares, e na maior delas, que bem poderia ter sido o compartimento-salão, na sala de máquinas, na oficina e na ponte, só tinham sido deixadas as estacas onde se aparafusavam os móveis. Nichos compridos, baixos, e cochichós, haviam sido construídos na antepara da cabine. Mas como saber onde teria sido o dormitório quando todo revestimento fora atirado numa caldeira branca, de tão quente? Se é que havia dormitório! As roupas, os ornamentos, os utensílios culinários, os talheres ou coisas do gênero, todos destruídos. Um dos recintos talvez tivesse sido um lavatório, embora todas as instalações tivessem sido arrancadas. E um outro talvez houvesse sido utilizado para estudos científicos, presumivelmente de animais capturados. Tão desmantelado estava, no entanto, que seria impossível a qualquer humano afirmá-lo.
  • 35. “Por Deus, temos mesmo que admirá-los,” pensou Torrance. Capturados por seres que, com toda razão, podem bem considerar monstros sem consciência, os alienígenas preferiram não optar pela solução mais fácil, a explosão atômica que viria aniquilar as duas tripulações. Talvez a tivessem adotado, não fosse a possibilidade de esta nave ser um parque zoológico. Mas mantiveram a esperança de sobreviver, e agarraram-na com uma ousadia imaginativa só ao alcance de poucos humanos. E agora ali permaneciam, à vista de todos, à espera de que os monstros partissem — sem destruir a nave por mera malevolência — ou de que uma nave de combate, de sua própria gente, viesse socorrê-los. Não tinham meios de saber que seus captores não eram da Patrulha-Cobra, e nem tampouco de saber se o setor não estaria, em breve, pululando com esquadrilhas da patrulha; os bandidos ousavam, embora raras vezes, aventurar-se a esta proximidade de Valhala. Dentro dos limites da informação disponível, os alienígenas agiam com lógica absoluta. Mas, para fazê-lo, só com nervos de aço! “Eu gostaria de poder identificá-los, e travar amizade com eles, pensou Torrance. Os Eksers dariam ótimos amigos para a Terra — ou para Ramanujan, Freia ou toda a Liga para Ciência do Sol Polar.” E, com um sorriso irônico, enviesado: “Aposto que eles não são tão fáceis de enganar como pensa o Velho Nick. É mais provável que eles o enganem. Ah, como eu gostaria que isso acontecesse!”. “Meus motivos são mais pessoais,” pensou, invadido novamente pelo desânimo. “Se não esclarecermos logo este mal-entendido, nem eles nem nós sobreviveremos. E tem que ser logo. Se conseguirmos mais uns três ou quatro dias de cortesia, estaremos com sorte.” A passagem desembocava num vão, e rampas curvas, em declive, abriam-se para os dois lados; culminavam em duas portas automáticas. A primeira porta, Torrance sabia, conduzir à sala de máquinas. Lá dentro, um conversor nuclear alimentava o sistema elétrico da nave, os cones gravíticos e a hiperpropulsão; os princípios com que isto era feito eram conhecidos de Torrance. As máquinas, porém, eram enigmas acondicionados em metal e em símbolos desconhecidos. Torrance abriu a outra porta, entrou na oficina. Conseguia identificar boa parte do equipamento, embora distorcido diante de seus olhos: um torno, uma prensa de brocar, um osciloscópio e um aparelho de cristal para provas. Outras coisas, muitas,
  • 36. eram um mistério. Yamamura ali estava sentado à bancada improvisada, montando uma peça de equipamento eletrônico. Diversos outros aparelhos, presos em painéis de papelão, encontravam-se próximos. O rosto de Yamamura parecia conturbado, e suas mãos tremiam. Estivera todo esse tempo à base de estimulantes que o mantinham acordado. No momento em que Torrance se aproximou, o engenheiro conversava com Betancourt, o encarregado das comunicações. Toda a tripulação da Hebe G.B. encontrava-se sob a direção de Yamamura, numa tentativa frenética de flanquear os Eksers através do aprendizado autodidático, do modo de operar a nave. Betancourt dizia: — Consegui identificar a disposição elétrica básica, senhor. Eles não acionam o conversor diretamente, como nós fazemos. Isto é tão evidente quanto o fato de não terem desenvolvido nossos métodos de redução. Em vez disso, usam um cambiador de calor para movimentar um gerador imenso... é, aquilo que o senhor pensou que fosse um dínamo do tipo induzido... onde geram a corrente alternada para a nave. Quando há necessidade de corrente contínua, a corrente alternada atravessa uma série de placas retificadoras e, pelo que pude ver, tenho certeza de que são de óxido de cobre. Estão descobertas, atrás de uma tela de segurança; mas estão tão aquecidas, devido à quantidade de energia que as atravessa, que seria difícil olhá- las de perto. Para mim, tudo isso parece meio primitivo. Yamamura suspirou: — Ou, quem sabe, apenas diferente. Nós usamos um conversor à base de fusão de elementos leves, que apresenta a vantagem, dentre outras, de propagar diretamente a corrente elétrica. É possível que eles tenham aperfeiçoado um tipo de usina elétrica que utilize elementos moderadamente pesados, com pequenas frações positivas de alimentação. Lembro-me de que isto já foi tentado na Terra, há muito tempo, e que foi considerado impraticável. Mas pode ser que os Eksers sejam melhores engenheiros que nós. Este tipo de sistema apresentaria a vantagem de menor necessidade de refinamento de combustível — o que seria uma vantagem real para uma nave que se encontra aos tropeções em meio a planetas inexplorados. E isto, por si só, serviria para justificar a ingenuidade do cambiador de calor e do
  • 37. sistema de retificação. Mas, na verdade, não sabemos. Yamamura soldava os fios e fitava-os, sacudindo a cabeça. — Nós não sabemos droga nenhuma! E, ao ver Torrance: — Bem, prossiga, Cidadão Betancourt. E lembre-se, festina lente. — Por medo de destruir a nave? — perguntou o Capitão. Yamamura confirmou com a cabeça: — Os Eksers saberiam que uma nave como a nossa, pequena, não conseguiria gerar um campo de hiperforça capaz de rebocar-lhes a nave para o planeta de onde vieram. E assim resolveram assegurar-se de que sua tripulação não seria aprisionada para realizar o trabalho para nós. Se não as manusearmos com cuidado, estas coisas poderão destruir-se como um brinquedinho de criança; e aí, como conseguiremos consertá-las? Portanto, procedemos com a mais absoluta cautela, com tanta cautela que não temos a menor esperança de desvendar os controles antes que a Patrulha-Cobra nos descubra. — E é uma boa maneira de manter a tripulação ocupada. — O que, por sinal, é muito bom. Ha! Ha! Bem, senhor, eu já consegui montar quase todo o aparato básico. Segundo os testes, tudo parece em ordem. Agora, gostaria que o senhor me dissesse que animal o senhor prefere investigar primeiro. Diante da hesitação de Torrance, o engenheiro explicou: — Terei que adaptar o equipamento para a criatura em questão, principalmente se a criatura respirar hidrogênio. Torrance balançou a cabeça. — Oxigênio. Na verdade, as condições em que vivem são tão semelhantes às nossas que podemos entrar nas aulas com facilidade. Os gorilóides. Foi assim que Jeri e eu os chamamos. Aqueles bípedes peludos, de dois metros de altura, com cara de macaco.
  • 38. Yamamura fez, ele próprio, uma careta de macaco. — Esses brutamontes terão tanta força assim? Chegaram a mostrar algum sinal de inteligência? — Não. Mas você espera que os Eksers dêem qualquer sinal que os identifique? Jeri Kofoede e eu andamos desfilando diante de todas as espécies, pela frente das jaulas, fazendo sinais, tirando fotografias, tudo o que conseguimos imaginar, na tentativa de transmitir a mensagem de que não somos da Patrulha- Cobra, e que o artigo genuíno está em nosso encalço. Não tivemos sorte, é claro. Todos os animais nos lançaram um olhar interessado, com exceção dos gorilóides... o que, talvez, venha ou não a provar alguma coisa. — Mas que animais foram esses? Eu estou tão ocupado que... — Bem, podemos chamá-los os macacos-tigres, os centauros tentaculares, o elefantóide, os bichos de capacete e os lagartos-suínos. Mas isso seria ampliar demais as coisas, sei disso; os macacos-tigres e os bichos de capacete, são muito improváveis, no mínimo, e o elefantóide também não é nada convincente. Os gorilóides possuem o tamanho ideal, e mãos de aspecto mais eficiente, além de respirarem oxigênio, como já disse. Assim, devemos começar com eles. O próximo, por ordem de similitude, suponho, são os lagartos-suínos e os centauros tentaculares. Mas os lagartos-suínos, embora respirem oxigênio, vêm de um planeta de alta gravidade; a pressão do ar nos deixaria imediatamente narcotizados. Os centauros tentaculares respiram hidrogênio. Nos dois casos, teremos que trabalhar com o escafandro espacial. — Ora, os gorilas já vão nos dar enorme trabalho, muito obrigado! Torrance olhou a bancada. — Quais são exatamente seus planos? Estou tão ocupado com a minha parte do trabalho que não consegui saber nada a respeito da sua. — Adaptei algumas peças com o estojo médico. Uma espécie de oftalmoscópio, por exemplo. Afinal, os instrumentos da nave usam códigos de cor e símbolos de primorosa impressão. Portanto, é provável que os olhos dos Eksers sejam, no mínimo, tão bons quanto os nossos. E isso aqui é um traçador de impulsos
  • 39. nervosos. Detecta os fluxos sinápticos e joga a imagem tridimensional numa caixa de cristal de corte Y, para podermos observar o funcionamento de todo o sistema nervoso como um conjunto de traços luminosos, que, correlacionado com a anatomia bruta permite identificar, a grosso modo, os sistemas simpáticos e parassimpáticos, ou seus equivalentes, espero. E o cérebro. E mais importante ainda, o grau de atividade do cérebro, mais ou menos independente dos outros centros nervosos. Isto é, caso o animal pense. — Yamamura encolheu os ombros. — Comigo funciona. Agora, se vai funcionar num não-humano, e principalmente num tipo diverso de atmosfera, não sei. Mas tenho certeza de que vai nos deixar intrigados. Torrance deitou uma citação: — “Tudo o que podemos fazer é tentar”. Com uma voz impaciente, Yamamura observou: — E o velho Nick? Continua sentado, pensando? Já faz muito tempo que não o vejo. — Ele não tem ajudado a mim e a Jeri também. Disse-nos que nossa tentativa de comunicação seria fútil a menos que conseguíssemos provar aos Eksers que sabíamos quem eles eram. E, mesmo depois disso, segundo ele, a única comunicação inicial deveria estabelecer-se através de gestos feitos com uma pistola. — Talvez ele tenha razão. — Não, não tem não. Em termos lógicos, talvez. Mas, em termos psicológicos, não; nem morais. Ele fica lá, na suíte, com aquela caixa de brandy e a caixa de charutos. O cozinheiro, que muito bem poderia estar aqui ajudando você, é mantido a bordo da nave apenas para preparar-lhe as malditas refeições gastronômicas. Dá para pensar que ele nem ligaria se nos visse explodir nos céus! Torrance lembrou-se do juramento de fidelidade, da posição oficial que ocupava, e tudo o mais. Agora, ali, no limiar da morte, pareciam não fazer muito sentido. Mas o hábito é coisa muito forte. Engoliu, e amargurou: — Desculpe-me. Por favor, esqueça o que eu disse. Quando estiver pronto, Cidadão Yamamura, vamos testar os gorilóides.
  • 40. ♦♦♦ Jeri, juntamente com seis homens, permaneceu de pé, na passagem, com os lança-raios apontados. Era esperença de Torrance, fervorosa, que não tivessem que atirar. E, mais ainda: que, se tivessem que fazê-lo, ele próprio pudesse escapar vivo. Fez um gesto para os quatro tripulantes às suas costas. — Muito bem, rapazes! E umedeceu os lábios. O coração disparou. É muito bom ser capitão, ser comandante, mas, num momento como esse, a gente é obrigado a devolver todos os privilégios especiais. Torrance girou a roda de controle externa. O motor da câmara de descompressão zuniu, abriu as portas. Ele as atravessou e entrou na jaula dos gorilóides. Embora as diferenças de pressão não merecessem preocupação, entrar num campo com dez por cento a menos que a Terra, depois de todo esse tempo a um quarto de G, foi como uma pancada. Torrance cambaleou, quase caiu, e engoliu um ar quente, grosso, repleto de gases malcheirosos, inomináveis. Apoiou-se de costas contra a parede, e olhou, do outro lado, para os quatro bípedes. Os corpos marrons, lanudos, agigantaram-se, absurdamente altos, muito altos, até o topo das cabeças grosseiras. Olhos quase ocultos por sobrancelhas espessas o fitavam. Torrance levou a mão à pistola de estontear, embora ele, também, não desejasse dispará-la. Não era preciso dizer que as ondas ultra-sônicas são capazes de causar ao sistema nervoso de um não-humano; e se esses que ali estavam, fossem na verdade a tripulação, feri-los seria a pior coisa a acontecer. Mas Torrance não estava acostumado a sentir-se pequeno e frágil. Aquela coronha nodosa era, de fato, reconfortante. Um macho rosnou, do fundo do tórax e deu um passo à frente. A cabeça pontuda projetou-se, os esfíncteres no pescoço abriram-se e fecharam-se como embocaduras de sucção; as mandíbulas escancararam-se e exibiram dentes brancos.
  • 41. Torrance recuou até o canto, e anunciou em voz baixa: — Vou tentar separar esse dos demais. Então, peguem-no. — Eeee ... Um ajudante espacial, um nômade de Altai, robusto, de olhos puxados, desenrolou um laço.. Atrás dele, os outros três estenderam uma rede confeccionada para esse fim. O gorilóide fez uma pausa. Uma fêmea soltou um pio agudo. Dela, o macho pareceu extrair resolução. Acenou para os demais com um gesto estranho, quase humano e, sorrateiramente, aproximou-se de Torrance. O Capitão sacou a pistola, apontou-a, trêmulo. Depois, recolocou-a no coldre, estendeu a duas mãos, e berrou: — Amigo... A esperança de que toda aquela encenação ruísse por terra tornou-se, de repente, ridícula. Torrance deu um salto para trás, na direção da câmara de ar. O gorilóide rosnou e tentou agarrá-lo. Torrance não foi suficientemente rápido. A pata rasgou-lhe o blusão e deixou-lhe no peito um fio de sangue. Torrance caiu de joelhos, apoiou-se nas mãos, varado de dor. O laço do altaiano, girou, cortou o ar. Laçado nos tornozelos, o gorilóide desmoronou. O peso fez estremecer o cubículo. — Peguem-no! Cuidado com as patas! Aqui... Aos tropeços, Torrance pôs-se novamente de pé. Para além da refrega, em que os quatro homens tentavam amarrar, na rede, aquele monstro que urrava, se debatia, viu as outras três criaturas. Espremidas no canto oposto, uivavam num tom baixo. O compartimento parecia o interior de um tambor. A voz de Torrance saiu embargada: — Tragam-no para fora, antes que os outros ataquem! E apontou a pistola, mais uma vez. Se fossem inteligentes, saberiam que era uma arma. Mesmo sendo, talvez atacassem... Com habilidade, o homem de Altai amarrou uma das patas, e passou um laço naquele torso colossal. Apertou com um nó
  • 42. corrediço. A rede entrou em posição. Imobilizado pelas cordas de fibra fortes como aço, o gorilóide foi arrastado até a entrada. Um outro macho avançou, passo a passo. Torrance fincou pé. O ulular dos animais e a gritaria humana envolveram-no, penetraram-no. A ferida latejava. E ele percebeu, com toda clareza, aquela focinheira cheia de dentes, que bem poderia arrancar-lhe a cabeça, aqueles olhos pequenos, foscos, agora vermelhos de fúria, aquelas mãos, tão parecidas com as suas, não fossem a pele preta, os quatro dedos, e o tamanho enorme .. . — Já terminamos, Capitão. O gorilóide investiu. Atabalhoado. Torrance atravessou a câmara de descompressão. O gorilóide o seguiu. Torrance firmou-se no corredor, e apontou a pistola. O gorilóide parou, estremeceu, olhou em volta com um quê de espantado, e recuou. Torrance fechou a câmara. E então, sentou-se, e estremeceu. Jeri debruçou-se sobre ele, ofegante: — Você está bem? Oh! Você está ferido! — Ora, não foi nada. Me dê um cigarro. Jeri apanhou um cigarro no bolso do cinto, e disse, com a rispidez que Torrance tanto admirava: — Só um hematoma, e um arranhão profundo. Mas é melhor irmos verificar, de qualquer modo, e esterilizar. Pode infeccionar. Torrance concordou com a cabeça, mas permaneceu sentado, até terminar o cigarro. Um pouco mais adiante, no corredor, os homens de Yamamura mantinham a presa trancafiada numa armação de aço. Ileso mas inerme, o brutamontes gania e tentava morder o engenheiro, que se aproximava com o equipamento. Colocá-lo de volta no cubículo, depois, seria provavelmente tão difícil quanto o fora retirá-lo. Torrance levantou-se. Pela parede transparente, viu um gorilóide fêmea rasgar, furiosa, em tiras, um pedaço de alguma coisa. E percebeu que perdera o turbante no momento em que fora derrubado. Suspirou: — Bem, nada mais a fazer até que Yamamura nos dê seu veredicto. Vamos,
  • 43. vamos descansar um pouco. Jeri foi firme: — Primeiro, a enfermaria. E tomou-o pelo braço. Dirigiram-se ao vão da entrada, atravessaram o tubo e alcançaram a Hebe G.B. Quase nada foi dito enquanto Jeri retirava o blusáo de Torrance, limpava, com desinfetante universal, a ferida que ardia demais, e fazia os curativos. Depois, Torrance sugeriu um aperitivo. Foram para o salão. Para surpresa dos dois, e para desprazer de Torrance, Van Rijn estava lá, sentado à mesa de mogno, embutida, com uma blusa manchada de tabaco e o habitual sarão. Numa das mãos, uma garrafa, na outra, um charuto. Papéis jogados espalhavam-se ao redor. Van Rijn ergueu os olhos. — Até que enfim! O que houve? — Estão testando um gorilóide. Torrance deixou-se cair numa poltrona. Como o comissário de bordo fora recrutado para a equipe de captura, Jeri foi buscar os aperitivos. Sua voz deixou um rastro flutuante, desafiador. — O Capitão Torrance quase morreu na operação. Por que você ao menos não foi dar uma espiada, Nick? O mercador escarneceu: — Que utilidade teria? Ficar olhando, como turista, com olhos de hadoque? Não vamos transformar a coisa numa história de terror. Eu já estou muito velho, muito gordo, para caçar macacos tamanho-família. E nem sou tão técnico a ponto de poder ajudar Yamamura a girar botões. Van Rijn tirou uma baforada do charuto. E, complacente: — Além disso, essa não é minha função. Não sou nenhum especialista, não tenho diplomas requintados, de universidades, aprendi na escola dos que dão duro. E o que aprendi foi a mandar outros fazer as coisas para mim, e a transformar o que
  • 44. fazem em coisas lucrativas. Torrance expirou, devagar e longamente. Relaxada a tensão, começava a sentir-se terrivelmente cansado. Perguntou: — Que é que o senhor está examinando? — Os relatórios dos engenheiros sobre a nave Ekser. Eu disse a todos que fizessem anotações completas sobre tudo o que observarem. Em algum lugar, nestas notas, talvez esteja a pista que possamos utilizar. Isto se os gorilóides não forem os Eksers. Os gorilóides são uma possibilidade, e a única maneira que vejo para eliminá- los é através das verificações de Yamamura. Torrance esfregou os olhos. — Os gorilóides não são tão plausíveis assim. Boa parte do que encontramos parece ter sido projetada para mãos grandes. Algumas ferramentas, porém, são tão pequenas... Bem, na verdade, qualquer não-humano ficaria também muito intrigado com o nosso instrumental. Faria sentido, por exemplo, uma mesma raça usar, ao mesmo tempo, marretas e pontas-secas? Jeri trouxe duas doses fortes de uísque com soda. O olhar de Torrance a acompanhou. Naquela blusa apertada, naquela saia à altura do joelho, bem merecia ser acompanhada. Jeri sentou-se junto a ele, e não junto a Van Rijn. Os olhos de Van Rijn, de azeviche, contraíram-se. Contudo, o mercador falou com delicadeza: — Eu gostaria que você me relacionasse, agora, aqui, as outras possibilidades, e os motivos que você tem para considerá-las. Eu também já pensei em algumas, é natural, mas minhas idéias não estão ainda muito claras e, talvez, algo que tenha ocorrido a você possa iluminá-las. Torrance assentiu com a cabeça. Melhor mesmo seria conversar sobre seu trabalho, embora ele já tivesse quase esgotado o assunto em conversas com Jeri e Yamamura. — Bem, os centauros tentaculares parecem bastante prováveis. O senhor já os conhece. Eles vivem em luz vermelha, e numa gravidade superior à metade da
  • 45. gravidade da Terra. O sol tênue e a temperatura baixa talvez possibilitem a retenção de hidrogênio em seu planeta natal, pois é exatamente isso que respiram, hidrogênio e argônio. E o senhor já lhes conhece o aspecto: corpos do tipo rinoceronte, torsos com cabeças recobertas por placas ósseas, e tentáculos cheios de dedos. Assim como os gorilóides, são grandes demais para dirigirem esta nave com facilidade. Todos os outros respiram oxigênio. Os que eu chamo de lagartos-suínos — aqueles compridos, com muitas pernas, de cor azul-prateada, com mãos peculiares e rostos de aspecto particularmente inteligente provêm de um mundo excêntrico. Deve ser grande. Na jaula, estão a uma pressão de 3 G, que a esta altura dos acontecimentos, já não deve ser mais um mar de rosas. Se estiverem acostumados a um peso muito menor, o ajuste do fluido corporal poderá desordenar-se. Mesmo assim, o planeta de onde vêm possui oxigênio e nitrogênio — e não hidrogênio - a uma pressão de doze atmosferas terrestres. A temperatura é muito alta: cinqüenta graus. Creio que o mundo em que vivem, embora de massa quase jupiteriana, esteja tão próximo ao sol que todo o hidrogênio já se tenha evaporado, deixando, nitidamente, um campo de evolução semelhante ao da Terra. O elefantóide vem de um planeta cuja gravidade é apenas metade da nossa. É aquela figura enorme, com uma tromba que termina em dedos. O ar que respira é muito rarefeito para nós, e isto revela que a gravidade, no cubículo em que estão, também não foi adulterada. Torrance sorveu um gole demorado e continuou: — Quanto ao resto, todos vivem em condições bastante terrestróides; e, por esse motivo, desejaria que fossem os mais prováveis. Na verdade, porém com exceção dos gorilóides, são todos possibilidades remotas. Os bichos de capacete... — Que bichos são esses? — interrompeu Van Rijn. — Você se lembra deles — interveio Jeri. — São aquelas coisas, umas oito ou nove, que parecem tartarugas corcundas, não muito maiores que sua cabeça. Arrastam-se, de um lado para o outro; têm os pés cheios de garras. E os tentáculos, que estão sempre acenando, terminam em filamentos, por onde comem os alimentos, aquele caldo grosso que as máquinas jogam na canaleta. E embora não apresentem nada que se pareça com mãos eficientes — os tentáculos seriam capazes de executar apenas coisas muito simples — resolvemos dedicar um certo tempo a eles, pois
  • 46. parecem possuir olhos bem desenvolvidos para ser simples parasitas. — Parasitas não desenvolvem inteligência - observou Van Rijn. — Possuem meios de vida mais eficazes, caramba. É melhor certificar-se se esses bichos de capacete são, na verdade, parasitas, em seu ambiente de origem, e se não estão escondendo as mãos debaixo daquelas carapaças, antes de cortá-los da lista. E os outros? — Há os macacos-tigres — respondeu Torrance. — Rajados como gatos, são carnívoros, de compleição algo semelhante à de um urso. Passam quase o tempo todo de quatro, mas, de vez em quando, levantam-se e caminham com as patas traseiras. E possuem mãos — malconformadas, sem polegares, com garras retrácteis — em todos os membros. Quatro mãos sem polegares valem tanto quanto duas mãos com polegares? Não sei. Estou muito cansado para pensar. — E é só isso, não? Van Rijn ergueu a garrafa, levou-a aos lábios. Após demorado gargarejo, pousou-a, arrotou, e, pelo nariz majestoso, expeliu fumaça. — E se não conseguirmos nada com os gorilóides, quem será o próximo? — É melhor que sejam os lagartos-suínos — respondeu Jeri — apesar da pressão do ar. Depois... Bem... os centauros tentaculares, creio. E depois, talvez os. .. — Tentativas! Tentativas! — O punho de Van Rijn golpeou a mesa; balançaram os copos e a garrafa. — Quanto tempo vai demorar para agarrá-los e verificar cada um deles? Horas, nie? E, nos entretempos, outras tantas horas para ajustar o aparelho e eliminar todas as falhas surgidas nas novas condições. Yamamura vai ter um colapso. Ele tem que ir dormir. E que outra pessoa vai fazer o trabalho dele? Enquanto isso, esses bandidos fedorentos da Patrulha-Cobra estão se aproximando! Nós não temos tempo para esse método! Se os gorilóides não vingarem, a única coisa que nos vai ajudar será a lógica. Temos que deduzir, dos fatos que temos, quem são os Eksers. Torrance esvaziou o copo. — Pois vá em frente. Eu vou dormir um pouco. Van Rijn ficou roxo.
  • 47. — Está bem — bufou. — Seja como os outros. Folgue, se divirta, dance, cante, aproveite o dia. Claro, voce sempre tem o coitado do velho Nicholas van Rijn para acumular trabalho e ficar com toda a preocupação nas costas. Valha-me São Dismas! Por que o senhor não faz ao menos uma pessoa, em todo esse Universo, que faça alguma coisa útil. ... Torrance foi acordado por Yamamura. Os gorilóides não eram os Eksers. Eram insensíveis à cor e incapazes de focar os instrumentos da nave. Os cérebros eram pequenos, quase toda a massa era dedicada a funções meramente animais. E sua inteligência não devia ser superior à de um cachorro. ♦♦♦ O Capitão permaneceu na ponte da nave, pois conhecia o lugar. Procurava acostumar-se ao fato de ser um condenado. O espaço estava maravilhoso. Jamais o vira assim antes. Embora Torrance não estivesse familiarizado com as constelações locais, o olhar treinado identificou Perseu, Auriga, Touro, sem muita distorção, pois estavam situadas na direção da Terra. (E de Ramanujan, onde torres douradas emergem, por entre as brumas, para o primeiro banho de sol, brilhando vivamente contra o azul do Monte Gandhi). Umas poucas estrelas isoladas também podiam ser identificadas: a rubicunda Betelgeuse, a ambarina Spica, estrelas-guia pelas quais navegara em toda a sua vida de trabalho. No plano geral, o céu fervilhava de fagulhinhas congeladas, contra a escuridão sem nuvens e sem fim. A Via-láctea era uma fria faixa prateada; além, uma nebulosa brilhava, tênue e verde; e uma outra galáxia girava, em espiral, no limiar misterioso da visibilidade. Nos planetas em que estivera, mesmo em seu próprio planeta, pensava menos do que nesta viagem que agora fazia entre eles, e que estava prestes a terminar. Pois ela terminaria, numa explosão de violência tão rápida que mal seria sentida. Melhor sair disto limpo, quando chegassem os homens da Patrulha-Cobra, do que agonizar em suas masmorras. Torrance amassou o cigarro. Ao retornar, a mão acariciou as formas dos
  • 48. controles, tão estimadas. Conhecia cada interruptor, cada botão, tão bem quanto os próprios dedos. Esta nave era sua e, de certo modo, era ele próprio. Não era como a outra, cujo painel de controle, insensível, necessitava de um gigante e de um anão, cujo botão de emergência cairia com um simples toque caso não estivesse no gancho apropriado, cujo... Um passo leve fê-lo virar-se. De modo irracional, tão esgotado se sentia, o coração disparou dentro do peito. Quando viu que era Jeri, relaxou os músculos, mas a pulsação continuou rápida, no sangue. Devagar, Jeri aproximou-se. A luz do teto, refletia naqueles cabelos louros e no azul daqueles olhos. Mas Jeri evitou o olhar de Torrance, com os lábios não muito firmes. — O que a traz aqui? O tom veio mais suave do que Torrance pretendera. — Ora, o mesmo que você. Jeri contemplou o visor. Durante todo o tempo, desde que haviam capturado a nave alienígena, ou esta a eles, uma estrela vermelha, na direção da curvatura da vigia, crescera visivelmente. E agora ardia, funesta, a um ano-luz de distância, Jeri fez uma careta e voltou as costas para a estrela. — Yamamura está reajustando o aparelho dos testes. — disse, numa voz sumida. — Não há ninguém aqui que saiba o suficiente para ajudá-lo, e ele já está tão exausto que não pára de tremer, e mal consegue fazer o trabalho. E o velho Nick fica lá, sentado naquela suíte, fumando e bebendo. Até já acabou aquela garrafa, e começou outra. Eu não conseguia mais respirar, de tanta fumaça. E ele não diz nada, só fala para si mesmo, em malaio, ou qualquer coisa assim. Não pude suportar. — Temos que esperar. Já fizemos tudo o que podíamos, até verificarmos o lagarto-suíno. Teremos que fazê-lo com nossas roupas espaciais, na própria jaula deles. Espero que não nos ataquem. Jeri desabafou: — Para que nos incomodarmos com isso? Eu conheço a situação tão bem
  • 49. quanto você. Mesmo que os lagartos-suínos sejam os Eksers, vamos precisar de uns dois dias para prová-lo, dadas as condições. E eu não acho que possamos dispor de tanto tempo assim. Se demoramos dois dias para seguirmos para Valhala, aposto que seremos detectados e interceptados antes de chegarmos lá. E, ainda, caso os lagartos- suínos sejam meros animais, não teremos tempo para testar uma terceira espécie. Então, por que nos incomodarmos? — É a única coisa que temos a fazer. — Não. Não é não. Não essa preocupação odiosa, fútil, que nos deixa como ratos encurralados. Por que não admitimos que vamos mesmo morrer, e aproveitamos o tempo para ... sermos humanos de novo? Espantado, Torrance, que olhava o céu, virou-se para Jeri. — O que você quer dizer com isso? Os cílios de Jeri tremeram e baixaram. — Bem, isso vai depender do que cada um de nós prefira. Talvez, você... bem, queira colocar os pensamentos em ordem, ou qualquer coisa assim. O coração de Torrance palpitava. — E você? O que prefere? Jeri sorriu, desconsolada. Eu não sou uma filósofa. Sou apenas uma pessoa meio superficial, e gosto de viver a vida enquanto a tenho nas mãos... Jeri virou-se, ficando quase de costas para Torrance. — ... Mas não consigo encontrar alguém para vivê-la comigo. Torrance, ou as mãos de Torrance, tocaram aqueles ombros nus, e viraram- na, deixando-os frente à frente. Jeri sentiu-lhe as palmas sedosas das mãos. A voz de Torrance veio, rouca: — Não mesmo? Jeri cerrou os olhos e inclinou o rosto, os lábios entreabertos. Torrance beijou-a. Um segundo depois ela retribuiu. Nicholas van Rijn surgiu na soleira da porta.
  • 50. Ali permaneceu um instante, com o cachimbo na mão, a arma enfiada no cinto. E logo esbravejou com o mordomo, mandou-o ir para a plataforma. Berrou: — O que é isso? — Oh ... — desculpou-se Jeri. E desvencilhou-se. Torrance foi tomado por uma onda de raiva. Cerrou os punhos e partiu na direção de Van Rijn. — O que é isso? — insistiu o mercador. As anteparas pareceram estremecer com o ribombo daquela voz. — Seus piolhentos! Entro aqui, e o que vejo? O rabo de Satã preso numa armadilha de ratos! Eu fico horas a fio a gastar o meu cérebro, os meus ossos, por vocês, inúteis e, enquanto isso, seu bastardo, filho de uma cobra caspenta com um bicho de queijo, enquanto isso você agarra minha própria secretária, contratada com meu dinheiro suado. Pelas gárgulas e Gõtterdammeraung! Ajoelhe-se, e peça perdão, ou vou esmagá-lo e vendê-lo como alimento para cães. Torrance parou, a alguns centímetros de Van Rijn. Era ligeiramente mais alto do que o mercador, embora menos corpulento, e pelo menos trinta anos mais jovem. — Saia! — falou, numa voz estrangulada. O rosto de Van Rijn mudou de cor, de sua garganta saiu um ruído engasgado. — Saia! — repetiu Torrance. — Eu ainda sou o Capitão desta nave, e vou fazer o que bem entender, sem interferência de qualquer parasita espalhafatoso. Saia da ponte, antes que eu o bote daqui para fora! Van Rijn perdeu a cor das bochechas. Por uns bons segundos, ficou imóvel. Depois, por fim, sussurrou: — Pelo Diabo! Pelo Diabo e pela Morte, ao cubo! Não é que ele tem a petulância de responder! O punho esquerdo de Van Rijn abriu o compasso e desferiu um soco.
  • 51. Torrance bloqueou-o, embora a força fosse tanta que quase o desequilibrou. Torrance devolveu a esquerda no estômago do mercador e, depois de afundar um pouco na gordura, encontrou músculos, e recuou a mão machucada. A direita de Van Rijn acertou-o. À volta de Torrance, o cosmo explodiu. Torrance subiu, caiu para trás; e caído ficou. Quando recuperou a consciência. Van Rijn lhe acariciava a cabeça e oferecia brandy que uma lacrimosa Jeri fora buscar. — Aqui, rapaz. Calminha, aí. Que tal um traguinho? Vai fazer bem. Tome, você só perdeu um dente, e, vamos dar um jeito nele em Freia. Coloque na conta de despesa. Isso já o deixa mais animado, nie? Agora, menina, Jarry, Jelly, como é mesmo o seu nome? Me passe o estimulante. Acabaram-se os trabalhos no porão, menino. E agora, levante-se, não quero que você perca o espetáculo. Com uma das mãos, Van Rijn o pôs em pé. Por um instante, o Capitão apoiou-se no mercador, até que o estimulante veio eliminar as dores e a tonteira. Então, brusco, com os lábios inchados, perguntou: — Eu ouvi o senhor falar que... — É, eu já sei quem são os Eksers. Eu tinha ido procurá-lo, para irmos apanhá-los na jaula. Com o polegar grande, envergado, Van Rijn cutucou Torrance e, com a leveza de um furacão, segredou: — Não vá contar a ninguém . .. pois, do contrário, vou ter que brigar toda hora.. . mas eu gosto de pessoas assim como você, com nervos de aço. Quando chegarmos em casa, estou pensando em transferi-lo desta nave de passeio para comandar uma frota mercante. Que tal? Mas venha, ainda temos muito trabalho. Atordoado, Torrance o acompanhou. Atravessaram a pequena nave, o tubo, e entraram na outra, passaram pelo corredor, pela rampa, e chegaram ao recinto do zoológico. Van Rijn fez um gesto para os tripulantes, ali postados em guarda para evitar que os Eksers tentassem escapar. Os guardas sacaram as armas e juntaram-se a ele, com uma postura exausta, relaxada que se aprumou, alerta, quando Van Rijn parou diante da câmara de ar.
  • 52. Torrance quase explodiu: — Não é possível! Esses aí? Caramba, eu... eu pensei que... — Você pensou o que eles queriam que você pensasse — sentenciou Van Rijn pomposamente. — O esquema era bom. E teria dado certo, mesmo com a perseguição da Patrulha-Cobra, se não estivesse aqui Nicholas van Rijn. Bem, mas vamos ao que interessa. Vamos entrar e apanhá-los; nossas armas servirão como demonstração de força. Espero não ter que agir com muita severidade com eles. Creio que não vai ser preciso, quando explicarmos a eles, por desenhos, que já descobrimos o segredo. E eles vão nos levar a Valhala, guiados por aqueles lindos diagramas astronáuticos feitos pelo Capitão Torrance. Ameaçados, irão cooperar. Primeiro, como prisioneiros. Durante a viagem, porém, podemos nos utilizar dos meios normais para estabelecermos comunicações alimentares... Não! Pelo terror dos impostos! Alimentares não. Queria dizer, rudimentares... Bem, de qualquer modo, vamos incutir-lhes a idéia de que nem todos os humanos são dessa perversa Patrulha-Cobra, e que queremos ser amigos e vender-lhes, coisas. Está bem? Então vamos. Em passadas largas, Van Rijn atravessou a câmara de descompressãoo e com a manopla agarrou um bicho de capacete e levou-o, debatendo-se, para fora da jaula. ♦♦♦ Torrance teve que dedicar todo o tempo ao próprio trabalho. Primeiro, a entrada que fizeram na nave aprisionada teria que ser fechada. Enquanto isso, trariam da Hebe G.B. todos os suprimentos e equipamentos. Depois, teriam de soltar a nave de passeio, com a própria hiper-propulsão. Algumas horas antes de queimar- se o conversor, ela talvez atraísse uma Patrulha-Cobra, que iria em seu encalço. Aí, então, a viagem começaria, e embora os Eksers tivessem traçado a rota indicada, deveriam ser vigiados sem descanso para que não tentassem alguma façanha suicida. Todo momento livre devia ser dedicado à tarefa urgente de conseguir estabelecer
  • 53. com eles uma linguagem comum e simples. Seria dever de Torrance, também, supervisionar a tripulação, acalmar-lhe os receios, observar o radar-detector de vasos inimigos. Se alguma nave inimiga fosse detectada, os humanos teriam de se lançar em hiper-propulsão e esperar poder despistar o inimigo. Isso ainda não acontecera, mas a tensão era considerável. De vez em quando, Torrance tirava um cochilo. E assim não teve muita chance de conversar a fundo com Van Rijn. Para ele, o mercador tivera apenas um palpite de sorte. Mas deixou ficar como estava. Até despontar Valhala, um disco minúsculo amarelo, que brilhava mais que as outras estrelas; uma nave-patrulha da Liga aproximou-se, e, depois das explicações, escoltou-os no trajeto rumo a Freia, a uma velocidade subluz. O capitão da nave-patrulha declarou que gostaria de subir a bordo. Torrance o dissuadiu prontamente: — Quando estivermos em órbita, Cidadão Agilik, terei muito prazer em recebê-lo. Agora, porém, as coisas estão desorganizadas. O senhor compreende, é claro. E desligou o telecomunicador, que, a esta altura, já sabia operar. — Bem, acho que vou descer e tomar um banho. Não tomo banho desde que deixamos a Hebe G.B. Assuma, Cidadão Laferge... Torrance hesitou. — Junto com... Uh... o Cidadão Jukh-Barklakh — completou. Jukh rosnou algo. O gorilóide estava muito ocupado para conversas, escarrapachado no lugar que antes marcava o assento do piloto. As mãos grandes, com força, apertavam placas de controle, ao conduzirem a nave numa rota hiperbólica. Barklakh, o bicho de capacete, montado nas costas do gorilóide, não possuía cordas vocais próprias; acenou um tentáculo e enfiou-o num orifício de proteção, para girar uma delicada chave de ajuste. O outro tentáculo permaneceu agarrado, no mesmo lado em que estava, no pescoço maciço do gorilóide, de onde extraía alimento da corrente sangüínea, recebia impulsos sensoriais e emitia os
  • 54. comandos motores nervosos, dignos de um piloto espacial qualificado. No começo, á combinação parecera, a Torrance, meio vampiresca. Porém, embora os ancestrais dos bichos de capacete devessem ter sido parasitas dos ancestrais dos gorilóides, agora já não o eram mais. Eram simbiontes. Os bichos de capacete forneciam os olhos e o intelecto, enquanto os gorilóides entravam com a força e as mãos. Isoladas, as duas espécies não valiam nada. Combinadas, eram algo muito especial. Assim que se acostumou à idéia, Torrance percebeu que o fato de um bicho de capacete usar as garras para montar o gorilóide, não era mais desagradável que o ato de um homem, num esteréopico histórico, montar um cavalo. E assim que os bichos de capacete se acostumaram à idéia de nem todos os humanos eram inimigos, evidenciaram uma afeição positiva por eles. Eles, sem dúvida — refletiu Torrance — estão pensando que conseguiram novos e excelentes espécimes para vender ao seu zoológico. Torrance deu um tapinha na carapaça de Barklakh, acariciou o pêlo de Jukh, e deixou aponte. O banho de esponja, regado a essências, e a roupa limpa apagaram-lhe as marcas do cansaço. Pensou em ir alertar Van Rijn. Bateu na porta da cabine que o mercador resolvera tomar como sua. Um vozeirão de baixo ribombou: — Entre. Torrance entrou num cubículo azul de tanta fumaça. Van Rijn sentava-se num caixote vazio de brandy. Numa das mãos,um charuto; na outra, a cabeça de Jeri, que se lhe aninhava no colo. — Bem, sente-se. Sente-se. Veja se encontra uma garrafa no meio da roupa suja, ali no canto — trovejou Van Rijn, muito cordial. — Eu passei para dizer-lhe, senhor, que teremos que receber a bordo o capitão da nossa escolta, assim que entrarmos na órbita de Freia, o que acontecerá em breve. Cortesia profissional, o senhor sabe. É natural que ele esteja ansioso para conhecer os Ek ..., quer dizer, os Togru-Kon-Tanakh. Van Rijn franziu o cenho.
  • 55. — Muito bem, companheiro. Coloque o tubo. Deixe-o vir a bordo. Só peça a ele que traga a própria garrafa, e que não fique muito tempo. Quero aterrissar, já não agüento mais o espaço. Quando chegar em Freia, juro, vou correr descalço por todos aqueles campos frescos e macios. — Talvez o senhor queira trocar de roupa — insinuou Torrance. Jeri soltou um gritinho agudo e correu para a cabine que, às vezes, ocupava. Van Rijn recostou- se na parede, apanhou o sarão e cruzou as pernas cabeludas. — O capitão quer conhecer os Eksers. Pois então que conheça os Eksers. Eu vou ficar no meu conforto. E não vou entretê-los contando como foi que descobri quem eram eles. Isso será exclusividade minha, para vender ao sindicato de notícias que fizer a melhor oferta. Você compreende, não? Van Rijn lançou-lhe um olhar desconcertantemente penetrante. Torrance engoliu em seco. — Compreendo, sim senhor. — Agora sente-se, rapaz. Me ajude a colocar minha estória em ordem. Eu não tive a sua boa educação. Sempre fui um velho pobre, e solitário, trabalhando duro desde os doze anos de idade. Portanto, vou precisar de ajuda para que minhas palavras sejam tão elegantes como minha lógica. — Lógica? — Torrance ecoou, intrigado. Ergueu a garrafa, pois, afinal, a nuvem de tabaco fazia-lhe arder os olhos. - Pensei que o senhor tivesse adivinhado... — Adivinhado? Você me considera tão pouco assim? Não, não. Nada disso. Nicholas van Rijn jamais adivinha. Eu sabia. Van Rijn apanhou a garrafa, tomou um gole vigoroso e, magnânimo, acrescentou: — Quer dizer, depois que Yamamura descobriu que os gorilóides, sozinhos, não poderiam ser o povo que queríamos. Então, me sentei, juntei os pensamentos e resolvi analisar a coisa. Pois veja, tudo aconteceu por simples eliminação. O elefantóide foi eliminado logo. Só havia um. Talvez, numa emergência, seria possível a uma só pessoa pilotar esta nave. Mas não aterrissá-la, apanhar animais selvagens,