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OS FLORAIS PERVERSOS DE MADAME DE SADE
CAPÍTULO 1
A PREGUIÇA
Sexta-feira, 2 de dezembro de 1814
Agradeci à criada a taça de vinho e o aviso da chegada de Monsieur Barre.
Recostada nas almofadas adamascadas da otomana, conferi o fogo na lareira e
vi pela janela a neve caindo sobre as árvores desfolhadas da Place des Vosges.
Os últimos passantes demonstravam mau-humor no final precoce da tarde de
inverno, com aquele ar enfarado de tantos dias de chumbo e céu cinza. Fechei
os olhos. Acudiu-me à cabeça o sol de minha mocidade em Marselha.
Aconcheguei-me sob as cobertas, sorvi um gole e avaliei, pela minha lassidão,
que o pecado capital reservado à velhice era realmente a Preguiça. Quase
imberbe, mas muito sensível aos comandos da natureza, o jovem Vincent
Barre esperava para me satisfazer a Luxúria – ou o que restava dela. Nos
últimos tempos, entretanto, qualquer esforço, mesmo os necessários ao êxtase
do coito, enfastiava-me. Tudo muda com o passar dos anos. “A Luxúria a
juventude comeu, da Gula desisti. Hoje, me parece mais confortável viver os
prazeres da imaginação do que o rude chamado do corpo”, concluí com meus
botões. Fui expulsa dos devaneios por outro toque inesperado na porta. Mas,
em vez do gentil-homem, quem invadiu o boudoir foi novamente a mocinha,
seguida por uma esbaforida Odette.
- Madame, Madame! – gritou Simone, sem a menor atenção à compostura
exigida pela etiqueta. Os anos de Napoleão tinham rebaixado os padrões de
comportamento da criadagem. No meu tempo, aquela intimidade seria
inconcebível, mas ralhar com ela não valia o esforço.
- Madame, o Marquês morreu! – anunciou sem fôlego.
- Que Marquês? – perguntei, sem querer entender.
- Sade - confirmou Odette com ar compungido.
O primeiro efeito da notícia da morte de meu velho mestre foi a dor. Quantos
anos, mais de quarenta? No mesmo instante em que as lágrimas me subiam
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aos olhos, um insidioso e conhecido calor começou a se espalhar pelo meu
corpo. A dor não é empecilho para o desejo, mas antes a causa, primeira lição
do Marquês.
- Manda entrar M. Barre – ordenei a Odette, ignorando seu ar de preocupação.
Num átimo, o estudante abriu a porta do boudoir, trancou-a e voltou-se
sorridente para mim, já prestes a desempenhar sua tarefa. Logo tirava às
pressas as botas de montaria e os calções para liberar o caralho descomunal
erguido em riste, a língua afoita mirando minha boceta, enquanto eu levantava
as saias. Em circunstâncias normais, o gozo rápido bastava à minha Preguiça,
e tudo se resolveria muito depressa, como normalmente o fazíamos. Naquele
dia, contudo, a dor deu-me energia suficiente para despir-me por inteiro, e até
para prender à coluna da cama as mãos cheias de urgência de Vincent.
Tive de usar o chicote, a princípio com indiferença, em seguida com o prazer
que só a submissão de uma vítima desperta. Em pouco tempo todo o belo
corpo claro tinha marcas. Lambi lentamente as gotículas de sangue dos
vergões, até que se contorcesse de prazer e dor, a vara enorme cada vez mais
tensa e rija. Ainda tinha as mãos presas quando o cavalguei, ditando o ritmo.
Quando afinal gozei, ungida de suor e sangue, gritei por Sade, meu querido
mestre e carrasco, enquanto o amante levava o rosto até minha boceta,
lambuzando-se loucamente com meus fluidos misturados aos dele. Nosso
gozo tirou-nos o fôlego. Recobrei-me primeiro.
- Sai, Vincent, teu trabalho terminou – murmurei alguns segundos depois,
olhando-o nos olhos pela primeira vez. – Mas não te afastes muito; mandarei a
criada avisar quando de novo se fizer necessária a tua presença.
Paguei-o e, ao som da porta a fechar-se, reclinei-me novamente, nua na
poltrona, observando com tristeza meus pentelhos úmidos, raiados de branco
como a barba de um velho camponês. “O tempo é implacável”, pensei, sem
nenhuma originalidade, mas com grande sentimento. Levantei-me com pouca
vontade, vesti-me e calcei chinelas acolchoadas. Em passos aveludados de
gata velha, dirigi-me à penteadeira. Escolhi um entre os muitos frascos de
cristal que se refletiam nos espelhos. Os extratos reluziam à luz da lareira.
Estramônio ou mandrágora, cânhamo ou trombeta, artemísia ou efedra, que
planta teria segredos para mim, a filha do jardineiro-chefe da Marquesa de
Sade?
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Pinguei vinte gotas de beladona na taça. A poderosa essência agora se agitava
no vinho. É capaz de curar cólicas, mas é também fonte de alucinações. A
beladona era o principal ingrediente da poção verde das feiticeiras da Idade
Média, que incluía gordura de bebê. Para obtê-la, as bruxas profanavam as
sepulturas e ferviam em enormes caldeirões os corpinhos roubados.
Esfregando essa pomada de gordura e ervas na pele, com particular atenção
aos órgãos genitais, acreditavam-se capazes de voar. Ninguém pode confirmar
se elas de fato viam os telhados do alto de suas vassouras, ou se, no ar,
copulavam com o diabo em pessoa, como apregoavam. Mas a diferença entre
a realidade e a miragem talvez não seja tão grande quanto dizem os modernos
homens de ciência.
A voz de Odette chamou-me de volta:
- Com licença, vim certificar-me de que Madame está bem.
- Ia mesmo chamar para tranqüilizar-te.
Era verdade. Se algum laço de afeto ainda me ligava à humanidade ele era
atado por Odette. Os anos e sua verdadeira adoração por mim, a patroa,
acabaram forjando o mais próximo que conheço por amizade. Sua argutez, seu
julgamento preciso e sua lábia me tinham sido preciosos nos últimos trinta
anos. Nem a gota que a atacava por vezes empanara seu feitio folgazão,
temperado por um travo de ganância. Ela sempre enxergava bons modos de
ganhar algum dinheiro e, se não fizera o devido pé-de-meia, pois muito
ganhara, pelo menos sustentava Olivier com conforto. Adotara seu eterno
cafetão ainda garoto, mas já se vangloriando de ser estudante de Filosofia.
Tornou-se um velho e inútil filósofo bêbado, autor de maus versos, a contar
sempre com ela.
- O que a aconteceu com o Marquês? Como o soubeste?
- O jovem cavalariço, admirador de Simone Lely, essa criadita, acabou de
voltar de Charenton com a notícia. Aparentemente ele teve uma congestão.
A imagem de Sade, gordo, velho, apoplético, caído em uma cama do asilo me
atingiu. Sacudi a cabeça para tentar afastá-la e reparei que Odette trazia
plumas na mão. Reconheci as penas de ganso que sempre enviara a título de
consolo e presente para o Marquês. Nada o desesperava mais que não poder
escrever. De repente, mais um elemento se tornara inútil. O Globo pareceu-me
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ainda mais insuportável. Tomei mais um gole de vinho, o que fez brilhar os
olhos da velha criada.
- Nem pense nisso – atalhei, com a autoridade temperada pelos anos de bem-
querer. – Vou dar-te um chá de flores de madressilva, ideal para gota, bem vi
como te arrastaste ao atravessar o boudoir.
Apesar de desapontada pela interdição ao vinho, ela mostrou-se contente. Nos
dias de hoje, perto dos 60 anos, mais do que tê-la feito sempre ganhar
dinheiro, minha maior valia era medicar-lhe os achaques e aliviá-la das dores.
Toquei a sineta para que a Simone trouxesse o bule com a infusão. Quando
chegou dispensei-a, servi-o a Odette e ordenei:
- Senta-te a meu lado. Sei que entre todos os hipócritas do mundo tu és uma
das poucas almas boas que apreciaram o divino Marquês de Sade.
- Madame, nas poucas vezes em que o vi na cadeia, de divino não tinha mais
nada, tão sombrio e doente. Sempre o considerei um cavalheiro, a tratar a
todos muito bem, com grande afabilidade e cortesia. Custa crer que ele seja
tão malfalado, mesmo porque ninguém resistia a seus encantos.
- Prova é que, além daquela santa da segunda esposa acompanhá-lo de livre e
espontânea vontade a Charenton, ele seduziu a filha da carcereira. Apesar de
ter apenas 14 anos quando a mãe a cedeu por algumas libras, Madeleine era-
lhe extremamente afeiçoada, como de resto todas as mulheres que o amaram.
- Sim, agora, aos 17 anos, ela continuava a rondá-lo. Ele vivia a agradá-la com
os chocolates que a senhora me encarregava de levar-lhe. O sonho do
Marquês era sair de Charenton para encenar peças libertinas em Paris com a
mulher, Marie Quesnet, e a amante. Quantos planos para um homem já velho!
Que idade tinha?
- Fácil, eu nasci no ano do casamento dele, quando contava 23 anos, em 1763.
Tenho 51, ele estava com 74.
- Lamento muito pela senhora, Madame, sei que deve estar desolada.
- Odette! – espantei-me – tu te dás conta da coincidência deste triste dia?
Lembras-te do que aconteceu há exatos dez anos?
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- No 2 de dezembro de 1804? Minha cabeça anda ruim para o que fiz ontem,
mas o passado está cada dia mais presente. Trago viva a imagem de Madame
nervosa, enquanto ajudava Antoine a dar-lhe os últimos retoques no cabelo,
achando que iria perder o começo da Coroação do Imperador.
- Imagina que ironia do destino, esse homem que não permitiu que o Papa lhe
colocasse a coroa na cabeça, preferindo cingir-se com as próprias mãos, hoje
prisioneiro na Ilha de Elba. Ah, se eu pudesse sonhar que deixaria não só
próprio Pio VII como nós todos esperando quatro horas geladas da suntuosa
Notre Dame não teria atormentado Antoine à toa para acabar-me o toucado.
- Bom, pelo menos o Marquês teve o gosto de saber que seu tirano também
conheceu a desgraça – consolou-me Odette.
Tomei um gole generoso do vinho com beladona.
- Bem sabes que o Marquês foi uma das vítimas do Imperador, que o fez
morrer na cadeia. Percebes que já não temos cavalos honestos hoje em dia?
Pois aí tens, Napoleão acabou não só com os homens, mas também com os
cavalos da França.
- Nunca entendi bem os livros do Marquês, Madame, pode ser até por minha
pouca leitura – disse Odette. – Mas, sou obrigada a concordar com o corso,
me parecem um amontoado de impropérios.
- Pelo menos não eras um dos censores de Bonaparte, que baniram os
romances de Sade das livrarias do Palais Royal, nunca passaste de uma
mundana em abastança.
- Graças a Madame nada me faltou, diga-se de passagem. Devo lembrá-la,
com todo o respeito, de que sou sua gerente-associada e dona de algumas
pequenas propriedades. Mas, se nunca fui mais que uma criada, o grande
General nunca também passou de um grande corso. Conheço bem as histórias
de vendetta e banditti de sua terra natal. Madame, não tenha dúvida, estes são
os verdadeiros princípios do Imperador – disse a atilada criatura, não sem uma
ponta de admiração.
- Como és sabida, Odette, como sabes ouvir bem, tua perspicácia compensa
tua pouca cultura.
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- Sim, lembro-me das histórias daquele jovem oficial corso, que gostava tanto
de prosear comigo a ponto de dar-me Gizeh, nosso anão egípcio. Giacomo era
muito prestigiado por Napoleão, até fisicamente se assemelhava a ele, a contar
casos de mercenários alugados por sua família para executar sangrentas
vinganças contra famílias inimigas. Mas é melhor falarmos de coisas menos
lúgubres, Madame precisa descansar o espírito.
- Sempre preciosa, querida Odette. Deixa-me agora, vou sorver meu cálice até
a última gota.
Queria rever, ainda que em quimera, aquele que, junto com meu pai, me
ensinou tudo o que sei. Útil beladona, sempre pronta a criar realidades
paralelas. Bastaram poucos minutos para que começassem a desfilar ante
meus olhos vívidas imagens. A primeira foi a de Juliette, caída de costas, nua,
numa cama de um bordel de luxo, ceifada pelo excesso do remédio que, de
alívio, degenerou em vício e morte. Depois, o Marquês morto no asilo de
alienados. De volta ao atual esplendor de meus aposentos dignos de um nobre
do Ancien Régime, ouvi a voz sarcástica de Louis Alphonse de Sade.
- Muito mudou desde que teus pêlos ainda tinham a intensidade do negro
profundo dos topinamboux, teus antepassados do distante Brasil, Joséphine.
Trazido pela beladona, Louis-Alphonse François, o Marquês de Sade, jovem,
impecável, altivo em seu adorável sorriso, surgiu envergando uma casaca
cinza, peitilho de renda, culottes de seda e bengala de castão de ouro. Os olhos
azuis tinham a ironia de eterno gentil-homem, que ganhava um ar mais
másculo por causa das pequenas marcas de varíola no rosto. Os cabelos cor de
mel, levemente revoltos, estavam presos por uma fita vermelha.
- O tempo nos mudou, querido Marquês. E devo dizer que foi bem mais
generoso comigo que contigo – respondi ao vulto.
A réplica dura desagradou à miragem, que se afastou, deixando-me apenas
com as memórias. Hoje tenho muito de tudo aquilo que os homens desejam,
mas, de tudo o que me resta, os fantasmas dos pecados capitais são o que mais
prezo. Conheci todos os sete, bem intimamente: a Inveja, a Gula, a Ganância,
a Luxúria, a Ira, a Soberba e a Preguiça. Mesmo em minha atual predileção
por este último, que até então, imatura, julgava um pouco desprezível, devo
reconhecer os bons frutos por todos eles trazidos. Da Inveja e da Ira tirei a
força que me impeliu vida afora. Da Soberba veio-me o desprezo aos juízos,
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humanos ou divinos. Da Gula e da Luxúria ganhei o conhecimento íntimo dos
prazeres. Da Ganância, o ouro que os possibilita. E agora era a Preguiça a
prender-me em suas delícias. Muitas vezes, um pecado conduzia a outro, sem
que eu nada fizesse para impedir.
A Luxúria, por exemplo, veio através da Inveja, o primeiro deles. Menina, já
me deslumbrava com o mundo de perfumes e brocados, de perucas empoadas
e espelhos reluzentes, das frívolas pantufas de seda e da maquiagem de
alvaiade que estragava a pele de Madame Renée-Pélagie de Sade, minha
patroa. Eu queria muito ser a Marquesa. Mais ainda, eu almejava ter o marido
dela. Louis-Alphonse, como eu secretamente chamava meu amo, era um
homem de bela figura, com maneiras muito mais refinadas do que as de
qualquer outro fidalgo. Se algo duro e maldoso se desenhava no fundo de seus
olhos, isso só lhe aumentava o encanto, acrescentando-lhe o tempero do
perigo. Mas, por mais que sonhasse com suas mãos finas, Louis-Alphonse
parecia inatingível a mim, Joséphine, a humilde criadinha encarregada de
dobrar as saias usadas de Madame, esquentar-lhe a água para o banho e abaná-
la com o leque de penas durante os ensolarados verões da Provença.
Ao guardar-lhe os vestidos, costumava comparar as sedas de delicados tons
que a envolviam com minhas saias de chita ordinária, tingida em cores
berrantes. O contraponto ficava ainda pior quando me vinha a lembrança de
minha mãe, sempre abrigada nas pesadas roupas de lã preta que a protegiam
mal do inverno parisiense. Ásperas ao toque, contrastavam com a doçura da
voz dela ao me embalar ou implorar que fizesse menos barulho, para não
incomodar os patrões. Não, definitivamente, eu não iria repetir o destino
miserável de minha mãe.
Tantos anos e tantos amantes depois, os seios outrora impecáveis declinando
para a terra que um dia os abrigaria, eu pensava na garota de 40 anos atrás. E
aquela Joséphine, concluí, entorpecida pelo langor do meu ventre bem
satisfeito de sexo, beladona e vinho, invejosa e dissimulada, já sabia muito
bem o que queria e intuía os meios de consegui-lo. Eu, com certeza, não
herdara a candura dos meus antepassados, índios cuja bondade natural levou o
ingênuo Rousseau a considerá-la inerente a todos os seres humanos. “O
Homem é bom, a sociedade que o perverte”, repetia o crédulo.
Quem gostava de me contar velhas histórias de família era meu pai, que se
vangloriava de ser descendente de Poty, o protegido de Hervé de Tocqueville.
Capitão da Marinha Real, ele trouxera o índio da antiga França Equinocial no
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século XVII, da longínqua terra tropical conhecida como Vera Cruz. Poty,
camarão na língua dos topinamboux, ganhou correspondente em francês,
rebatizado por Tocqueville como Pierre Pêcheur, ou Pescador. A maioria dos
selvagens transplantados para a Europa terminaria morrendo de gripe ou
sarampo, mas Poty, que gostava de andar nu, viveu até idade avançada. Teve
tempo mais que suficiente para casar-se com a tecelã Marie, em 1610, e
produzir vasta prole. Por sinal do destino, talvez, Marie Pêcheur tingia seus
fios com um produto vermelho vindo da terra natal do marido, extraído da
árvore pau-brasil.
Pierre Pêcheur trouxera consigo dos trópicos vários espécimes vegetais que
tinham interessado aos grandes naturalistas de sua época. Com eles, fervia
tisanas e poções poderosas, cujo segredo, aprendido nas selvas com seus
ancestrais, transmitiu para seus descendentes, chegando a meu pai. Eu ainda
não sabia, mas um dia todo esse império de conhecimento seria meu, e me
faria mais poderosa que um General de Napoleão.
- Esta orquídea veio da América com o primeiro de nós – dizia meu pai,
mostrando as belas flores nascidas nas estufas da mansão Montreuil.
Era nos vastos domínios dos pais da futura Marquesa que cultivava suas raras
plantas. Jean Pierre Pêcheur tinha pele trigueira e lisos cabelos pretos, que
nenhum ferro de frisar era capaz de deixar cacheados como ditava a moda.
Paparicado pela patroa desde os tempos de mocinha, já tinha certa fama como
criador de paisagens e jardins. Em seus canteiros, fundia remotos estilos
tropicais com a formalidade dos jardins franceses, combinava as crenças
topinamboux nos deuses das plantas com sólidos conhecimentos da vanguarda
da ciência. Meu pai admirava o médico Karl von Lineu, que na gelada Suécia
sistematizava todas as formas de vida, começando pelas plantas.
Caprichoso em tudo o que fazia, Jean-Pierre tinha cópias da correspondência
trocada com M. Lineu. No começo, consultara o naturalista sueco a pretexto
dos espécimes trazidos por seu antepassado, Poty. Lineu, um cientista viajado
pela França e Inglaterra, interessara-se por sua ingênua mistura de conceitos
ocidentais e crenças anímicas, e os dois se corresponderam por muitos anos.
Eu conservava aquelas cartas, o maior tesouro de meu pai, atadas por uma fita
vermelha no baú chinês de laca. Em vez de chamar a criada, eu mesma me
levantei e abri o baú com a chave que trazia ao pescoço, em um cordão de
ouro. Coloquei os óculos masculinos, meus favoritos, pois incomoda-me
ocupar uma das mãos com a haste da elegante e incômoda lorgnette que as
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mulheres usam. Sem o auxílio daquelas preciosas lentes sobre o nariz,
entretanto, eu não conseguia ler praticamente mais nada. Remexi os velhos
papéis até encontrar as primeiras cartas:
Paris, 14 de julho de 1770
Prezado M. Lineu,
Tomei conhecimento de seu magnífico Filosofia Botannica por intermédio do
grande naturalista George Louis Leclerc, Conde de Buffon, para quem as
teorias são impessoais e coletivas, cabendo unicamente ao estilo a revelação
do indivíduo que escreve – o estilo é o homem – segundo suas palavras).
Sou jardineiro-chefe da casa de Montreuil, em Paris, onde cultivo plantas
tropicais em estufas. Antes que o senhor estranhe, devo esclarecer ser
descendente de índios brasileiros, que trouxeram para a França várias
espécies de cipós e orquídeas, hoje presentes até no Jardin des Plantes,
menina dos olhos de Buffon.
Seu sistema de classificação, M. Lineu, encanta-me porque retira as plantas
do mundo dos espíritos, onde colocadas por meus antepassados, e lhes dá
nome e sobrenome, compondo uma hierarquia de gêneros que se ramificam
em espécies. Nessa classificação ousada, o senhor incluiu o próprio homem,
colocando-o na mesma família que os símios. Tenho, contudo, certas dúvidas
que ultrapassam a questão da classificação, embora dela decorram. Por isso
tomei a liberdade de lhe escrever.
A primeira refere-se à sua sugestão de que novas espécies de plantas surgem
a partir do cruzamento sexual de espécies primitivas. Esse fenômeno não
contraria a Divina Criação, segundo a qual os seres são imutáveis e fixos,
produto da obra de Deus? Se levarmos a teoria do senhor em conta, novas
formas de vida estariam sendo produzidas a cada momento.
Transformei a outra dúvida numa série de perguntas entrelaçadas. Para
apoderar-se do que chamavam de “espírito das plantas”, meus ancestrais
invocavam os deuses. Como o senhor eliminou a alma dos vegetais, a que
atribuir essa estranha força que existe nos vegetais, principalmente nas
flores? Sempre acreditei ser possível aprisionar em água a alma das plantas,
transmitindo sua essência a quem a bebe.
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Creio também que podemos perceber as almas do Reino Vegetal olhando
para suas formas. Por que as flores das papoulas da Turquia fazem sonhar?
Por que as plantas de caules finos como fios de cabelo servem para tratar a
calvície, como acontece com a Adiantum capilum veneris, a avenca? Por que
servem para tratar os joanetes, com que se parecem, os bulbos do Colchicum
autumnale, o lírio rosado? Por que os duplos tubérculos da orquídea Orchis
mascula, que imitam testículos, servem para curar a impotência? Que espécie
de linguagem é essa, em que cada planta parece indicar sua utilidade a partir
de sua forma?Queira me desculpar pela ousadia, ficarei eternamente grato se
tiver a bondade de responder-me.
Respeitosamente
Jean Pierre Pêcheur
Em mais uma prova do temperamento racionalista de Jean-Pierre, que
guardava cuidadosamente dúvidas e respectivas respostas, a carta de Lineu
estava amarrada à cópia da mensagem enviada.
Uppsala, 15 de novembro de 1770
Prezado M. Pêcheur,
Fiquei encantado com sua carta e as dúvidas apresentadas. Sua genealogia
me lembra o Bom Selvagem de Rousseau, que tenho a certeza de ter se
inspirado em seus antepassados.
Gostaria de responder à sua primeira pergunta esclarecendo que o fato de as
espécies não serem fixas não contraria a Criação, nem empana a glória de
Deus, referência que tive o cuidado de fazer no prefácio de meu livro Systema
Naturae, anterior ao Filosofia Botannica citado pelo senhor.
O caminho da ciência não é isento de sobressaltos, mas o fato de as plantas
fazerem sexo, como os animais, mostra que essa é a ordem natural da vida.
Já as novas espécies surgidas de cruzamentos de espécies diferentes são um
enigma que só o avanço do conhecimento poderá desvendar.
Quanto à segunda pergunta, gostaria de esclarecer que considero um engano
a célebre Teoria das Assinaturas, retomada dos antigos gregos pelo sábio
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suíço Paracelso, que viveu em princípios do século XVI e foi versado na arte
da Medicina. Considerar que as propriedades medicinais das plantas são
indicadas por sua aparência não passa de um artifício para facilitar a
memorização. É como encontrar sentido nas figuras que as nuvens efêmeras
pintam no céu. Na verdade, as propriedades das plantas decorrem de
substâncias químicas nelas presentes, e que só agora a Ciência tem
conseguido isolar, graças ao trabalho dos novos mestres, como seu
conterrâneo, o grande químico Antoine Lavoisier.
Vou me ater ao exemplo da papoula, que batizei de Papaver somniferum, por
suas sementes serem comestíveis e seus frutos favorecerem o sono. A planta
em si é inofensiva; seu efeito narcótico só é obtido se a mão do homem
machucá-la, obrigando-a a liberar a substância do sono e dos sonhos.
Para pleno êxito com a papoula, é necessário arranhar a superfície da
cápsula das sementes ainda não totalmente madura. Imediatamente surgirão
pequenas gotas brancas que emitem cheiro alcoólico penetrante e aos poucos
escurecem, tornando-se marrons. Essa é a substância ativa do ópio;
misturado em água, ele solta seu efeito. Os ingleses costumam diluí-lo em
cherry, acrescentando especiarias como açafrão, cravo e canela, conforme a
receita de 1714, criada por Mr. Thomas Syndeham. A essa fórmula dá-se o
nome de láudano.
No Oriente, a resina das papoulas é prensada em fôrmas depois de seca.
Fumada ou comida, provoca forte efeito entorpecente. Por isso não
recomendo essas formas de uso, mas comprovei como médico que a ingestão
de ópio diluído em água é altamente benéfica à saúde, capaz de interromper
as crises de tosse e melhorar a digestão dos velhos.
Lembre-se, M. Pêcheur, que as plantas só deverão ser usadas para a maior
glória de Deus. Dentro deste sagrado limite, estou a seu inteiro dispor para
esclarecê-lo no que for possível, pois tenho grande alegria em ajudar
espíritos iluminados.
Sempre seu
Karl von Lineu
Sorri. Essas cartas eram a evidência de que tinha acertado ao cultivar papoulas
em minha estufa. Rubras a ponto de fazer sombras negras no abismo de sua
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forma, as flores estavam ali para me dizer que tudo é sonho, dissolução e
fluidez. Nas pétalas da Papaver somniferum nigrum, a fusão do carmim com o
negro lembra uma sedosa trama de finos fios de sangue, matizada pela
escuridão do nada, como se deixasse transparecer o vertiginoso fundo do
universo. Com a consciência recém-adquirida de que o pecado da Preguiça
tem inestimável valor, quero vivê-lo tão bem como fiz com seus seis irmãos.
Contrariando Lineu, tenho certeza de que a ação das plantas não se limita às
substâncias químicas que produzem. Como meu pai, sei que as plantas,
sobretudo as flores, têm uma energia vital capaz de agir sobre os estados
emocionais de homens e animais.
Essa energia, não menos material pelo fato de ser desconhecida, vibra no
mesmo tom que certas qualidades ou perversidades humanas, intensificando-
as. Também com Jean-Pierre aprendi que essa espécie de alma das plantas
pode ser aprisionada em água. Torna-se uma poção a que ele deu o nome de
floral. As preparações de flores da centáurea, por exemplo, ajudam a tornar
mais firmes os pareceres dos demasiado influenciáveis, ao passo que as
vistosas pétalas da Impatiens combatem sentimentos coléricos e afastam a
solidão. Menos conhecido é o fato de que o espírito de certas flores pode
ajudar quem, como eu, está mais interessado em deliciar-se com o Mal.
Graças à minha longa convivência com os pecados capitais, aprendi quais são
as flores de cada um deles. Captei essa essência em florais que se tornaram
preciosos em minha viagem pela vida.
Agora, a correspondência entre Jean-Pierre e Lineu me sugeria a fórmula do
meu derradeiro floral, o da Preguiça. “É nas papoulas das estepes asiáticas que
reside a essência da poção do ócio, hoje a encantar-me”, pensei. O pecado que
refreia a ação do corpo físico para maior brilho da riqueza da vida interior era
o único no qual ainda não mergulhara com a devida sofreguidão. Na manhã
seguinte, ainda em robe de chambre, fui colher as flores.
As papoulas importadas da Turquia tinham se dado bem na estufa retangular,
aquecida por fogões de carvão, que ficava no terraço. As pequenas chaminés
espalhavam um aroma de resinas queimadas pela Place des Vosges. Uma
comprida coifa que acompanhava as paredes de vidro levava para fora a
fumaça das dezenas de velas postas diante dos espelhos côncavos. Uma das
obrigações de Simone era deixá-las acesas todo dia, por rigorosas doze horas.
Os espelhos amplificavam a luz trêmula, dirigindo-a para as jardineiras. E
assim, graças aos milagres da Ciência, abastecia meus aposentos de flores
frescas em pleno e escuro inverno parisiense, papoulas, rosas, calêndulas,
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buquês de valeriana que pareciam estrelas, semeadas ainda em setembro, final
da estação quente.
As sementes das papoulas tinham vindo do porto de Marselha, encomendadas
a uma viúva chinesa que o próprio Sade tivera a delicadeza de me indicar.
Conversamos sobre ópio numa das últimas visitas a Charenton, onde dirigia
seus colegas, os pacientes, na encenação de peças e jograis que encantavam a
alta sociedade parisiense. Num domingo, depois da representação de uma de
suas comédias em verso, o Marquês contou-me que uma chinesa conhecida
por Raposa, na complexa e cerimoniosa língua mandarim, controlava o tráfico
de ópio na Europa.
A Raposa comandava uma esquadra-pirata de seiscentos juncos de guerra, que
encheu de pavor os mares do Oriente na primeira década de 1800. Poucos
meses depois de derrotar a esquadra do Imperador chinês, a viúva, que
mantinha em seu navio um harém de mulheres para saciá-la, perscrutou as
nuvens e decidiu render-se. Fez-se levar ao navio de comando da frota do
Imperador e mandou-lhe um bilhete em que dizia: “A Raposa se entrega às
asas do Dragão”.
A Raposa foi perdoada pelo Imperador-Dragão, livrando os mares do Oriente
da esquadra-pirata, que passou a dedicar-se exclusivamente ao comércio de
ópio e sementes de papoula com a Europa, sob proteção do soberano chinês e
de alguns governos europeus, como o da Inglaterra. Lembrei do riso de
escárnio do Marquês ao encerrar o caso:
- Na velhice, a Raposa assumiu um nome cuja tradução é algo como Brilho da
Verdadeira Instrução.
Colhi sete flores perfeitas e, com uma tesoura de prata, cortei rente as
papoulas, sem tocá-las, fazendo-as cair sobre a bacia de água pura. Com um
fino bastão de cristal, distribuí as flores sobre a superfície, Flutuando como
sete olhos rubros iam exibir-se à luz concentrada pelos espelhos durante
quatro horas. Assim se aprisionaria na água sua força vital, inexistente para
Lineu, mas que meu pai ensinara-me a captar. Meu próximo passo é retirar as
flores e filtrar um litro do líquido. Em seguida, sacudir cem vezes o frasco
para amplificar a vibração das flores, da mesma forma que o jogo de espelhos
amplifica a luz. A essa tintura-mãe, acrescentarei uma taça do mais fino
conhaque.
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Meu pai vivia a me alertar de que nem sempre o espírito das flores é benigno,
é preciso tomar cuidado. As palavras dele estavam em uma carta também
guardada no cofre de laca: Do lótus, que é criação, podes fazer uso, mas da
papoula, que é dissolução, não deves te aproximar. Ambos são faces da
mesma moeda; contudo, é preciso escolher. “Mas, desta vez, Jean Pierre, é a
dissolução que quero”, pensei. “A dissolução no sonho de onde brotam os
prazeres.” Puros de coração e de corpo, tão nus de malícia quanto de vestes,
os homens da família de meu pai não reconheciam que o mal impera sobre a
terra, nem viam que a volúpia de destruir é freqüentemente maior que o prazer
da criação. Pfff!...
Quem, como eu, conviveu tão de perto com Sade já sabia que a natureza que
nos comanda é a mais exigente e cruel das mães. E isso muito antes de ver
Paris banhada em sangue pela Revolução, tão facilmente desmentindo as
crenças ingênuas de Rousseau. Naquele tempo, no entanto, Paris me parecia
parte do Paraíso. Naqueles dias havia meu amor maior. E, nas noites, o cheiro
do sangue vertido pela guilhotina se misturava ao do esperma que inundava
nosso leito, nossos uivos de prazer se mesclando aos gemidos dos condenados
à morte.
É melhor tomar do Floral da Preguiça no meio da tarde, para que seus
efeitos sejam mais intensos. Devem-se diluir duas gotas em uma taça de água
durante 13 dias seguidos. É recomendável não esquecer de que o estado
almejado pode ser atingido antes de a série chegar ao fim.
Acabei de escrever a última receita e amarrei-a junto a suas seis irmãs na
caixinha de charão, não sem antes assiná-la como de hábito: Madame de Sade.
OS FLORAIS PERVERSOS DE MADAME DE SADE
CAPÍTULO 2
A INVEJA
Outubro de 1776
Foi quando Donatien pronunciou “Eu vos declaro marido e mulher” que
percebi o olhar do Marquês de Sade sobre mim. Os insolentes olhos azuis
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exploravam meus nascentes peitos no decote do vestido de noiva,
pesquisavam cada nova curva dos meus 13 anos. Já tinha sentido olhares
como aquele antes, sim, sobretudo dos garotos da cocheira, mas tinha socado e
xingado os atrevidos. Levantei a cabeça para protestar. Mas, ao cruzar nossos
olhares, meus joelhos bambearam e a respiração me faltou. Os olhos dele
falavam, prometiam céus de delícias. Sem se conter, Sade levou o polegar à
boca, lambendo-o de leve. Baixei os olhos, atemorizada pelo poder que sentia
nele. E, naquele momento, sufoquei um grito, alguma coisa se torceu dentro
de mim, uma dor que parecia um anseio.
A festa começara havia uma hora, quando tinham chegado os convidados dos
Marqueses de Sade ao castelo de La Coste, na Provence. La Coste fica no sul
da França, na região de Marselha, perto de Avignon. A altitude de mais de 300
metros do Monte Luberon lhe dá vista belíssima. Era uma antiga fortaleza que
passara ao domínio da família de Sade em 1627 com o casamento de Jean-
Baptiste de Sade com Dianne, filha do senhor do castelo. Doze salas, ou
vestíbulos, sem contar a Grande Sala, onde havia um retrato de Petrarca, eram
cobertas de tapeçarias e obras de arte. A pecadora Madalena, em tamanho
natural, pendia das paredes da sala de jantar, onde havia ainda uma tapeçaria
verde. Na sala ao lado, o rosto severo da Marquesa de Sade em uma moldura
ovalada, folheada a ouro, dava-me calafrios.
Naquele verão, as crianças levavam à cena o casamento dos pais. Eu vivia
pela primeira vez o papel da Marquesa, que por direito seria da filha mais
nova, Madeleine Laure. Fora meu aliado, Louis-Marie, o primogênito, quem
me escolhera, contra o protocolo e o voto do irmão, Donatien, para fazer o
papel de sua noiva, o que me deixara a cabeça à roda. Os mexericos da
criadagem davam conta de que eu fora escolhida porque me tornara uma
mocinha muito bonita. Meu pai costumava dizer que eu tinha os olhos de
minha mãe, de um azul angelical. Minha pele muito branca, como um biscuit
das bonecas de Madeleine, contrastava com a cabeleira negra com reflexos
azulados, bem diferentes dos cabelos escuros das outras meninas, comuns
nessa região do sul da França. Uma das minhas primeiras lembranças era a de
minha mãe afagando-os com carinho ao pentear-me:
- Iguais aos de teu pai - costumava dizer Marguerite, que invariavelmente
repetia: - Foi desses índios também que herdaste estes lábios carnudos e tão
vermelhos. Talvez minha filhinha seja tão linda por essa rara mistura.
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- Ai, mãe, cuidado, está puxando muito – reclamava enquanto ela os
desembaraçava.
Ela não fazia caso, enlevada em contemplar-me. Doce Margueritte!
- Tens as cores muito mais vivas do que qualquer moça rica, do que qualquer
uma das filhas de Madame Montreuil.
Pude confirmar que não fiz feio perante a melhor sociedade. Os notáveis das
vilas ao redor tinham vindo para ver a peça encenada pelos três filhos dos
senhores do castelo, no bem-equipado teatro construído por Sade. Minha
entrada foi triunfal no palco do teatro de La Coste, ao som do cravo tocado
pela Marquesa, única nota dissonante em minha alegria. Ela me deixava
doente durante os ensaios com comentários fúteis sobre os lugares onde
provavelmente eu nunca poria os pés. Como gostava de se exibir! Eu a odiava,
a dirigir-me essas frases para ferir-me, pois era visível o encantamento de
meus olhos a ouvi-la:
- Vou adaptar para a pecinha de vocês a música do bailado de Orfeu e
Eurídice, uma ópera de Gluck que fez muito sucesso em Paris. Eu e o
Marquês fomos vê-la duas vezes.
No grande dia, como manifestação de uma Justiça divina na qual não acredito,
a grande estrela era eu. Vestida de seda bordada a ouro, véu de rendas
comprido e buquê de camélias na mão, provocava murmúrios e exclamações
abafadas. Percebi a surpresa das pessoas que sequer me enxergavam quando
passava em meus trajes de criadinha. Minha vontade era nunca mais sair
daquele figurino luxuoso. Eu queria que a glória daquele instante nunca
acabasse. Estava tão inebriada em imaginar-me maravilhosa diante de todos
que tive de forçar-me a prestar atenção nos outros. Garboso em seus nove
anos, fardado como oficial da cavalaria de espadim preso à cintura, Louis
Marie me esperava no altar. Se eu conseguisse achar graça em Donatien, iria
rir dele vestido de Bispo, com a mitra que insistia em escorregar, grande para
a cabeça do garoto de sete anos. Já bem comportada aos cinco, Madeleine
Laure parecia uma boneca envolta em rendas rosadas como a carne dos
salmões.
O capricho na encenação da peça infantil se devia ao incentivo do Marquês.
Apaixonado pelo teatro, o dono do castelo era autor de diversas peças e
costumava dizer que seu maior sonho seria vê-las encenadas pela Comédie
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Française. Em tempos mais prósperos trouxera atores e atrizes de Paris para
La Coste. Era voz corrente que, depois das apresentações, atores e atrizes
continuavam a atuar na cama, com decidido apoio e entusiasmada participação
dele. Como sabido, Sade não se conformava com a monotonia do sexo feito a
dois somente. No mínimo três, melhor quatro ou cinco, em diversas
formações, se possível empregando a dor como tempero. Tais gostos eram
objeto de rumorosos escândalos.
Cinco anos depois de construído, o teatro fora rebaixado a palco de
brincadeirinha de crianças. Estávamos em época de dinheiro curto e
cobradores na porta. Para total encanto da família e da criadagem, o charmoso
patrão estava no castelo para nos assistir, o que nem sempre acontecia. Como
também se dizia à boca pequena, era para se esconder da polícia que passava
longas temporadas longe de seu amado La Coste. Às vezes a situação se
invertia e o Marquês vinha para o castelo em uma espécie de exílio da Corte,
para evitar maiores constrangimentos em Paris e Versailles.
Os convidados ainda aplaudiam nossa atuação quando senti voltar com mais
força a dor no ventre. Um estranho aperto me fechava a garganta, a quase
levar-me ao desmaio. Louis, solícito, me amparou ao sairmos do palco.
Deixou-me em uma banqueta, sem ar nem forças, enquanto tomava pela mão
os irmãos e ia saudar o pai. A Marquesa chamou os espectadores para a ceia,
decretando meu esquecimento. Como o convite não me incluía, fui enfrentar
minhas tarefas, com a cabeça na cena que acabara de viver. Primeiro, meu
papel principal na peça dos filhos de meus amos, usando o véu com do
casamento de verdade da invejada Renée, que não queria mais tirar. Depois,
aquele olhar perturbador do Marquês, a reduzir a farelos o protesto do meu
pudor juvenil, transformando-o em loucos impulsos de... de quê, mesmo?
Nem eu sabia. E, para piorar, aquela dolorosa pontada que de vez em quando
me contraía as entranhas.
Minha família e a dos Sade se entrelaçavam desde que o pai da Marquesa, o
presidente de Montreuil, contratou Jean-Pierre Pêcheur, com seus cabelos
negros e sua fama de bom jardineiro. O velho presidente do Tribunal de
Justiça, dono de uma imensa propriedade em Paris, ensejava lustrar a
aparência do dote, que incluía engrandecer os faustosos jardins, já de olho em
um casamento nobre. Renée-Pelagie era a primeira e a mais feia dos cinco
filhos e Anne-Prospère, por todos adorada, a segunda. Meu pai tinha poucos
anos a mais que elas. O interesse comum pela Botânica aproximou-o da mais
velha. A futura Marquesa de Sade gostava de rosas em buquês para bailes, nos
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quais meu pai se esmerava. Uma nova camareira, filha de um peruqueiro da
zona pobre de Paris, chamou-lhe a atenção por causa da pele e dos olhos
claros. Jean-Pierre olhava bastante para Marguerite, que não se furtava a
retribuir. Mas, tímidos, trocavam poucas palavras, restritas aos deveres
domésticos. Um dia, meu pai levou-lhe uma orquídea, explicando-lhe muito
seriamente tê-la batizado de Laelia purpurata Margueritte, uma nova espécie,
em homenagem a ela. Dois meses depois estavam casados.
Nasci a 29 de agosto, em Paris, em pleno verão de 1763, três meses depois do
enlace de Renée com o muito nobre Louis Alphonse Donatien de Sade,
aparentado por parte de mãe aos poderosos príncipes de Condé, primos dos
reis da França. Casa antiga, a família do Marquês encontrou seu momento de
maior glória em Petrarca. Poeta e humanista medieval, o italiano instalou-se
em Avignon em 1326. Foi ali que conheceu e apaixonou-se pela legendária
beleza de Laure de Noves, mulher de um Sade. Foram 317 sonetos de amor
platônico dos quais a família do marido muito se ufanava em possuir a musa.
Ao casar-se aos 23 anos, o Marquês de Sade tinha boa fama como militar e a
má reputação de libertino.Voltava como capitão da recém-terminada Guerra
dos Sete Anos, na qual França e Inglaterra, com respaldo dos respectivos
aliados, tinham exercitado mais uma vez a eterna rivalidade. A França perdera
colônias, notadamente nas Antilhas, no Canadá e nas Índias, e ganhara
dívidas. Já semi-arruinado, Jean Baptiste François Joseph de Sade queria
entregar o filho a uma esposa, com o que cuidava diminuir suas despesas e
livrar-se de um estorvo. Com a mãe as relações não eram melhores, “Se
algum dia arrancares as jóias que tens no lugar do coração, talvez possas
pensar que tens um filho e esse filho tem necessidades de amor e carinho”,
dizia uma queixosa carta adolescente enviada a Marie-Éléonore. Ler a missiva
foi das primeiras bisbilhotices nos guardados do marido da patroazinha que eu
achava tão lindo, com seu garbo de príncipe de contos de fada.
Jogador, pródigo e entregue aos deboches, o jovem Marquês era um libertino,
freqüentador de coxias de teatros e prostíbulos. Não tinha nenhuma
preocupação com o futuro e negligenciava a corte que deveria fazer ao Rei. De
foro intimo, Sade não nutria aversão ao casamento. Queria, porém, contraí-lo
com o coração. Chegou a marcar a data com a provençal Laure de Lauris, uma
jovem encantadora de Avignon. Mas o matrimônio com os Montreuil,
arranjado pelo pai, era bem mais conveniente às duas famílias, interessadas
em alicerçar a costumeira aliança entre a nobreza falida e a burguesia
afortunada. Contra toda a lógica e qualquer expectativa, o novo casal se deu
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muito bem. Renée se desfazia, indefesa diante do encanto que o marido
prodigalizava a qualquer ser vivente. Estabeleceram-se na mansão dos
Montreuil, onde havia espaço de sobra, e ali as maneiras encantadoras do
Marquês conquistaram até o coração da duríssima sogra. Mas não foi preciso
muito tempo para a presidente de Montreuil descobrir o caráter estranhamente
retorcido que se escondia debaixo dos gestos aristocráticos.
Eu fui uma criança solitária. A filha caçula dos patrões, Françoise, três anos
mais velha, era de casta diferente que não se misturava. Enquanto meu pai ia
para os jardins e minha mãe começava o trabalho do dia, passando as roupas
da Marquesa e colocando em ordem sua toalete, eu engatinhava, perdendo-me
pelos corredores do palacete. Tenho a impressão de que daria a vida, ou pelo
menos um braço, para poder pegar as bonecas de porcelana ou os inatingíveis
cavalinhos das senhoritas. Renée, mocinha, já sem achar mais graça em
bonecas, gostava de me atazanar:
- Não, não podes tocar em nada, pois sem dúvida quebrarás os brinquedos.
Pegava ao colo aqueles verdadeiros anjos louros e saía às gargalhadas para
atormentar minha mãe. Ela não parava nunca. Depois de vestir a patroa,
cumpria-lhe arrumar seus aposentos, esvaziar os penicos, lavar suas roupas na
cisterna, coser os babados desfeitos, preparar os cosméticos, enrolar os cachos
das perucas, levar-lhe os chás e merendas.Ao deitar-se, exausta, quase já não
tinha ânimo para fazer amor com o jardineiro, também cansado, na cama de
lençóis ordinários do quartinho do porão, onde meu duro berço ficava em um
canto. Eu raramente via o Marquês, pois vivia entre prisões, excursões a suas
propriedades e aventuras galantes. Desde bem pequena costumava ouvir os
mexericos sobre sua agitada vida amorosa, sempre o assunto do dia entre a
criadagem. Sabia muito bem que ainda não tinham se passado cinco meses
desde o casamento quando foi encarcerado pela primeira vez, por causar
distúrbios em bordéis.
- Dizem que, nessa ocasião, ele enfiou uma hóstia na pomba da rameira e a
penetrou, enquanto gritava para o alto: “Se és Deus, vinga-te!” - contava a
melhor amiga de minha mãe, a gorda Hermengarde, encarregada das roupas
brancas. - Pois fez muito mal em desafiar assim Nosso Senhor Todo-
Poderoso, porque no dia seguinte foi parar na masmorra.
- E essa foi só a primeira vez em que acabou atrás das grades - emendava a
voz aflautada de Eugénie, a arrumadeira magricela. - Também, com aquele
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comportamento! Até prostitutas reclamam para a polícia dos estranhos hábitos
do Marquês. Parece que na cama ele fala blasfêmias, pede torturas. E ainda
por cima gosta de sexo à moda dos cachorros, por trás.
- Só que, ao contrário dos cães, o ele que procura, mesmo nas mulheres, é
sempre o olho do cu - interrompia Hermengarde, cínica.
Mais tarde, quando já tinha idade para entender, ouvi os meninos da cocheira
contarem em detalhes sujos que Sade tampouco se furtava a oferecer o seu
próprio traseiro a quem dele quisesse fazer bom uso.
- O Papa e o Rei reprovam essas indecências sodomitas - explicava Eugénie,
sempre muito católica. - Entre quatro paredes, por certo, tais preferências têm
muitos apreciadores. Mas nenhum deles tem o descaramento de anunciá-las
aos quatro ventos e até de se vangloriar delas, como faz o patrão.
A pouca discrição fez com que rapidamente se tornasse objeto de escândalo na
Corte. Tomou por amante uma atriz de teatro, Collete, que no ano seguinte foi
substituída por outra, uma tal de Beauvoisin. Seguiu-se uma sucessão de
prostitutas e cortesãs, que costumava levar para La Coste enquanto Renée
ficava Paris. Quando obrigado a quedar-se sob o teto da família, alugava casas
luxuosas nos arredores parisienses para entregar-se a orgias.Tentava manter-se
longe das investigações já iniciadas por Comissários de Polícia, que o
perseguiriam por toda a vida.
As dívidas se acumulavam, invariavelmente pagas pela sogra, servindo de
munição para ásperos ataques ao genro. O clima na mansão dos Montreuil se
tornava mais e mais pesado. O nascimento do herdeiro, em agosto de 1767,
trouxe alguns momentos de trégua. Para mim foi um alumbramento. A
chegada de Louis Marie foi minha primeira grande memória, o primeiro
grande acontecimento de uma vidinha de quatro anos. Meu pai e minha mãe
me deixavam cedo para trabalhar. Eu tornava a vê-los na cozinha, comia em
companhia deles e dos outros criados. Raro saíamos, a não ser quando Jean-
Pierre acompanhava Marguerite a missa domingueira.
Esperava as poucas ocasiões em que a nutriz e a mãe se afastavam para me
esgueirar a contemplar o bebê em seu boudoir. Envolto em sedas e rendas no
seu ninho de plumas, parecia um pequeno anjo louro caído dos céus, como os
das pinturas a enfeitar as paredes das salas. Era a primeira criança que eu via
de perto, podia até tocar. O contato de suas faces, das sedas brancas bordadas,
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que tanto trabalho davam a minha mãe, era de indizível maciez se comparado
com os rústicos lençóis de meu berço e com minhas roupas. Mal completara
um mês, Louis sorria-me alegremente, levando-me ao Paraíso. Um dia não me
contive, subi na ponta dos pés para pegá-lo ao colo, como sempre sonhara
fazer com as bonecas. Assustei-me com o peso da criança gorducha, que me
escapou das mãos atraiçoadas pela maciez escorregadia das mantas. Apavorei-
me com seu choro incessante, mas fiquei realmente estarrecida quando
Madame, atraída pela gritaria, entrou como uma tigresa enfurecida pela
ameaça ao filhote:
- Como ousas segurar a criança, tu que não tens permissão sequer de entrar
nesse quarto?!– vociferou ela, enquanto revolvia o bebê em busca de
ferimentos. Ao ver que Louis se acalmara e nada mais grave acontecera,
Madame tornou a assestar as baterias contra mim:
- Isso é que dá fazer caridade, criar filhos de criados. Já estás crescidinha, é
hora de teres obrigações. Teu pai vive a queixar-se de que os milhafres comem
suas sementes, pois aí tens. Tu vais espantar os pássaros do jardim.
Saí correndo do boudoir do bebê sem entender o que me esperava. Quase
atropelei o Marquês e sua cunhada, a cochichar sorrateiramente em um imenso
corredor. Anne-Prospère endereçou-me um sorriso um pouco acanhado. Era a
única da família que sorria para mim. No século passado era comum as
crianças pobres trabalharem afugentando aves dos jardins ou até enrolando
fios de cânhamo nas tecelagens, mas pareceu-me um castigo semelhante aos
Infernos católicos. Eu permanecia durante horas no vento frio postada como
espantalho humano e humilhado, meu pai me olhava com pena furtiva ao
passar. Meus pezinhos ficavam azuis, gelados, enquanto os braços doíam
horrivelmente por ficar tanto tempo estendidos. Nos dias de verão eu ficava
praticamente cozida, fazendo gestos desajeitados para que os pardais não
bicassem as frutas. Minha mãe então colocou-me um surrado chapéu de palha,
a tornar-me ainda mais parecida com um espantalho, mas era a única proteção
que podia oferecer. Quem dava as ordens era Renée de Sade, mulher sem
coração.
Meu pai aproveitava para ensinar-me alguma coisa sobre as plantas que
víamos quando vinha trazer-me água. Nem os aromas dos canteiros de
alecrins, lavandas, violetas-de-parma, tomilhos, mentas, jasmins e rosas-da-
bulgária confortavam-me, apesar de já começar a prestar atenção no verde que
me cercava. Mas eu queria mesmo era continuar contemplando Louis Marie,
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enrolar-me em sedas, brincar com as bonecas. Aos poucos fui me
acostumando à minha dura sorte, interessando-me pelas lições de Jean-Pierre.
Vem daí minha paixão pelas flores, únicos exemplos de luxo e felicidade à
vista naqueles dias.
Ao completar Louis um ano, a avó, a velha Madame de Montreuil, viu-se
obrigada a desembolsar uma pequena fortuna para acalmar certa Rose Keller.
Sade a tinha encontrado no Domingo de Páscoa pelas ruas de Paris, onde
mendigava dizendo-se tecelã desempregada. O Marquês logo enxergou nela a
vítima ideal para seus peculiares folguedos amorosos e propôs-lhe que o
acompanhasse até o subúrbio de Arcueil, onde mantinha um chalé para
aventuras galantes.
- Mas Rose não era a doce tola que julgou ser - comentava a gorda
Hermengarde ou a magra Eugénie, nem me lembro bem. - Poucas horas
depois ela se apresentou, ferida, descabelada e com as roupas rasgadas, ao
Comissariado mais próximo. Queixava-se de ter sido chicoteada, cortada com
uma faca, torturada com velas acesas e mantida prisioneira.
- Com aquela reputação mais deteriorada que pele de leproso, o Marquês
acabou na cadeia de novo de onde só saiu ao prometer desaparecer de Paris
por uns tempos.
- E eis que voltou para La Coste, aproveitando para reformar o castelo
inteirinho - lembrou minha mãe, que em geral mais ouvia que falava. A magra
Eugénie completou a informação:
- Claro que o dinheiro é da patroa, porque ele só sabe mesmo esbanjar. Mas
dizem que ficou lindo. A cozinheira de lá disse que construiu até um teatro,
onde cabem 80 convidados. Os aposentos dele ficam no lado sul, que é mais
quentinho. A Marquesa ficou com as salas vizinhas.
- O patrão não fez economia nenhuma - garantiu Hermengarde, que sempre
sabia de todos os mexericos com profundidade e exatidão. - A tal cozinheira,
que por sinal sumiu, contou que Madame tem um quarto de dormir enorme,
um salão de inverno forrado de moiré azul debruado a ouro, e um boudoir
coberto de tapeçarias com cenas da Normandia.
- Que luxo, tem até uma sala de banhos com banheira para água quente -
ajuntou a magricela.
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- O Marquês parece que tem mania de higiene. O valete diz que ele se lava
quase todo dia! E fez questão de equipar o castelo com nada menos que 15
privadas portáteis e seis bidês.- Isso vinha da precisa Hermengarde,
naturalmente.
Entre uma prisão e outra, prostitutas, amantes e exílios, Sade encontrou tempo
para fazer outro filho: Donatien-Claude-Armand de Sade nasceu no verão de
69. Quatro meses depois, quando as folhas das árvores já caíam, no quarto
humilde do jardineiro-chefe e da camareira, veio à luz também meu
irmãozinho Poty, herdeiro do nome do primeiro de nós a pisar na França. Ao
contrário do antepassado, o último dos topinamboux não viveu aventuras,
nunca amou uma mulher, não deixou descendência. Na verdade, nunca fez
muito mais que chorar, na maioria das vezes de fome.
Um pouco antes de conceber novamente, Margueritte começou a mostrar
sinais de saúde abalada. Ofegava no alto das escadas, tinha tonturas quando
passava a roupa com o ferro pesado que esquentava no carvão. Chegou ao
final da gravidez pálida e lânguida, tossindo com freqüência, sobretudo ao
empoar Madame com o alvaiade. Eu a ouvia gemer de noite ao virar-se na
cama, procurando um alívio inexistente para o ventre enorme. Logo depois do
nascimento de Poty, com desculpa de aumentos de despesas e extravagâncias
do marido, a Marquesa dispensou a nutriz que amamentava Donatien,
encarregando minha mãe da dupla tarefa. Mais velho e maior, o Sade bebê
sugava quase todo o leite e o pouco de seiva que restavam em Marguerite.
Não admira que estivesse cada vez mais gordo, enquanto ela emagrecia a
olhos vistos. Para meu irmão sobrava quase sempre a fome.
Com a chegada do inverno, a situação agravou-se. Minha mãe tinha de
satisfazer o pequeno Marquês de quatro em quatro horas, mesmo à noite,
quando saía de sua cama e atravessava os corredores gelados até o boudoir
quente do bebê. Quando voltava ao quarto frio o filho invariavelmente estava
acordado, chorando no colo de Jean-Pierre, e ela lhe dava o pouco leite que
sobrara. Em seis meses não tinha mais condição de amamentar nenhum dos
dois.Contagiado também pela moléstia da mãe, Poty não resistiu. A perda do
filho foi o golpe final. Marguerite chorava durante horas, dias seguidos,
sempre baixo, ganindo feito um cachorrinho para não incomodar os patrões.
Meu pai se refugiava com suas plantas na estufa, que nunca foram tão belas.
Poucas semanas depois, minha mãe não conseguia mais se levantar da cama.
23
Cuspia sangue e tossia. O médico, chamado pela primeira vez a vê-la, foi
definitivo: era tuberculose, e em tal estado que não havia mais nada a fazer.
Não demorou muito até a noite em que acordei com meu pai chorando, ela
estava morta. Meu coração parecia ter parado de bater, corri para seu lado.
Quando o abracei, senti-o soluçar e tremer. Fora de si, chamava pela mulher
amada:
- Marguerite, Marguerite - repetia, sacudindo a morta.
Branca e flácida como um lençol, minha mãe parecia uma boneca de trapos a
desfazer-se nos braços de Jean-Pierre, cena que me acompanharia por muitos
anos de pesadelos. Mas eu, Joséphine, aos seis anos, não sentia vontade de
chorar. Tinha, sim, uma grande raiva do bebê guloso que matara mamãe e
Poty. E sentia muita vontade de machucá-lo, de enfiar as unhas naquela carne
balofa até ele gritar de dor. Meu pai esperou que a casa começasse a ter
movimento, pela manhã, para comunicar à patroa a morte da mulher. Renée de
Sade deu um de seus vestidos mais simples para amortalhar Marguerite e
cedeu a meu pai um fiacre para que fosse encomendar o enterro. Fiquei no
quarto, velando o corpo junto das criadas que se desesperavam.
Ao ouvir o ruído do coche que trazia Jean-Pierre e o cura corri para encontrá-
lo. Quase tropecei em Donatien, a ensaiar no salão os primeiros passos com as
pernas gordas e incertas. Inesperadamente, ele conseguiu firmar-se e deu dois
passos na direção de meu pai, que segurou-o para não cair novamente. O olhar
que dirigiu ao bebê nesse momento comoveria até as estátuas do salão. Pelo
conjunto de todas as perseguições e humilhações que me infligira, culminando
com a morte de minha mãe e meu irmãozinho, a Marquesa era o ponto central
do meu ódio, mas Donatien tinha grande parcela do meu ressentimento. Para
piorar um pouco mais minha dor, a patroa resolveu dar-me mais uma tarefa.
Depois de passar o dia como espantalho, eu ajudaria a ama do caçula a cuidá-
lo. Talvez quisesse começar a treinar-me, torcer o pepino desde cedo, como
gostava de dizer, para ocupar a posição de Margueritte morta. Como a
detestava!
O filho se tornou o instrumento da única vingança que poderia exercer sobre
ela no momento. Orgulho-me até hoje de, enquanto fui maior do que ele, ter
mimoseado aquele parasita inchado todos os beliscões e empurrões
disfarçados que consegui. Para isso precisei conquistar a anuência de Louis-
Marie, o mais velho. Mas logo descobri interesses convergentes, já que se
ressentia da chegada do irmão menor. Sorte de Donatien que a senhora
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Marquesa o protegia - nas nossas mãos ele penava. E ai dele se se atrevesse a
chorar à mãe: chamado a esclarecer a questão, meu protetor não só mentia
para me inocentar como depois castigava o queixoso com uns bons sopapos.
Quando Madame esperava Madeleine Laure, em 1771, a família Sade decidiu
mudar-se de vez de Paris para o castelo de La Coste, já todo renovado. Além
dos móveis e utensílios, foi junto boa parte da criadagem, o que incluía os
Pêcheur. Aos oito anos fui investida da função de ama-seca das crianças, uma
espécie de promoção para quem até então fora um espantalho humano. A
princípio, Jean-Pierre sofreu ao deixar para trás suas amadas estufas, mas logo
se deixou seduzir pelos planos dos senhores. Graças a meu industrioso pai, La
Coste ganhou um labirinto de sempre-vivas copiado do motivo dos vitrais da
Catedral de Chartres, sem falar em um pomar e jardins cuidados. Renée vivia
elogiando-os, dizendo que eram parecidos aos do Rei em Versalhes. Eu tinha
tanta birra dela que a detestava até a falar bem de meu pai. As conversas dos
dois me incomodavam tanto que saia de perto para não ver tal mulher nos
arredores. Aliás, não conseguia entender por que Jean-Pierre mostrava tanta
dedicação à víbora assassina de sua própria esposa.
Tal servilismo não combinava com os ideais de um homem inteligente,
ilustrado, um bom representante do espírito iluminista que se afirmava na
segunda metade do século XVIII. A Filosofia estava na moda na época em
que vim ao mundo. Com enorme repercussão, uma geração de filósofos
inovadores começara a pregar que o conhecimento provinha dos sentidos, e
não das leis de Roma ou do rei, como até então se acreditava. Para eles, o que
proporcionava ao homem as luzes da Ciência era a razão, que combinava as
informações provenientes dos sentidos, trabalhando com a memória e a
imaginação. Essa revolução no modo de pensar foi popularizada pela
Enciclopédia, uma coleção de 28 volumes lançados entre 1751 e 1772, que era
na verdade um dicionário leigo de História, Geografia, Ciências, Artes e
Ofícios com verbetes pensados de forma racional, crítica e humanista,
procurando abranger todo o círculo do saber humano, conceito que os gregos
antigos já conheciam como Enkyklóspaideia. Todos os conhecimentos foram
revistos pelo olhar racional daqueles intelectuais corajosos.
- A obra foi dirigida pelo maior filósofo do nosso tempo, monsieur Denis
Diderot -, ensinava meu pai, que apreciava o trabalho deles. – As maiores
inteligências da França escreveram os verbetes da Enciclopédia.
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Mas nem todos estavam de acordo. Para a devota criada Eugénie, por
exemplo, a coleção representava um escândalo:
- Ih, esse livro do Demo de que o Marquês gosta tanto chegou a ser proibido,
colocado no Index. Sua Santidade, o Papa em pessoa, mandou que cada
família encarregasse um padre de queimar a coleção – contava.
De fato, a Enciclopédia várias vezes foi acusada por padres e magistrados
como literatura subversiva e contrária aos bons costumes, por pregar o
descrédito ao Rei, o livre comércio e a República. Eles tinham sua parcela de
razão: a difusão das idéias iluministas desencadeou em toda a França, em toda
a Europa e em todo o mundo uma onda de materialismo e ânsia por liberdade
política que acabou descambando na Revolução. Leitor dos enciclopedistas,
Jean-Pierre tinha idéias liberais a respeito do mundo e nelas me instruiu.
Ensinou-me a ler e escrever, Matemática e História, sem falar nas lições de
Botânica ministradas enquanto cuidava das plantas. Assim que dominei as
letras comecei a vasculhar a correspondência dos patrões.
Inocente de meus movimentos, meu pai elogiava-me a dizer que aprendia
rápido e bem. Na verdade, usávamos as poucas horas da noite à luz de
horríveis velas de sebo para estudar. Eu cabeceava de sono, pois trabalhava
como uma escrava, de sol a sol, entre os cuidados com a Marquesa e os
pequenos Sade. Ela me gritava de dois em dois minutos para pedir-me doces,
água, tesouras, linha, ajuda para vestir, passar-lhe pó de alvaiade, o diabo. Era
ao diabo mesmo que a mandava internamente, enquanto corria a atendê-la
com o gordo Donatien nos braços, dividida entre o terror e a vontade imensa
de deixá-lo cair. Depois que cumpria as ordens, beliscava-o disfarçadamente.
Imaginava a expressão que a patroa se poria se sonhasse com aquilo. Se
alguma coisa me defendia de uma total e destrutiva melancolia, na qual muitas
vezes vira minha mãe mergulhada, eram justamente esses doces momentos de
crueldade contra Donatien. De alguma forma, escudavam-me de meu triste
presente e do mais que provável miserável futuro. Eu não concebia a idéia de
mudar de vida em um mundo tão definido, no qual cada um tinha seu lugar e
eu o de criada, filha da camareira e do jardineiro.
Outro alívio raro era o sol da Provença. Eu adorava quando conseguia fugir
um pouco para os jardins de meu pai, deixando que me aquecesse as faces. De
um lado do castelo, ao pé da vila, abriam-se extensos vinhedos e os campos
roxos de lavanda fresca destinada ao centro perfumista de Grasse, que fica
perto; de outro, os desfiladeiros selvagens das montanhas do Luberon, coberto
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pela densa floresta de cedros e carvalhos a servir de abrigo a bandoleiros. A
paisagem lembrava os dois caminhos para a alma de que falam os curas, um
claro, perfumado e seguro; outro, escuro e perigoso. Talvez diga muito sobre
meu espírito infantil o fato de que, apesar do medo dos salteadores da floresta,
eu lá queria morar quando ficasse grande. E sobretudo porque era o Luberon o
esconderijo de meu amado Marquês, a enganar os guardas enviados para
prendê-lo.
Fiquei alguns minutos na banqueta onde Louis Marie me deixara esquecida no
final da peça. Desassossegada com a as estranhas coisas e dores que sentia,
subi disfarçadamente ao boudoir azul de Madame. Esperava que minha
senhora já tivesse descido, mas antes de entrar conferi através de meu velho
esconderijo, um dos armários de frisos dourados do boudoir. Lá dentro havia
espaço suficiente mesmo para a desenvolvida garota que me tornara. A
madeira nova estalara em uma fresta que dava plena visibilidade de todo o
quarto. Boa precaução: a Marquesa ainda trocava sua leve toalete da tarde
pelo vestido mais formal para o jantar.
Vi, como já vira antes, Camille, a camareira, desabotoar o corpete azul de
piquê e afrouxar o espartilho de Madame, para que ela pudesse se refrescar
com água de lavanda. Enquanto isso, a criada lhe tirava a sobre-saia com
babados brancos nas bordas, a saia de linho bordada com flores rosadas, as
muitas anáguas, as anquinhas laterais e o espartilho, até deixá-la apenas de
calçolas e ligas. As barbatanas do espartilho tinham deixado marcas vermelhas
em seus seios brancos e fartos, suas coxas roliças envolvidas em meias de seda
presas por ligas róseas. Ao virar-se para mim, os gomos de suas nádegas
redondas eram dois mundos. Quando ela virou-se para o outro lado, entrevi
pelos calções de musselina o triângulo de cabelo avermelhado. Num
relâmpago, a lembrança dos olhos devoradores do Marquês atravessou-me
como um dardo quente. Em pouco tempo a senhora envergava nova toalete,
mais adequada para a noite: saias de tafetá cinza e rosa, corpete de seda cinza
com fartas mangas de renda, gargantilha e brincos de pérolas. Elegante como
uma ilustração dos figurinos modernos que começaram a circular na época,
deixou enfim os aposentos para receber os convidados.
Era chegada a minha hora mais prazerosa, eu ia brincar de ser Madame. Sabia
de cor onde a as coisas da invejada Marquesa eram guardadas e a ordem da
arrumação. Comecei por assaltar a cômoda de maquiagem. Pintei o rosto e o
colo com pó de alvaiade, apliquei uma pinta artificial no queixo, avermelhei
os lábios fartamente, demais, até, porque o barulho do bater de uma janela fez
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tremer minha mão, provocando um grande borrão na boca. Envolvi-me no
espartilho que Renée acabara de dispensar e tinha o cheiro dela. Por sorte, era
do tipo inglês, daquele que abotoa na frente. Enverguei as anquinhas com
donaire, procurei um belo vestido de cetim branco, ajustei na cabeça uma
peruca loira e estava praticando cortesias com o leque espanhol quando a
Marquesa entrou sem o menor barulho.
- Jo-sé-phi-ne!! - exclamou. - Era só o que faltava, sua atrevidinha! - gritou
Madame, a voz um tanto mais aguda.
Dei-me por perdida. Que raios fazia ali de volta, em vez de presidir o
banquete? As contrações no meu ventre se aceleraram, alguma coisa quente
escorreu-me entre as pernas. O medo agravou a dor. Vi sua mão levantar-se
para uma bofetada, mas não consegui me esquivar. O tapa foi forte e me jogou
sentada no chão. Mal o senti, contudo, porque lembrei de meu pai e das
conseqüências de minha imprudência.
- É assim que agradeces o cuidado que sempre tivemos contigo nesta casa? –
vociferava ela. - Ergue-te, pequena dissimulada, vou levar-te a teu pai para
decidir teu castigo.
Dando graças aos céus pela leveza da pena, comecei a desabotoar o vestido.
Foi aí que veio a verdadeira punição.
- Não, não tires nada! Vais assim mesmo - ordenou a Marquesa, já a puxar-me
pela orelha.
Nessa degradação, em trajes que tornavam óbvio o meu crime, a patroa fez-me
desfilar diante de praticamente todo o castelo de La Coste. Com a boca
borrada, as lágrimas abrindo sulcos no alvaiade, a peruca torta por causa da
pressão da mão de Madame, fui motivo de riso para todos os convidados. O
mais odioso, sem dúvida, foi suportar a zombaria de Donatien.
- A criada pensa que é a Marquesinha de Sade! Ele ria à bandeiras
despregadas, profetizando a alcunha que me seguirá até a morte.
- Cala a boca - ordenou Louis, dando-lhe um tapa. Mas nada conseguiria deter
Donatien na hora do triunfo.
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- Pequena suja! A falsa Marquesa está com a saia manchada! - anunciou, para
minha grande surpresa.
Percebi apavorada grandes nódoas vermelhas no cetim branco. Achei que ia
morrer. Confusa, relanceei os olhos pelo salão, em busca de alguma
explicação para o que me acontecia, quando encontrei de novo o olhar do
Marquês. Foi quase como um beijo, de tão íntimo. Naquele lago azul não vi
riso nem pena, mas sim uma excitação sem peias, que se repetia na expressão
de seus lábios entreabertos. Meu útero se contraiu de novo, desta vez para
valer. E entendi, enfim, que recebia pela primeira vez o sangue das mulheres.
Meu pai, chamado às pressas, entrou na sala ainda ajeitando o cabelo escuro.
Atrás dele vieram vários lacaios, todos rindo à socapa. A Marquesa não
esperou que se recompusesse:
- Jean-Pierre, sabes que essa menina mal-educada se atreve a usar minhas
roupas e a me imitar? Achas que vou tolerar isso?
- Naturalmente não sabia, Madame, senão a teria punido - disse meu pai,
ruborizando-se ante o tom áspero que a Marquesa nunca empregava com ele.
Mais vermelho ainda ficou ao notar a mancha de sangue na saia da patroa que
eu usava:
- Que posso fazer para desculpar minha imprudente filha?
- Exijo que a castigue! Essa vida de teatro vira a cabeça de qualquer criadinha.
Joséphine precisa aprender a conhecer seu lugar. Que vá ajudar nas cozinhas.
Não quero mais vê-la por perto de minha família ou de mim.
Fiquei aterrorizada. Nunca mais conversar com Louis-Marie? Nunca mais
beliscar Donatien? Sobretudo, nunca mais ver o Marquês? Se até então ele me
parecia inatingível como nobre e patrão, agora era-me indispensável. Eu
queria ficar perto dele e por enquanto não sabia por quê. Percebendo que ia
me desfazer em lágrimas na frente de todo mundo, escapei da mão afrouxada
da Marquesa e fugi da sala. Corri até alcançar meu quarto e larguei-me em
cima da cama, explodindo em soluços. Estava ainda aos prantos quando meu
pai entrou. Só pelo modo de pisar eu sabia que estava furioso, mas falou
baixo:
- Joséphine, o que estás fazendo com a roupa da senhora? Onde tens a cabeça,
menina, por que faltas ao respeito com ela?
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- Eu... eu estava brincando! Só queria ficar bo-bonita! – gaguejei.
- Não tens um dedo de juízo nem de inteligência, minha filha. Porque te
arriscas a desafiar justamente quem te protege? A Marquesa tem tão bom
coração que não nos expulsou de sua casa, apesar do teu comportamento.
Joséphine, que vergonha!
- O senhor vai deixar me mandarem para a cozinha? - perguntei, acreditando
que ele jamais concordaria com meu rebaixamento. Mas meu pai surpreendeu-
me:
- Acho que ela teve, na verdade, uma excelente idéia, Jô. Também não acho
bom que fiques muito misturada com a família Sade. Eles não são a nossa
gente. E o Marquês é um homem de quem é melhor manter distância.
Arrepiei-me com tal pensamento mas, notando que ele estava realmente
zangado, tentei comovê-lo e desviar o assunto.
- Pai, saiu sangue da minha barriga, doeu, por favor.
Condoído, ele alisou meu cabelo. - Pobre filha, vais cumprir o destino das
mulheres, sangrar uma vez por mês. Não te preocupes, é apenas um ciclo da
natureza feminina que se inicia. Quer dizer que já és adulta e podes ter filhos.
Amanhã não terás mais tanta dor, mas o sangramento vai continuar por três ou
quatro dias.
Daquilo eu já sabia. Ao notar que se acalmava, voltei a dar vazão a meus
sentimentos mais íntimos:
- Eu odeio Donatien, eu odeio a patroa! - solucei. - Eu é que devia ser
Marquesa!
Minha sinceridade tinha realmente passado dos limites. Meu pai ficou
indignado:
- Estás louca? Tu querias ser a Marquesa? Não sabes que ela é uma mui nobre
senhora enquanto tu não passas de minha filha, eu, um humilde jardineiro?
Nunca levantei a mão contra ti, mas tal afronta mereceria bem um duro
castigo.
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Eu, porém, já não conseguia me conter. Comecei a gritar:
- Quero ser como ela! Queria usar vestidos como os dela, dormir num quarto
enorme em vez de viver no porão. Por que ela pode ser rica, Cortejada,
poderosa, e eu não?
Meu desespero tocou o coração paterno. Jean-Pierre acalmou-se subitamente:
- A isso chama-se Inveja, minha filha, e é um dos sete pecados capitais, uma
porta para a danação da alma - avisou severo.
Eu mal ouvia:
- Pai, me ajude! Eu sou muito mais bonita que a Marquesa, mereço ser feliz
como ela! - implorei.
- Além de invejosa, andas muito cheia de ti, Joséphine - ralhou. - Como podes
saber se ela é feliz ou não? Cada um sabe a dor de ser o que é. Talvez almejes
te transformar numa pessoa que se esforce para aparentar felicidade...
- Não me importa! Pai, o senhor não consegue usar suas plantas para fabricar
alguma coisa que me ajude? O senhor mesmo diz que as plantas são remédio
para corpo e alma. - choraminguei de novo. - Não estou pedindo nada de mais,
só quero é ser feliz do meu jeito.
Meu pai me encarou criticamente:
- Sabe, filha, as plantas têm uso para o bem ou para o mal. Podem até ajudar-
te a te transformar naquilo que Invejas, agindo como um fator de mudanças.
Apesar do que diz a Santa Igreja, creio que certos sentimentos negativos
servem ao desenvolvimento moral. A própria Inveja origina-se da percepção
das desigualdades, e disso nasce uma indignação que leva à luta por justiça.
Na época eu ainda não conhecia o conceito do paradoxo, mas a afirmação de
meu pai distraiu temporariamente minhas aflições:
- O senhor está dizendo que um sentimento tão nobre como o senso de justiça
tem origem tão baixa?
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- Exatamente – disse ele, derretido pela minha argúcia. Fora desarmado. -
Sinto em ti essa espécie de cólera diante do bem-estar que não é
compartilhado contigo. Não estás satisfeita com o teu destino, Joséphine?
- Eu é que devo decidir meu destino! – argumentei, exaltada. - O senhor
mesmo ensinou-me que o ser humano tem livre-arbítrio!
- É verdade - pela primeira vez, sua voz soou indecisa. - Uma pessoa
responsável deve fazer suas escolhas e arcar com os resultados.
Alguns minutos de insistência e muitas lágrimas (algumas falsas) depois,
Jean-Pierre deixou a relutância de lado.
- Está bem, está bem, menina impossível. Presta atenção nos olhos roxos da
íris da primavera, minha filha, sempre almejando o que ela não é. Essa é a flor
de que precisas. Toma cinco delas ao raiar da manhã e usufrui de suas
propriedades. Mas não te esqueças, lidas com um poder que talvez não possas
controlar, e isso é perigoso.
Era ainda muito cedo na manhã seguinte quando, obedecendo às instruções de
meu pai, colhi as empinadas íris roxas no jardim sul, o mais ensolarado.
Quando acabei de cortar cinco espécimes perfeitos, levantei os olhos para o
céu, orgulhosa. Foi então que vi o Marquês, emoldurado pela janela de seus
aposentos secretos, a observar-me. Tremi e desviei os olhos. Ele não. Estava
nervosa enquanto seguia as instruções de meu pai para produzir o floral.
Cortei as hastes das íris sem tocá-las com as mãos e dispus o pentagrama de
flores roxas na superfície de uma vasilha de porcelana cheia da mais pura água
da chuva de verão. Deixei-as expostas por quatro horas ao sol do meio do dia.
Antes de dormir, coei e dinamizei a poção, que tomei logo cedo, na manhã
seguinte.
Tinha tanta fé nas beberagens de meu pai que nem por um minuto duvidei de
seu efeito. Pensando que poderia precisar dela no futuro, anotei a receita sem
deixar de lado um só passo. Dividida entre a brincadeira e a esperança, assinei
com o nome de quem contava me transformar, em breve: Madame de Sade.
Será que a poção faria efeito antes que passasse a ajudante de cozinha,
mudando minha infausta sorte? Passei o dia inquieta, à espera de que seus
sintomas se manifestassem. Como será que me tornaria a Marquesa? À noite,
decepcionada com a aparente ausência de modificações, dormi o sono pesado
dos muito jovens e exaustos. Nada seria capaz de me despertar, exceto o toque
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da mão fina a tapar-me a boca. Acordei em pânico, reconhecendo de imediato
as mãos aristocráticas do Marquês. Percebi, pasma, os lençóis abaixados e a
camisola erguida, de forma a deixar meu traseiro de fora.
- Shhh! - sussurrou Sade. - Não grite, Joséphine, vamos nos divertir muito.
Cresceste muito este ano, menina. Aliás, já não podemos chamá-la de menina.
Deste evidências públicas de que já és uma moça...
Enquanto falava, o Marquês acariciava minha bunda com a mão livre. Tentei
escapar, mas não havia como me livrar do aperto de seu braço. Amordaçou-
me com minhas próprias meias e voltou a beijar-me o traseiro, acariciando-o
com a língua, enquanto a mão deslizava na direção da minha boceta suja de
sangue. Quando ele me tocou ali, em leves movimentos circulares, eu já não
queria resistir. Com a mão molhada no meu sangue, Sade untou meu cu já
umedecido por sua saliva. E então, de repente, cravou-me as unhas nas
nádegas, afastando-as, e meteu-me por dentro um estranho pedaço de carne
dura e quente.
Perdi a respiração com a dor, mas meu grito foi abafado. A vara abriu
caminho à força no meu cu virgem, rasgando-me em duas. Quando pensei que
ia morrer, um gemido diferente escapou da minha garganta. Percebi que o pau
a mexer-se dentro de mim produzia estranhos arrepios elétricos na minha
espinha, enquanto seus dedos hábeis acariciavam meu grelo. Meus quadris
começaram a ondular no ritmo dele, sem nenhuma ordem consciente, e
minhas mãos agarraram o lençol da cama, convulsivamente. Eu já não
conseguia respirar, só arquejava, quando ouvi a gargalhada do Marquês, alta e
fria:
- Sabia que ias gostar - disse ele, diminuindo os movimentos. Inclinando-se,
tirou minha mordaça e avisou, sério: - Se quiseres mais, vais ter de pedir.
Enquanto o ar entrava num longo hausto em meus pulmões, Sade retirou de
mim sua espada de carne. A sensação era a de estar perdendo o céu.
- Mais – implorei. - Não pare.
O Marquês, às gargalhadas, meteu de uma vez só sua vara pulsante e, em
movimentos muito rápidos, foi me jogando cada vez mais fundo em um túnel
redondo e infinito onde só o prazer tinha existência. Eu chorava e ria ao
mesmo tempo, sem saber o que era mais forte, o sofrimento ou o gozo, a
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humilhação ou a excitação. Hoje sei que foi aí que esses sentimentos
antagônicos se fundiram dentro de mim, tornando-se contíguos e inseparáveis.
Quando acabou, ele deu uma palmada no meu traseiro sujo de sangue,
esperma e merda, dizendo, naquele tom irônico:
- Tens jeito para a coisa, pequena.
Foi só quando chegou à porta, que me falou com carinho.
- Terei prazer em ensinar-te que a decência e os princípios morais são
costumes a que hoje se liga muito pouca importância, de tanto que contrariam
a natureza. Ter prazer é o único sinal de que se está agindo em conformidade
com as leis naturais. Se tu gostas do que é perverso, isso só significa que a
natureza desejou que fosses perversa. E seria contrário à natureza não
obedecer a ela...
Era a primeira lição de meu mentor, uma lição difícil de esquecer. Exausta,
adormeci sem nem tentar me lavar. Quando acordei com os primeiros ruídos
da manhã, corri a olhar-me no pequeno espelho de prata que fora de minha
mãe. Queria ver se tinha mudado algo no meu rosto, como acontecia com as
mulheres que conhecem o sexo, segundo asseguravam as criadas mais velhas.
Tudo parecia igual: o cabelo escuro, a boca opulenta, a pele clara, o nariz
pequeno, os olhos... Descobri, num relance, que os olhos não eram mais os
francos olhos azuis que herdara de minha mãe. Tinham ganhado naquela noite
reflexos muito escuros, tornando-se quase roxos, da cor das pétalas das íris. E,
não sei se na realidade ou na imaginação, vi o rosto do Marquês sobrepor-se
ao meu, os olhos dele também roxos, exatamente idênticos aos meus.
Devem-se ingerir todas as noites, durante um mês, antes de deitar, duas gotas
do Floral da Inveja diluídas numa taça de água. Para auxiliar as diluições,
usar um fino bastão de cristal.
OS FLORAIS PERVERSOS DE MADAME DE SADE
CAPÍTULO 3
A GULA
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La Coste, outono de 1776 - verão de 1778
O caldo desceu fervente por minhas entranhas.
- Veja se o tempero está bom - ordenou Justine, que segurava a concha com
uma das mãos para dar-me a beber. Com a outra torceu-me o mamilo
esquerdo.
Estremeci de dor e prazer sem saber bem se as sensações vinham do beliscão
ou do calor da pimenta e do louro a excitar todas as papilas da língua. Já
aprendera alguns rudimentos de cozinha, ainda que o método de ensino não
fosse dos mais delicados. Na qualidade de cozinheira-chefe, Justine dava-me
ordens ríspidas e sempre me repreendia. Eu vivia sobressaltada. Se algum
sentimento me acompanhava durante todo o tempo, era o medo de errar. Mas
o pior eram os castigos físicos, dos quais não escapavam minhas partes
intimas. Embora os coques e vergões doessem, deixavam-me num estado que
vim a descobrir ser de pura excitação. Naqueles dias eu estava horrivelmente
confusa. Descera bruscamente dos céus proporcionados pelo patrão ao inferno
da patroa. Não vira mais o Marquês desde que ele irrompera em meu quarto,
naquela noite de revelações e sustos, talvez efeito da beberagem de íris, o
Floral da Inveja. Bem que meu pai me avisara sobre o lado soturno das
plantas. Mas eu não conseguia parar de ver e reviver mentalmente o toque, a
voz, a dor e o prazer de Sade.
Transformada pela Marquesa em ajudante de cozinha, meu dia já começava
com imensas quantidades de louça para lavar, desde o serviço de porcelana
fina usado pelos senhores do castelo até as caçarolas engorduradas em que
Justine preparava seus molhos. Depois vinham os legumes a descascar, as
aves a depenar, mais louça, as carnes a picar, os pães a amassar, mais louça, as
travessas de prata a brunir, o chão a esfregar, as panelas... Colher verduras e
ervas na horta era o único momento agradável. Os aromas no ar fresco do
outono me enlouqueciam. O perfume de folhas orvalhadas de manjericão nas
narinas é, ainda hoje, um de meus intensos prazeres. O alecrim para as caças, a
sálvia para as aves, a hortelã para o carneiro, o orégano para os tomates, o anis
e o funcho para os bolos, melissa e verbena para os chás, macela para os
travesseiros... O mundo das folhas aromáticas logo se tornou familiar a quem
já nascera filha de jardineiro. Se estava com sorte conseguia até tempo para
conversar um pouco com o mestre de todo aquele verde.
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- Quem está ganhando a guerra das panelas, Joséphine? - brincava Jean-Pierre,
sempre pronto para a torrente de queixas que eu invariavelmente despejava em
seus ouvidos sobre os maus-tratos infligidos pela cozinheira. O relato das
últimas humilhações dava novos argumentos à eterna conclusão:
- Justine tem armas muito mais poderosas que eu.
Meu pai, dormindo do quarto ao lado, não se apercebera da visita noturna do
Marquês, não seria eu a alertá-lo. Também só lhe revelava o que me
interessava sobre Justine, ou seja, os tormentos do aprendizado duro, sem uma
palavra sobre os contatos físicos. A jovem e talentosa cozinheira era aquisição
recente do Marquês, dizia-se, por uma paga bem maior que a dos outros
criados. Era merecido: a mágica de suas mãos fortes de camponesa
transformava qualquer prato em néctar e ambrosia. Eu a admirava e a temia,
mas ela despertava minha curiosidade. Por razão ignota, Sade só a tratava por
Justine, que acabou prevalecendo sobre seu verdadeiro nome, Catherine
Trillet. Meu patrão prezava a gastronomia:
– A fome só interessa a um libertino se for usada como instrumento de tortura
– repetia sempre aos amigos de copo e de farra, em tom de blague.
O Marquês era particularmente amigo de doces, como bolo de chocolate e
maçãs assadas com creme. Mais tarde, isso teria efeito maléfico sobre sua
cintura. Mas, aos 36 anos, mantinha a esbelteza que ornava com seu tipo
aristocrático. Sorte dele, porque, apreciador da moda, usava roupas elegantes e
vistosas. Não me esqueço da casaca de veludo cor de ameixa, bem combinada
com a camisa de rendas brancas e as calças e o colete da mais macia e
aderente camurça. Ao contrário dos nobres da época, Sade não era grande
admirador das perucas, achava-as malcheirosas e incômodas. Costumava atar
os vistosos cabelos cor de mel de flor de laranjeira em um laço de veludo cujo
tom invariavelmente ornava com o da toillete. A galope, o movimento
ondulante do rabo do garanhão e da coifure era igualmente sinuoso. Ele era a
estampa perfeita do príncipe encantado dos livros de contos de fada dos filhos.
Disse que meus dias eram infernais, mas não sei bem qual adjetivo aplicar às
noites. Pouco tempo depois daquela inesquecível visita a meu quarto, o patrão
mandou-me chamar na cozinha por seu valete. Não pude nem pedir que
esperasse um pouco para recompor-me, não conseguia atinar se o chamaria de
La Jeunesse, como o apelidara o Marquês, ou Carteron, seu verdadeiro nome.
Segui-o com o coração aos pulos, dividida entre a vontade de rever Sade e a
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vergonha da triste figura que fazia, com a roupa manchada de molho e as
unhas sujas. Meu desalinho fez rir os lacaios que cruzei pelo caminho:
- Olhem só a Marquesinha, que triste fim! - apontavam.
Eu era pouco mais que uma criança, com 14 anos incompletos, e já não nutria
dúvidas sobre o verdadeiro caráter da humanidade. Para todos,
invariavelmente todos, a desgraça do outro chega a ser afrodisíaca na
satisfação que proporciona. Mas com o Marquês a atmosfera foi muito
diferente. Recebeu-me de pé na porta da biblioteca. Quando beijou-me a mão,
fidalgamente, rezei para que não cheirasse alho e cebola. Ao erguer o rosto
para sorrir-me era tal como se tratasse com uma Rainha. Impávido, deu-me o
braço como se fora eu uma dama, conduzindo-me à poltrona, enquanto o
longilíneo La Jeunesse quedava-se à porta com seu porte refinado, bem
diferente do resto da criadagem bronca.
- Querida Joséphine, tu me deste grande prazer há alguns dias - começou. -
Até maior do que esperava e, para dizer-te a verdade, eu esperava muito.
Eu ainda não ousara erguer a vista, mas o começo auspicioso da conversa me
levou a arriscar um rabo de olho. Ele parecia relaxado e tranqüilo, semi-
reclinado como um romano em uma espreguiçadeira. Algo como a sombra de
um sorriso parecia vibrar no canto da sua boca. Estava absolutamente divino
na luz do entardecer a realçar o tom violáceo dos olhos. Não consegui me
conter. Não tardaria a bem aprender a não demonstrar meus sentimentos, mas
ainda era muito verde. Encarava-o tão maravilhada que riu com simpatia.
Vaidoso, uma das coisas que mais gostava, percebi logo, era que o achassem
belo:
- Joséphine, não existe nenhuma razão para considerar um capricho de mesa
menos extraordinário que um capricho de cama. Minha mulher quer
transformar-te em cozinheira, como já sabes. Eu me proponho a transformar-te
também em uma libertina.
Alargou o sorriso. Se ele fosse um brioche bem doce o devoraria de uma só
bocada.
- Tens potencial, pequena. Percebo na tua jovem cabecinha a curiosidade
sobre todos os prazeres, da carne e da mente. Seria delicioso corromper e
sufocar tudo o que parece inibição e religiosidade em ti. Se quiseres, serei teu
mestre nessa jornada de descobrimento.
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Em um relâmpago voltou-me à memória a ordem de Sade com o pau dentro de
mim: “Se quiseres mais, vais ter de pedir”. Engoli em seco. Meu corpo gritava
de vontade de sentir o dele novamente. Não hesitei:
- Quero.
O Marquês sorriu triunfante:
- Espero-te em meus aposentos hoje à meia-noite - declarou em tom formal,
levantando-se para indicar o fim da conversa.
Nunca as trevas demoraram tanto a cair. Quando enfim acabei meus afazeres
na cozinha, ainda faltavam horas para a meia-noite. Aproveitei o tempo para
tentar me fazer mais apresentável. Lavei-me com vagar na bacia do quarto,
com água perfumada por lavanda. Alvejei com limão os dedos encardidos,
escolhi calçolas e corpetes recém-lavados, penteei os cabelos e cobri-me na
cama. Quando meu pai veio desejar boa-noite, fingi dormir. À medida que os
ruídos habituais foram cessando, meu coração batia mais forte. Quando enfim
soaram as badaladas da meia-noite, enverguei meu melhor vestido e esgueirei-
me pelos corredores escuros, rezando para não fazer barulho. Sabia muito bem
aonde ir.
A câmara secreta dos prazeres de Sade ficava na torre ao lado de seus
aposentos. Conforme instruções, empurrei a estante que, ao mover-se, deu
acesso a um cômodo ricamente decorado. A luz bruxuleante de velas de cera
de todos os tamanhos e diâmetros revelava aos olhos que a ela iam se
acostumando uma cama imensa recoberta por dossel vermelho. As paredes
revestidas de rico tecido negro emolduravam gravuras de cenas de sodomia.
Entre elas, espadas e punhais dependurados disputavam espaço com chicotes e
correntes. O que mais me surpreendeu, contudo, foi descobrir que o patrão
não estava só. Ali me esperavam ainda, tomando licores, o valete La Jeunesse,
Carteron e minha instrutora, Justine. Não refeita do choque ouvi a ordem
imperiosa do Marquês:
- Tire a roupa dela, Justine.
A cozinheira era alta e de bom porte, com peitos de mármore e pernas
poderosas. Muita gente dizia que ela gostava de dormir com mulheres, mas até
então eu não conseguia compreender tal forma de amor, apesar de achar
estranha a insistência em acertar meus seios com seus beliscões. Tive de
mudar de idéia ao perceber que suas mãos tremiam enquanto desatavam meu
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corpete e as saias, deslizando sensualmente sobre minha pele, tateando-lhe o
calor e a textura. Quando as roupas começaram a cair no chão, Justine não se
conteve mais e colou a boca nos meus seios, lambendo-os com tal arte que os
mamilos, os meus e os dela, logo se empinaram, a ponto de doer.
- Prenda-a, La Jeunesse - interrompeu a voz de gelo de Sade.
A mulher se afastou, enquanto o valete amarrava-me nua à cama, as pernas
escancaradas presas por correntes. Acomodou-me por baixo do traseiro uma
pequena almofada, de modo a expor a fresta vermelha orlada de pêlos negros.
Percebi que o patrão afrouxava o colarinho de renda e tirava o colete.
Enquanto eu contemplava o patrão a despir o corpo claro e bem desenhado, a
lésbica Justine voltou a aproximar-se, agora nua, roçando contra os meus os
seios de pedra, a coxa pressionando minha boceta que pulsava. Logo suas
grandes mãos chegaram à rachadura vermelha e ali exploraram saliências e
reentrâncias. Eu começava a me contorcer e a gemer quando Sade surgiu de
novo no meu campo visual, seminu, portando um incongruente frasco de
pimenta vermelha.
- Sai, Justine - ordenou. Com um sorriso cruel no rosto, despejou várias gotas
de pimenta na minha boceta. Uivei de dor e me debati, ferindo-me contra as
correntes.
- Aprenderás agora que a violência e a resistência atiçam o desejo, Joséphine.
Quando o objeto de nossos caprichos se rende, o prazer é incomparavelmente
maior. - Virando-se para Justine, o Marquês acrescentou, irônico:
- Chupe-a agora, se quiser.
Pressurosa, a mulher enfiou a cabeça entre minhas pernas. O ardor a fez tossir
e engasgar, trazendo-lhe lágrimas dos olhos, mas mesmo assim ela não
conseguia parar. Sua língua entrava dentro de mim, sugava-me com força,
lambia-me com delicadeza, suas mãos fortes a me segurar pela bunda. Eu
vertia líquido, estimulado não sei se pela pimenta ou pelas carícias dela, a
caminho do jardim das delícias.
- Basta - comandou ele novamente - Agora é minha vez de servir-me.
Seu caralho, tornado rijo como aço pela cena, meteu-se no estreito onde antes
estivera a língua da cozinheira, abrindo caminho em rompantes vigorosos.
Algo se rasgou, doendo ainda mais que a pimenta, sem que o vigor
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diminuísse. Ao contrário, Sade aumentou a força e a profundidade dos
movimentos quando La Jeunesse se aproximou por trás, enterrando sua
enorme vara suas nádegas brancas e bem feitas. Os três gemíamos alto no
mesmo ritmo, e eu já estava quase fora de mim quando vi Justine aproximar-
se. Deitada na cama, imobilizada, com o pau do Marquês lambuzado pelo meu
sangue e pelos restos de hímen, em incessante movimento de vai e vem, vi que
sua gruta negra se punha cada vez mais perto de meus olhos. Sentada como
uma pluma sobre minha cabeça, ancorada pelas pernas hercúleas, colocou a
boceta sobre a minha língua.
- Chupe-me -, ordenou, manobrando minha cabeça com mãos fortes e hábeis.
Completamente tonta, sentia pela primeira vez o gosto de uma mulher. Ah,
como essa lembrança me ajudou a compor delicados sabores na cozinha.
Quando conseguia levantar minha cabeça que sacolejava nas mãos de Justine,
via meu patrão a olhá-a com um olhar distante, quase como se participasse de
uma dissecação, de um experimento científico. Minha boceta ardia enquanto
eu tinha clímaces de prazer intermitente, sentindo que perdia o controle da
língua e dos movimentos. Pelo que me pareceram horas de êxtase, arfamos e
nos mexemos juntos, como gigantesco organismo pulsante.
Na manhã seguinte acordei em minha cama com as coxas sujas de sangue e
sêmen, prova de que a cena noturna não fora sonho. Muitos anos depois, eu
leria nos livros de Sade descrições de orgias bem semelhantes, como se
recriasse em palavras os prazeres que havíamos desfrutado na carne. Lavei-me
rapidamente em uma bacia, antes que meu pai percebesse, e subi para a
cozinha. Justine recebeu-me como se nada tivesse acontecido, mas sua atitude
para comigo era de nova delicadeza. Chegou ao extremo de se oferecer para
me ensinar um prato da moda:
- Vou mostrar-te como fazer o molho branco, um dos pratos preferidos do
Marquês - disse. - As cozinheiras parisienses contam que foi criado por
Béchamel, o mordomo de nosso divino Louis XIV, o Rei-Sol. E vou ensinar-
te a preparar codornas, carne de caça, um raro prazer, bem diferente daqueles
bois de açougue com que os burgueses comem em Paris.
A cozinheira ralou uma noz-moscada, passou dois dedos no pó e aproximou-
os de meus lábios. - Prove - mandou.
Lambi seus dedos fortes, deixando os sabores me invadirem. Gostei de ambos.
Seguindo as instruções, misturei a farinha de trigo na manteiga e comecei a
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despejar o leite, tentando fazê-lo bem devagar, como ela recomendara. Nada
mais inútil: o leite morno caiu aos borbotões do frasco pesado, espirrando no
meu colo. A panela quente queimava minhas mãos. Suava em bicas enquanto
mexia a mistura com a grande colher de pau. A consistência adequada
lembrou-me o esperma que acabara de conhecer. Mas não esqueci de dar o
toque final, uma pitada de noz-moscada. Para surpresa geral, sobretudo minha,
o prato saiu quase tão bom como se o próprio mordomo real o tivesse feito.
Presenciei a reação da família a essa primeira incursão pela alta culinária ao
servir à mesa, uma de minhas inúmeras funções. Enquanto eu recolhia os
pratos usados, o primogênito Louis aproveitou a chance para me elogiar:
- Nunca comi codornas tão boas em toda a minha vida, Joséphine.
- Garanto que foi Justine quem fez - desdenhou Donatien.
- A ave é para a cozinha o que a tela é para os pintores – apressou-se em
contemporizar o Marquês, notório inimigo de discussões à mesa. – Nossa
Joséphine aprende depressa - disse à mulher. Renée de Sade, naturalmente,
não captou o duplo sentido da frase e sorriu secamente.
Naquela noite eu dormia a sono solto quando La Jeunesse me sacudiu.
- Venha - ordenou.
Mal dando tempo para jogar um xale nos ombros, o criado iluminou o
caminho até a câmara secreta. Sade me aguardava em mangas de camisa,
bebericando uma taça de vinho. Um aparador dourado exibia várias garrafas
do que havia de melhor na França.
- Vou recompensar-te pelo apuro das codornas, Joséphine. Um bom jantar
pode causar uma volúpia física, enquanto salvar três milhões de vítimas,
mesmo para uma alma honesta, só enseja uma volúpia moral.
Aproximou-se em passos elegantes, empunhando a taça:
- E volúpia moral, como vais aprender, só serve aos tolos. Penso que o
primeiro passo é ensinar-te a conhecer bons vinhos, sabedoria muito
conveniente tanto para uma cozinheira quanto para uma libertina.
Saboreou um longo gole.
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- Um dos nossos maiores filósofos, Gustave d’Holbach, nos ensina que o
álcool aumenta a violência do princípio ígneo, que procura o máximo de
atividade para as fibras nervosas, de tensão para os nervos, de rapidez para os
fluidos. Condição adequada, portanto, para quem quer se dedicar ao prazer. O
homem é uma máquina guiada pelo desejo, máquina biológica como qualquer
outro micróbio, animal ou planta, já dizia d’Holbach, que assegurava ser todo
o Universo originário de uma só substância, diversamente manifestada.
Levantou e encheu de novo o cálice.
- Um Borgonha encorpado como este, por exemplo, é a melhor companhia
para pratos de carne. Prova, pequena.
Apresentou-me sua própria boca como taça, e dela suguei todo o líquido.
Outros vinhos vieram. Quando chegamos aos bordeaux, o que se molhava no
líquido vermelho não era mais a boca, mas o pau do patrão, do qual recolhi
todas as gotas. Inclusive as brancas, quando elas explodiram.
- Quanto mais um desejo é satisfeito, mais e mais ele é excitado – disse ao
beijar-me, tomando um pouco do gosto de seu próprio esperma em minha
boca. – Os gregos que aconselhavam a justa medida que me desculpem, mas
tudo é ótimo quando em excesso – murmurou, segundos depois.
Tive certeza de que voltaria a ser chamada. Pela primeira vez em minha vida,
sentia-me integrada naquele mundo dourado que sempre invejara. Era parte de
algo importante, ainda que atemorizador. Eu era amante do Marquês de Sade.
Assim começou meu aprendizado dos prazeres. Era um novo mundo de
sensações e idéias, conhecimento e deleite que se abria para mim, ansiosa por
alimento de todo o tipo. Nossas conversas também se estendiam à arte de bem
comer. Grande admirador de Apicius, contou-me como o mestre dos
cozinheiros da Roma dos Césares, nascido poucos anos antes de Cristo,
dilapidara imenso patrimônio só para satisfazer a própria Gula:
- Ao ver que lhe restara pouco dinheiro para manter o padrão de mesa ao qual
se acostumara, Apicius tomou veneno, conforme relata o filósofo Sêneca. Essa
morte os estóicos e cristãos consideram punição exemplar. Afinal, ele legou
um livro, De Re Coquinaria, que inspirou os faustosos banquetes do Satiricon
de Petrônio, e um estilo de vida ameaçador para a salvação moral da
sociedade.
42
Sade tomou a cabeça de La Jeunesse, que ouvia impassível, levou-a até o
próprio caralho e fez com que o abocanhasse:
- Os puritanos não entendem que só sacrificando tudo a seus prazeres é que o
homem consegue semear algumas rosas sobre os espinhos da vida. Venha
querida, abra as pernas para La Jeneusse, ele também precisa das flores de teu
negro jardim.
Enquanto à noite eu mergulhava no fascinante e nobre mundo da depravação,
de dia eram a pimenta-rosa, o açúcar, a baunilha e os bons cafés que
embriagavam outros sentidos. Tinha razão o patrão, eu aprendia depressa.
Justine, agora toda gentilezas, dizia que eu tinha nascido com o dom da
cozinha. Mas nem por isso minha vida era mais fácil. Dormia pouco, vivia
exausta e era atormentada por imensa vergonha cada vez que meu pai se
aproximava. Jean-Pierre desconhecia por completo minhas libertinagens e não
seria eu a contar-lhe. O resultado era que não conseguia mais encará-lo
francamente. Quando tornou a perguntar se havia algo de errado, decerto
preocupado com o muro a erguer-se entre nós, achei, para minha própria
segurança, que cabia-me tranqüilizá-lo:
- Não - respondi mentirosamente, sentindo-me a última das criminosas. -
Estou adorando aprender tudo o que Justine me ensina. Percebi que a cozinha
também dá muita satisfação.
- Cuidado com o exagero, minha filha, a Gula é um dos sete pecados capitais,
um dos abismos nos quais se perde a alma. E, nesse caso, o corpo também.
Veja o Marquês, se continuar a devorar bolos e doces nessa avidez em breve
precisará de ajuda até para trocar de camisa.
Igualmente me angustiava o teor de certas conversas que ouvia. Para quem,
como eu, tinha Sade como mentor, eram revelações preocupantes. Mas, cada
vez mais interessada no mundo que me descortinava, ignorava a voz da
prudência. Sabia, fato impossível de ignorar na nossa região, que era
procurado pela polícia. Logo descobri que a situação era ainda mais grave: já
fora condenado à morte. Tudo começara quatro anos atrás, em 1772, na
mesma cozinha onde eu agora trabalhava, de onde saíram deliciosos bombons
que, em si, não tinham nada de errado. Mas a cobertura era uma calda de
açúcar com cantárida. Esse pó das asas de moscas espanholas, finamente
trituradas, comprovadamente funciona como poderoso afrodisíaco, usei-o
muitas vezes para dominar os homens. A finalidade dos bombons era
apimentar os prazeres particulares de Sade e seu criado da ocasião, Latour.
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Os florais perversos de madame de Sade

  • 1. OS FLORAIS PERVERSOS DE MADAME DE SADE CAPÍTULO 1 A PREGUIÇA Sexta-feira, 2 de dezembro de 1814 Agradeci à criada a taça de vinho e o aviso da chegada de Monsieur Barre. Recostada nas almofadas adamascadas da otomana, conferi o fogo na lareira e vi pela janela a neve caindo sobre as árvores desfolhadas da Place des Vosges. Os últimos passantes demonstravam mau-humor no final precoce da tarde de inverno, com aquele ar enfarado de tantos dias de chumbo e céu cinza. Fechei os olhos. Acudiu-me à cabeça o sol de minha mocidade em Marselha. Aconcheguei-me sob as cobertas, sorvi um gole e avaliei, pela minha lassidão, que o pecado capital reservado à velhice era realmente a Preguiça. Quase imberbe, mas muito sensível aos comandos da natureza, o jovem Vincent Barre esperava para me satisfazer a Luxúria – ou o que restava dela. Nos últimos tempos, entretanto, qualquer esforço, mesmo os necessários ao êxtase do coito, enfastiava-me. Tudo muda com o passar dos anos. “A Luxúria a juventude comeu, da Gula desisti. Hoje, me parece mais confortável viver os prazeres da imaginação do que o rude chamado do corpo”, concluí com meus botões. Fui expulsa dos devaneios por outro toque inesperado na porta. Mas, em vez do gentil-homem, quem invadiu o boudoir foi novamente a mocinha, seguida por uma esbaforida Odette. - Madame, Madame! – gritou Simone, sem a menor atenção à compostura exigida pela etiqueta. Os anos de Napoleão tinham rebaixado os padrões de comportamento da criadagem. No meu tempo, aquela intimidade seria inconcebível, mas ralhar com ela não valia o esforço. - Madame, o Marquês morreu! – anunciou sem fôlego. - Que Marquês? – perguntei, sem querer entender. - Sade - confirmou Odette com ar compungido. O primeiro efeito da notícia da morte de meu velho mestre foi a dor. Quantos anos, mais de quarenta? No mesmo instante em que as lágrimas me subiam 1
  • 2. aos olhos, um insidioso e conhecido calor começou a se espalhar pelo meu corpo. A dor não é empecilho para o desejo, mas antes a causa, primeira lição do Marquês. - Manda entrar M. Barre – ordenei a Odette, ignorando seu ar de preocupação. Num átimo, o estudante abriu a porta do boudoir, trancou-a e voltou-se sorridente para mim, já prestes a desempenhar sua tarefa. Logo tirava às pressas as botas de montaria e os calções para liberar o caralho descomunal erguido em riste, a língua afoita mirando minha boceta, enquanto eu levantava as saias. Em circunstâncias normais, o gozo rápido bastava à minha Preguiça, e tudo se resolveria muito depressa, como normalmente o fazíamos. Naquele dia, contudo, a dor deu-me energia suficiente para despir-me por inteiro, e até para prender à coluna da cama as mãos cheias de urgência de Vincent. Tive de usar o chicote, a princípio com indiferença, em seguida com o prazer que só a submissão de uma vítima desperta. Em pouco tempo todo o belo corpo claro tinha marcas. Lambi lentamente as gotículas de sangue dos vergões, até que se contorcesse de prazer e dor, a vara enorme cada vez mais tensa e rija. Ainda tinha as mãos presas quando o cavalguei, ditando o ritmo. Quando afinal gozei, ungida de suor e sangue, gritei por Sade, meu querido mestre e carrasco, enquanto o amante levava o rosto até minha boceta, lambuzando-se loucamente com meus fluidos misturados aos dele. Nosso gozo tirou-nos o fôlego. Recobrei-me primeiro. - Sai, Vincent, teu trabalho terminou – murmurei alguns segundos depois, olhando-o nos olhos pela primeira vez. – Mas não te afastes muito; mandarei a criada avisar quando de novo se fizer necessária a tua presença. Paguei-o e, ao som da porta a fechar-se, reclinei-me novamente, nua na poltrona, observando com tristeza meus pentelhos úmidos, raiados de branco como a barba de um velho camponês. “O tempo é implacável”, pensei, sem nenhuma originalidade, mas com grande sentimento. Levantei-me com pouca vontade, vesti-me e calcei chinelas acolchoadas. Em passos aveludados de gata velha, dirigi-me à penteadeira. Escolhi um entre os muitos frascos de cristal que se refletiam nos espelhos. Os extratos reluziam à luz da lareira. Estramônio ou mandrágora, cânhamo ou trombeta, artemísia ou efedra, que planta teria segredos para mim, a filha do jardineiro-chefe da Marquesa de Sade? 2
  • 3. Pinguei vinte gotas de beladona na taça. A poderosa essência agora se agitava no vinho. É capaz de curar cólicas, mas é também fonte de alucinações. A beladona era o principal ingrediente da poção verde das feiticeiras da Idade Média, que incluía gordura de bebê. Para obtê-la, as bruxas profanavam as sepulturas e ferviam em enormes caldeirões os corpinhos roubados. Esfregando essa pomada de gordura e ervas na pele, com particular atenção aos órgãos genitais, acreditavam-se capazes de voar. Ninguém pode confirmar se elas de fato viam os telhados do alto de suas vassouras, ou se, no ar, copulavam com o diabo em pessoa, como apregoavam. Mas a diferença entre a realidade e a miragem talvez não seja tão grande quanto dizem os modernos homens de ciência. A voz de Odette chamou-me de volta: - Com licença, vim certificar-me de que Madame está bem. - Ia mesmo chamar para tranqüilizar-te. Era verdade. Se algum laço de afeto ainda me ligava à humanidade ele era atado por Odette. Os anos e sua verdadeira adoração por mim, a patroa, acabaram forjando o mais próximo que conheço por amizade. Sua argutez, seu julgamento preciso e sua lábia me tinham sido preciosos nos últimos trinta anos. Nem a gota que a atacava por vezes empanara seu feitio folgazão, temperado por um travo de ganância. Ela sempre enxergava bons modos de ganhar algum dinheiro e, se não fizera o devido pé-de-meia, pois muito ganhara, pelo menos sustentava Olivier com conforto. Adotara seu eterno cafetão ainda garoto, mas já se vangloriando de ser estudante de Filosofia. Tornou-se um velho e inútil filósofo bêbado, autor de maus versos, a contar sempre com ela. - O que a aconteceu com o Marquês? Como o soubeste? - O jovem cavalariço, admirador de Simone Lely, essa criadita, acabou de voltar de Charenton com a notícia. Aparentemente ele teve uma congestão. A imagem de Sade, gordo, velho, apoplético, caído em uma cama do asilo me atingiu. Sacudi a cabeça para tentar afastá-la e reparei que Odette trazia plumas na mão. Reconheci as penas de ganso que sempre enviara a título de consolo e presente para o Marquês. Nada o desesperava mais que não poder escrever. De repente, mais um elemento se tornara inútil. O Globo pareceu-me 3
  • 4. ainda mais insuportável. Tomei mais um gole de vinho, o que fez brilhar os olhos da velha criada. - Nem pense nisso – atalhei, com a autoridade temperada pelos anos de bem- querer. – Vou dar-te um chá de flores de madressilva, ideal para gota, bem vi como te arrastaste ao atravessar o boudoir. Apesar de desapontada pela interdição ao vinho, ela mostrou-se contente. Nos dias de hoje, perto dos 60 anos, mais do que tê-la feito sempre ganhar dinheiro, minha maior valia era medicar-lhe os achaques e aliviá-la das dores. Toquei a sineta para que a Simone trouxesse o bule com a infusão. Quando chegou dispensei-a, servi-o a Odette e ordenei: - Senta-te a meu lado. Sei que entre todos os hipócritas do mundo tu és uma das poucas almas boas que apreciaram o divino Marquês de Sade. - Madame, nas poucas vezes em que o vi na cadeia, de divino não tinha mais nada, tão sombrio e doente. Sempre o considerei um cavalheiro, a tratar a todos muito bem, com grande afabilidade e cortesia. Custa crer que ele seja tão malfalado, mesmo porque ninguém resistia a seus encantos. - Prova é que, além daquela santa da segunda esposa acompanhá-lo de livre e espontânea vontade a Charenton, ele seduziu a filha da carcereira. Apesar de ter apenas 14 anos quando a mãe a cedeu por algumas libras, Madeleine era- lhe extremamente afeiçoada, como de resto todas as mulheres que o amaram. - Sim, agora, aos 17 anos, ela continuava a rondá-lo. Ele vivia a agradá-la com os chocolates que a senhora me encarregava de levar-lhe. O sonho do Marquês era sair de Charenton para encenar peças libertinas em Paris com a mulher, Marie Quesnet, e a amante. Quantos planos para um homem já velho! Que idade tinha? - Fácil, eu nasci no ano do casamento dele, quando contava 23 anos, em 1763. Tenho 51, ele estava com 74. - Lamento muito pela senhora, Madame, sei que deve estar desolada. - Odette! – espantei-me – tu te dás conta da coincidência deste triste dia? Lembras-te do que aconteceu há exatos dez anos? 4
  • 5. - No 2 de dezembro de 1804? Minha cabeça anda ruim para o que fiz ontem, mas o passado está cada dia mais presente. Trago viva a imagem de Madame nervosa, enquanto ajudava Antoine a dar-lhe os últimos retoques no cabelo, achando que iria perder o começo da Coroação do Imperador. - Imagina que ironia do destino, esse homem que não permitiu que o Papa lhe colocasse a coroa na cabeça, preferindo cingir-se com as próprias mãos, hoje prisioneiro na Ilha de Elba. Ah, se eu pudesse sonhar que deixaria não só próprio Pio VII como nós todos esperando quatro horas geladas da suntuosa Notre Dame não teria atormentado Antoine à toa para acabar-me o toucado. - Bom, pelo menos o Marquês teve o gosto de saber que seu tirano também conheceu a desgraça – consolou-me Odette. Tomei um gole generoso do vinho com beladona. - Bem sabes que o Marquês foi uma das vítimas do Imperador, que o fez morrer na cadeia. Percebes que já não temos cavalos honestos hoje em dia? Pois aí tens, Napoleão acabou não só com os homens, mas também com os cavalos da França. - Nunca entendi bem os livros do Marquês, Madame, pode ser até por minha pouca leitura – disse Odette. – Mas, sou obrigada a concordar com o corso, me parecem um amontoado de impropérios. - Pelo menos não eras um dos censores de Bonaparte, que baniram os romances de Sade das livrarias do Palais Royal, nunca passaste de uma mundana em abastança. - Graças a Madame nada me faltou, diga-se de passagem. Devo lembrá-la, com todo o respeito, de que sou sua gerente-associada e dona de algumas pequenas propriedades. Mas, se nunca fui mais que uma criada, o grande General nunca também passou de um grande corso. Conheço bem as histórias de vendetta e banditti de sua terra natal. Madame, não tenha dúvida, estes são os verdadeiros princípios do Imperador – disse a atilada criatura, não sem uma ponta de admiração. - Como és sabida, Odette, como sabes ouvir bem, tua perspicácia compensa tua pouca cultura. 5
  • 6. - Sim, lembro-me das histórias daquele jovem oficial corso, que gostava tanto de prosear comigo a ponto de dar-me Gizeh, nosso anão egípcio. Giacomo era muito prestigiado por Napoleão, até fisicamente se assemelhava a ele, a contar casos de mercenários alugados por sua família para executar sangrentas vinganças contra famílias inimigas. Mas é melhor falarmos de coisas menos lúgubres, Madame precisa descansar o espírito. - Sempre preciosa, querida Odette. Deixa-me agora, vou sorver meu cálice até a última gota. Queria rever, ainda que em quimera, aquele que, junto com meu pai, me ensinou tudo o que sei. Útil beladona, sempre pronta a criar realidades paralelas. Bastaram poucos minutos para que começassem a desfilar ante meus olhos vívidas imagens. A primeira foi a de Juliette, caída de costas, nua, numa cama de um bordel de luxo, ceifada pelo excesso do remédio que, de alívio, degenerou em vício e morte. Depois, o Marquês morto no asilo de alienados. De volta ao atual esplendor de meus aposentos dignos de um nobre do Ancien Régime, ouvi a voz sarcástica de Louis Alphonse de Sade. - Muito mudou desde que teus pêlos ainda tinham a intensidade do negro profundo dos topinamboux, teus antepassados do distante Brasil, Joséphine. Trazido pela beladona, Louis-Alphonse François, o Marquês de Sade, jovem, impecável, altivo em seu adorável sorriso, surgiu envergando uma casaca cinza, peitilho de renda, culottes de seda e bengala de castão de ouro. Os olhos azuis tinham a ironia de eterno gentil-homem, que ganhava um ar mais másculo por causa das pequenas marcas de varíola no rosto. Os cabelos cor de mel, levemente revoltos, estavam presos por uma fita vermelha. - O tempo nos mudou, querido Marquês. E devo dizer que foi bem mais generoso comigo que contigo – respondi ao vulto. A réplica dura desagradou à miragem, que se afastou, deixando-me apenas com as memórias. Hoje tenho muito de tudo aquilo que os homens desejam, mas, de tudo o que me resta, os fantasmas dos pecados capitais são o que mais prezo. Conheci todos os sete, bem intimamente: a Inveja, a Gula, a Ganância, a Luxúria, a Ira, a Soberba e a Preguiça. Mesmo em minha atual predileção por este último, que até então, imatura, julgava um pouco desprezível, devo reconhecer os bons frutos por todos eles trazidos. Da Inveja e da Ira tirei a força que me impeliu vida afora. Da Soberba veio-me o desprezo aos juízos, 6
  • 7. humanos ou divinos. Da Gula e da Luxúria ganhei o conhecimento íntimo dos prazeres. Da Ganância, o ouro que os possibilita. E agora era a Preguiça a prender-me em suas delícias. Muitas vezes, um pecado conduzia a outro, sem que eu nada fizesse para impedir. A Luxúria, por exemplo, veio através da Inveja, o primeiro deles. Menina, já me deslumbrava com o mundo de perfumes e brocados, de perucas empoadas e espelhos reluzentes, das frívolas pantufas de seda e da maquiagem de alvaiade que estragava a pele de Madame Renée-Pélagie de Sade, minha patroa. Eu queria muito ser a Marquesa. Mais ainda, eu almejava ter o marido dela. Louis-Alphonse, como eu secretamente chamava meu amo, era um homem de bela figura, com maneiras muito mais refinadas do que as de qualquer outro fidalgo. Se algo duro e maldoso se desenhava no fundo de seus olhos, isso só lhe aumentava o encanto, acrescentando-lhe o tempero do perigo. Mas, por mais que sonhasse com suas mãos finas, Louis-Alphonse parecia inatingível a mim, Joséphine, a humilde criadinha encarregada de dobrar as saias usadas de Madame, esquentar-lhe a água para o banho e abaná- la com o leque de penas durante os ensolarados verões da Provença. Ao guardar-lhe os vestidos, costumava comparar as sedas de delicados tons que a envolviam com minhas saias de chita ordinária, tingida em cores berrantes. O contraponto ficava ainda pior quando me vinha a lembrança de minha mãe, sempre abrigada nas pesadas roupas de lã preta que a protegiam mal do inverno parisiense. Ásperas ao toque, contrastavam com a doçura da voz dela ao me embalar ou implorar que fizesse menos barulho, para não incomodar os patrões. Não, definitivamente, eu não iria repetir o destino miserável de minha mãe. Tantos anos e tantos amantes depois, os seios outrora impecáveis declinando para a terra que um dia os abrigaria, eu pensava na garota de 40 anos atrás. E aquela Joséphine, concluí, entorpecida pelo langor do meu ventre bem satisfeito de sexo, beladona e vinho, invejosa e dissimulada, já sabia muito bem o que queria e intuía os meios de consegui-lo. Eu, com certeza, não herdara a candura dos meus antepassados, índios cuja bondade natural levou o ingênuo Rousseau a considerá-la inerente a todos os seres humanos. “O Homem é bom, a sociedade que o perverte”, repetia o crédulo. Quem gostava de me contar velhas histórias de família era meu pai, que se vangloriava de ser descendente de Poty, o protegido de Hervé de Tocqueville. Capitão da Marinha Real, ele trouxera o índio da antiga França Equinocial no 7
  • 8. século XVII, da longínqua terra tropical conhecida como Vera Cruz. Poty, camarão na língua dos topinamboux, ganhou correspondente em francês, rebatizado por Tocqueville como Pierre Pêcheur, ou Pescador. A maioria dos selvagens transplantados para a Europa terminaria morrendo de gripe ou sarampo, mas Poty, que gostava de andar nu, viveu até idade avançada. Teve tempo mais que suficiente para casar-se com a tecelã Marie, em 1610, e produzir vasta prole. Por sinal do destino, talvez, Marie Pêcheur tingia seus fios com um produto vermelho vindo da terra natal do marido, extraído da árvore pau-brasil. Pierre Pêcheur trouxera consigo dos trópicos vários espécimes vegetais que tinham interessado aos grandes naturalistas de sua época. Com eles, fervia tisanas e poções poderosas, cujo segredo, aprendido nas selvas com seus ancestrais, transmitiu para seus descendentes, chegando a meu pai. Eu ainda não sabia, mas um dia todo esse império de conhecimento seria meu, e me faria mais poderosa que um General de Napoleão. - Esta orquídea veio da América com o primeiro de nós – dizia meu pai, mostrando as belas flores nascidas nas estufas da mansão Montreuil. Era nos vastos domínios dos pais da futura Marquesa que cultivava suas raras plantas. Jean Pierre Pêcheur tinha pele trigueira e lisos cabelos pretos, que nenhum ferro de frisar era capaz de deixar cacheados como ditava a moda. Paparicado pela patroa desde os tempos de mocinha, já tinha certa fama como criador de paisagens e jardins. Em seus canteiros, fundia remotos estilos tropicais com a formalidade dos jardins franceses, combinava as crenças topinamboux nos deuses das plantas com sólidos conhecimentos da vanguarda da ciência. Meu pai admirava o médico Karl von Lineu, que na gelada Suécia sistematizava todas as formas de vida, começando pelas plantas. Caprichoso em tudo o que fazia, Jean-Pierre tinha cópias da correspondência trocada com M. Lineu. No começo, consultara o naturalista sueco a pretexto dos espécimes trazidos por seu antepassado, Poty. Lineu, um cientista viajado pela França e Inglaterra, interessara-se por sua ingênua mistura de conceitos ocidentais e crenças anímicas, e os dois se corresponderam por muitos anos. Eu conservava aquelas cartas, o maior tesouro de meu pai, atadas por uma fita vermelha no baú chinês de laca. Em vez de chamar a criada, eu mesma me levantei e abri o baú com a chave que trazia ao pescoço, em um cordão de ouro. Coloquei os óculos masculinos, meus favoritos, pois incomoda-me ocupar uma das mãos com a haste da elegante e incômoda lorgnette que as 8
  • 9. mulheres usam. Sem o auxílio daquelas preciosas lentes sobre o nariz, entretanto, eu não conseguia ler praticamente mais nada. Remexi os velhos papéis até encontrar as primeiras cartas: Paris, 14 de julho de 1770 Prezado M. Lineu, Tomei conhecimento de seu magnífico Filosofia Botannica por intermédio do grande naturalista George Louis Leclerc, Conde de Buffon, para quem as teorias são impessoais e coletivas, cabendo unicamente ao estilo a revelação do indivíduo que escreve – o estilo é o homem – segundo suas palavras). Sou jardineiro-chefe da casa de Montreuil, em Paris, onde cultivo plantas tropicais em estufas. Antes que o senhor estranhe, devo esclarecer ser descendente de índios brasileiros, que trouxeram para a França várias espécies de cipós e orquídeas, hoje presentes até no Jardin des Plantes, menina dos olhos de Buffon. Seu sistema de classificação, M. Lineu, encanta-me porque retira as plantas do mundo dos espíritos, onde colocadas por meus antepassados, e lhes dá nome e sobrenome, compondo uma hierarquia de gêneros que se ramificam em espécies. Nessa classificação ousada, o senhor incluiu o próprio homem, colocando-o na mesma família que os símios. Tenho, contudo, certas dúvidas que ultrapassam a questão da classificação, embora dela decorram. Por isso tomei a liberdade de lhe escrever. A primeira refere-se à sua sugestão de que novas espécies de plantas surgem a partir do cruzamento sexual de espécies primitivas. Esse fenômeno não contraria a Divina Criação, segundo a qual os seres são imutáveis e fixos, produto da obra de Deus? Se levarmos a teoria do senhor em conta, novas formas de vida estariam sendo produzidas a cada momento. Transformei a outra dúvida numa série de perguntas entrelaçadas. Para apoderar-se do que chamavam de “espírito das plantas”, meus ancestrais invocavam os deuses. Como o senhor eliminou a alma dos vegetais, a que atribuir essa estranha força que existe nos vegetais, principalmente nas flores? Sempre acreditei ser possível aprisionar em água a alma das plantas, transmitindo sua essência a quem a bebe. 9
  • 10. Creio também que podemos perceber as almas do Reino Vegetal olhando para suas formas. Por que as flores das papoulas da Turquia fazem sonhar? Por que as plantas de caules finos como fios de cabelo servem para tratar a calvície, como acontece com a Adiantum capilum veneris, a avenca? Por que servem para tratar os joanetes, com que se parecem, os bulbos do Colchicum autumnale, o lírio rosado? Por que os duplos tubérculos da orquídea Orchis mascula, que imitam testículos, servem para curar a impotência? Que espécie de linguagem é essa, em que cada planta parece indicar sua utilidade a partir de sua forma?Queira me desculpar pela ousadia, ficarei eternamente grato se tiver a bondade de responder-me. Respeitosamente Jean Pierre Pêcheur Em mais uma prova do temperamento racionalista de Jean-Pierre, que guardava cuidadosamente dúvidas e respectivas respostas, a carta de Lineu estava amarrada à cópia da mensagem enviada. Uppsala, 15 de novembro de 1770 Prezado M. Pêcheur, Fiquei encantado com sua carta e as dúvidas apresentadas. Sua genealogia me lembra o Bom Selvagem de Rousseau, que tenho a certeza de ter se inspirado em seus antepassados. Gostaria de responder à sua primeira pergunta esclarecendo que o fato de as espécies não serem fixas não contraria a Criação, nem empana a glória de Deus, referência que tive o cuidado de fazer no prefácio de meu livro Systema Naturae, anterior ao Filosofia Botannica citado pelo senhor. O caminho da ciência não é isento de sobressaltos, mas o fato de as plantas fazerem sexo, como os animais, mostra que essa é a ordem natural da vida. Já as novas espécies surgidas de cruzamentos de espécies diferentes são um enigma que só o avanço do conhecimento poderá desvendar. Quanto à segunda pergunta, gostaria de esclarecer que considero um engano a célebre Teoria das Assinaturas, retomada dos antigos gregos pelo sábio 10
  • 11. suíço Paracelso, que viveu em princípios do século XVI e foi versado na arte da Medicina. Considerar que as propriedades medicinais das plantas são indicadas por sua aparência não passa de um artifício para facilitar a memorização. É como encontrar sentido nas figuras que as nuvens efêmeras pintam no céu. Na verdade, as propriedades das plantas decorrem de substâncias químicas nelas presentes, e que só agora a Ciência tem conseguido isolar, graças ao trabalho dos novos mestres, como seu conterrâneo, o grande químico Antoine Lavoisier. Vou me ater ao exemplo da papoula, que batizei de Papaver somniferum, por suas sementes serem comestíveis e seus frutos favorecerem o sono. A planta em si é inofensiva; seu efeito narcótico só é obtido se a mão do homem machucá-la, obrigando-a a liberar a substância do sono e dos sonhos. Para pleno êxito com a papoula, é necessário arranhar a superfície da cápsula das sementes ainda não totalmente madura. Imediatamente surgirão pequenas gotas brancas que emitem cheiro alcoólico penetrante e aos poucos escurecem, tornando-se marrons. Essa é a substância ativa do ópio; misturado em água, ele solta seu efeito. Os ingleses costumam diluí-lo em cherry, acrescentando especiarias como açafrão, cravo e canela, conforme a receita de 1714, criada por Mr. Thomas Syndeham. A essa fórmula dá-se o nome de láudano. No Oriente, a resina das papoulas é prensada em fôrmas depois de seca. Fumada ou comida, provoca forte efeito entorpecente. Por isso não recomendo essas formas de uso, mas comprovei como médico que a ingestão de ópio diluído em água é altamente benéfica à saúde, capaz de interromper as crises de tosse e melhorar a digestão dos velhos. Lembre-se, M. Pêcheur, que as plantas só deverão ser usadas para a maior glória de Deus. Dentro deste sagrado limite, estou a seu inteiro dispor para esclarecê-lo no que for possível, pois tenho grande alegria em ajudar espíritos iluminados. Sempre seu Karl von Lineu Sorri. Essas cartas eram a evidência de que tinha acertado ao cultivar papoulas em minha estufa. Rubras a ponto de fazer sombras negras no abismo de sua 11
  • 12. forma, as flores estavam ali para me dizer que tudo é sonho, dissolução e fluidez. Nas pétalas da Papaver somniferum nigrum, a fusão do carmim com o negro lembra uma sedosa trama de finos fios de sangue, matizada pela escuridão do nada, como se deixasse transparecer o vertiginoso fundo do universo. Com a consciência recém-adquirida de que o pecado da Preguiça tem inestimável valor, quero vivê-lo tão bem como fiz com seus seis irmãos. Contrariando Lineu, tenho certeza de que a ação das plantas não se limita às substâncias químicas que produzem. Como meu pai, sei que as plantas, sobretudo as flores, têm uma energia vital capaz de agir sobre os estados emocionais de homens e animais. Essa energia, não menos material pelo fato de ser desconhecida, vibra no mesmo tom que certas qualidades ou perversidades humanas, intensificando- as. Também com Jean-Pierre aprendi que essa espécie de alma das plantas pode ser aprisionada em água. Torna-se uma poção a que ele deu o nome de floral. As preparações de flores da centáurea, por exemplo, ajudam a tornar mais firmes os pareceres dos demasiado influenciáveis, ao passo que as vistosas pétalas da Impatiens combatem sentimentos coléricos e afastam a solidão. Menos conhecido é o fato de que o espírito de certas flores pode ajudar quem, como eu, está mais interessado em deliciar-se com o Mal. Graças à minha longa convivência com os pecados capitais, aprendi quais são as flores de cada um deles. Captei essa essência em florais que se tornaram preciosos em minha viagem pela vida. Agora, a correspondência entre Jean-Pierre e Lineu me sugeria a fórmula do meu derradeiro floral, o da Preguiça. “É nas papoulas das estepes asiáticas que reside a essência da poção do ócio, hoje a encantar-me”, pensei. O pecado que refreia a ação do corpo físico para maior brilho da riqueza da vida interior era o único no qual ainda não mergulhara com a devida sofreguidão. Na manhã seguinte, ainda em robe de chambre, fui colher as flores. As papoulas importadas da Turquia tinham se dado bem na estufa retangular, aquecida por fogões de carvão, que ficava no terraço. As pequenas chaminés espalhavam um aroma de resinas queimadas pela Place des Vosges. Uma comprida coifa que acompanhava as paredes de vidro levava para fora a fumaça das dezenas de velas postas diante dos espelhos côncavos. Uma das obrigações de Simone era deixá-las acesas todo dia, por rigorosas doze horas. Os espelhos amplificavam a luz trêmula, dirigindo-a para as jardineiras. E assim, graças aos milagres da Ciência, abastecia meus aposentos de flores frescas em pleno e escuro inverno parisiense, papoulas, rosas, calêndulas, 12
  • 13. buquês de valeriana que pareciam estrelas, semeadas ainda em setembro, final da estação quente. As sementes das papoulas tinham vindo do porto de Marselha, encomendadas a uma viúva chinesa que o próprio Sade tivera a delicadeza de me indicar. Conversamos sobre ópio numa das últimas visitas a Charenton, onde dirigia seus colegas, os pacientes, na encenação de peças e jograis que encantavam a alta sociedade parisiense. Num domingo, depois da representação de uma de suas comédias em verso, o Marquês contou-me que uma chinesa conhecida por Raposa, na complexa e cerimoniosa língua mandarim, controlava o tráfico de ópio na Europa. A Raposa comandava uma esquadra-pirata de seiscentos juncos de guerra, que encheu de pavor os mares do Oriente na primeira década de 1800. Poucos meses depois de derrotar a esquadra do Imperador chinês, a viúva, que mantinha em seu navio um harém de mulheres para saciá-la, perscrutou as nuvens e decidiu render-se. Fez-se levar ao navio de comando da frota do Imperador e mandou-lhe um bilhete em que dizia: “A Raposa se entrega às asas do Dragão”. A Raposa foi perdoada pelo Imperador-Dragão, livrando os mares do Oriente da esquadra-pirata, que passou a dedicar-se exclusivamente ao comércio de ópio e sementes de papoula com a Europa, sob proteção do soberano chinês e de alguns governos europeus, como o da Inglaterra. Lembrei do riso de escárnio do Marquês ao encerrar o caso: - Na velhice, a Raposa assumiu um nome cuja tradução é algo como Brilho da Verdadeira Instrução. Colhi sete flores perfeitas e, com uma tesoura de prata, cortei rente as papoulas, sem tocá-las, fazendo-as cair sobre a bacia de água pura. Com um fino bastão de cristal, distribuí as flores sobre a superfície, Flutuando como sete olhos rubros iam exibir-se à luz concentrada pelos espelhos durante quatro horas. Assim se aprisionaria na água sua força vital, inexistente para Lineu, mas que meu pai ensinara-me a captar. Meu próximo passo é retirar as flores e filtrar um litro do líquido. Em seguida, sacudir cem vezes o frasco para amplificar a vibração das flores, da mesma forma que o jogo de espelhos amplifica a luz. A essa tintura-mãe, acrescentarei uma taça do mais fino conhaque. 13
  • 14. Meu pai vivia a me alertar de que nem sempre o espírito das flores é benigno, é preciso tomar cuidado. As palavras dele estavam em uma carta também guardada no cofre de laca: Do lótus, que é criação, podes fazer uso, mas da papoula, que é dissolução, não deves te aproximar. Ambos são faces da mesma moeda; contudo, é preciso escolher. “Mas, desta vez, Jean Pierre, é a dissolução que quero”, pensei. “A dissolução no sonho de onde brotam os prazeres.” Puros de coração e de corpo, tão nus de malícia quanto de vestes, os homens da família de meu pai não reconheciam que o mal impera sobre a terra, nem viam que a volúpia de destruir é freqüentemente maior que o prazer da criação. Pfff!... Quem, como eu, conviveu tão de perto com Sade já sabia que a natureza que nos comanda é a mais exigente e cruel das mães. E isso muito antes de ver Paris banhada em sangue pela Revolução, tão facilmente desmentindo as crenças ingênuas de Rousseau. Naquele tempo, no entanto, Paris me parecia parte do Paraíso. Naqueles dias havia meu amor maior. E, nas noites, o cheiro do sangue vertido pela guilhotina se misturava ao do esperma que inundava nosso leito, nossos uivos de prazer se mesclando aos gemidos dos condenados à morte. É melhor tomar do Floral da Preguiça no meio da tarde, para que seus efeitos sejam mais intensos. Devem-se diluir duas gotas em uma taça de água durante 13 dias seguidos. É recomendável não esquecer de que o estado almejado pode ser atingido antes de a série chegar ao fim. Acabei de escrever a última receita e amarrei-a junto a suas seis irmãs na caixinha de charão, não sem antes assiná-la como de hábito: Madame de Sade. OS FLORAIS PERVERSOS DE MADAME DE SADE CAPÍTULO 2 A INVEJA Outubro de 1776 Foi quando Donatien pronunciou “Eu vos declaro marido e mulher” que percebi o olhar do Marquês de Sade sobre mim. Os insolentes olhos azuis 14
  • 15. exploravam meus nascentes peitos no decote do vestido de noiva, pesquisavam cada nova curva dos meus 13 anos. Já tinha sentido olhares como aquele antes, sim, sobretudo dos garotos da cocheira, mas tinha socado e xingado os atrevidos. Levantei a cabeça para protestar. Mas, ao cruzar nossos olhares, meus joelhos bambearam e a respiração me faltou. Os olhos dele falavam, prometiam céus de delícias. Sem se conter, Sade levou o polegar à boca, lambendo-o de leve. Baixei os olhos, atemorizada pelo poder que sentia nele. E, naquele momento, sufoquei um grito, alguma coisa se torceu dentro de mim, uma dor que parecia um anseio. A festa começara havia uma hora, quando tinham chegado os convidados dos Marqueses de Sade ao castelo de La Coste, na Provence. La Coste fica no sul da França, na região de Marselha, perto de Avignon. A altitude de mais de 300 metros do Monte Luberon lhe dá vista belíssima. Era uma antiga fortaleza que passara ao domínio da família de Sade em 1627 com o casamento de Jean- Baptiste de Sade com Dianne, filha do senhor do castelo. Doze salas, ou vestíbulos, sem contar a Grande Sala, onde havia um retrato de Petrarca, eram cobertas de tapeçarias e obras de arte. A pecadora Madalena, em tamanho natural, pendia das paredes da sala de jantar, onde havia ainda uma tapeçaria verde. Na sala ao lado, o rosto severo da Marquesa de Sade em uma moldura ovalada, folheada a ouro, dava-me calafrios. Naquele verão, as crianças levavam à cena o casamento dos pais. Eu vivia pela primeira vez o papel da Marquesa, que por direito seria da filha mais nova, Madeleine Laure. Fora meu aliado, Louis-Marie, o primogênito, quem me escolhera, contra o protocolo e o voto do irmão, Donatien, para fazer o papel de sua noiva, o que me deixara a cabeça à roda. Os mexericos da criadagem davam conta de que eu fora escolhida porque me tornara uma mocinha muito bonita. Meu pai costumava dizer que eu tinha os olhos de minha mãe, de um azul angelical. Minha pele muito branca, como um biscuit das bonecas de Madeleine, contrastava com a cabeleira negra com reflexos azulados, bem diferentes dos cabelos escuros das outras meninas, comuns nessa região do sul da França. Uma das minhas primeiras lembranças era a de minha mãe afagando-os com carinho ao pentear-me: - Iguais aos de teu pai - costumava dizer Marguerite, que invariavelmente repetia: - Foi desses índios também que herdaste estes lábios carnudos e tão vermelhos. Talvez minha filhinha seja tão linda por essa rara mistura. 15
  • 16. - Ai, mãe, cuidado, está puxando muito – reclamava enquanto ela os desembaraçava. Ela não fazia caso, enlevada em contemplar-me. Doce Margueritte! - Tens as cores muito mais vivas do que qualquer moça rica, do que qualquer uma das filhas de Madame Montreuil. Pude confirmar que não fiz feio perante a melhor sociedade. Os notáveis das vilas ao redor tinham vindo para ver a peça encenada pelos três filhos dos senhores do castelo, no bem-equipado teatro construído por Sade. Minha entrada foi triunfal no palco do teatro de La Coste, ao som do cravo tocado pela Marquesa, única nota dissonante em minha alegria. Ela me deixava doente durante os ensaios com comentários fúteis sobre os lugares onde provavelmente eu nunca poria os pés. Como gostava de se exibir! Eu a odiava, a dirigir-me essas frases para ferir-me, pois era visível o encantamento de meus olhos a ouvi-la: - Vou adaptar para a pecinha de vocês a música do bailado de Orfeu e Eurídice, uma ópera de Gluck que fez muito sucesso em Paris. Eu e o Marquês fomos vê-la duas vezes. No grande dia, como manifestação de uma Justiça divina na qual não acredito, a grande estrela era eu. Vestida de seda bordada a ouro, véu de rendas comprido e buquê de camélias na mão, provocava murmúrios e exclamações abafadas. Percebi a surpresa das pessoas que sequer me enxergavam quando passava em meus trajes de criadinha. Minha vontade era nunca mais sair daquele figurino luxuoso. Eu queria que a glória daquele instante nunca acabasse. Estava tão inebriada em imaginar-me maravilhosa diante de todos que tive de forçar-me a prestar atenção nos outros. Garboso em seus nove anos, fardado como oficial da cavalaria de espadim preso à cintura, Louis Marie me esperava no altar. Se eu conseguisse achar graça em Donatien, iria rir dele vestido de Bispo, com a mitra que insistia em escorregar, grande para a cabeça do garoto de sete anos. Já bem comportada aos cinco, Madeleine Laure parecia uma boneca envolta em rendas rosadas como a carne dos salmões. O capricho na encenação da peça infantil se devia ao incentivo do Marquês. Apaixonado pelo teatro, o dono do castelo era autor de diversas peças e costumava dizer que seu maior sonho seria vê-las encenadas pela Comédie 16
  • 17. Française. Em tempos mais prósperos trouxera atores e atrizes de Paris para La Coste. Era voz corrente que, depois das apresentações, atores e atrizes continuavam a atuar na cama, com decidido apoio e entusiasmada participação dele. Como sabido, Sade não se conformava com a monotonia do sexo feito a dois somente. No mínimo três, melhor quatro ou cinco, em diversas formações, se possível empregando a dor como tempero. Tais gostos eram objeto de rumorosos escândalos. Cinco anos depois de construído, o teatro fora rebaixado a palco de brincadeirinha de crianças. Estávamos em época de dinheiro curto e cobradores na porta. Para total encanto da família e da criadagem, o charmoso patrão estava no castelo para nos assistir, o que nem sempre acontecia. Como também se dizia à boca pequena, era para se esconder da polícia que passava longas temporadas longe de seu amado La Coste. Às vezes a situação se invertia e o Marquês vinha para o castelo em uma espécie de exílio da Corte, para evitar maiores constrangimentos em Paris e Versailles. Os convidados ainda aplaudiam nossa atuação quando senti voltar com mais força a dor no ventre. Um estranho aperto me fechava a garganta, a quase levar-me ao desmaio. Louis, solícito, me amparou ao sairmos do palco. Deixou-me em uma banqueta, sem ar nem forças, enquanto tomava pela mão os irmãos e ia saudar o pai. A Marquesa chamou os espectadores para a ceia, decretando meu esquecimento. Como o convite não me incluía, fui enfrentar minhas tarefas, com a cabeça na cena que acabara de viver. Primeiro, meu papel principal na peça dos filhos de meus amos, usando o véu com do casamento de verdade da invejada Renée, que não queria mais tirar. Depois, aquele olhar perturbador do Marquês, a reduzir a farelos o protesto do meu pudor juvenil, transformando-o em loucos impulsos de... de quê, mesmo? Nem eu sabia. E, para piorar, aquela dolorosa pontada que de vez em quando me contraía as entranhas. Minha família e a dos Sade se entrelaçavam desde que o pai da Marquesa, o presidente de Montreuil, contratou Jean-Pierre Pêcheur, com seus cabelos negros e sua fama de bom jardineiro. O velho presidente do Tribunal de Justiça, dono de uma imensa propriedade em Paris, ensejava lustrar a aparência do dote, que incluía engrandecer os faustosos jardins, já de olho em um casamento nobre. Renée-Pelagie era a primeira e a mais feia dos cinco filhos e Anne-Prospère, por todos adorada, a segunda. Meu pai tinha poucos anos a mais que elas. O interesse comum pela Botânica aproximou-o da mais velha. A futura Marquesa de Sade gostava de rosas em buquês para bailes, nos 17
  • 18. quais meu pai se esmerava. Uma nova camareira, filha de um peruqueiro da zona pobre de Paris, chamou-lhe a atenção por causa da pele e dos olhos claros. Jean-Pierre olhava bastante para Marguerite, que não se furtava a retribuir. Mas, tímidos, trocavam poucas palavras, restritas aos deveres domésticos. Um dia, meu pai levou-lhe uma orquídea, explicando-lhe muito seriamente tê-la batizado de Laelia purpurata Margueritte, uma nova espécie, em homenagem a ela. Dois meses depois estavam casados. Nasci a 29 de agosto, em Paris, em pleno verão de 1763, três meses depois do enlace de Renée com o muito nobre Louis Alphonse Donatien de Sade, aparentado por parte de mãe aos poderosos príncipes de Condé, primos dos reis da França. Casa antiga, a família do Marquês encontrou seu momento de maior glória em Petrarca. Poeta e humanista medieval, o italiano instalou-se em Avignon em 1326. Foi ali que conheceu e apaixonou-se pela legendária beleza de Laure de Noves, mulher de um Sade. Foram 317 sonetos de amor platônico dos quais a família do marido muito se ufanava em possuir a musa. Ao casar-se aos 23 anos, o Marquês de Sade tinha boa fama como militar e a má reputação de libertino.Voltava como capitão da recém-terminada Guerra dos Sete Anos, na qual França e Inglaterra, com respaldo dos respectivos aliados, tinham exercitado mais uma vez a eterna rivalidade. A França perdera colônias, notadamente nas Antilhas, no Canadá e nas Índias, e ganhara dívidas. Já semi-arruinado, Jean Baptiste François Joseph de Sade queria entregar o filho a uma esposa, com o que cuidava diminuir suas despesas e livrar-se de um estorvo. Com a mãe as relações não eram melhores, “Se algum dia arrancares as jóias que tens no lugar do coração, talvez possas pensar que tens um filho e esse filho tem necessidades de amor e carinho”, dizia uma queixosa carta adolescente enviada a Marie-Éléonore. Ler a missiva foi das primeiras bisbilhotices nos guardados do marido da patroazinha que eu achava tão lindo, com seu garbo de príncipe de contos de fada. Jogador, pródigo e entregue aos deboches, o jovem Marquês era um libertino, freqüentador de coxias de teatros e prostíbulos. Não tinha nenhuma preocupação com o futuro e negligenciava a corte que deveria fazer ao Rei. De foro intimo, Sade não nutria aversão ao casamento. Queria, porém, contraí-lo com o coração. Chegou a marcar a data com a provençal Laure de Lauris, uma jovem encantadora de Avignon. Mas o matrimônio com os Montreuil, arranjado pelo pai, era bem mais conveniente às duas famílias, interessadas em alicerçar a costumeira aliança entre a nobreza falida e a burguesia afortunada. Contra toda a lógica e qualquer expectativa, o novo casal se deu 18
  • 19. muito bem. Renée se desfazia, indefesa diante do encanto que o marido prodigalizava a qualquer ser vivente. Estabeleceram-se na mansão dos Montreuil, onde havia espaço de sobra, e ali as maneiras encantadoras do Marquês conquistaram até o coração da duríssima sogra. Mas não foi preciso muito tempo para a presidente de Montreuil descobrir o caráter estranhamente retorcido que se escondia debaixo dos gestos aristocráticos. Eu fui uma criança solitária. A filha caçula dos patrões, Françoise, três anos mais velha, era de casta diferente que não se misturava. Enquanto meu pai ia para os jardins e minha mãe começava o trabalho do dia, passando as roupas da Marquesa e colocando em ordem sua toalete, eu engatinhava, perdendo-me pelos corredores do palacete. Tenho a impressão de que daria a vida, ou pelo menos um braço, para poder pegar as bonecas de porcelana ou os inatingíveis cavalinhos das senhoritas. Renée, mocinha, já sem achar mais graça em bonecas, gostava de me atazanar: - Não, não podes tocar em nada, pois sem dúvida quebrarás os brinquedos. Pegava ao colo aqueles verdadeiros anjos louros e saía às gargalhadas para atormentar minha mãe. Ela não parava nunca. Depois de vestir a patroa, cumpria-lhe arrumar seus aposentos, esvaziar os penicos, lavar suas roupas na cisterna, coser os babados desfeitos, preparar os cosméticos, enrolar os cachos das perucas, levar-lhe os chás e merendas.Ao deitar-se, exausta, quase já não tinha ânimo para fazer amor com o jardineiro, também cansado, na cama de lençóis ordinários do quartinho do porão, onde meu duro berço ficava em um canto. Eu raramente via o Marquês, pois vivia entre prisões, excursões a suas propriedades e aventuras galantes. Desde bem pequena costumava ouvir os mexericos sobre sua agitada vida amorosa, sempre o assunto do dia entre a criadagem. Sabia muito bem que ainda não tinham se passado cinco meses desde o casamento quando foi encarcerado pela primeira vez, por causar distúrbios em bordéis. - Dizem que, nessa ocasião, ele enfiou uma hóstia na pomba da rameira e a penetrou, enquanto gritava para o alto: “Se és Deus, vinga-te!” - contava a melhor amiga de minha mãe, a gorda Hermengarde, encarregada das roupas brancas. - Pois fez muito mal em desafiar assim Nosso Senhor Todo- Poderoso, porque no dia seguinte foi parar na masmorra. - E essa foi só a primeira vez em que acabou atrás das grades - emendava a voz aflautada de Eugénie, a arrumadeira magricela. - Também, com aquele 19
  • 20. comportamento! Até prostitutas reclamam para a polícia dos estranhos hábitos do Marquês. Parece que na cama ele fala blasfêmias, pede torturas. E ainda por cima gosta de sexo à moda dos cachorros, por trás. - Só que, ao contrário dos cães, o ele que procura, mesmo nas mulheres, é sempre o olho do cu - interrompia Hermengarde, cínica. Mais tarde, quando já tinha idade para entender, ouvi os meninos da cocheira contarem em detalhes sujos que Sade tampouco se furtava a oferecer o seu próprio traseiro a quem dele quisesse fazer bom uso. - O Papa e o Rei reprovam essas indecências sodomitas - explicava Eugénie, sempre muito católica. - Entre quatro paredes, por certo, tais preferências têm muitos apreciadores. Mas nenhum deles tem o descaramento de anunciá-las aos quatro ventos e até de se vangloriar delas, como faz o patrão. A pouca discrição fez com que rapidamente se tornasse objeto de escândalo na Corte. Tomou por amante uma atriz de teatro, Collete, que no ano seguinte foi substituída por outra, uma tal de Beauvoisin. Seguiu-se uma sucessão de prostitutas e cortesãs, que costumava levar para La Coste enquanto Renée ficava Paris. Quando obrigado a quedar-se sob o teto da família, alugava casas luxuosas nos arredores parisienses para entregar-se a orgias.Tentava manter-se longe das investigações já iniciadas por Comissários de Polícia, que o perseguiriam por toda a vida. As dívidas se acumulavam, invariavelmente pagas pela sogra, servindo de munição para ásperos ataques ao genro. O clima na mansão dos Montreuil se tornava mais e mais pesado. O nascimento do herdeiro, em agosto de 1767, trouxe alguns momentos de trégua. Para mim foi um alumbramento. A chegada de Louis Marie foi minha primeira grande memória, o primeiro grande acontecimento de uma vidinha de quatro anos. Meu pai e minha mãe me deixavam cedo para trabalhar. Eu tornava a vê-los na cozinha, comia em companhia deles e dos outros criados. Raro saíamos, a não ser quando Jean- Pierre acompanhava Marguerite a missa domingueira. Esperava as poucas ocasiões em que a nutriz e a mãe se afastavam para me esgueirar a contemplar o bebê em seu boudoir. Envolto em sedas e rendas no seu ninho de plumas, parecia um pequeno anjo louro caído dos céus, como os das pinturas a enfeitar as paredes das salas. Era a primeira criança que eu via de perto, podia até tocar. O contato de suas faces, das sedas brancas bordadas, 20
  • 21. que tanto trabalho davam a minha mãe, era de indizível maciez se comparado com os rústicos lençóis de meu berço e com minhas roupas. Mal completara um mês, Louis sorria-me alegremente, levando-me ao Paraíso. Um dia não me contive, subi na ponta dos pés para pegá-lo ao colo, como sempre sonhara fazer com as bonecas. Assustei-me com o peso da criança gorducha, que me escapou das mãos atraiçoadas pela maciez escorregadia das mantas. Apavorei- me com seu choro incessante, mas fiquei realmente estarrecida quando Madame, atraída pela gritaria, entrou como uma tigresa enfurecida pela ameaça ao filhote: - Como ousas segurar a criança, tu que não tens permissão sequer de entrar nesse quarto?!– vociferou ela, enquanto revolvia o bebê em busca de ferimentos. Ao ver que Louis se acalmara e nada mais grave acontecera, Madame tornou a assestar as baterias contra mim: - Isso é que dá fazer caridade, criar filhos de criados. Já estás crescidinha, é hora de teres obrigações. Teu pai vive a queixar-se de que os milhafres comem suas sementes, pois aí tens. Tu vais espantar os pássaros do jardim. Saí correndo do boudoir do bebê sem entender o que me esperava. Quase atropelei o Marquês e sua cunhada, a cochichar sorrateiramente em um imenso corredor. Anne-Prospère endereçou-me um sorriso um pouco acanhado. Era a única da família que sorria para mim. No século passado era comum as crianças pobres trabalharem afugentando aves dos jardins ou até enrolando fios de cânhamo nas tecelagens, mas pareceu-me um castigo semelhante aos Infernos católicos. Eu permanecia durante horas no vento frio postada como espantalho humano e humilhado, meu pai me olhava com pena furtiva ao passar. Meus pezinhos ficavam azuis, gelados, enquanto os braços doíam horrivelmente por ficar tanto tempo estendidos. Nos dias de verão eu ficava praticamente cozida, fazendo gestos desajeitados para que os pardais não bicassem as frutas. Minha mãe então colocou-me um surrado chapéu de palha, a tornar-me ainda mais parecida com um espantalho, mas era a única proteção que podia oferecer. Quem dava as ordens era Renée de Sade, mulher sem coração. Meu pai aproveitava para ensinar-me alguma coisa sobre as plantas que víamos quando vinha trazer-me água. Nem os aromas dos canteiros de alecrins, lavandas, violetas-de-parma, tomilhos, mentas, jasmins e rosas-da- bulgária confortavam-me, apesar de já começar a prestar atenção no verde que me cercava. Mas eu queria mesmo era continuar contemplando Louis Marie, 21
  • 22. enrolar-me em sedas, brincar com as bonecas. Aos poucos fui me acostumando à minha dura sorte, interessando-me pelas lições de Jean-Pierre. Vem daí minha paixão pelas flores, únicos exemplos de luxo e felicidade à vista naqueles dias. Ao completar Louis um ano, a avó, a velha Madame de Montreuil, viu-se obrigada a desembolsar uma pequena fortuna para acalmar certa Rose Keller. Sade a tinha encontrado no Domingo de Páscoa pelas ruas de Paris, onde mendigava dizendo-se tecelã desempregada. O Marquês logo enxergou nela a vítima ideal para seus peculiares folguedos amorosos e propôs-lhe que o acompanhasse até o subúrbio de Arcueil, onde mantinha um chalé para aventuras galantes. - Mas Rose não era a doce tola que julgou ser - comentava a gorda Hermengarde ou a magra Eugénie, nem me lembro bem. - Poucas horas depois ela se apresentou, ferida, descabelada e com as roupas rasgadas, ao Comissariado mais próximo. Queixava-se de ter sido chicoteada, cortada com uma faca, torturada com velas acesas e mantida prisioneira. - Com aquela reputação mais deteriorada que pele de leproso, o Marquês acabou na cadeia de novo de onde só saiu ao prometer desaparecer de Paris por uns tempos. - E eis que voltou para La Coste, aproveitando para reformar o castelo inteirinho - lembrou minha mãe, que em geral mais ouvia que falava. A magra Eugénie completou a informação: - Claro que o dinheiro é da patroa, porque ele só sabe mesmo esbanjar. Mas dizem que ficou lindo. A cozinheira de lá disse que construiu até um teatro, onde cabem 80 convidados. Os aposentos dele ficam no lado sul, que é mais quentinho. A Marquesa ficou com as salas vizinhas. - O patrão não fez economia nenhuma - garantiu Hermengarde, que sempre sabia de todos os mexericos com profundidade e exatidão. - A tal cozinheira, que por sinal sumiu, contou que Madame tem um quarto de dormir enorme, um salão de inverno forrado de moiré azul debruado a ouro, e um boudoir coberto de tapeçarias com cenas da Normandia. - Que luxo, tem até uma sala de banhos com banheira para água quente - ajuntou a magricela. 22
  • 23. - O Marquês parece que tem mania de higiene. O valete diz que ele se lava quase todo dia! E fez questão de equipar o castelo com nada menos que 15 privadas portáteis e seis bidês.- Isso vinha da precisa Hermengarde, naturalmente. Entre uma prisão e outra, prostitutas, amantes e exílios, Sade encontrou tempo para fazer outro filho: Donatien-Claude-Armand de Sade nasceu no verão de 69. Quatro meses depois, quando as folhas das árvores já caíam, no quarto humilde do jardineiro-chefe e da camareira, veio à luz também meu irmãozinho Poty, herdeiro do nome do primeiro de nós a pisar na França. Ao contrário do antepassado, o último dos topinamboux não viveu aventuras, nunca amou uma mulher, não deixou descendência. Na verdade, nunca fez muito mais que chorar, na maioria das vezes de fome. Um pouco antes de conceber novamente, Margueritte começou a mostrar sinais de saúde abalada. Ofegava no alto das escadas, tinha tonturas quando passava a roupa com o ferro pesado que esquentava no carvão. Chegou ao final da gravidez pálida e lânguida, tossindo com freqüência, sobretudo ao empoar Madame com o alvaiade. Eu a ouvia gemer de noite ao virar-se na cama, procurando um alívio inexistente para o ventre enorme. Logo depois do nascimento de Poty, com desculpa de aumentos de despesas e extravagâncias do marido, a Marquesa dispensou a nutriz que amamentava Donatien, encarregando minha mãe da dupla tarefa. Mais velho e maior, o Sade bebê sugava quase todo o leite e o pouco de seiva que restavam em Marguerite. Não admira que estivesse cada vez mais gordo, enquanto ela emagrecia a olhos vistos. Para meu irmão sobrava quase sempre a fome. Com a chegada do inverno, a situação agravou-se. Minha mãe tinha de satisfazer o pequeno Marquês de quatro em quatro horas, mesmo à noite, quando saía de sua cama e atravessava os corredores gelados até o boudoir quente do bebê. Quando voltava ao quarto frio o filho invariavelmente estava acordado, chorando no colo de Jean-Pierre, e ela lhe dava o pouco leite que sobrara. Em seis meses não tinha mais condição de amamentar nenhum dos dois.Contagiado também pela moléstia da mãe, Poty não resistiu. A perda do filho foi o golpe final. Marguerite chorava durante horas, dias seguidos, sempre baixo, ganindo feito um cachorrinho para não incomodar os patrões. Meu pai se refugiava com suas plantas na estufa, que nunca foram tão belas. Poucas semanas depois, minha mãe não conseguia mais se levantar da cama. 23
  • 24. Cuspia sangue e tossia. O médico, chamado pela primeira vez a vê-la, foi definitivo: era tuberculose, e em tal estado que não havia mais nada a fazer. Não demorou muito até a noite em que acordei com meu pai chorando, ela estava morta. Meu coração parecia ter parado de bater, corri para seu lado. Quando o abracei, senti-o soluçar e tremer. Fora de si, chamava pela mulher amada: - Marguerite, Marguerite - repetia, sacudindo a morta. Branca e flácida como um lençol, minha mãe parecia uma boneca de trapos a desfazer-se nos braços de Jean-Pierre, cena que me acompanharia por muitos anos de pesadelos. Mas eu, Joséphine, aos seis anos, não sentia vontade de chorar. Tinha, sim, uma grande raiva do bebê guloso que matara mamãe e Poty. E sentia muita vontade de machucá-lo, de enfiar as unhas naquela carne balofa até ele gritar de dor. Meu pai esperou que a casa começasse a ter movimento, pela manhã, para comunicar à patroa a morte da mulher. Renée de Sade deu um de seus vestidos mais simples para amortalhar Marguerite e cedeu a meu pai um fiacre para que fosse encomendar o enterro. Fiquei no quarto, velando o corpo junto das criadas que se desesperavam. Ao ouvir o ruído do coche que trazia Jean-Pierre e o cura corri para encontrá- lo. Quase tropecei em Donatien, a ensaiar no salão os primeiros passos com as pernas gordas e incertas. Inesperadamente, ele conseguiu firmar-se e deu dois passos na direção de meu pai, que segurou-o para não cair novamente. O olhar que dirigiu ao bebê nesse momento comoveria até as estátuas do salão. Pelo conjunto de todas as perseguições e humilhações que me infligira, culminando com a morte de minha mãe e meu irmãozinho, a Marquesa era o ponto central do meu ódio, mas Donatien tinha grande parcela do meu ressentimento. Para piorar um pouco mais minha dor, a patroa resolveu dar-me mais uma tarefa. Depois de passar o dia como espantalho, eu ajudaria a ama do caçula a cuidá- lo. Talvez quisesse começar a treinar-me, torcer o pepino desde cedo, como gostava de dizer, para ocupar a posição de Margueritte morta. Como a detestava! O filho se tornou o instrumento da única vingança que poderia exercer sobre ela no momento. Orgulho-me até hoje de, enquanto fui maior do que ele, ter mimoseado aquele parasita inchado todos os beliscões e empurrões disfarçados que consegui. Para isso precisei conquistar a anuência de Louis- Marie, o mais velho. Mas logo descobri interesses convergentes, já que se ressentia da chegada do irmão menor. Sorte de Donatien que a senhora 24
  • 25. Marquesa o protegia - nas nossas mãos ele penava. E ai dele se se atrevesse a chorar à mãe: chamado a esclarecer a questão, meu protetor não só mentia para me inocentar como depois castigava o queixoso com uns bons sopapos. Quando Madame esperava Madeleine Laure, em 1771, a família Sade decidiu mudar-se de vez de Paris para o castelo de La Coste, já todo renovado. Além dos móveis e utensílios, foi junto boa parte da criadagem, o que incluía os Pêcheur. Aos oito anos fui investida da função de ama-seca das crianças, uma espécie de promoção para quem até então fora um espantalho humano. A princípio, Jean-Pierre sofreu ao deixar para trás suas amadas estufas, mas logo se deixou seduzir pelos planos dos senhores. Graças a meu industrioso pai, La Coste ganhou um labirinto de sempre-vivas copiado do motivo dos vitrais da Catedral de Chartres, sem falar em um pomar e jardins cuidados. Renée vivia elogiando-os, dizendo que eram parecidos aos do Rei em Versalhes. Eu tinha tanta birra dela que a detestava até a falar bem de meu pai. As conversas dos dois me incomodavam tanto que saia de perto para não ver tal mulher nos arredores. Aliás, não conseguia entender por que Jean-Pierre mostrava tanta dedicação à víbora assassina de sua própria esposa. Tal servilismo não combinava com os ideais de um homem inteligente, ilustrado, um bom representante do espírito iluminista que se afirmava na segunda metade do século XVIII. A Filosofia estava na moda na época em que vim ao mundo. Com enorme repercussão, uma geração de filósofos inovadores começara a pregar que o conhecimento provinha dos sentidos, e não das leis de Roma ou do rei, como até então se acreditava. Para eles, o que proporcionava ao homem as luzes da Ciência era a razão, que combinava as informações provenientes dos sentidos, trabalhando com a memória e a imaginação. Essa revolução no modo de pensar foi popularizada pela Enciclopédia, uma coleção de 28 volumes lançados entre 1751 e 1772, que era na verdade um dicionário leigo de História, Geografia, Ciências, Artes e Ofícios com verbetes pensados de forma racional, crítica e humanista, procurando abranger todo o círculo do saber humano, conceito que os gregos antigos já conheciam como Enkyklóspaideia. Todos os conhecimentos foram revistos pelo olhar racional daqueles intelectuais corajosos. - A obra foi dirigida pelo maior filósofo do nosso tempo, monsieur Denis Diderot -, ensinava meu pai, que apreciava o trabalho deles. – As maiores inteligências da França escreveram os verbetes da Enciclopédia. 25
  • 26. Mas nem todos estavam de acordo. Para a devota criada Eugénie, por exemplo, a coleção representava um escândalo: - Ih, esse livro do Demo de que o Marquês gosta tanto chegou a ser proibido, colocado no Index. Sua Santidade, o Papa em pessoa, mandou que cada família encarregasse um padre de queimar a coleção – contava. De fato, a Enciclopédia várias vezes foi acusada por padres e magistrados como literatura subversiva e contrária aos bons costumes, por pregar o descrédito ao Rei, o livre comércio e a República. Eles tinham sua parcela de razão: a difusão das idéias iluministas desencadeou em toda a França, em toda a Europa e em todo o mundo uma onda de materialismo e ânsia por liberdade política que acabou descambando na Revolução. Leitor dos enciclopedistas, Jean-Pierre tinha idéias liberais a respeito do mundo e nelas me instruiu. Ensinou-me a ler e escrever, Matemática e História, sem falar nas lições de Botânica ministradas enquanto cuidava das plantas. Assim que dominei as letras comecei a vasculhar a correspondência dos patrões. Inocente de meus movimentos, meu pai elogiava-me a dizer que aprendia rápido e bem. Na verdade, usávamos as poucas horas da noite à luz de horríveis velas de sebo para estudar. Eu cabeceava de sono, pois trabalhava como uma escrava, de sol a sol, entre os cuidados com a Marquesa e os pequenos Sade. Ela me gritava de dois em dois minutos para pedir-me doces, água, tesouras, linha, ajuda para vestir, passar-lhe pó de alvaiade, o diabo. Era ao diabo mesmo que a mandava internamente, enquanto corria a atendê-la com o gordo Donatien nos braços, dividida entre o terror e a vontade imensa de deixá-lo cair. Depois que cumpria as ordens, beliscava-o disfarçadamente. Imaginava a expressão que a patroa se poria se sonhasse com aquilo. Se alguma coisa me defendia de uma total e destrutiva melancolia, na qual muitas vezes vira minha mãe mergulhada, eram justamente esses doces momentos de crueldade contra Donatien. De alguma forma, escudavam-me de meu triste presente e do mais que provável miserável futuro. Eu não concebia a idéia de mudar de vida em um mundo tão definido, no qual cada um tinha seu lugar e eu o de criada, filha da camareira e do jardineiro. Outro alívio raro era o sol da Provença. Eu adorava quando conseguia fugir um pouco para os jardins de meu pai, deixando que me aquecesse as faces. De um lado do castelo, ao pé da vila, abriam-se extensos vinhedos e os campos roxos de lavanda fresca destinada ao centro perfumista de Grasse, que fica perto; de outro, os desfiladeiros selvagens das montanhas do Luberon, coberto 26
  • 27. pela densa floresta de cedros e carvalhos a servir de abrigo a bandoleiros. A paisagem lembrava os dois caminhos para a alma de que falam os curas, um claro, perfumado e seguro; outro, escuro e perigoso. Talvez diga muito sobre meu espírito infantil o fato de que, apesar do medo dos salteadores da floresta, eu lá queria morar quando ficasse grande. E sobretudo porque era o Luberon o esconderijo de meu amado Marquês, a enganar os guardas enviados para prendê-lo. Fiquei alguns minutos na banqueta onde Louis Marie me deixara esquecida no final da peça. Desassossegada com a as estranhas coisas e dores que sentia, subi disfarçadamente ao boudoir azul de Madame. Esperava que minha senhora já tivesse descido, mas antes de entrar conferi através de meu velho esconderijo, um dos armários de frisos dourados do boudoir. Lá dentro havia espaço suficiente mesmo para a desenvolvida garota que me tornara. A madeira nova estalara em uma fresta que dava plena visibilidade de todo o quarto. Boa precaução: a Marquesa ainda trocava sua leve toalete da tarde pelo vestido mais formal para o jantar. Vi, como já vira antes, Camille, a camareira, desabotoar o corpete azul de piquê e afrouxar o espartilho de Madame, para que ela pudesse se refrescar com água de lavanda. Enquanto isso, a criada lhe tirava a sobre-saia com babados brancos nas bordas, a saia de linho bordada com flores rosadas, as muitas anáguas, as anquinhas laterais e o espartilho, até deixá-la apenas de calçolas e ligas. As barbatanas do espartilho tinham deixado marcas vermelhas em seus seios brancos e fartos, suas coxas roliças envolvidas em meias de seda presas por ligas róseas. Ao virar-se para mim, os gomos de suas nádegas redondas eram dois mundos. Quando ela virou-se para o outro lado, entrevi pelos calções de musselina o triângulo de cabelo avermelhado. Num relâmpago, a lembrança dos olhos devoradores do Marquês atravessou-me como um dardo quente. Em pouco tempo a senhora envergava nova toalete, mais adequada para a noite: saias de tafetá cinza e rosa, corpete de seda cinza com fartas mangas de renda, gargantilha e brincos de pérolas. Elegante como uma ilustração dos figurinos modernos que começaram a circular na época, deixou enfim os aposentos para receber os convidados. Era chegada a minha hora mais prazerosa, eu ia brincar de ser Madame. Sabia de cor onde a as coisas da invejada Marquesa eram guardadas e a ordem da arrumação. Comecei por assaltar a cômoda de maquiagem. Pintei o rosto e o colo com pó de alvaiade, apliquei uma pinta artificial no queixo, avermelhei os lábios fartamente, demais, até, porque o barulho do bater de uma janela fez 27
  • 28. tremer minha mão, provocando um grande borrão na boca. Envolvi-me no espartilho que Renée acabara de dispensar e tinha o cheiro dela. Por sorte, era do tipo inglês, daquele que abotoa na frente. Enverguei as anquinhas com donaire, procurei um belo vestido de cetim branco, ajustei na cabeça uma peruca loira e estava praticando cortesias com o leque espanhol quando a Marquesa entrou sem o menor barulho. - Jo-sé-phi-ne!! - exclamou. - Era só o que faltava, sua atrevidinha! - gritou Madame, a voz um tanto mais aguda. Dei-me por perdida. Que raios fazia ali de volta, em vez de presidir o banquete? As contrações no meu ventre se aceleraram, alguma coisa quente escorreu-me entre as pernas. O medo agravou a dor. Vi sua mão levantar-se para uma bofetada, mas não consegui me esquivar. O tapa foi forte e me jogou sentada no chão. Mal o senti, contudo, porque lembrei de meu pai e das conseqüências de minha imprudência. - É assim que agradeces o cuidado que sempre tivemos contigo nesta casa? – vociferava ela. - Ergue-te, pequena dissimulada, vou levar-te a teu pai para decidir teu castigo. Dando graças aos céus pela leveza da pena, comecei a desabotoar o vestido. Foi aí que veio a verdadeira punição. - Não, não tires nada! Vais assim mesmo - ordenou a Marquesa, já a puxar-me pela orelha. Nessa degradação, em trajes que tornavam óbvio o meu crime, a patroa fez-me desfilar diante de praticamente todo o castelo de La Coste. Com a boca borrada, as lágrimas abrindo sulcos no alvaiade, a peruca torta por causa da pressão da mão de Madame, fui motivo de riso para todos os convidados. O mais odioso, sem dúvida, foi suportar a zombaria de Donatien. - A criada pensa que é a Marquesinha de Sade! Ele ria à bandeiras despregadas, profetizando a alcunha que me seguirá até a morte. - Cala a boca - ordenou Louis, dando-lhe um tapa. Mas nada conseguiria deter Donatien na hora do triunfo. 28
  • 29. - Pequena suja! A falsa Marquesa está com a saia manchada! - anunciou, para minha grande surpresa. Percebi apavorada grandes nódoas vermelhas no cetim branco. Achei que ia morrer. Confusa, relanceei os olhos pelo salão, em busca de alguma explicação para o que me acontecia, quando encontrei de novo o olhar do Marquês. Foi quase como um beijo, de tão íntimo. Naquele lago azul não vi riso nem pena, mas sim uma excitação sem peias, que se repetia na expressão de seus lábios entreabertos. Meu útero se contraiu de novo, desta vez para valer. E entendi, enfim, que recebia pela primeira vez o sangue das mulheres. Meu pai, chamado às pressas, entrou na sala ainda ajeitando o cabelo escuro. Atrás dele vieram vários lacaios, todos rindo à socapa. A Marquesa não esperou que se recompusesse: - Jean-Pierre, sabes que essa menina mal-educada se atreve a usar minhas roupas e a me imitar? Achas que vou tolerar isso? - Naturalmente não sabia, Madame, senão a teria punido - disse meu pai, ruborizando-se ante o tom áspero que a Marquesa nunca empregava com ele. Mais vermelho ainda ficou ao notar a mancha de sangue na saia da patroa que eu usava: - Que posso fazer para desculpar minha imprudente filha? - Exijo que a castigue! Essa vida de teatro vira a cabeça de qualquer criadinha. Joséphine precisa aprender a conhecer seu lugar. Que vá ajudar nas cozinhas. Não quero mais vê-la por perto de minha família ou de mim. Fiquei aterrorizada. Nunca mais conversar com Louis-Marie? Nunca mais beliscar Donatien? Sobretudo, nunca mais ver o Marquês? Se até então ele me parecia inatingível como nobre e patrão, agora era-me indispensável. Eu queria ficar perto dele e por enquanto não sabia por quê. Percebendo que ia me desfazer em lágrimas na frente de todo mundo, escapei da mão afrouxada da Marquesa e fugi da sala. Corri até alcançar meu quarto e larguei-me em cima da cama, explodindo em soluços. Estava ainda aos prantos quando meu pai entrou. Só pelo modo de pisar eu sabia que estava furioso, mas falou baixo: - Joséphine, o que estás fazendo com a roupa da senhora? Onde tens a cabeça, menina, por que faltas ao respeito com ela? 29
  • 30. - Eu... eu estava brincando! Só queria ficar bo-bonita! – gaguejei. - Não tens um dedo de juízo nem de inteligência, minha filha. Porque te arriscas a desafiar justamente quem te protege? A Marquesa tem tão bom coração que não nos expulsou de sua casa, apesar do teu comportamento. Joséphine, que vergonha! - O senhor vai deixar me mandarem para a cozinha? - perguntei, acreditando que ele jamais concordaria com meu rebaixamento. Mas meu pai surpreendeu- me: - Acho que ela teve, na verdade, uma excelente idéia, Jô. Também não acho bom que fiques muito misturada com a família Sade. Eles não são a nossa gente. E o Marquês é um homem de quem é melhor manter distância. Arrepiei-me com tal pensamento mas, notando que ele estava realmente zangado, tentei comovê-lo e desviar o assunto. - Pai, saiu sangue da minha barriga, doeu, por favor. Condoído, ele alisou meu cabelo. - Pobre filha, vais cumprir o destino das mulheres, sangrar uma vez por mês. Não te preocupes, é apenas um ciclo da natureza feminina que se inicia. Quer dizer que já és adulta e podes ter filhos. Amanhã não terás mais tanta dor, mas o sangramento vai continuar por três ou quatro dias. Daquilo eu já sabia. Ao notar que se acalmava, voltei a dar vazão a meus sentimentos mais íntimos: - Eu odeio Donatien, eu odeio a patroa! - solucei. - Eu é que devia ser Marquesa! Minha sinceridade tinha realmente passado dos limites. Meu pai ficou indignado: - Estás louca? Tu querias ser a Marquesa? Não sabes que ela é uma mui nobre senhora enquanto tu não passas de minha filha, eu, um humilde jardineiro? Nunca levantei a mão contra ti, mas tal afronta mereceria bem um duro castigo. 30
  • 31. Eu, porém, já não conseguia me conter. Comecei a gritar: - Quero ser como ela! Queria usar vestidos como os dela, dormir num quarto enorme em vez de viver no porão. Por que ela pode ser rica, Cortejada, poderosa, e eu não? Meu desespero tocou o coração paterno. Jean-Pierre acalmou-se subitamente: - A isso chama-se Inveja, minha filha, e é um dos sete pecados capitais, uma porta para a danação da alma - avisou severo. Eu mal ouvia: - Pai, me ajude! Eu sou muito mais bonita que a Marquesa, mereço ser feliz como ela! - implorei. - Além de invejosa, andas muito cheia de ti, Joséphine - ralhou. - Como podes saber se ela é feliz ou não? Cada um sabe a dor de ser o que é. Talvez almejes te transformar numa pessoa que se esforce para aparentar felicidade... - Não me importa! Pai, o senhor não consegue usar suas plantas para fabricar alguma coisa que me ajude? O senhor mesmo diz que as plantas são remédio para corpo e alma. - choraminguei de novo. - Não estou pedindo nada de mais, só quero é ser feliz do meu jeito. Meu pai me encarou criticamente: - Sabe, filha, as plantas têm uso para o bem ou para o mal. Podem até ajudar- te a te transformar naquilo que Invejas, agindo como um fator de mudanças. Apesar do que diz a Santa Igreja, creio que certos sentimentos negativos servem ao desenvolvimento moral. A própria Inveja origina-se da percepção das desigualdades, e disso nasce uma indignação que leva à luta por justiça. Na época eu ainda não conhecia o conceito do paradoxo, mas a afirmação de meu pai distraiu temporariamente minhas aflições: - O senhor está dizendo que um sentimento tão nobre como o senso de justiça tem origem tão baixa? 31
  • 32. - Exatamente – disse ele, derretido pela minha argúcia. Fora desarmado. - Sinto em ti essa espécie de cólera diante do bem-estar que não é compartilhado contigo. Não estás satisfeita com o teu destino, Joséphine? - Eu é que devo decidir meu destino! – argumentei, exaltada. - O senhor mesmo ensinou-me que o ser humano tem livre-arbítrio! - É verdade - pela primeira vez, sua voz soou indecisa. - Uma pessoa responsável deve fazer suas escolhas e arcar com os resultados. Alguns minutos de insistência e muitas lágrimas (algumas falsas) depois, Jean-Pierre deixou a relutância de lado. - Está bem, está bem, menina impossível. Presta atenção nos olhos roxos da íris da primavera, minha filha, sempre almejando o que ela não é. Essa é a flor de que precisas. Toma cinco delas ao raiar da manhã e usufrui de suas propriedades. Mas não te esqueças, lidas com um poder que talvez não possas controlar, e isso é perigoso. Era ainda muito cedo na manhã seguinte quando, obedecendo às instruções de meu pai, colhi as empinadas íris roxas no jardim sul, o mais ensolarado. Quando acabei de cortar cinco espécimes perfeitos, levantei os olhos para o céu, orgulhosa. Foi então que vi o Marquês, emoldurado pela janela de seus aposentos secretos, a observar-me. Tremi e desviei os olhos. Ele não. Estava nervosa enquanto seguia as instruções de meu pai para produzir o floral. Cortei as hastes das íris sem tocá-las com as mãos e dispus o pentagrama de flores roxas na superfície de uma vasilha de porcelana cheia da mais pura água da chuva de verão. Deixei-as expostas por quatro horas ao sol do meio do dia. Antes de dormir, coei e dinamizei a poção, que tomei logo cedo, na manhã seguinte. Tinha tanta fé nas beberagens de meu pai que nem por um minuto duvidei de seu efeito. Pensando que poderia precisar dela no futuro, anotei a receita sem deixar de lado um só passo. Dividida entre a brincadeira e a esperança, assinei com o nome de quem contava me transformar, em breve: Madame de Sade. Será que a poção faria efeito antes que passasse a ajudante de cozinha, mudando minha infausta sorte? Passei o dia inquieta, à espera de que seus sintomas se manifestassem. Como será que me tornaria a Marquesa? À noite, decepcionada com a aparente ausência de modificações, dormi o sono pesado dos muito jovens e exaustos. Nada seria capaz de me despertar, exceto o toque 32
  • 33. da mão fina a tapar-me a boca. Acordei em pânico, reconhecendo de imediato as mãos aristocráticas do Marquês. Percebi, pasma, os lençóis abaixados e a camisola erguida, de forma a deixar meu traseiro de fora. - Shhh! - sussurrou Sade. - Não grite, Joséphine, vamos nos divertir muito. Cresceste muito este ano, menina. Aliás, já não podemos chamá-la de menina. Deste evidências públicas de que já és uma moça... Enquanto falava, o Marquês acariciava minha bunda com a mão livre. Tentei escapar, mas não havia como me livrar do aperto de seu braço. Amordaçou- me com minhas próprias meias e voltou a beijar-me o traseiro, acariciando-o com a língua, enquanto a mão deslizava na direção da minha boceta suja de sangue. Quando ele me tocou ali, em leves movimentos circulares, eu já não queria resistir. Com a mão molhada no meu sangue, Sade untou meu cu já umedecido por sua saliva. E então, de repente, cravou-me as unhas nas nádegas, afastando-as, e meteu-me por dentro um estranho pedaço de carne dura e quente. Perdi a respiração com a dor, mas meu grito foi abafado. A vara abriu caminho à força no meu cu virgem, rasgando-me em duas. Quando pensei que ia morrer, um gemido diferente escapou da minha garganta. Percebi que o pau a mexer-se dentro de mim produzia estranhos arrepios elétricos na minha espinha, enquanto seus dedos hábeis acariciavam meu grelo. Meus quadris começaram a ondular no ritmo dele, sem nenhuma ordem consciente, e minhas mãos agarraram o lençol da cama, convulsivamente. Eu já não conseguia respirar, só arquejava, quando ouvi a gargalhada do Marquês, alta e fria: - Sabia que ias gostar - disse ele, diminuindo os movimentos. Inclinando-se, tirou minha mordaça e avisou, sério: - Se quiseres mais, vais ter de pedir. Enquanto o ar entrava num longo hausto em meus pulmões, Sade retirou de mim sua espada de carne. A sensação era a de estar perdendo o céu. - Mais – implorei. - Não pare. O Marquês, às gargalhadas, meteu de uma vez só sua vara pulsante e, em movimentos muito rápidos, foi me jogando cada vez mais fundo em um túnel redondo e infinito onde só o prazer tinha existência. Eu chorava e ria ao mesmo tempo, sem saber o que era mais forte, o sofrimento ou o gozo, a 33
  • 34. humilhação ou a excitação. Hoje sei que foi aí que esses sentimentos antagônicos se fundiram dentro de mim, tornando-se contíguos e inseparáveis. Quando acabou, ele deu uma palmada no meu traseiro sujo de sangue, esperma e merda, dizendo, naquele tom irônico: - Tens jeito para a coisa, pequena. Foi só quando chegou à porta, que me falou com carinho. - Terei prazer em ensinar-te que a decência e os princípios morais são costumes a que hoje se liga muito pouca importância, de tanto que contrariam a natureza. Ter prazer é o único sinal de que se está agindo em conformidade com as leis naturais. Se tu gostas do que é perverso, isso só significa que a natureza desejou que fosses perversa. E seria contrário à natureza não obedecer a ela... Era a primeira lição de meu mentor, uma lição difícil de esquecer. Exausta, adormeci sem nem tentar me lavar. Quando acordei com os primeiros ruídos da manhã, corri a olhar-me no pequeno espelho de prata que fora de minha mãe. Queria ver se tinha mudado algo no meu rosto, como acontecia com as mulheres que conhecem o sexo, segundo asseguravam as criadas mais velhas. Tudo parecia igual: o cabelo escuro, a boca opulenta, a pele clara, o nariz pequeno, os olhos... Descobri, num relance, que os olhos não eram mais os francos olhos azuis que herdara de minha mãe. Tinham ganhado naquela noite reflexos muito escuros, tornando-se quase roxos, da cor das pétalas das íris. E, não sei se na realidade ou na imaginação, vi o rosto do Marquês sobrepor-se ao meu, os olhos dele também roxos, exatamente idênticos aos meus. Devem-se ingerir todas as noites, durante um mês, antes de deitar, duas gotas do Floral da Inveja diluídas numa taça de água. Para auxiliar as diluições, usar um fino bastão de cristal. OS FLORAIS PERVERSOS DE MADAME DE SADE CAPÍTULO 3 A GULA 34
  • 35. La Coste, outono de 1776 - verão de 1778 O caldo desceu fervente por minhas entranhas. - Veja se o tempero está bom - ordenou Justine, que segurava a concha com uma das mãos para dar-me a beber. Com a outra torceu-me o mamilo esquerdo. Estremeci de dor e prazer sem saber bem se as sensações vinham do beliscão ou do calor da pimenta e do louro a excitar todas as papilas da língua. Já aprendera alguns rudimentos de cozinha, ainda que o método de ensino não fosse dos mais delicados. Na qualidade de cozinheira-chefe, Justine dava-me ordens ríspidas e sempre me repreendia. Eu vivia sobressaltada. Se algum sentimento me acompanhava durante todo o tempo, era o medo de errar. Mas o pior eram os castigos físicos, dos quais não escapavam minhas partes intimas. Embora os coques e vergões doessem, deixavam-me num estado que vim a descobrir ser de pura excitação. Naqueles dias eu estava horrivelmente confusa. Descera bruscamente dos céus proporcionados pelo patrão ao inferno da patroa. Não vira mais o Marquês desde que ele irrompera em meu quarto, naquela noite de revelações e sustos, talvez efeito da beberagem de íris, o Floral da Inveja. Bem que meu pai me avisara sobre o lado soturno das plantas. Mas eu não conseguia parar de ver e reviver mentalmente o toque, a voz, a dor e o prazer de Sade. Transformada pela Marquesa em ajudante de cozinha, meu dia já começava com imensas quantidades de louça para lavar, desde o serviço de porcelana fina usado pelos senhores do castelo até as caçarolas engorduradas em que Justine preparava seus molhos. Depois vinham os legumes a descascar, as aves a depenar, mais louça, as carnes a picar, os pães a amassar, mais louça, as travessas de prata a brunir, o chão a esfregar, as panelas... Colher verduras e ervas na horta era o único momento agradável. Os aromas no ar fresco do outono me enlouqueciam. O perfume de folhas orvalhadas de manjericão nas narinas é, ainda hoje, um de meus intensos prazeres. O alecrim para as caças, a sálvia para as aves, a hortelã para o carneiro, o orégano para os tomates, o anis e o funcho para os bolos, melissa e verbena para os chás, macela para os travesseiros... O mundo das folhas aromáticas logo se tornou familiar a quem já nascera filha de jardineiro. Se estava com sorte conseguia até tempo para conversar um pouco com o mestre de todo aquele verde. 35
  • 36. - Quem está ganhando a guerra das panelas, Joséphine? - brincava Jean-Pierre, sempre pronto para a torrente de queixas que eu invariavelmente despejava em seus ouvidos sobre os maus-tratos infligidos pela cozinheira. O relato das últimas humilhações dava novos argumentos à eterna conclusão: - Justine tem armas muito mais poderosas que eu. Meu pai, dormindo do quarto ao lado, não se apercebera da visita noturna do Marquês, não seria eu a alertá-lo. Também só lhe revelava o que me interessava sobre Justine, ou seja, os tormentos do aprendizado duro, sem uma palavra sobre os contatos físicos. A jovem e talentosa cozinheira era aquisição recente do Marquês, dizia-se, por uma paga bem maior que a dos outros criados. Era merecido: a mágica de suas mãos fortes de camponesa transformava qualquer prato em néctar e ambrosia. Eu a admirava e a temia, mas ela despertava minha curiosidade. Por razão ignota, Sade só a tratava por Justine, que acabou prevalecendo sobre seu verdadeiro nome, Catherine Trillet. Meu patrão prezava a gastronomia: – A fome só interessa a um libertino se for usada como instrumento de tortura – repetia sempre aos amigos de copo e de farra, em tom de blague. O Marquês era particularmente amigo de doces, como bolo de chocolate e maçãs assadas com creme. Mais tarde, isso teria efeito maléfico sobre sua cintura. Mas, aos 36 anos, mantinha a esbelteza que ornava com seu tipo aristocrático. Sorte dele, porque, apreciador da moda, usava roupas elegantes e vistosas. Não me esqueço da casaca de veludo cor de ameixa, bem combinada com a camisa de rendas brancas e as calças e o colete da mais macia e aderente camurça. Ao contrário dos nobres da época, Sade não era grande admirador das perucas, achava-as malcheirosas e incômodas. Costumava atar os vistosos cabelos cor de mel de flor de laranjeira em um laço de veludo cujo tom invariavelmente ornava com o da toillete. A galope, o movimento ondulante do rabo do garanhão e da coifure era igualmente sinuoso. Ele era a estampa perfeita do príncipe encantado dos livros de contos de fada dos filhos. Disse que meus dias eram infernais, mas não sei bem qual adjetivo aplicar às noites. Pouco tempo depois daquela inesquecível visita a meu quarto, o patrão mandou-me chamar na cozinha por seu valete. Não pude nem pedir que esperasse um pouco para recompor-me, não conseguia atinar se o chamaria de La Jeunesse, como o apelidara o Marquês, ou Carteron, seu verdadeiro nome. Segui-o com o coração aos pulos, dividida entre a vontade de rever Sade e a 36
  • 37. vergonha da triste figura que fazia, com a roupa manchada de molho e as unhas sujas. Meu desalinho fez rir os lacaios que cruzei pelo caminho: - Olhem só a Marquesinha, que triste fim! - apontavam. Eu era pouco mais que uma criança, com 14 anos incompletos, e já não nutria dúvidas sobre o verdadeiro caráter da humanidade. Para todos, invariavelmente todos, a desgraça do outro chega a ser afrodisíaca na satisfação que proporciona. Mas com o Marquês a atmosfera foi muito diferente. Recebeu-me de pé na porta da biblioteca. Quando beijou-me a mão, fidalgamente, rezei para que não cheirasse alho e cebola. Ao erguer o rosto para sorrir-me era tal como se tratasse com uma Rainha. Impávido, deu-me o braço como se fora eu uma dama, conduzindo-me à poltrona, enquanto o longilíneo La Jeunesse quedava-se à porta com seu porte refinado, bem diferente do resto da criadagem bronca. - Querida Joséphine, tu me deste grande prazer há alguns dias - começou. - Até maior do que esperava e, para dizer-te a verdade, eu esperava muito. Eu ainda não ousara erguer a vista, mas o começo auspicioso da conversa me levou a arriscar um rabo de olho. Ele parecia relaxado e tranqüilo, semi- reclinado como um romano em uma espreguiçadeira. Algo como a sombra de um sorriso parecia vibrar no canto da sua boca. Estava absolutamente divino na luz do entardecer a realçar o tom violáceo dos olhos. Não consegui me conter. Não tardaria a bem aprender a não demonstrar meus sentimentos, mas ainda era muito verde. Encarava-o tão maravilhada que riu com simpatia. Vaidoso, uma das coisas que mais gostava, percebi logo, era que o achassem belo: - Joséphine, não existe nenhuma razão para considerar um capricho de mesa menos extraordinário que um capricho de cama. Minha mulher quer transformar-te em cozinheira, como já sabes. Eu me proponho a transformar-te também em uma libertina. Alargou o sorriso. Se ele fosse um brioche bem doce o devoraria de uma só bocada. - Tens potencial, pequena. Percebo na tua jovem cabecinha a curiosidade sobre todos os prazeres, da carne e da mente. Seria delicioso corromper e sufocar tudo o que parece inibição e religiosidade em ti. Se quiseres, serei teu mestre nessa jornada de descobrimento. 37
  • 38. Em um relâmpago voltou-me à memória a ordem de Sade com o pau dentro de mim: “Se quiseres mais, vais ter de pedir”. Engoli em seco. Meu corpo gritava de vontade de sentir o dele novamente. Não hesitei: - Quero. O Marquês sorriu triunfante: - Espero-te em meus aposentos hoje à meia-noite - declarou em tom formal, levantando-se para indicar o fim da conversa. Nunca as trevas demoraram tanto a cair. Quando enfim acabei meus afazeres na cozinha, ainda faltavam horas para a meia-noite. Aproveitei o tempo para tentar me fazer mais apresentável. Lavei-me com vagar na bacia do quarto, com água perfumada por lavanda. Alvejei com limão os dedos encardidos, escolhi calçolas e corpetes recém-lavados, penteei os cabelos e cobri-me na cama. Quando meu pai veio desejar boa-noite, fingi dormir. À medida que os ruídos habituais foram cessando, meu coração batia mais forte. Quando enfim soaram as badaladas da meia-noite, enverguei meu melhor vestido e esgueirei- me pelos corredores escuros, rezando para não fazer barulho. Sabia muito bem aonde ir. A câmara secreta dos prazeres de Sade ficava na torre ao lado de seus aposentos. Conforme instruções, empurrei a estante que, ao mover-se, deu acesso a um cômodo ricamente decorado. A luz bruxuleante de velas de cera de todos os tamanhos e diâmetros revelava aos olhos que a ela iam se acostumando uma cama imensa recoberta por dossel vermelho. As paredes revestidas de rico tecido negro emolduravam gravuras de cenas de sodomia. Entre elas, espadas e punhais dependurados disputavam espaço com chicotes e correntes. O que mais me surpreendeu, contudo, foi descobrir que o patrão não estava só. Ali me esperavam ainda, tomando licores, o valete La Jeunesse, Carteron e minha instrutora, Justine. Não refeita do choque ouvi a ordem imperiosa do Marquês: - Tire a roupa dela, Justine. A cozinheira era alta e de bom porte, com peitos de mármore e pernas poderosas. Muita gente dizia que ela gostava de dormir com mulheres, mas até então eu não conseguia compreender tal forma de amor, apesar de achar estranha a insistência em acertar meus seios com seus beliscões. Tive de mudar de idéia ao perceber que suas mãos tremiam enquanto desatavam meu 38
  • 39. corpete e as saias, deslizando sensualmente sobre minha pele, tateando-lhe o calor e a textura. Quando as roupas começaram a cair no chão, Justine não se conteve mais e colou a boca nos meus seios, lambendo-os com tal arte que os mamilos, os meus e os dela, logo se empinaram, a ponto de doer. - Prenda-a, La Jeunesse - interrompeu a voz de gelo de Sade. A mulher se afastou, enquanto o valete amarrava-me nua à cama, as pernas escancaradas presas por correntes. Acomodou-me por baixo do traseiro uma pequena almofada, de modo a expor a fresta vermelha orlada de pêlos negros. Percebi que o patrão afrouxava o colarinho de renda e tirava o colete. Enquanto eu contemplava o patrão a despir o corpo claro e bem desenhado, a lésbica Justine voltou a aproximar-se, agora nua, roçando contra os meus os seios de pedra, a coxa pressionando minha boceta que pulsava. Logo suas grandes mãos chegaram à rachadura vermelha e ali exploraram saliências e reentrâncias. Eu começava a me contorcer e a gemer quando Sade surgiu de novo no meu campo visual, seminu, portando um incongruente frasco de pimenta vermelha. - Sai, Justine - ordenou. Com um sorriso cruel no rosto, despejou várias gotas de pimenta na minha boceta. Uivei de dor e me debati, ferindo-me contra as correntes. - Aprenderás agora que a violência e a resistência atiçam o desejo, Joséphine. Quando o objeto de nossos caprichos se rende, o prazer é incomparavelmente maior. - Virando-se para Justine, o Marquês acrescentou, irônico: - Chupe-a agora, se quiser. Pressurosa, a mulher enfiou a cabeça entre minhas pernas. O ardor a fez tossir e engasgar, trazendo-lhe lágrimas dos olhos, mas mesmo assim ela não conseguia parar. Sua língua entrava dentro de mim, sugava-me com força, lambia-me com delicadeza, suas mãos fortes a me segurar pela bunda. Eu vertia líquido, estimulado não sei se pela pimenta ou pelas carícias dela, a caminho do jardim das delícias. - Basta - comandou ele novamente - Agora é minha vez de servir-me. Seu caralho, tornado rijo como aço pela cena, meteu-se no estreito onde antes estivera a língua da cozinheira, abrindo caminho em rompantes vigorosos. Algo se rasgou, doendo ainda mais que a pimenta, sem que o vigor 39
  • 40. diminuísse. Ao contrário, Sade aumentou a força e a profundidade dos movimentos quando La Jeunesse se aproximou por trás, enterrando sua enorme vara suas nádegas brancas e bem feitas. Os três gemíamos alto no mesmo ritmo, e eu já estava quase fora de mim quando vi Justine aproximar- se. Deitada na cama, imobilizada, com o pau do Marquês lambuzado pelo meu sangue e pelos restos de hímen, em incessante movimento de vai e vem, vi que sua gruta negra se punha cada vez mais perto de meus olhos. Sentada como uma pluma sobre minha cabeça, ancorada pelas pernas hercúleas, colocou a boceta sobre a minha língua. - Chupe-me -, ordenou, manobrando minha cabeça com mãos fortes e hábeis. Completamente tonta, sentia pela primeira vez o gosto de uma mulher. Ah, como essa lembrança me ajudou a compor delicados sabores na cozinha. Quando conseguia levantar minha cabeça que sacolejava nas mãos de Justine, via meu patrão a olhá-a com um olhar distante, quase como se participasse de uma dissecação, de um experimento científico. Minha boceta ardia enquanto eu tinha clímaces de prazer intermitente, sentindo que perdia o controle da língua e dos movimentos. Pelo que me pareceram horas de êxtase, arfamos e nos mexemos juntos, como gigantesco organismo pulsante. Na manhã seguinte acordei em minha cama com as coxas sujas de sangue e sêmen, prova de que a cena noturna não fora sonho. Muitos anos depois, eu leria nos livros de Sade descrições de orgias bem semelhantes, como se recriasse em palavras os prazeres que havíamos desfrutado na carne. Lavei-me rapidamente em uma bacia, antes que meu pai percebesse, e subi para a cozinha. Justine recebeu-me como se nada tivesse acontecido, mas sua atitude para comigo era de nova delicadeza. Chegou ao extremo de se oferecer para me ensinar um prato da moda: - Vou mostrar-te como fazer o molho branco, um dos pratos preferidos do Marquês - disse. - As cozinheiras parisienses contam que foi criado por Béchamel, o mordomo de nosso divino Louis XIV, o Rei-Sol. E vou ensinar- te a preparar codornas, carne de caça, um raro prazer, bem diferente daqueles bois de açougue com que os burgueses comem em Paris. A cozinheira ralou uma noz-moscada, passou dois dedos no pó e aproximou- os de meus lábios. - Prove - mandou. Lambi seus dedos fortes, deixando os sabores me invadirem. Gostei de ambos. Seguindo as instruções, misturei a farinha de trigo na manteiga e comecei a 40
  • 41. despejar o leite, tentando fazê-lo bem devagar, como ela recomendara. Nada mais inútil: o leite morno caiu aos borbotões do frasco pesado, espirrando no meu colo. A panela quente queimava minhas mãos. Suava em bicas enquanto mexia a mistura com a grande colher de pau. A consistência adequada lembrou-me o esperma que acabara de conhecer. Mas não esqueci de dar o toque final, uma pitada de noz-moscada. Para surpresa geral, sobretudo minha, o prato saiu quase tão bom como se o próprio mordomo real o tivesse feito. Presenciei a reação da família a essa primeira incursão pela alta culinária ao servir à mesa, uma de minhas inúmeras funções. Enquanto eu recolhia os pratos usados, o primogênito Louis aproveitou a chance para me elogiar: - Nunca comi codornas tão boas em toda a minha vida, Joséphine. - Garanto que foi Justine quem fez - desdenhou Donatien. - A ave é para a cozinha o que a tela é para os pintores – apressou-se em contemporizar o Marquês, notório inimigo de discussões à mesa. – Nossa Joséphine aprende depressa - disse à mulher. Renée de Sade, naturalmente, não captou o duplo sentido da frase e sorriu secamente. Naquela noite eu dormia a sono solto quando La Jeunesse me sacudiu. - Venha - ordenou. Mal dando tempo para jogar um xale nos ombros, o criado iluminou o caminho até a câmara secreta. Sade me aguardava em mangas de camisa, bebericando uma taça de vinho. Um aparador dourado exibia várias garrafas do que havia de melhor na França. - Vou recompensar-te pelo apuro das codornas, Joséphine. Um bom jantar pode causar uma volúpia física, enquanto salvar três milhões de vítimas, mesmo para uma alma honesta, só enseja uma volúpia moral. Aproximou-se em passos elegantes, empunhando a taça: - E volúpia moral, como vais aprender, só serve aos tolos. Penso que o primeiro passo é ensinar-te a conhecer bons vinhos, sabedoria muito conveniente tanto para uma cozinheira quanto para uma libertina. Saboreou um longo gole. 41
  • 42. - Um dos nossos maiores filósofos, Gustave d’Holbach, nos ensina que o álcool aumenta a violência do princípio ígneo, que procura o máximo de atividade para as fibras nervosas, de tensão para os nervos, de rapidez para os fluidos. Condição adequada, portanto, para quem quer se dedicar ao prazer. O homem é uma máquina guiada pelo desejo, máquina biológica como qualquer outro micróbio, animal ou planta, já dizia d’Holbach, que assegurava ser todo o Universo originário de uma só substância, diversamente manifestada. Levantou e encheu de novo o cálice. - Um Borgonha encorpado como este, por exemplo, é a melhor companhia para pratos de carne. Prova, pequena. Apresentou-me sua própria boca como taça, e dela suguei todo o líquido. Outros vinhos vieram. Quando chegamos aos bordeaux, o que se molhava no líquido vermelho não era mais a boca, mas o pau do patrão, do qual recolhi todas as gotas. Inclusive as brancas, quando elas explodiram. - Quanto mais um desejo é satisfeito, mais e mais ele é excitado – disse ao beijar-me, tomando um pouco do gosto de seu próprio esperma em minha boca. – Os gregos que aconselhavam a justa medida que me desculpem, mas tudo é ótimo quando em excesso – murmurou, segundos depois. Tive certeza de que voltaria a ser chamada. Pela primeira vez em minha vida, sentia-me integrada naquele mundo dourado que sempre invejara. Era parte de algo importante, ainda que atemorizador. Eu era amante do Marquês de Sade. Assim começou meu aprendizado dos prazeres. Era um novo mundo de sensações e idéias, conhecimento e deleite que se abria para mim, ansiosa por alimento de todo o tipo. Nossas conversas também se estendiam à arte de bem comer. Grande admirador de Apicius, contou-me como o mestre dos cozinheiros da Roma dos Césares, nascido poucos anos antes de Cristo, dilapidara imenso patrimônio só para satisfazer a própria Gula: - Ao ver que lhe restara pouco dinheiro para manter o padrão de mesa ao qual se acostumara, Apicius tomou veneno, conforme relata o filósofo Sêneca. Essa morte os estóicos e cristãos consideram punição exemplar. Afinal, ele legou um livro, De Re Coquinaria, que inspirou os faustosos banquetes do Satiricon de Petrônio, e um estilo de vida ameaçador para a salvação moral da sociedade. 42
  • 43. Sade tomou a cabeça de La Jeunesse, que ouvia impassível, levou-a até o próprio caralho e fez com que o abocanhasse: - Os puritanos não entendem que só sacrificando tudo a seus prazeres é que o homem consegue semear algumas rosas sobre os espinhos da vida. Venha querida, abra as pernas para La Jeneusse, ele também precisa das flores de teu negro jardim. Enquanto à noite eu mergulhava no fascinante e nobre mundo da depravação, de dia eram a pimenta-rosa, o açúcar, a baunilha e os bons cafés que embriagavam outros sentidos. Tinha razão o patrão, eu aprendia depressa. Justine, agora toda gentilezas, dizia que eu tinha nascido com o dom da cozinha. Mas nem por isso minha vida era mais fácil. Dormia pouco, vivia exausta e era atormentada por imensa vergonha cada vez que meu pai se aproximava. Jean-Pierre desconhecia por completo minhas libertinagens e não seria eu a contar-lhe. O resultado era que não conseguia mais encará-lo francamente. Quando tornou a perguntar se havia algo de errado, decerto preocupado com o muro a erguer-se entre nós, achei, para minha própria segurança, que cabia-me tranqüilizá-lo: - Não - respondi mentirosamente, sentindo-me a última das criminosas. - Estou adorando aprender tudo o que Justine me ensina. Percebi que a cozinha também dá muita satisfação. - Cuidado com o exagero, minha filha, a Gula é um dos sete pecados capitais, um dos abismos nos quais se perde a alma. E, nesse caso, o corpo também. Veja o Marquês, se continuar a devorar bolos e doces nessa avidez em breve precisará de ajuda até para trocar de camisa. Igualmente me angustiava o teor de certas conversas que ouvia. Para quem, como eu, tinha Sade como mentor, eram revelações preocupantes. Mas, cada vez mais interessada no mundo que me descortinava, ignorava a voz da prudência. Sabia, fato impossível de ignorar na nossa região, que era procurado pela polícia. Logo descobri que a situação era ainda mais grave: já fora condenado à morte. Tudo começara quatro anos atrás, em 1772, na mesma cozinha onde eu agora trabalhava, de onde saíram deliciosos bombons que, em si, não tinham nada de errado. Mas a cobertura era uma calda de açúcar com cantárida. Esse pó das asas de moscas espanholas, finamente trituradas, comprovadamente funciona como poderoso afrodisíaco, usei-o muitas vezes para dominar os homens. A finalidade dos bombons era apimentar os prazeres particulares de Sade e seu criado da ocasião, Latour. 43