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Sammis Reachers
Renato Cascão &
Sammy Maluco
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ISBN: 978-65-00-32330-6
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“É melhor escrever sobre o riso do que sobre a
lágrima. Porque o riso é próprio do homem.”
Rabelais
6
7
Sumário
Apresentação.....................................................................07
Capítulo 1: Situando os quiprocós...................................10
Capítulo 2: Um assalto à horta do hospício ...................14
Capítulo 3: Sexto Sentido..................................................18
Capítulo 4: Sobre paus, pedras e sopapos ....................21
Capítulo 5: A fundação do MMA numa comuna
gonçalense.........................................................................24
Capítulo 6: Meganha, raça do cão ................................28
Capítulo 7: Papita e o atoleiro .........................................31
Capítulo 8: Ri por último quem ri de bolso cheio ..........36
Capítulo 9: O sítio mal-assombrado de Seu Pedro.......39
Capítulo 10: As doces mangas – e o muro – do velho
Lauro ....................................................................................45
Capítulo 11: A rapina bananal.........................................49
Capítulo 12: Jamelões!......................................................54
Capítulo 13: De quando fomos desafiar o famigerado
Lobão para um jogo de bolas de gude .........................57
Capítulo 14: Sobre nossos apelidos.................................60
Capítulo 15: O Triciclo dos Alucinados...........................62
Capítulo 16: Renato e seu cachorro Bugui.....................65
Capítulo 17: Volnei Peito-de-Aço....................................67
Capítulo 18: Os caronistas................................................73
Capítulo 19: Vamos falar sobre etnia..............................78
Capítulo 20: Casemiro, O Profeta ....................................82
Capítulo 21: O Pau-de-Sebo ............................................87
Capítulo 22: Gambá e o Gran Cassino Palha Seca......93
Capítulo 23: O Tempero Colombiano.............................99
Capítulo 24: Epílogo.........................................................107
Sobre o autor ....................................................................112
8
Introdução
Este pequeno volume reúne algumas memórias de
minha infância, transcorrida entre meados da década de
80 e inícios da década de 90 do século passado. Não faz
assim tanto tempo, mas ainda era numa época em que as
crianças, então não feridas pelas virtualidades da web ou
enjauladas pelo risco da violência lá fora, brincavam de
fato e de direito. E era um brincar na acepção plena do
termo, na configuração máxima das 24 horas do dia, onde
os pequerruchos exploravam o seu geralmente vasto
espaço vital à exaustão.
Claro, nem tudo eram flores; a pobreza exercia o seu
duro reinado, e aprendendo a driblá-la levávamos a vida –
uma vida sofrida, transida de malandragem e inocência,
mas, atropelando os pesares, profundamente feliz. Afinal,
o chão da memória é apagar o grosso das sofrências, ou
romantizar pela nublagem o rude dos amargos momentos.
Há um texto anônimo de grande beleza, e que acredito
sirva de excelente introdução às pequenas e divertidas
narrativas que aqui vão rascunhadas:
O QUE É UM MENINO?
Os meninos se apresentam em tamanho, peso e cores
sortidas. Encontram-se por toda a parte, em cima, em
baixo, dentro, fora, trepados, pendurados, caindo,
correndo, saltando. As mães os adoram, as meninas os
detestam, as irmãs e os irmãos mais velhos os toleram, os
9
adultos os ignoram e o céu os protege. Um menino é a
verdade de cara suja, a sabedoria de cabelo esgadelhado,
a esperança de calças caindo. Tem o apetite do cavalo, a
digestão do avestruz, a energia da bomba atômica, a
curiosidade do mico, os pulmões de um ditador, a
imaginação de Júlio Verne, a timidez da violeta, a audácia
da mola, o entusiasmo do buscapé e tem cinco polidáctilos
em cada mão, quando pratica suas reinações. Adora os
doces, os canivetes, as serras, o Natal e a Páscoa; admira
os reis e os livros de figuras coloridas; gosta do guri do
vizinho, do ar livre, da água, dos animais grandes, do
papai, dos automóveis e dos trens, dos domingos, das
bombas e traques. Abomina as visitas, o catecismo, a
escola, os livros sem figuras, as lições de música, as
gravatas, os casacos, os barbeiros, as meninas, os adultos
e a hora de dormir.
Levanta cedo e está sempre atrasado à hora das
refeições. Nos seus bolsos há sempre um canivete
enferrujado, uma fruta verde mordida, um pedaço de
barbante, dois botões e algumas bolinhas de gude, um
estilingue, um pedaço de substância desconhecida e um
objeto raro, que lhe é precioso por 24 horas. É uma criatura
mágica. Você pode fechar-lhe a porta do seu quarto de
ferramentas, mas não a do seu coração... Pode expulsá-lo
do seu escritório, mas não do seu pensamento. Toda a sua
importância e a sua autoridade se desmoronam diante
dele, que é o seu carcereiro, seu chefe, seu amo... Ele, um
despótico e ruidoso mandãozinho!... Mas quando você
volta para casa, à noite, de esperanças e ambições
10
despedaçadas, ele pode compô-las num instante com as
suas palavrinhas mágicas: "OH! — MAMÃE!".
É de se imaginar que as travessuras aqui narradas
tenham como personagens principais esses dois aí do
título: Meu amigo de infância, Renato “Cascão”, e o
Sammy “Maluco”, este pacato alucinado que vos escreve.
Mas não apenas eles ou nós: Outros atores desta ópera-
bufa que é a vida numa periferia se fazem presentes,
emprestando suas histórias para, queira Deus, trazer um
pouco de alegria e diversão a você, amigo leitor.
11
Capítulo 1
Situando os quiprocós
Toponímia é aquela área de estudo que se ocupa dos
nomes próprios de lugares. Iniciemos este relato
esclarecendo alguns embaraços toponímicos, sem os quais
o leitor talvez não consiga se situar no teatro dos eventos.
A região aqui em geral referida pertence “legalmente”
ao bairro de Tribobó; sim, o bairro com um dos nomes mais
divertidos – ou ridículos – do Brasil. Situado no município
fluminense de São Gonçalo, o extenso Tribobó é composto
pelo que se chama de sub-bairros, que, oficiais ou não, são
pequenas repartições ou regionalizações adotadas
principalmente pelos moradores desses lugares.
Ao trecho de Tribobó em que fui criado chamamos de
Jardim Nazaré, também grafado Jardim Nazareth, ou o
termo que hoje o faz, não com justiça, conhecido alhures:
Palha Seca.
Evito em geral o termo Palha Seca pois ele hoje refere
uma ampla área, que, tendo visto nascer nos últimos trinta
anos algumas favelas em seu corpo, agora recebe até a
designação de complexo, o “Complexo do Palha Seca”.
Assim, com Jardim Nazaré busco definir uma área
delimitada dentro disso que se chama Palha Seca; sim, um
pequeno trecho composto por três ruas principais e mais
umas quatro paralelas.
Levantado nosso cercadinho, vamos fundamentar os
relatos.
12
Boa parte de minha infância e primeira adolescência foi
passada na favelinha Beira do Rio ou Beira Rio, pequeno
bocado de chão do já pequeno Jardim Nazaré. Ela recebe
esse nome, você já pode imaginar, por margear trecho de
um rio – neste caso, o Rio Alcântara, que nasce no
município niteroiense de Pendotiba, alguns quilômetros
acima de nosso ponto, e percorre quase meia São Gonçalo
(mudando de quando em quando ou de trecho em trecho
de nome, como um fugitivo) em sua peregrinação soturna
em busca da Baía de Guanabara.
Morando numa rua de acesso à movimentada Beira Rio,
sua influência, como um ímã, não poderia me deixar
escapar, estando eu a tão poucos metros de sua fervura.
Muitas aventuras foram vividas ali – ou não exatamente
nela, mas em andanças a partir dela – andanças em que eu
e os companheiros de ocasião percorríamos quilômetros
que, hoje, me defenestrariam as pernas, caso eu tentasse
encará-los.
Um desses companheiros de ocasião era na verdade um
companheiro de muitas ocasiões, um amigo, na medida
em que este termo se aplicava às relações sempre algo
hostis que eram mantidas naqueles tempos, naquele lugar.
Seu nome era Renato. Renato Batista dos Santos. Irmão de
quatro irmãos, paupérrimos – moravam todos quase
amontoados num barraco de um único cômodo.
Minha situação era bem mais favorável, embora eu
fosse, claro, perfeitamente pobre. Devo a Renato muito de
minhas iniciações no mundo real, iniciações que, a duras
penas, conseguiram romper o perfeito inapto ou inocente
13
que eu era. As lições de “malandragem” eram aplicadas
diariamente, sem muita cerimônia.
Uma de nossas maiores ocupações era, quase que
todos os dias, catar ferro-velho – reciclagem, cobre,
alumínio, garrafas e até ferro, ferro depois abandonado
pois o lucro não compensava o sacrifício de, franzinos
moleques que éramos, carregar todo aquele peso.
Ocupados em nosso ofício – cujo objetivo era conseguir
dinheiro para comprar picolés e sorvetes da Kibom, pão
com mortadela, refrigerantes, doces, jogar fliperamas e,
ao menos no meu caso, comprar figurinhas variadas –
como dito, andávamos quilômetros, a cada dia traçando
uma rota.
Na época não havia coleta de lixo na região, lixo que era
então despejado em “pequenos” lixões (terrenos baldios)
que abundavam em cada bairro e sub-bairro. Renato me
ensinava nessas andanças a primeira lição da vida ou
daquela vida – cada um por si, nada de catar em conjunto.
E ele, claro!, sempre conseguia mais materiais de valor que
eu. O bicho enxergava como uma águia! Com o tempo, fui
melhorando.
Outra lição – essa vergonhosa e perfeitamente
dispensável – que Renato me ensinou foi a roubar. Mas
calma lá, leitor, que não lhe quero escandalizar logo neste
início de livrete: Não eram furtos dignos do risco ou talvez
da fama, eram apenas surrupios de pequenos pedaços de
cobre, que jaziam amarrando canos e cercas; garrafas de
cerveja e garrafões de vinho largados em algum depósito
de fundo de quintal; panelas velhas que eram utilizadas
como vasos de planta – ah, quantas plantas eu deitei fora,
14
eu que depois aprendi a amá-las! Quando podia, removia
cautelosamente a planta e sua touceira de terra da panela,
depositando a touceira gentilmente a um canto. Quem
sabe a madame não conseguisse um outro vaso para
reacondicioná-la?
Esses pequenos furtos também foram uma severa
escola – em geral, nos quintais mais “arriscados”, eu, mais
lerdo e ainda por cima mais “visível” pela minha pele
amarelona, ficava de vigia, enquanto Renato lá ia tentar
aliviar... LIXO, mas era roubo pois o “lixo” tinha dono, e
trazia na corcunda seu risco.
Há quem diga que éramos pueris ecovisionários
promovendo ou ao menos “adiantando” a reciclagem de
materiais que, largados como estavam na “natureza”,
levariam séculos e oh!, quiçá milênios para se
decomporem, comprometendo ecossistemas locais e
globais. Para esses, fomos paladinos da sustentabilidade,
arautos de um futuro eco-responsável (particularmente,
gosto bastante desta versão).
A mesma tática utilizávamos para afanar frutas, ciência
esta universal, e atividade que exercíamos com alguma
perícia e grande prazer. Embora antes pedíssemos ao
dono, humildemente, para nos deixar arrancar algumas
frutas – mangas, goiabas e quetais. Em caso de negativa,
bem...
15
Capítulo 2
Um assalto à horta do hospício
Iniciemos nosso controverso elenco de encrencas pelo
surrupio de gêneros alimentícios, pois quem tem fome tem
pressa, asseverava o grande benemérito Betinho.
Próximo de nossas casas havia um Hospital Psiquiátrico,
de caráter particular, que fazia as vezes de asilo. Era um
estabelecimento assentado sobre um imenso terreno, que
tinha entre seus domínios, além das instalações principais,
uma sinistra casa abandonada digna de filmes de terror,
uma pequena capela para velar os mortos do hospital, e
um pequeno, mas belo e denso trecho de Mata Atlântica
onde coletávamos os deliciosos (tinham gosto de jaca!)
coquinhos-catarro, que em outras plagas são conhecidos
como jerivá, baba-de-boi e até coquinho-meleca, dentre
outros nomes mais ou menos nauseantes.
Mas o que fortuitamente passou a interessar-nos, a
mim e a Renato, foi uma horta de grande tamanho que eles
iniciaram certa vez. Não que fôssemos grandes comedores
de hortaliças, mas eram muitas e dava gosto de ver uma
roça daquela, tão cuidada e sortida, luminosa como uma
aquarela. Tentação feita, nossas almas foram vencidas. E
certa manhã de sol retumbante foi a escolhida para nossa
incursão.
No assalto a tal horta, seguimos o já cansado script de
sempre: Renato avançava enquanto eu ficava de vigia,
acocorado sob uma moita. Era quase impossível ver aquele
16
moleque destemido que rastejava qual um perfeito milico,
como se tivesse recebido algum treinamento militar. E, de
mais a mais, apenas os pacientes – todos doentes mentais
acometidos das mais diferentes patologias – ficavam
tomando sol num dos calçadões da parte do hospital que
dava para a horta. Não teriam mente, olhos, interesse ou
consciência para nos notar. Bem, assim pensávamos.
Quando o moleque esperto estava já na borda da horta,
arrancando pés de alface e couve que estavam à mão, não
é que um dos “loucos” – que de louco devia ter muito
pouco – deu o alarme? E os demais que com ele estavam
principiaram a berrar, num coro alucinado: “Pega ladrão!
“Per-rega ladrão! Perrr-rega ladrão!”
E daí, poderia ser dizer. A horta ficava num ponto
exterior ao asilo/hospício, que dava justamente para a
região de onde viéramos, e para onde nos bastava fugir.
Mas o problema era que o hospital tinha um “zelador”: Seu
Ciro, que estava sempre a postos com sua espingarda de
sal grosso nas mãos, e os dois cachorros vira-latas que, se
sozinhos eram apenas observadores passivos e
desinteressados, quando estavam com ele se tornavam
verdadeiros dogues de caça.
E eles prontamente se apresentaram, os perdigueiros e
seu senhor: O bruto do seu Ciro parecia um lorde inglês, já
com cabelos brancos, mas correndo feito um adolescente,
com aquela espingarda fazendo fogo e atiçando aqueles
cachorros de dúplice proceder...
Foi uma corrida infernal, mato adentro, ignorando
trilhas e abrindo novas no peito, até chegarmos ao rio – o
rio Alcântara, que corta quase que meio município de São
17
18
Gonçalo – e que separava a “nossa área” da micro região
que chamávamos apenas de “morro” – na verdade um
enorme trecho composto por um encadeado de montes,
onde a mata de cerrado e chaparral se intercalava com
bolsões de Mata Atlântica, micro região no meio da qual
estava justamente o tal Hospital.
Corremos como desvairados, mas o tinhoso do Renato,
ou Nato para os íntimos, não largou nenhum dos muitos
pés de alface que confiscara... Era um signatário da velha
máxima brasileira: “Vergonha é roubar e não conseguir
carregar”.
E aplicou mais uma vez uma lição a que eu tive que me
submeter infindas vezes: Ele corria mais do que eu, não
olhava para trás e muito menos para mim. Nem um “corre,
mané”, ele soltava. Apenas corria, firme em sua ideologia
do “cada um por si” e ai de mim se não percebesse a fuga
– fosse lá do que fosse – e não partisse em sua traseira...
19
Capítulo 3
Sexto Sentido
Isso me leva a recordar de outros episódios, agora
divertidos, pelos quais passei. Eu ainda não relatei, mas
Renato possuía algo que perturbava minha mente que,
embora infantil, era leitora de enciclopédias e já
manifestava a tendência racional-científica que fundou a
frio nosso mundo tecno-científico e a tudo manieta,
retifica e constrange. Esse algo era o que se costuma
chamar de “sexto sentido”. Sim, aquele rapazinho que
jamais entrara numa escola (não havia lei, ou a lei não
tinha força que obrigasse a mãe dele, Bebete, a matriculá-
lo), possuía um sinistro sexto sentido que o avisava,
geralmente com apenas alguns segundos de vantagem, de
que algo de ruim estava prestes a acontecer; que a jangada
pirata iria naufragar, a aventura do momento estava em
vias de dar errado.
Relato uma das mais prosaicas e inofensivas destas
vezes em que tal sentido do malandrim nato se
manifestou. Certa noite, ele me chamou para “darmos
uma espiada” em frente da casa de uma certa menina,
uma linda negrinha, que estava há pouco tempo no bairro.
Nato estava enamorado...
Acontece que a tal menina morava numa casa, a de sua
avó, em que infelizmente (isso sempre é uma infelicidade
quando acontece com a mulher de quem você gosta)
20
moravam muitos homens – eram os tios dela, todos
solteiros e ainda albergados em roda da saia da matrona.
Pois bem, lá estávamos nós, acocorados no mato em
frente daquela casinha de telhas francesas e sem cercas. A
rua estava deserta, pois o bairro naqueles tempos era
menos povoado e a hora já ia avançando noite adentro;
podíamos divisar, dentro da casa de janelas de madeira
abertas, o trânsito dos moradores, inclusive da princesinha
de ébano. Eu olhava para a rua de quando em quando, pois
nossa atitude, embora de intenções inocentes, era
também suspeita. Foi quando Renato, fulminado por seja
lá que tição do céu ou do inferno, entregou o oráculo: “Tô
com a sensação de que vai acontecer alguma merda...”.
“Que nada, a rua tá deserta e nós não estamos fazendo
nada”, respondi. Um breve momento de indefinição foi
suspenso pela aparição, ex nihilo, sim, direto do nada, de
um dos tios da menina, bem na nossa frente. Como aquilo
se deu? E era justamente Elias, o mais “brabo” dos
moradores da casa. Renato foi apanhado pelo braço, e
tomou uma salva de cascudos. Eu também levei o meu e
me dei por satisfeito – bem, em geral eu ficava para trás e
arcava com as consequências sozinho. As explicações
sobre os puros sentimentos do jovem Romeu, ao invés de
tocarem o coração de Elias, tiveram o resultado oposto,
enfurecendo ainda mais o valentão. Se tivéssemos corrido
quando o oráculo deu o alarme...
Carimbados de cascudões e devidamente jurados em
caso de reincidência em tal “crime” – simplesmente
observar o evolar de uma virginal donzela, veja você –
21
partimos para nossas casas, contrariados por mais uma
injustiça da vida.
Renato jurava “vingança” quando crescesse. Quanto a
mim, bem, em boa parte de minha infância, receber um
cascudo era como receber um bom dia.
22
Capítulo 4
Sobre paus, pedras e sopapos
Parte do lecionário dos meninos, numa comunidade
pequena mas algo hostil como aquela, assim como
acontece e aconteceu em quase todo o mundo e ao longo
de toda a divertida história humana, era dedicado ao
combate corpo a corpo.
Em minha nascente biografia, esse foi um problema que
demorou para ser remediado – eu era bem mais bobo que
a maioria dos moleques da rua. Ao menos dos moleques
daquele trecho do bairro, um pouco mais barra-pesada ou,
termo melhor, pragmatista, mas foi ali que resolvi fincar os
paus de minha mal-armada barraca.
Não tive irmãos homens, apenas irmãs; pior: não tive
primos próximos, apenas primas, muitas primas. Meu pai,
bom homem, arauto da pacatitude, nunca foi de briga.
Meus três tios que moravam no bairro eram muito
ocupados, e dois deles tinham deficiência numa das pernas
– resquícios de poliomielite, sofrida na infância ainda nas
Minas Gerais. Mesmo se quisessem, a vida cedo os
impedira de fazer carreira de sucesso no rude mundo da
trocação de chutes e socos. Ou seja: Eu nem tinha quem
me defendesse, nem tinha quem me ensinasse o ofício.
Para casos assim especiais, a vida tem uma solução
terminal: tentativa e erro, ou: aprender a bater por
osmose, depois de muito apanhar. Ou nunca aprender.
Bem, eu custei, mas aprendi.
23
Desses meus doutrinadores de rua, novamente Renato
foi o primeiro e o maior deles: vez por outra eu era
espancado, para recalibrar meu entendimento da
hierarquia que rege o cosmos. Brigávamos num dia e, no
dia seguinte, lá estava ele no portão de minha casa,
gritando: “Ô Sâmi! Sâââ-mêêê!!! Ô Sâââmiii!!! Bora catar
ferro-velho!” E lá ia eu, despudorado, mais perdoador que
o futuro cristão que eu haveria de ser.
Mas nem tudo eram murros colecionados. Enquanto
não aprendia a utilizar os punhos, desenvolvi um
mecanismo de defesa, dissuasão ou vingança que acabou
se tornando “lendário” nas cercanias: virei franco-atirador.
Funcionava mais ou menos assim: Você, mais forte do que
eu, me aplicava uma pancada, me constrangia com alguma
ameaça, ou mesmo me lançava alguns desaforos e
impropérios numa dose acima do que eu estava disposto a
metabolizar. Ato contínuo eu, sempre num sinistro e
sintomático silêncio, me recolhia à minha insignificância
pugilista e existencial, dava vinte passos, sempre lentos,
quase tristes. Cabeça baixa, expressão contrita, era só um
garotinho fracote recolhendo-se à convalescença
aconchegante no lar.
Em seguida, cumpridos os passos cerimoniais, garantia
de segurança em caso de fuga, num movimento rápido e
contínuo, eu apanhava uma pedra do chão e me virava
atirando-a. Era um agachar-apanhar-atirar sem pausa,
manobra tinhosa, um giro rápido e perfeito. E enquanto
aquela pedra, aquela Nêmesis de minha vingança cruzava
os ares, outra já estava sendo recolhida e disparada. Antes
das armas de fogo, a metralha já pipocava na favela...
24
Foram tantas as pedras despachadas (eram tempos
conflagrados!) que adquiri alguma especialização, e aquilo
passou a ser temido na rua.
Eu sou um tipo esquisito ou incompleto de ambidestro:
escrevo com a direita, mas uso a mão esquerda para atirar
objetos. Lenda reza que minha mãe, a melhor mãe do
mundo mas acabrunhada pela educação de roça das
profundas Minas Gerais, ao perceber minha tendência
inicial para a canhotice, vendo que eu rabiscava com a pata
sinistra ao invés da destra, forçou a barra para que eu me
corrigisse, que aquilo de escrever com a esquerda era coisa
do capiroto. Ah, Minas Gerais, misto de poesia e
sensaboria, que tantas fábulas pariu!!!
Mas voltemos ou avancemos até à idade da pedra: Se
no futebol, que àquelas alturas detestava, eu era ninguém,
e minhas duas pernas eram cegas, no tiro ao alvo eu era o
canhotinha de ouro, artilheiro isolado por quatro, cinco
anos. Magoei algumas carnes, rachei uma ou duas cabeças
– com duras consequências. Parte da fama do Sammy
Maluco foi alicerçada no melhor da alvenaria: pedras de
brita e lascas de tijolo.
Mas a rua tinha uma máxima, um provérbio cruento, de
cuja verdade nem toda a perícia balística me safaria: Nem
só com paus e pedras se defenderá o homem: O punho será
sua bandeira.
25
Capítulo 5
A fundação do MMA numa
comuna gonçalense
Demorou bastante para que eu aprendesse a devolver
com mínima perícia os golpes que levava. Nesse curso fui
ajudado por algo em que nosso bairro foi o pioneiro. Sim,
se hoje somos o país do MMA, as Mixed Martial Arts (Artes
Marciais Mistas), naquelas alturas ou profundezas da
década de oitenta os Gracies talvez ainda nem sonhassem
em criar esta modalidade.
E nosso bairro já contava com uma, deixe-me celebrar
em maiúsculas, ARENA COMUNITÁRIA DE COMBATES.
Mas, como era isso?
Nosso rio Alcântara era fonte do ganha-pão de alguns
dos moradores da comunidade. Efetivos ou esporádicos,
muitos moradores defendiam seu trocado tirando areia do
rio. Sim, sim, não havia IBAMA que os impedisse, e a fonte
parecia mesmo inesgotável. Até eu, em infância, certa vez
me somei a um mutirão de moleques para tirar areia do rio
em troca de... tomar banho numa grande piscina, num
casarão onde certo conhecido era caseiro. Sim, sim,
também não havia Conselho Tutelar que nos salvasse, e
nossos pais de nada sabiam. Era um tempo em que o
moleque ia para a rua de manhã, voltava sujo para
almoçar, e antes que a mãe desse por ele ou terminasse de
desfilar a bronca, o brucutu já se evadia para a rua de novo,
vadiando até o anoitecer.
26
Amigos, ao poder da pá, da enxada e da chibanca, não
apenas a areia era o recurso natural explorado pela
comunidade. A areola, com sua fina textura marrom,
utilizada em emboços, na massa para assentar tijolos e
também como terra para plantas, era outro recurso
lucrativo, esse escavado dos muitos terrenos baldios.
Acontece que um empreendedor, um inovador
desconhecido do bairro, teve a suprema ideia de matar
dois coelhos com uma só bordoada. Ou pazada, ou
enxadada que seja.
Na margem do rio, em certo ponto, ele começou a
escavar areola, que era prontamente vendida. Quanto ao
espaço que ficara escavado, um imenso retângulo, ele o
usava para jogar a areia que arrancava do rio – o que era
facilitado pela diminuição do patamar da margem, já
escavada. Assim ele conseguia produzir os dois “gêneros”
num mesmo local.
O inusitado foi que, numa feliz ação do destino
guerreiro que rege a espécie humana, uma cheia do rio –
que sofria cheias regulares – submergiu aquele trecho.
Quando as águas desceram, uma surpresa nos agraciou,
presente dos deuses da guerra: Aquele grande “quadrado”
escavado às margens do rio fora ocupado completamente
por areia – mas não era a areia mais grossa ou cascalhenta
que costumava ser tirada do rio para a venda: era uma
areia mais fina, como a areia de praia. Aquele vácuo,
atingido pela cheia, serviu como uma espécie de baía que,
com o fluxo do rio, acumulou apenas a areia mais fina, a
que conseguia flutuar em suspensão nas partes mais altas
27
do fluxo de água da enchente. Assim, ao baixarem as águas
barrentas, somente a areia fina fora “capturada”.
Aquele lugar era amplo, mas insuficiente para o jogo de
futebol, a famosa pelada – e para isso a comunidade já
contava com um campinho mais acima do morro. E as
areias eram muitas. Assim, uma solução foi encontrada: O
areal passou a ser campo de honra – não, não um
cemitério – mas campo onde as honras entravam em
disputa. E assim as briguinhas entre as crianças passaram
a ser resolvidas ali – do outro lado do rio (na margem
contrária donde havia moradias), longe da vista ou ao
menos da ação dos pais.
Todo dia tinha pancadaria, não apenas “à vera”, mas “à
brinca” também. Um contra um, dois contra dois... Até
battle royale (todos contra todos) foi experimentada em
nosso caldeirão. César, Septímio Severo, Caracala,
qualquer imperador romano exultaria ao ver aquela
pequena e mambembe escolinha de gladiadores
gonçalense! E, por Deus!, quanta porrada tomei ali!!!
Aquilo se tornara também um campo de sadismo para
alguns dos moleques mais velhos, que incorporavam
aquele espírito universal, o do sargentão de caserna: Eles
estimulavam os combates, impediam a fuga dos
desertores e ainda puniam os rebeldes – apanhando-nos
pelos membros e balançando-nos como fardos que, após
ganhar força cinética, eram lançados de costas – ou como
fosse, Deus nos ajudasse – sobre a areia.
Antes do MMA ser criado, antes das artes marciais
mistas serem efetivadas no gosto nacional, a Beira Rio já
28
formava – a ferro, fogo e lágrimas empapadas com areia –
seus campeões.
29
Capítulo 6
Meganha, raça do cão
Uma das aventuras mais divertidas – hoje é tudo muito
divertido – que passei em minha vida de coletor de
reciclagem com Renato foi assim: Num belo e ensolarado
dia, enquanto transitava sozinho por um trecho da RJ 106
um pouco distante de nossas casas, já no final do bairro
Arsenal, Renato viu, desperdiçado ao fundo de um riacho
ou valão que cortava a rodovia, um eixo de automóvel.
Sim, cinquenta ou mais quilos de ferro estavam ali, jogados
fora, sem marca nem dono.
Acontece que o ferro-velho em que vendíamos os frutos
de nosso trabalho era relativamente perto daquele ponto
– talvez a menos de um quilômetro... Bem, Renato não
conseguiria levantar aquele peso lá de baixo do riacho até
a altura do asfalto, pois eram quase três metros de
pequena e íngreme ribanceira. E mesmo que fossem 30
centímetros: Uma criança não suportaria aquele peso.
Foi já com um plano em mente que Renato chegou na
Beira Rio. Após o relato, entendi que não poderíamos
carregar aquilo sozinhos. Pergunta daqui, chama dali, e
nenhum dos “tradicionais” catadores se dispôs – ou tinha
disponibilidade – a ir. Por fim conseguimos convencer dois
primos, os “amadores” Rodrigo e Andinho, a nos
acompanharem naquele garimpo. Conseguida uma corda,
sem a qual não poderíamos içar o butim, partimos em
marcha de quase três quilômetros até o tal valão.
30
Chegados ao local, o diligente líder da expedição logo
desceu para tentar amarrar a corda em volta do grande
eixo. Agora restava a parte mais doce: Suspender todo
aquele peso “no braço”, numa encosta íngreme. Enquanto
nós três puxávamos com tudo o que tínhamos, Renato
empurrava o grande troço, que vinha lento e agarrando-se
vez por outra nas ramas de mato, como quem resiste a sair
de seu cemitério pacífico.
Acho que nunca nenhum dos quatro fizera tanta força
na vida. Conseguido o suado intento, agora era fácil: Após
a pausa para respirar, bastava arrastar asfalto afora aquele
pedação de ferro, até o ferro-velho. E lá fomos nós.
A (des)graça da aventura aconteceu quando, poucos
metros após o tal riacho, passamos em frente a uma loja
de telhas coloniais e pedras ornamentais. Lá de dentro
daquele estabelecimento decorativamente burguês, um
indivíduo barbudo gritou, espavorido: “Ei! Ei! Cheguem
aqui!” Suspeitosos, e ocupados que estávamos arrastando
aquele fardo, fizemos menção de seguir nosso caminho.
Mas o indivíduo veio ao nosso encontro, e nos fez
arrastar o peso para dentro do “quintal” da tal loja. Em
seguida, iniciou um interrogatório digno de filmes de
mocinho e bandido. Queria saber onde conseguíramos
aquele eixo, afirmando peremptoriamente que era de um
carro roubado. Queria informações do roubo. Explicamos
que ele estava “jogado fora” dento de um valão ali perto,
talvez há anos já. Mas o elemento, apresentando-se agora
como policial, não se satisfazia. Apertava-nos, queria
confissões, queria saber se conhecíamos ladrões e já nos
tratava, moleques de dez e onze anos, como tais.
31
O agravante que enfurecia o meganha era Renato, que
não segurava o riso durante aquele interrogatório, fato
que nem eu compreendia. Os outros dois expedicionários,
Andinho e Rodrigo, esvaíam-se em lágrimas, achando que
seríamos presos, e imaginando a surra que levariam em
suas casas. Não posso afirmar com certeza, mas talvez até
eu tenha chorado...
Resumo da ópera bufa: O pilantra supostamente a
serviço da lei, após nos explicar que aquilo era de um carro
roubado e que todas as peças possuem um registro
numérico, disse que não poderíamos de maneira alguma
vendê-la, e nos obrigou a arrastar o eixo novamente até o
riacho, e jogá-lo ribanceira abaixo. Embaralhados em alívio
e revolta, fizemos isso, enquanto o canalhinha nos
observava, de frente à loja – que, passados quase trinta
anos, ainda existe.
Voltamos para casa, uns desiludidos, outros aliviados, e
todos com calos nas mãos, lanhadas por aquela maldita
corda, por aquela maldita ideia de Natão, o elucubrador de
ideias...
Terá nascido aí, em arquétipo, minha ojeriza contra a
classe policial? Quem sabe.
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Capítulo 7
Papita e o atoleiro
Se o assunto é ferro-velho, vamos falar de outra
aventura, uma aventura não feérica (fantasiosa), mas
ferrada de apertos e perrengues.
Preciso informar, por cortesia ao entendimento do
leitor, que Renato sempre tinha um argumento para me
convidar a ir até tal ou qual lugar, em geral longínquo, em
busca de ferro-velho: “Passei por lá e há muita coisa, muita
coisa!”. O canalha não havia passado por lugar algum, mas
eu sempre caía na conversa. Deve ter sido meu primeiro
contato direto com um discurso político!
De certa feita, convidou-me a dar um rolê pelo sub-
bairro conhecido como Tribobó City (não confundir com
Tribobó, bairro de fato e direito, do qual o tal Tribobó City
era apenas um dos pedaços de chão).
Sabe-se lá por que cargas d’água ou de cobres, Renato
convidou para a peneira um outro catador esporádico,
Papita, a quem chamávamos também e simplesmente de
Mudinho, em virtude dele ser (quase totalmente) surdo-
mudo. Papita era um desses personagens folclóricos: Você
precisava de tempo de convivência para passar a entender
os grunhidos que ele soltava. Era maior do que nós, e a vida
na favelinha já havia nos ensinado que estar com um maior
é estar submetido, estado péssimo para livres-andarilhos
e anarco-presepeiros como nós.
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Amigo leitor, deixe-me abrir um parêntesis: Já terá sua
distinta pessoa se servido, em seus momentos de
intimidade, dos papéis higiênicos e toalhas de papel
Cotton, Deluxe, Klass, Coquetel? Que tal as fraldas
descartáveis Looney Tunes? Eles e muitos outros bons
produtos são fabricados pela empresa Carta Fabril, que até
pouco tempo atrás era localizada aqui, em Tribobó City, na
em sonhos linda São Gonçalo. Foi pelos matagais e
terrenos baldios circunvizinhos dela que fomos nos
aventurar, em busca de alumínio e cobre. Afinal, Renato
passara por ali e os vira...
Amigos, outro parêntesis, pois precisamos aproveitar a
Literatura para isso: Naqueles tempos, num córrego que
cruzava dos fundilhos desta tal empresa, era descarregado
um líquido colorido, por vezes azul, por vezes verde, que
se dirigia diretamente para o já citado rio Alcântara.
Poluição pura, sem filtros nem firulas. Pior: Sem saber
direito do que se tratava, e acostumado àquela vida de
“bravuras”, certa vez entrei no trecho do rio Alcântara que
recebia aquela química toda, venenosidade que lhe
mudava a cor daquele ponto em diante. Graças a Deus não
me aconteceu nada. Bem, sabe-se lá.
Feita a denúncia, voltemos à aventura. Nossas andanças
por Tribobó City (parece nome de cidadezinha de filme de
Faroeste, hum?) redundaram em NADA, coisa que por
vezes acontecia quando eu seguia as projeções de Renato.
Mas havia um outro problema, esse sim, novo: Papita, que
não vira nada de “curpiu” – assim ele chamava o alumínio,
em sua diferenciada língua de mudo. O bruto murmurava,
e pode o leitor imaginar o que seria um mudo “falante”,
34
irritado até os infernos, bradando e gesticulando como
uma matrona italiana?! Papita ameaçava nos aplicar fartas
cargas de cascudos, caso nada encontrássemos. Afinal, o
fizéramos desabalar-se de sua paz para nos seguir na
peneira em terras longínquas e inóspitas.
Meus queridos, tudo que é ruim pode piorar, e aquele
dia estava funestamente atípico. Realmente não havia
NADA nos lixões dos terrenos baldios. Era como se algum
outro catador houvesse passado por ali, momentos antes.
Bem, resolvemos então nos aventurar pela parte de trás
da tal empresa de papéis. Era um misto de matagal e
aterro. Havia chovido bem no dia anterior, e eu temi entrar
num lugar novo para mim, justamente quando ele
aparentava formar tanta lama. Mas avançamos, sempre
sem nada encontrar, com um olho nos caminhos e outro
no furioso Papita, sempre prestes a explodir.
Chegamos então a uma pequena ribanceira, da qual não
poderíamos descer sem nos sujarmos todos de barro. Era
preciso pular lá para baixo, para continuarmos nosso
avanço. Olhamos para a terra desnuda, molhada pela
chuva, e nos pareceu fácil, coisa de dois metros de altura,
para nós que pulávamos de até cinco, sem quebrar as
perninhas.
Eu e Renato cometemos então o principal erro do dia:
Pulamos ao mesmo tempo, cada qual numa direção. O
resultado foi surpreendente: Aquele amontoado de terra
era na verdade um lamaçal de aterro encharcado, um
amontoado tão fofo que, já no impacto, afundamos até a
cintura na lama.
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36
Pare um pouco para imaginar: crianças de onze anos,
corpos fracos, num lugar desconhecido, presas até a
cintura em lama movediça. Sem forças para sair, e pelo
contrário: Quanto mais força fazíamos, parecia que mais
afundávamos... Bateu a brisa do desespero, logo transfeita
em vendaval. Chorei, confesso que chorei.
Papita, do alto do barranco, apenas observava a cena.
Por isso chorei: Pensando naquela velocidade hipersônica
do medo, imaginei que ele, furioso, nos abandonaria ali,
longe das vistas de qualquer pessoa, para morrermos
como num maldito filme de meu herói, o também catador
e ladrão de ferro-velho Indiana Jones.
Mas Papita pulou – E pulou, estranhamente, num lugar
onde quase não afundou. Em seguida, aproximando-se
devagar, puxou as mãos de Renato, que a muito custo
conseguiu desprender-se da lama pegajosa. Após, foi a
minha vez. Consegui sair com grande penúria, mas um de
meus chinelos ficara preso lá no fundo da lama, numa
fundura que meus braços não alcançariam. O
inesperadamente generoso Papita, adiantando-se, enfiou
seus longos braços no lamaçal e retirou minha sandália.
Conseguimos por fim contornar aquele matagal, e sair
daquele lugar miasmático. Já na pista, totalmente sujos,
sem sequer uma grama de cobre ou alumínio nas mãos,
Papita cobrou o seu preço: Cada um de nós tomou uma
sequência de dez ou mais cascudos em cascata.
Bem, ficou barato: sempre está barato quando se
escapa andando sobre as próprias pernas. Estávamos até
agradecidos. E nunca mais chamamos Papita para nada...
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Capítulo 8
Ri por último quem ri de bolso cheio
As catanças de ferro-velho abarcavam, a partir de nosso
sub-bairro Jardim Nazareth ou Palha Seca (a “fronteira”
entre os bairros de Tribobó e Arsenal) diversos outros
bairros: No poder arcano da canela, alcançávamos Jockey
Club e Anaia, Capote e Arsenal, chegando até a Rio do Ouro
e Maria Paula, quando não Colubandê e Bairro Almerinda.
Era muito chão!
Naqueles finais da década de 80, o bairrismo não era
armado pelo tráfico como depois tornou-se, mas existia:
Os daqui não se misturavam com os de lá. Mesmo que os
de lá fossem os dali, da rua seguinte à sua...
Nessa época de “galeras” e entreveros, surgiu certa
feita aqui na Beira do Rio uma dupla de irmãos folgazões,
ou folgadaços mesmo. Metidos a bambas, vinham na
intenção de namoricar as meninas da área. Bem, as
NOSSAS meninas. Na época eu não estava realmente
interessado em namoros, mas a marra daqueles espertões
incomodava, tanto a mim quanto a muitos outros. Mais
fortes que eu e Renato, me lembro de uma feita em que,
em plena e nossa área, os sacanas nos intimidaram com
sinistras ameaças. Acuados, num tempo em que eu ainda
era um péssimo ou inútil boxeur de rua, colocamos a viola
no saco e ficamos quietinhos...
Eles vinham de uma área próxima, uma espécie de sub-
bairro a que chamávamos de “Buraco Quente”. Acontece
38
que este mesmo Buraco Quente era área fiel de nossas
coletas, pois havia lá um enorme lixão comunitário,
instalado numa espécie de cratera. E não é que foi numa
dessas andanças naquelas paragens que acabamos
descobrindo em que casa moravam os tais Romeus
valentões?
Tempo passou, e belo dia fomos nós nos abeirando da
casa deles, cuja cerca de arame farpado, já banguela,
coitada, fazia lado a um terreno baldio, coberto por moitas
e arbustos. Apenas batíamos aquele terreno em busca de
algo, inchados de inocência, quando, lá ao fundo do tal
terreno e fronteiriço à cerca da casa dos sacanas,
percebemos uma enorme caixa de ferro – um desses baús
de geladeiras antigas. Ao nos acercarmos com cuidado, a
falha dos valentinos foi descoberta: Os trouxas deixavam,
do lado DE FORA de seu quintal, um depósito de
reciclagens composto apenas de alumínio, cobre, chumbo
e metal, um depósito repleto. Alumínio já bem amassado,
fios de cobre já descascados ou queimados, com sabor de
mel.
Não era preciso dizer mais nada, e Renato nem tentou.
Apenas sorriu cinicamente; e Deus, como sinto falta
daquele sorriso!, eu entendi o que faríamos.
Nas semanas seguintes, aplicamos sobre aqueles
canalhinhas nossa velha e experimentada tática do morde-
e-assopra: A cada semana pegávamos uma pequena
“carga” das mercadorias, para que as vítimas não
sentissem o impacto.
A marra daqueles garotões, que depois acabaram
“expulsos” de nossa área pelos moleques maiores, nós a
39
consumimos nos sabores Chocolate e Flocos dos sorvetes
da Kibom, nossos preferidos...
O dono da padaria sorria quando entrávamos, sujos e
amarrotados, mas cheios de dinheiro de nosso suado
trabalho – e nossa justa & vingativa rapina!
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Capítulo 9
O sítio (mal-assombrado) de Seu Pedro
Alguns dos melhores dias da infância aqui no Jardim
Nazareth foram passados no Sítio do seu Pedro. O sítio era
na verdade de um japonês misterioso – do qual seu Pedro
era o caseiro. Ou semidono, pois o tal japonês quase nunca
aparecia.
No grande sítio, tomei o primeiro contato – não numa
gôndola de supermercado, não numa sacola de compras
de meu pai, mas pegando nas mãos, no próprio pé – com
diversas frutas como jambo, carambola, jabuticaba. Até
um pé de caqui havia, e curiosidades como uma árvore de
cortiça. Mas a principal “lavoura” ali eram as mangas:
Dezenas de pés, um carnaval, um tsunami, um apocalipse-
ragnarok-mahapralaya de tanta manga.
O sítio também possuía um equipamento esportivo
misterioso para todos nós àquela época: Uma quadra de
tênis, em saibro, e isso mais de década antes de Gustavo
Kuerten popularizar nos meios de informação o que era o
tênis, e, claro, o que era uma quadra de saibro.
Seu Pedro e sua família eram em geral simpáticos e
tolerantes – deixavam, a quem pedia com educação,
entrar no sítio. Havia regras básicas: Não podia quebrar
galhos das árvores, e nem arrancar frutas e deixar no chão
(pois limpar aquela imensidão era uma tortura, e
desperdiçar comida, como hoje, já era duro pecado
naquela época). O acesso livre dependia também da época
41
do ano e de que temporada/ano era aquele. Tinha
momentos em que não havia ainda mangas maduras, ou
sequer manga alguma, nos pés. Mas, nos melhores anos e
na alta temporada, já vi aquele velho senhor negro e
franzino, de fala mansa e pausada, abrir covas profundas
de uns quase dois metros de profundidade por dois de
largura e bem uns quatro de extensão – ou seja, suficiente
para sepultar quase um elefante! – apenas para jogar
mangas podres (uma tonelada? Duas? Três!?), pois não
havia o que fazer com tanta manga. Nem a população do
bairro dava conta.
Bem, independentemente de haver mangas e outras
frutas ali ou não, a molecada amava entrar no sítio e tentar
peneirar alguma coisa. Por vezes a solicitação de entrada
era negada, e então os mais afoitos não se faziam de
rogados, adentrando no sítio por um dos muitos pontos de
acesso “encobertos”.
Foi numa dessas abordagens ou penetrações não-
autorizadas que me vi, em companhia de Renato e mais
uns quase quinze garotos, dentro do sítio, onde entramos
lá pela extremidade oposta à daquela em que ficava a casa
de seu Pedro.
Ah, como o tal “seu” Ciro do “hospital dos malucos”
citado em capítulo anterior, seu Pedro também tinha sua
espingarda de sal, e miseravelmente um cachorro que, de
manso virava perdigueiro quando atiçado por seu dono.
Sinistro e opressor padrão!!! Assim, era preciso entrar no
sítio bem “na encolha”, e estar atento.
Ali estávamos todos embaixo de um pé de manga
espada que, temporão, tinha já suas frutas. A árvore ficava
42
em linha direta com a parte mais sinistra do sítio – Um
pequeno casebre abandonado, construído ao lado da tal
quadra de tênis. A casa era habitável, e não entendíamos
por que ficava vazia, até que um dia um dos moleques ali
daquela área – sim, a cada rua, poucos metros de distância,
havia uma “galera” mais ou menos independente e,
quando queria, hostil – nos informou que aquela casinha
era mal assombrada. Para uma criança, aquela informação
de mau agouro caía nas costas como uma jaca de
inquestionável certeza e medo...
A hora era quase a do almoço, por volta das 11 da
manhã, com o sol a pino. Foi quando o sexto sentido de
Renato se manifestou, com garbo e brilhantismo. Me
cutucando e a alguns outros moleques, ele apontava para
um enorme pé de tamarindo, que fazia sombra sobre parte
da quadra de saibro. É ridículo relatar isso e, acredite, foi
ridículo naquele próprio momento: O que vimos foi uma
sombra – sim, um ente perfeitamente translúcido –
segurando uma vara de bambu e cutucando a árvore,
como quem tranquilamente arrancasse tamarindos para
chupar.
Não é piada, nem invenção. Eu VI – foi a única vez em
minha vida que vi alguma manifestação do sobrenatural –
e olha que hoje e há muito tempo sou um crente
pentecostal, e alguns de nós veem com certa rotina coisas
do arco da velha... Mas não eu.
Aquela visão inacreditável, surpreendente, inoportuna,
cozida e fervida em nonsense foi apontada a um por um
dos moleques ali presentes. Todos viram. A sombra,
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impassível, continuava a lentamente mover aquele
bambu.
Após uns breves segundos de incredulidade, de tentar
divisar se aquilo era aquilo mesmo, a ficha caiu. O que se
seguiu foi a mais espetaculosa corrida com obstáculos que
o bairro Palha Seca já viu – e ele viu muitas!
Todos voamos na direção contrária à sombra, de
encontro à cerca de arame que nos daria acesso à salvação
que era a rua. A cerca, banguela, tinha um espaçamento
entre os fios de arame que permitia a uma criança ou
jovem não muito alto passar agachando-se – devagar, de
um a um, claro. Mas naquele momento, moleques
jogavam-se pela abertura como se fossem mísseis ou
torpedos, pouco se importando com os resultados. No
empurra-empurra desesperado – alguns, mais sensíveis,
gritavam de terror – muitos tentavam passar ao mesmo
tempo, embolando-se e lanhando-se nos arames da cerca.
Na minha vez, a pressa e um baita empurrão que levei
fizeram minha camiseta ganhar um belo rombo naqueles
arames...
Como disse, foi a única vez em minha vida que vi um
fantasma, ou demônio, ou um alienígena que seja, pois
como entender um diabo que, dentre o universo de coisas
passíveis de entreter um espírito, se preste a arrancar
tamarindos? Doravante e até a adolescência, jamais entrei
novamente naquele sítio sozinho. E, mesmo
acompanhado, evitava aquela casa mal-assombrada e
aquele pé de tamarindo como o cramunhão evita a cruz!
Anos depois, infelizmente o sítio foi vendido. O
comprador foi um jogador de futebol do Flamengo, o Luiz
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Alberto, que murou o sítio e o transformou num tipo de
complexo esportivo, alugando quadras para peladeiros de
fim de semana e fazendo festas para seus amigos.
Seu Pedro não ficou desamparado: Sua casinha e parte
do terreno lhe foram concedidas, justificadamente pelos
serviços prestados. E, neste momento em que escrevo, o
espaço foi novamente vendido, e agora um enorme
condomínio de apartamentos populares se ergue naquele
lugar, já prontos para a habitação. Os novos moradores
provavelmente jamais saberão de tudo o que já aconteceu
naquele terreno em que habitam...
*** *** *** ***
Um parágrafo para acrescentar um causo sobre aquele
lugar. A fama de mal-assombrado do tal sítio era de
conhecimento corrente de boa parte da população do
local. Durante a noite, a maior parte da rua que fazia frente
ao sítio mergulhava na escuridão, pois a iluminação pública
não chegava até ali. Em frente a este sítio, cabe dizer, havia
outro sítio menor, o Cariri, este murado. Ou seja: Por um
bom trajeto, aquele que ali passasse de noite teria de um
lado as muitas e sombrias árvores do sítio do seu Pedro, e
do outro, um inoportunamente longo e frio muro.
Nenhuma casa alcançável, nenhuma vida, nenhum refúgio
ou lâmpada de 60 watts. Era apavorante!
Certa noite, aproveitando-se da fama do lugar, numa
época em que não havia muita coisa pra se fazer, um
indivíduo – que hoje é um seríssimo pastor evangélico, o
Gilson – subiu numa das mangueiras do sítio que
margeavam a rua e, lá de cima, na mais profunda
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escuridão, balançava os galhos e emitia sinistros gritos, a
cada alma desafortunada que por ali passasse.
Muita coragem embolada com muita safadeza do então
jovem Gilson! Já na rua, era tanta correria que aquele chão
ficou compactado, de tanta patada de medroso em fuga!
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Capítulo 10
As doces mangas – e o muro –
do velho Lauro
Como eu disse, uma das mais doces atividades da idade,
figurada e literalmente, era apanhar frutas – dentro ou
fora da legalidade, pois à época a fronteira entre tais
picuinhas era muito sutil.
Em linhas paralelas, nosso pequeno sub-bairro era
formado por apenas quatro longas ruas. A primeira,
margeando o rio Alcântara, era a Manoel Bandeira, nosso
terno e frágil poeta. Em seguida vinha a central e principal,
honrando o grande Pastor Martin Luther King, e para cima
as outras duas.
Me lembro de certa feita em que eu e Renato fomos em
missão sigilosa até a última rua, que era pouco
movimentada. Havia um terreno desocupado, protegido
apenas por uma cerca de arame (ou seja: protegido pelo
vento...) e, dentro dele, jazia solitária e imensa uma
mangueira de manga espada. Ao lado do terreno ficava a
casa do proprietário, essa medievalmente murada: Era o
irmão Lauro, por sinal pai de uma menininha que foi minha
primeira paixão platônica.
Assim, vendo que o tempo era propício e as mangas
convidativas, lá fomos nós naquela manhã surrupiar
algumas delas. Eu e Renato já tínhamos certo know-how
na área: Na casa ao lado costumávamos roubar cajás... Rua
deserta e silenciosa, penetramos no minifúndio e
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principiamos a tacar paus e pedras naquelas alturas,
tentando derrubar algum favo daquele mel alaranjado,
rainha das frutas vinda da Índia.
Em meio da faina naquela dura lavoura, nem
percebemos quando o Lauro, um moreno com cabelos
lisos como um índio, adentrando o clube dos obesos,
“brotou” já dentro da cerca. O sexto sentido de Nato
falhara, e nossa captura era iminente!
– Moleques safados, vou pegar vocês, vem cá! – e o
brutamontes avançava, senhor de seu direito, afinal não
pedíramos para colher os frutos.
Geralmente Renato percebia a presença hostil e
imediatamente desabalava a correr em silêncio: Jamais
dizia sequer um “corre, Sammis”. Jamais! Eu que me
virasse. Ou ficasse de boi pras piranhas. Mas neste dia
ambos fomos pegos em perfeita surpresa, e corremos
juntos para a única escapatória: O muro em tijolos nus que
separava o terreno de Lauro da casa ao lado. Tal casa não
possuía portão e o melhor, por seu quintal podiam ser
acessadas duas ruas. Não era apenas a melhor rota de
fuga, mas a perfeita, criada por Deus para isso.
Corremos em direção ao muro e pulamos – juntos,
como símios habilitados em parkour, bem antes do
parkour ser “fundado” em França.
Éramos magricelas, mas o pedreiro que erguera aquele
muro falhara em algo: Assim que tocamos nossas mãos no
alto do muro, de forma perfeitamente síncrona, algo
divertidíssimo – ou triste no momento, mas hoje
divertidíssimo – aconteceu: O muro começou a tombar
com o nosso peso. Sim, nos agarramos no muro e ele
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“quebrou” quase ao meio. A sincronicidade dos moleques
do balacobaco naquele dia foi elevada a nível olímpico,
como de uma dupla de salto ornamental: Ainda no ar,
caindo para trás com o muro, entendemos imediatamente
que seríamos esmagados – nada que matasse, mas alguns
ossos poderiam se quebrar e a fuga seria frustrada. Assim,
em pleno ar, demos impulso com o pé de apoio no muro
que caía, para que nos livrássemos de seu raio de impacto.
Amigos, cai em pé no chão, seguido pelo esboroar-se do
muro, a coisa de apenas uns cinco centímetros de esmagar
meus pés. E os de Renato, que caíra à mesma distância.
Pronto, subíramos de nível e já éramos Ninjas da
Presepada.
Mas não era caso de comemorar o feito. Sem olhar para
trás, pulamos por sobre os tijolos e o cotôco de muro que
restara, enquanto o bom Lauro – poderia ter sido meu
sogro! – multiplicava seu ódio ao perceber o prejuízo com
o muro – muro que talvez ele mesmo tivesse erguido...
Aquela aventura não teve maiores consequências, pois
o tal Lauro, ainda que conhecesse meus pais,
aparentemente não me conhecia ou reconhecera, e nem a
Renato, senão a notícia teria chegado lá em casa, como
tantas chegaram, para alegria da vara de goiabeira e da
sandália Havaianas de minha mãe, minhas inimigas
figadais.
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Capítulo 11
A rapina bananal
Uma fruta de apelo universal estava entre as mais
cobiçadas pelos pequenos corsários de água doce da Beira
Rio: A banana.
A fruta, oriunda do sudeste asiático e que árabes,
portugueses e espanhóis ajudaram a espalhar pelo mundo,
dava com alguma abundância ao longo das margens do rio,
compondo partes da mata ciliar. O problema era que ela
crescia nos fundos das casas e barracos que margeavam o
Alcântara – ou seja, possuíam “dono”. Dura palavra!
E agora, como roubar uma fruta que era de difícil e o
pior, barulhenta colheita? Sim, pois além das pencas
estarem situadas a considerável altura, se conseguíssemos
cortar todo o cacho – subindo numa árvore paralela à
bananeira ou mesmo utilizando uma providencial escada –
não tínhamos, crianças que éramos, força nos braços para
segurar ou aparar aquela imensidão de bananas. E se
cortássemos o cacho, ou mesmo a bananeira inteira, e
deixássemos a carga simplesmente desabar no chão, o
barulho da queda daqueles reservatórios de potássio
sempre despertava os donos.
Desgraça pouca, reza o cliché, é sempre bobagem.
Tínhamos alguns agravantes. A casa cujos fundos eram
mais ricos em bananas – um verdadeiro bananal – certa
altura foi ocupada por moradores novos, desconhecidos.
Um casal sem filhos. O valete, viemos a saber depois, era
marinheiro.
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A descoberta de que a casa mudara de dono deu-se da
maneira mais desagradável possível: Ao lado desta casa,
dentre ela e outra, ficava um beco, um beco apartadíssimo,
claustrofóbico até, e que só permitia mesmo a passagem
de crianças. Aquela era nossa rota usual e mais confortável
para acessarmos “a beira do rio” de fato, de onde
seguíamos pelos fundos das casas catando ferro velho ou
vadiando à esmo.
Acontece que ninguém avisara ao marujo de que aquilo
era caminho comunitário. O resultado? Por duas vezes, ao
tranquilamente passar por ali, fazendo despreocupado
barulho nas muitas folhas caídas do bananal – veja, nem
íamos roubar bananas, que demoravam para ficar prontas
– fomos recepcionados a tiros, tiros de espingarda de
chumbinho. Malditas espingardas, onipresentes nos anos
oitenta!
Por sorte nunca fomos atingidos – ou o marujo-milico
era ruim de tiro, ou atirava para errar, buscando assustar
a molecada.
Aquilo era um agravante. Doravante tínhamos que usar
de toda a nossa felinidade, todo o nosso ninjitsu
(aprendido nos filmes da franquia American Ninja que
lotavam a Seção da Tarde) para passar por ali com o
máximo de silêncio possível.
Se passar já era ruim, imagine agora para roubar as
bananas! Mas você já ouviu aquele outro clichê ou ditado
popular que afirma que “a necessidade faz o sapo pular”?
Éramos os piratas titulares daquele rio, não seria um
anônimo marujo de água salgada, caído de paraquedas em
nossa favelinha, quem iria nos impedir.
52
Sabe-se lá quem foi o autor da façanha, o portador da
chama de tirocínio roubada dos deuses da rapina, mas uma
solução foi encontrada.
A ideia primava pela simplicidade, que é sempre a
marca, selo das ideias revolucionárias: Munidos de um
facão, entrávamos silenciosamente naquele bananal e,
sempre à moda dos ninjas ou dos samurais, peritos
maiores no manejo da espada, desferíamos um fulminante
golpe contra o tronco da bananeira. Aqui estava a
sabedoria: O golpe deveria abarcar menos da METADE do
tronco, de preferência apenas um terço de sua
circunferência.
Desferido o silencioso golpe, o espadachim fugia para
outro ponto: em geral do outro lado do rio, de cujas
margens, escondidos sob as moitas, aguardávamos os
poucos minutos para que a mágica surtisse efeito. E era
infalível: dentro de quatro a seis minutos, aquele talho,
aquela mágoa no frágil tronco da bananeira comprometia
o restante de sua estrutura e, sob o peso do cacho de
bananas, a arvorezinha tombava a partir do corte, sempre
com grande estrondo.
O estrondo, claro, despertava o marinheiro, aquele
colonizador moreno que viera feitoriar nossas terras livres.
O bruto abria a janelinha por onde costumava efetuar os
disparos, olhava para todo aquele mato compacto e, não
vendo ninguém, tomava por certo que alguma bananeira
tombara sozinha, o que não era assim muito impossível.
A paciência é uma virtude samurai, uma diretriz mestra
dos guerreiros orientais em quem nos inspirávamos.
Assim, muitos minutos aguardávamos, antes de atravessar
o rio e ir até o nosso cacho. Cortávamos então junto ao talo
aquele butim e, segurando um de cada lado daquele
53
pesado botijão de comida, melindrosamente saíamos
daquele campo minado.
Já do outro lado do rio, era hora de preparar as coisas
para livrarmo-nos de uma outra e tinhosa dificuldade: O
Pedágio de Dona Maria.
Enfiávamos aquele imenso cacho inteiro num desses
grandes sacos de farinha, de preferência duplo que era
para impedir os muitos curiosos – e alcaguetas – do bairro
de perceberem o que transportávamos. E, por cima,
colocávamos jornais e o principal: Latas, muitas latas.
Assim, para todos os efeitos, era ferro-velho o que
transportávamos naquele pesado saco. Avançávamos
então até a casa de algum dos meliantes, onde enfim
dividíamos o fruto da rapina.
Mas, voltando ao pedágio, era o seguinte: Residindo
pouco adiante do local do bananal, e bem na rua onde
devíamos passar para chegar às nossas casas, morava uma
idosa muito pitoresca, daquelas de marcar a história de um
lugar, para bem ou para mal. Era dona Maria, afeita ao
candomblé, mulher sem papas na língua e com quem, na
infância, aprendi a xingar, ao ouvir dia após dia ela
esbravejar toneladas de decibéis de impropérios do arco
da velha. Éramos vizinhos de fundos e, ainda pequeno,
sempre que eu era repreendido pelos palavrões que
vomitava como sendo “coisa feia pra um menino dizer”,
me defendia: “Dona Maria é velha e xinga, por que eu não
posso xingar?”
Além de brava e amedrontadora, dona Maria
costumava fiscalizar os moleques transeuntes – ou melhor,
fiscalizar as “bagagens”. Assim, se passássemos com
alguma bolsa de frutas ou algo que lhe chamasse a
atenção, ela se adiantava e, dona daquele trecho,
54
esbravejando com sua rouca voz de trovão ou taquara
rachada, tomava posse do pedágio, sempre farto para o
lado dela...
Assim, elaboramos a estratégia do saco de latas. E olha
que mesmo assim a velha ainda costumava dizer, com
aqueles olhos ao mesmo tempo esbugalhados e aquilinos,
nos fulminando por sobre o baixo muro de sua casa:
“Estranho isso aí hein... tanto moleque para carregar
um saco de lata...”
Saudosa dona Maria, matriarca de uma grande família
de outras matriarcas, mulheres guerreiras que criaram
seus filhos e filhas praticamente sozinhas. A velha não dava
mole pra ninguém!
55
Capítulo 12
Jamelões!
Nem só de frutas surrupiadas viviam os sobreviventes
da Beira Rio. Havia, no espaço entorno, alguns frutos “ao
ar livre”, em terrenos baldios ou na mata.
Mas era coisa misérrima, de abalar uma infância.
Recordo dois pés de ingá, dos quais o mais próximo dava
frutos do mais insosso dos sabores: low carb, sugar free,
zero açúcar. Hoje, faria sucesso, mas naqueles idos... O
outro, situado numa pequena ravina e ao lado de uma
nascente, esse sim dava doces bagas; mas eram sempre
poucas, para muitos esfaimados que circulavam por ali.
Outro signo da miséria com que a natura nos solapava
era o araçá. Eita arbustiva sofrida! Enquanto sua prima, a
goiabeira, é famosa por dar frutos às toneladas, os
mirrados pés de araçá espalhados pelos morros do
entorno davam de quando em vez (uma vez ao ano?)
alguns frutinhos. Dois, três num pé. Sim, ao menos eram
deliciosos.
Apenas uma frutinha tínhamos em abundância e livre
de latifundiários, despida de cercas, não vigiada por
cachorros ou espingardas de sal grosso: Os jamelões.
Ao contrário dos nativos ingá e araçá, o jamelão é
originário do sul/sudeste asiático, mais especificamente da
Índia, a mesma pátria ou mundo (pois a Índia é um mundo
à parte) que nos deu a manga. O jamelão, se você não
conhece, é fruta que dá em pencas, e também em pencas
56
ela possui nomes. Abra o peito e apare, segure a rajada
nomenclatural: Jambolão, jamborão, baguaçu, jalão, joão-
bolão, topin, manjelão, azeitona-preta, ameixa roxa, baga-
de-freira, oliveira, azeitona-roxa, brinco-de-viúva e ainda
guapê. E sabe-se lá quais nomes mais.
Aqui tínhamos uma ampla e plana área – por sinal
vizinha ao já citado sítio do seu Pedro, a que chamávamos
de “Sek” – sabe-se lá por quê. Bem, a Sek abrigava o campo
do Nazaré, famoso campo de peladas regional. Mas, de
futebol só fui gostar após os quatorze anos. Naquela
altura, eram os quase trinta (valei-me Deus!) pés de
jamelão que me solicitavam todas as mesuras. As maiores
daquelas árvores chegavam a mais de dez metros, e
impunham-se na paisagem, como gigantes – de quem nos
aproximávamos com um misto de amor e temor, como se
fossem totens.
Ah, quantas tardes dediquei a empoleirar-me com
Renato, Wilson e outros amigos por aqueles galhos, e
passar horas e horas colhendo o arroxeado pomo, e
papeando – jogando conversa fora com a repetitiva e
ampla frequência com que cuspíamos os caroços.
A cada ano, aguardávamos com sofreguidão a estação
da frutinha, e a comíamos até sofrer de prisão de ventre.
Sim, a fartura tinha um efeito colateral severo.
“Pelávamos” um pé até exauri-lo, como gafanhotos;
enquanto isso, outro chegava “no ponto” de colheita. Não
era fruta que se prestasse a comércio e armazenamento:
Guardada, rapidamente mudava de sabor, o que era
tolerado por muito poucos. Era fruta esculpida pelo Deus
dos moleques para ser comida no pé.
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Até hoje, quando vejo um pé de jamelão à beira duma
estrada – e há deles em beiras de estradas por todo o
estado do Rio de Janeiro, e todo o Brasil – sinto uma
melancolia feliz, e uma tristeza por não poder achegar-me.
De mais a mais, já não tenho preparo para escalar rudes
troncos, nem peso para arriscar a sorte sobre finos galhos.
Hoje, toda a região da Sek, que fica na rua Dalva Raposo,
foi ocupada por um condomínio, de estranho nome:
Atenas. A pátria da democracia nomeia uma usurpação
latifundiária que nos roubou nosso campo de anarquia,
nossa livre-lavoura de prazer e sustância.
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Capítulo 13
De quando fomos desafiar o famigerado
Lobão para um jogo de bolas de gude
Confesso uma vergonha: Nunca fui bom com atividades
ou brincadeiras manuais, e mesmo com esportes. Não me
interessava por soltar papagaio (que aqui chamamos de
cafifa); nunca aprendi direito a jogar bolinha de gude,
rodar pião, sequer jogar um bilboquê! De tal desacerto
nem eu sei o motivo. Talvez fosse, além de uma inabilidade
nata, preguiça em aprender.
De toda forma, a bola de gude era uma febre difícil de
ser vencida. Eu queria estar na rua, queria companhia, e
assim, mesmo sem ser um jogador, eu me dispunha
acompanhar outros jogadores em suas disputas, na falta
de ter algo melhor para fazer.
Renato era um grande “fominha” das bolinhas de vidro,
e um formidável jogador. A coisa nestas paragens era tão
evoluída que por vezes os melhores jogadores do bairro
agiam como no velho oeste: Um desafiava o outro, e
marcava hora e tudo para a troca de tiros, perdão, de
boladas de gude.
Foi numa noite húmida de verão que Renato me
chamou para acompanhá-lo até a casa de um elemento
que eu conhecia apenas de vista, até porque ele era mais
velho que nós, um mal encarado a quem chamavam de
Lobão – sim, como o cantor de rock, popular naqueles fins
da década de oitenta.
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Chegados em frente da casa do bruto, começamos a
chamar. Chama que chama e o tal Lobão, que de lobo
parecia não ter nada pois pelo visto era quase surdo, não
respondia. Continuamos a chamança, a chamação, o
chamado, a chamadeira ou que seja, e nada do lupino
pilantra dar as caras. Eu já queria ir embora, mas Renato,
fominha, queria jogo, queria duelo, queria aumentar sua
colença daquelas inúteis bolas de vidro.
Lobão morava num quintal de duas casinhas, quintal
cuja frente era protegida por um murete, coisa de um
metro, metro e vinte de altura, tijolos assentados sem
chapisco nem reboco.
Ninguém dava sinal de dentro da casinha, embora
pudéssemos ouvir até a TV ligada, e resolvemos nos
achegar à mureta para berrar com mais gosto. O que se
seguiu foi um processo contínuo e fulminante: Apenas
encostamos na mureta, para melhor chamar o tal lobo
surdo, e a maldita veio abaixo, desmontando-se como se
feita de pecinhas de Lego, como se o cimento na junção
dos tijolos fosse barro...
No mesmo instante, como se sacado de uma cartola de
Mandrake, o lobo pulou para fora da toca, furioso como
um diabo, xingando nossas mães, avós e irmãs.
Dessa vez não deu pra fugir, e olha que de minha parte
cheguei a fazer menção de disparar para casa. Ele sabia
onde morávamos e iria com certeza aparecer por lá.
E agora? Chora daqui, se desculpa dali, e a solução
imposta pelo grandão foi que reerguêssemos o muro: Ali
mesmo, naquele impropício momento, no escuro abafado
duma noite de verão.
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Nas praticamente duas horas seguintes, eu e Renato
fomos feitos de pedreiros, trôpegos, confusos, aloprados –
montando tijolos uns sobre os outros, sem massa nem
nada, apenas “no encaixe” como num jogo de Lego mesmo
– sob o olhar furioso do Lobo mau.
Mais uma vez, o prejuízo da trupe ficou barato: Se meus
pais fossem acionados, eu levaria mais uma coça. Não teve
jogatina naquela noite: Após concluirmos a cansativa
montagem, fomos honrados com um belo cascudo cada
um, e voltamos para casa em silêncio.
Amanhã é sempre um outro dia...
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Capítulo 14
Sobre nossos apelidos
Amigo leitor, percebo que até aqui eu não dei nota
sobre a origem de nossos apelidos. Vamos, pois, a isso.
Renato Cascão vem, claramente, do famoso
personagem de Maurício de Souza, membro da Turma da
Mônica e cuja marca distintiva era... a ojeriza por água, ou
melhor, por tomar banho. Mas a alcunha, como a maioria
delas, tinha muito de lenda e de maledicência: Renato
evitava o tal banho “quase” como qualquer moleque da
idade, mas eu o via tomar banho algumas vezes. Espere,
dirá você, como isso? Como afirmei anteriormente, a
família dele sobrevivia em grande carestia. Não havendo
banheiro no humilde barraco (a latrina ficava num cubículo
à parte), os banhos eram tomados no quintal, apanhando-
se a água de um galão que, dia e noite, transbordava
alimentado pelas águas “gratuitas” da Cedae, nossa
companhia estadual de águas e esgotos. Era banho de
canecão mesmo, na água gelada e ali, do lado de fora!
Assim, fica fácil para qualquer moleque descuidar do
asseio...
As muitas e diárias andanças numa terra que jamais vira
asfalto tinham seu efeito colateral: As pernas do pretinho
estavam sempre ruças, brancas de poeira, quando não de
frio nos momentos de invernia. E estava assim pintado o
quadro, ou melhor, o personagem de quadrinhos...
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Já o meu apelido, esse sim era bem merecido. O
“maluco” era devido a meus esporádicos ataques de fúria
– sim, segundo os psicólogos do tempo, causados por um
problema de disritmia. Nesses ataques eu quebrava coisas,
fazia pirraça, feria pessoas: ficava mesmo possesso como
um pequeno javali. Você pode imaginar que causei muitos
dissabores para meus pais, em alguns episódios – dos
poucos que me lembro – de que até hoje me envergonho.
É comum todo morador antigo que teve convívio
comigo ter alguma história para contar, e eu mesmo quase
que duvido quando as ouço. Por Deus, admiro meu pai por
não ter me desintegrado na pancada!!! Lamento pelo
leitor de pundonores, talvez pelos psicólogos, mas apanhei
bastante, e hoje julgo que foi até bem pouco, pelo volume
de encrencas que eu deflagrei.
Meu quadro melhorou na primeira adolescência, com
as gotinhas “amansa-leão” que a minha mãe me dava
depois do almoço, jogando-as no suco de maracujá (suco
que, por anos depois, evitei). E principalmente por visitas
regulares a um psicólogo da APAE. Aquelas conversas,
somadas ao tempo, panaceia de tudo, me mudaram.
Mas, na infância, minha fama de “maluco”, embora
sempre exagerada, era corrente. O preconceito que sofria
aqui e ali, mesmo e covardemente por parte de adultos, foi
algo que me marcou, mas cujo relato, nestas memórias de
tom humorístico, é melhor evitar, amigo leitor.
Feitas as apresentações, embora quase já em meados
do livro, bem se entende que a vida unisse tais párias – o
“mais pobre” da rua e o “maluco” da rua – na celebração
de algumas peripécias...
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Capítulo 15
O Triciclo dos Alucinados
Bem no início de nossa estranha amizade, me lembro
de que o avô de Renato ainda era vivo.
O quintal onde moravam era composto pela casinha
desse avô, seu Cândio (provavelmente “Cândido”), e sua
esposa, dona Conceição, e aos fundos ficava o barraco da
família de Renato.
Na frente, havia uma pequena birosca – Uma barraca,
como chamamos aqui, que é na verdade uma minúscula
venda dedicada fundamentalmente ao comércio de
destilados (cachaça). No tempo eu era bem pequeno, mas
uma memória que guardo era do coco em conserva:
Pedaços de coco curtidos numa espécie de salmoura, que
eram vendidos a alguns centavos cada porção. Eram
gostosos!
Foi ali naquela birosca, ainda na infância, que Renato
iniciou suas aventuras em algo que, anos depois, se
tornaria um vício e lhe custaria a vida: O consumo de
bebidas alcóolicas.
Mas deixemos de lado as rudezas da vida, e vamos ao
pitoresco.
Esse seu Cândio, homem negro com traços que
lembravam de muito longe o ator Grande Otelo, era
cadeirante, em decorrência das pernas amputadas. O
velho possuía uma estranhíssima cadeira de rodas: Era na
verdade um tipo de triciclo, com uma manivela ligada a um
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eixo de pedais como de uma bicicleta, adaptada para ser
movida com as mãos. Assim, forçando aquela manivela, o
velho podia mover a cadeira-triciclo, ganhando alguma
autonomia.
No objetivo de comprar mercadorias para sua venda, e
também apanhar algumas doações que os comerciantes
do CEASA lhe forneciam, seu Cândio costumava ir até o
CEASA de São Gonçalo, que ficava a coisa de uns cinco
quilômetros de nosso bairro. De ônibus são apenas dez
minutos. Mas, na força da canela, era duríssima a
caminhada! Pois o velhote ia naquele triciclo, sendo quase
sempre empurrado ou por Volnei, irmão mais velho de
Renato, ou pelo próprio. Numa dessas idas ao CEASA (que
eu não tinha a menor ideia do que e onde era), fui
convidado a juntar-me à expedição. Quem sabe não foi aí
que surgiu ou sedimentou-se nossa dupla expedicionária
canelar? Confesso que não me lembro.
E lá fomos nós, para uma distância que eu jamais havia
percorrido a pé, avançando pela perigosa beira da pista ou
estrada.
Na volta, já exaurido, participei de algo que era normal
de ocorrer, segundo Renato, quando ele saía assim com o
avô: Tendo chegado na altura do que hoje é a Honda
Motos, naquela pequena ladeira que vai dar onde
atualmente é o Instituto Médico Legal e o posto da Polícia
Rodoviária de Tribobó, Renato, no que o segui, pendurou-
se na parte de trás do triciclo (sim, havia um pedestal
aparentemente para isso!), e lá fomos nós, descendo a
toda numa única cadeira de rodas, três pessoas: Duas
crianças e um senhor de quase setenta anos!
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Imagine a cena, amigo leitor: Você, pacato citadino
passando de automóvel ou ônibus, avançando
sorumbático para seu trabalho ou estudo, refém de mil
horários e sistemas, e vendo do livre lado de fora uma
sinistra cadeira de rodas descendo a grande, insana
velocidade asfalto abaixo, com um velhinho amputado
como “piloto” e duas crianças de carona!!! Era a vida loka
ainda no seu modo 1.0...
Pouco tempo depois, seu Cândio infelizmente veio a
falecer, e a vendinha foi fechada.
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Capítulo 16
Renato e seu cachorro Bugui
Durante longo tempo de nossas infâncias, Renato
possuiu um cachorro – Bugui era o nome dele. Bem, todo
mundo tinha ou teve ou tem um cachorro, mas aquele ali
era diferenciado, lotado de singularidades.
Saíamos sozinhos em zigue-e-zague, algumas vezes por
quilômetros catando reciclagens aqui e ali, entrecruzando
ruas, matagais e levantando poeira em três, quatro bairros
diferentes, e quando menos esperávamos, Bugui estava
atrás de nós. Ou melhor, de Renato.
Amigos, ainda hoje eu só posso atribuir aquilo à esfera
do sobrenatural: Como seguir um rastro de cheiro por
quilômetros, de ponto em ponto, até chegar ao seu dono?
Isso era constante, a um nível em que eu chegava a dizer,
não importa em que cafundó estivéssemos, fosse asfalto,
chão ou mato: “Daqui a pouco Bugui aparece”. E em
minutos o cão brotava, como se teleportado – sem dar
sinal de sua presença silenciosa, que só por acaso
notávamos.
Aquele vira-latas, negro com faixas brancas e amarelas
no peito e focinho, com o couro aqui e ali já marcado pelas
agruras da vida, não latia em momento algum. Também
não era afável; a relação deles não envolvia carinho
baseado em toque, como é o ordinário de acontecer entre
um animal e seu dono.
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Eu não entendia aquilo, eu miseravelmente não
entendia aquilo, pois sempre fui um desavergonhado
abraçador de animais. Pelo contrário, aquela era uma
relação rude: O dono por vezes até lhe batia para afugentá-
lo, e o cão não dava demonstrações de alegria ou
contrariedade: era impassível, fizesse o que fizesse,
sofresse o que fosse. Que tipo de relação estóica era
aquela? Aqueles dois entes espartanos, acostumados aos
cardos e abrolhos da vida, que jamais davam
demonstrações mais visíveis de amor um pelo outro –
como se atraíam naquele nível sobrenatural?
Sempre acreditei que aquele cachorro possuía um elo
telepático com o dono. Dono que mais o enxotava do que
qualquer outra coisa. “Não trate o cachorro assim”, eu
repetia. “Ele não liga”, ouvia em eco.
Para que você tenha uma perfeita ideia, quando
brincávamos de pique-esconde na rua, a presença de
Renato era denunciada pelo cachorro – que insistia em
segui-lo para lá e para cá. Ninguém se escondia perto de
Nato, pois o cachorro denunciaria a presença do dono e
possivelmente de mais alguém naquele ponto...
Quando Bugui morreu, eu, que talvez jamais o tocara –
pois ele não era desses, ele não era do comum dos
cachorros – senti um baque que não podia entender. O
estranhamento de alguma forma nos vinculara.
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Capítulo 17
Volnei Peito-de-Aço
Como relatei, Renato tinha quatro irmãos. O mais velho
deles era o Volnei. Lembro de Volnei pelo peitoral largo –
provavelmente pela atividade de tirar, no poder da pá,
areia do rio para vender, atividade por sinal praticada por
muitos moradores do local, como já relatei. E na qual até
eu me aventurei, embora meus músculos imediatamente
dessem alerta de que não podiam com aquilo.
O rosto afilado, como se achatado dos lados. Sempre de
poucas palavras, trabalhador, pacífico. Vou contar um
causo envolvendo o “bruto”.
Como relatei no início, nossa região é marcada pela
presença do rio: do lado de cá as casas, do lado de lá era
apenas o “mato”, por um imenso trecho, sendo a presença
humana mais próxima do lado de lá, o tal hospital
psiquiátrico.
Nas décadas de 80 e 90, o balonismo, o triste e perigoso
balonismo, corria solto, pois ainda não era (e agora, é?)
combatido pelas autoridades. Assim, eram muitos os
festivais de balões, inclusive um aqui próximo, o Festival
do Saldanha.
Muitos balões, principalmente nos finais de semana ou
na segunda feira pela manhã, caíam no nosso morro, uma
área então inacessível por carros e mesmo motos. Assim,
as levas de vadios que ainda hoje saem em carreata e
motociata atrás dos balões, para recuperá-los e reutilizá-
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los – ou apenas pelo prazer da “caça” – tinham grande
dificuldade de apanhar os balões que aqui caíam.
Dificuldade essa que não nos afligia: O terreno era nosso
conhecido, e os balões, ah, nós mesmos os apanhávamos
e relançávamos ao ar, em ocasião oportuna.
Não tínhamos dinheiro para comprar (ou desperdiçar
em) sequer parafina para as buchas dos balões. E sabe
como resolvíamos o problema? De forma sustentável, e
aqui também há pioneirismo: Íamos a um trecho do rio
chamado de “Ponte Caída” – outro dos lugares fortes do
bairro, lugar de mortes e histórias – e raspávamos a sobra
das muitas e muitas velas que os adeptos da macumbaria,
religiões de matriz afro e wicca que fossem, deixavam
queimar para suas entidades. Que horror, você dirá.
Sortilégio! Sim, era com temor que o fazíamos, em geral
arrastados pelo exemplo de algum moleque mais ousado.
Raspávamos e ensacávamos ecumenicamente toda aquela
parafina que fora destinada sabe-se lá para qual força, seja
anjo, Gaia, deus ou demônio, e lá íamos fazer o nosso
próprio “festival”: Em geral três ou quatro balões de
tamanho pequeno a médio, cujo lançamento reunia gente,
principalmente a molecada, como se fosse inauguração de
creche pública.
Bem, acontece que, numa dessas capturas de balão no
morro, os moleques da área pegaram um imenso, com
bandeira e tudo. Após dobrá-lo cuidadosamente, vieram
descendo do morro, para atravessar o rio em direção a
nossa favelinha. Perceberam então alguns homens – sim,
todos adultos – estranhos observando sua aproximação,
colocados bem no ponto onde se dava nossa travessia.
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Além daquele trecho, não havia muita opção de atravessar
o rio sem ter que se molhar. E, de mais a mais, a área era
nossa, o que temeríamos?
Ao chegarmos, os cidadãos de bem simplesmente
disseram que aquele balão era deles. Retrucamos: “Não
levem a mal não, mas fomos nós que pegamos. Ele agora
é nosso”.
Sem muita cerimônia, e sem vontade de prosseguir nos
debates, um dos homens simplesmente levantou a camisa
e mostrou uma arma, no que foi seguido por um outro
daquele bando. Com a força matadora de tal argumento,
fomos filosoficamente vencidos na contenda e
entregamos o balão aos pilantras, que entraram em seus
dois carros e partiram com nosso butim.
Amigos, as forças do mal trabalham de forma
misteriosa, e obedecendo a algum sinistro ciclo. Quinze
dias depois, num outro final de semana de céu repleto de
balões, eis que outro dos bitelos caiu em nosso caldeirão,
em “nosso” morro. A molecada, composta de alguns de
minha idade como Renato, e da geração dois a quatro anos
mais velha, como Volnei, avançou célere para impedir que
o balãozão em queda, ao pousar e tombar sobre si mesmo,
pegasse fogo.
A muito custo e pagando o tributo de muita pele
arranhada nas lânguidas lâminas de mato – um trecho do
morro era famoso por sua “lavoura” do perigoso capim-
navalha – o balão foi apanhado, e cuidadosamente
dobrado. Aquele sim iria para o depósito comunitário!
Descendo do morro em direção ao ponto de travessia,
eis que alguém soltou, no meio da patota:
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– Ei ei, olha aquele carro lá, aquele Passat branco! São
os caras que tomaram nosso balão no outro dia!
A percepção de que os mesmos calhordas estavam ali,
no mesmo ponto, comodamente esperando que lhes
trouxéssemos, já dobrado e desmontado, o balão, encheu
a todos de fúria. Um dos rapazes, não me lembro se Tonho,
teve uma ideia, que prontamente comunicou aos demais.
Os moleques continuaram sua aproximação, até certo
ponto. Depois estacaram. Os caça-balões (gente, tanta
mulher no mundo e aqueles homens barbados caçando
balões!), percebendo o impasse, gritaram:
- Ei moleques! Tragam o nosso balão! Bora!
Era aquilo que Tonho queria ouvir. Apanhando o grande
embrulho ou trouxa que era o balão dobrado, gritou de
volta:
– Esse balão aqui? Esse balão é de vocês também?
– Sim, é nosso sim, nós que o soltamos! Pode trazer!
– Se esse balão não é nosso, esse balão não é de
ninguém, seus otários!
Em seguida Tonho, cheio de cerimônia, como se fosse
um xamã realizando um ritual, ergueu o grande embrulho
sobre a cabeça e despedaçou todo o balão, com uma fúria
teatral, enquanto a galera, zoadora que era, urrava num
delírio animalesco!
A reação daqueles adultos foi a menos adulta possível.
Pior, foi desumana, diabólica: Sacando suas armas, fizeram
fogo, fogo contra crianças e adolescentes, fogo por causa
de um amontoado de papel colado.
Como disse, boa parte do morro, inclusive aquela onde
os moleques estavam, era coberta por vegetação de
72
cerrado, capim de baixo e médio porte e alguns arbustos.
Assim, era “campo aberto” para aqueles diabos treinarem
tiro-ao-alvo.
A debandada foi geral, cada um vazou para um lado! E
toma pipoco, toma tiro cantando no chão. Foi então que o
sobrenatural de almeida se manifestou: Volnei,
desesperado, desceu por uma ravina correndo como um
cavalo ou um gambá em telhado de zinco quente, cabeça
baixa como se para protegê-la ou concentrar forças na
corrida. Não dava mesmo tempo de olhar pra nada!
Só que, camuflada pelo capim alto, havia uma cerca –
uma cerca de arame farpado. Amigos, Volnei, já em vias de
bater o recorde dos 200 metros rasos, chocou-se com todo
aquele peitoral contra a cerca... E seguiu em frente,
desabalado em seu desespero, aparentemente sem
sequer perceber que acabara de arrebentar ou fazer soltar
de suas presilhas três fios de arame farpado, como se fosse
um mamute.
Nem todos vocês terão a dimensão de um feito desses.
Deixe-me ajudar a esclarecer: Por três vezes eu também já
me choquei com cercas de arame “sem ver”. E sem
ultrapassá-las, claro. Em todas eu também estava
correndo. Numa delas, eu descia de uma íngreme
ribanceira, onde subira para fotografar paisagens – uma já
perdida paixão de adolescência. Passara agachado pela tal
cerca, mas na volta, esquecido do embaraço aramado e
temeroso de descer devagar e vir a quebrar minha
preciosa maquininha Zenit “semiprofissional”, resolvi
descer a ribanceira correndo, pois por incrível que pareça
73
a velocidade acaba favorecendo a aderência ao terreno. Só
faltou mesmo foi acertar o plano com a dona cerca...
E nela bati com toda a força, sendo imediatamente
jogado para trás, com furos numa das mãos e na barriga.
Não consegui romper nem um fio do arame, e Volnei levou
três...
Mas fique tranquilo: Graças a Deus ninguém ficou ferido
por aqueles disparos.
Deixe-me finalizar com outra de Volnei. Ainda hoje
temos as garrafas (cascos) de vidro da Coca-Cola.
Antigamente – e por um longo antigamente – só havia o
tradicional casco de um litro. Os mais velhos irão se
lembrar que aquela garrafa possuía o vidro mais grosso do
mercado: No fundo chegava a um centímetro de puro
vidro.
Pois, numa das andanças pela beira do rio, margeando
o fundo das casas e barracos, Volnei – que só andava
descalço, o bruto, assim como Renato costumava fazer –
pisou sem querer bem no meio de uma garrafa de Coca-
Cola. A garrafa foi esmigalhada e Volnei, incólume como
um Aquiles, seguiu sua marcha.
Qualquer outro teria levado trinta pontos e deixado as
partidas de pelada no campinho do morro para sempre...
74
Capítulo 18
Os caronistas
Um dos grandes prazeres de minha infância de
diabruras era pegar carona. Mas, como assim? O lance era
o seguinte: Qualquer caminhão que passasse pelo bairro,
na época todo feito, todo trabalhado em esburacadas ruas
de chão e terra socada, era um convite, um chamariz
tocado à diesel, um poleiro convidando os frangos que
éramos.
A melhor das caronas era a usufruída nos caminhões de
pipa d’água: Sua carga balouçante e pesada lhes impedia
de andarem muito rápido, e somado a isso o caminhão
tinha para-choques e poleiros como que feitos
especialmente para que alguém neles se pendurasse.
Coisa de design e ergometria, fui aprender anos depois. Ou
não. Bem, o importante era a diversão.
E quando um caminhão vinha em nossa direção,
enquanto saracoteávamos tranquilamente pela rua, e ao
passar por nós víamos que já havia um ou mais moleques
pendurados na traseira? Ohh! Aquilo era tomado na conta
dos ultrajes, afinal ninguém poderia dar uma festa sem nos
convidar. E lá íamos nós também.
Havia mesmo uma apurada técnica para escaparmos
das vistas dos motoristas e ajudantes, alguns já tarimbados
em lidar com aquilo. Passando pelo caminhão,
continuávamos em frente, jamais observando-o
diretamente ou demonstrando qualquer agitação. Alguns
75
passos adiante, do canto da rua andávamos para o centro
da mesma, até atingir o delicioso “ponto cego”,
centralizados bem atrás do caminhão e ficando invisíveis
aos espelhos retrovisores. Neste momento dávamos meia-
volta e literalmente voávamos em disparada, para agarrar
nas ferragens.
Outra carona muito praticada era a realizada nas portas
dos ônibus. Naqueles tempos, os ônibus possuíam um
balaústre (espécie de apoio ou corrimão) para o lado DE
FORA das portas – o que nos modelos posteriores foi
sabiamente alterado, ficando agora do lado de dentro das
mesmas, e sendo expostos apenas quando as portas se
abrem.
Pois bem, aquelas duas “asas” para fora dos ônibus
eram um convite para nos agarrarmos ali, equilibrando os
pés nos sopés das portas. Íamos para a loja da Popó
Piscinas, início da rua principal do bairro, e assim que o
ônibus entrava, lá íamos nós agarrados, curtindo o vento
nas fuças até a nossa rua. A Anarquia era deusa celebrada
naqueles idos e sofridos: alguns dos motoristas já nem
ligavam. Mas outros, furiosos, paravam o ônibus ou pior,
aceleravam à toda, sacolejando a sulapa de ferro e lata
para ver se desistíamos – ou caíamos, catapultados pelo
tremelique do navio pirata.
O ônibus que atendia ao bairro fazia a linha 17, da
empresa Icaraí (hoje ABC), que cumpria o trajeto entre os
bairros de Maria Paula a Jardim Catarina. Ainda hoje a linha
existe, mas agora passa por uma outra rua. As más línguas
dizem que eu ajudei a remover o ônibus de nosso bairro,
76
de tantos vidros que quebrei. Mas deixemos esses
comentários venenosos para os maledicentes.
Quanto às caronagens clandestinas nas portas dos
ônibus, eu e Renato éramos ali os talvez mais hábeis
praticantes desse esporte radical e suburbano – atletas de
ponta, campeões irreconhecidos dum esporte hoje
proscrito pelo duro julgamento da lei.
Bem, certa feita as coisas não saíram como o
corriqueiro. A atividade caronística tinha seus riscos, que
eram algo calculados: O ônibus, ainda que o motorista
acelerasse, geralmente parava de uma a quatro vezes
bairro adento, para descarregar passageiros, isso apenas
até chegar em nossa rua, situada no quarto “ponto”. Dali
em diante, por sinal, não havia iluminação pública, e ainda
por cima as casas escasseavam, num “vácuo” humano que
ia por quilômetros até o distante bairro de Maria Paula, já
na fronteira com o município de Niterói, onde tal linha de
ônibus tinha seu ponto final. Assim, de maneira alguma
poderíamos passar de nossa rua, sob risco de nos vermos,
em plena noite, “perdidos” e sozinhos bem longe de casa.
A boa etiqueta recomendava que descêssemos ao
menos na segunda parada, por via das dúvidas. Pois vai
que ninguém descesse nas seguintes?
Mas nessa noite fatídica, após apanharmos nossa
democrática condução, notamos que o motorista já
iniciara a acelerar desde o primeiro ponto. Passou um
ponto e ninguém descera, outro e nada... Chegamos no
terceiro e igualmente ninguém puxou a “cigarra”, a
campainha para descer do veículo. Eu e Renato ficamos
preocupados. Enquanto aproximava-se de nosso limite, o
77
ponto que dava para nossa “rua”, notamos que o miserável
acelerava ainda mais – talvez já nos conhecesse! Vendo
que ninguém iria descer, que o carroção tremia em
solavancos cada vez maiores, e que acabaríamos lá em
Maria Paula ou coisa pior, Renato, meu sinistro mestre,
nãos se fez de rogado: Pulou dentro de uma fossa de
esgotos que margeava certo trecho da rua! Enquanto
avançava agarrado com força àquela porta, ainda pude ver
o bitelão se levantando da lama, todo “cagado”. Mesmo
em desgraça, encontrei tempo de gargalhar e gritar,
caçoando do “espertalhão medroso”, que confirmava a
fama de “Cascão”!
Entretanto, poucos metros adiante era o limite, a linha
vermelha entre a civilização e o breu total. Tentei pensar o
mais rápido que pude, ao ver que naquele último ponto
ninguém desceria mesmo, e o satanáquia do motorista só
fazia acelerar. Foi só então que me ocorreu que não havia
mais fossas de esgoto. Ou moitas e matagais. Era apenas
chão. Chão duro, compactado, coberto de esfoliante
cascalho. Agora em mortal desespero, qual Ícaro de
desfeitas asas, foi naquele chão que me joguei.
Não me lembro bem como foi o impacto. Bem, nem
bem, nem mal. Testemunhas dizem que capotei pelo chão
como um dublê de filmes de ação. Como de nada recordo,
devo ter desmaiado na primeira pancada. O resto foi por
conta e divertimento da lei da gravidade...
Acordei com algumas pessoas sobre mim, me
abanando. Uma, a irmã de Renato, Rosana, correu
imediatamente pata avisar meus pais – o que me fez tentar
levantar-me para detê-la, possuído de ódio e medo, pois
78
eu tomaria mais uma coça, uma surra homérica! Ela não se
comoveu, que não era disso, nem eu tive forças: e lá
vieram meus pais. Jogado nos bancos de um Fusca ou
Brasília, fui levado às pressas até um hospital para o raio-x
rotineiro. Nada quebrara, por sorte.
Nos dias seguintes, aquele de quem ri, o que se jogara
na maciez pútrida de uma vala, me zoou como a um asno,
dizendo que eu preferira me jogar no chão duro e
“apagara” como um pavão ou heroína de novela das sete.
E eu aprendera mais uma lição de meu mestre de
presepadas...
79
Capítulo 19
Vamos falar sobre etnia
Filho de um paranaense de Arapongas com uma mineira
de Itanhomi que, um a trabalho e outra a passeio, no Rio
de Janeiro se encontraram e, fulminados pelo terrorista
Cupido, num insosso e depauperado subúrbio gonçalense
resolveram fundar família, fui um menino branco criado
fundamentalmente entre negros.
Meus pais, pela graça de Deus, assustadoramente não
demonstravam traços perceptíveis do racismo deslavado
ou sequer do quase onipresente racismo estrutural que,
como um verme, trafega nos intestinos de nossa
sociedade. Essa indiferenciação de pessoas, fosse qual
fosse sua pele, foi imediatamente passada a mim e a
minhas irmãs. Meus amigos, colegas, seus pais, até meus
desafetos, negros em sua grande maioria, me fizeram
quem sou, definiram meu modo de ser, e nem posso
imaginar ter sido criado numa realidade diferente. Tenho
um imenso orgulho de tudo o que vivi, de todos eles, e este
livro é um dos braços ou frutos desse orgulho.
Se sofri o chamado “racismo reverso” (que por sinal não
existe, mas isso é uma outra conversa), ou melhor, se fui
acossado por ser “branco”? Sim, boas vezes. E devolvi
racismo com racismo, invertendo os impropérios: A cada
“branco vela”, ou “vela de macumba” eu lançava um
“picolé de carvão” ou coisa parecida. Sim, hoje tudo muito
feio, enquadrado no código penal. Mas aquelas ofensas
80
entre moleques (e meninas), aqueles tapas verbais
terminavam como as ofensas baseadas em tapas físicos:
No dia seguinte, ou tardar numa semana, tudo havia
passado.
Antes que eu pudesse compreender todas as vantagens
indevidas que a minha cor, que não escolhi, me concedia e
concederia enquanto eu vivesse – às custas do sangue, do
suor e das oportunidades roubadas de meus irmãos negros
– sim, aqueles negros por cuja amizade eu optei e a cujo
círculo eu chorei para dele pertencer, para ser entre eles
aceito – uma outra e divertida “vantagem”, essa mais
condizente com este livro de humor, foi muito explorada
pela malandragem beirarriense. Notadamente, claro, por
meu mestre-de-ofícios, o Renato.
O caso era que, em nossa Beira Rio, havia já àquela
altura dos anos oitenta algumas famílias de nordestinos.
Os nordestinos, gente humilde e trabalhadora, fosse por
inadequação, temor ou timidez, não era de se misturar
com os demais comunitários. Viviam suas vidas entre o
trabalho e o lar, e reuniam-se apenas entre eles mesmos.
Algumas dessas reuniões corriqueiras transcorriam
durante os aniversários, principalmente os infantis. Bem,
se não conheciam ou tinham desenvolvido amizade ainda
com quase ninguém do bairro, era comum que suas festas
reunissem apenas outros nordestinos: tanto próximos
quanto distantes, os ao mesmo tempo humildes mas
festivos nordestinos celebravam seus bons momentos com
fartura em comes e bebes.
Comes e bebes: Pode haver, para moleques de rua,
expressão mais atratora? Mas, como entrar numa festa em
81
que não se fora convidado? Tentávamos como podíamos,
como joões-sem-braço, na base do cerca-lourenço,
devagar e sempre, ou mesmo na marra, entrando de
bonde. Não importava o método, o resultado era o
mesmo: Todos aqueles “pretinhos” eram imediatamente
identificados, claro, como penetras, como bicões naquelas
festas de nordestinos brancos.
O ocorrido numa ocasião em que entráramos numa das
festinhas despertou a atenção do malicioso Renato: Dos
cinco bicões que se intrometeram naquele festim, quatro
foram expulsos; mas eu, branco, fui deixado incólume. Não
era racismo: Eu simplesmente fora confundido com o filho
de um deles.
Chamado ao portão, fui instado (bem, talvez ameaçado)
por Renato e demais a apanhar guloseimas e salgadinhos
dentro da festa e trazer para fora, para a partilha do pão
com meus irmãos de destino. Funcionou.
E assim, doravante, eu me tornei o agente infiltrado
oficial da Beira Rio: O falso nordestino que era arroz-de-
festa, sempre presente em todas. “Você é filho de quem
mesmo?” “Da Francisca, da Francisca”, eu dizia, mesmo
sem conhecer Francisca alguma.
Um dia o engodo caiu por terra: Eu fora finalmente
identificado como o “filho de dona Lia, uma que mora ali,
assim, assim”; como não-nordestino e principalmente,
como não-convidado, as portas, não sem justiça passaram
a se fechar, para decepção de meia rua...
E de mais a mais eu, sempre muito tímido, já estava
mesmo farto daquele constrangimento, e daquele peso
82
de, ainda tão jovem, ser o responsável, o arrimo, pela
alimentação de tantas bocas!
83
Capítulo 20
Casemiro, O Profeta
Impossível coordenar no mesmo período os termos
Jardim Nazaré e catar ferro-velho sem elencar o terceiro
elemento que completa a equação: Profeta.
Seu nome, ao que consta, era Casemiro. Possuía um
ferro-velho em sua casa, na rua principal do bairro.
Quando o conheci, era já um ermitão. Meus pais diziam
que tivera esposa, que aparentemente abandonara o
coitado.
Era homem já pelos seus 60 ou mais (ou menos, que a
vida trata a cada um com um rigor diferente), senhor de
suas rugas e verrugas. Seu cabelo, alvo e sempre
desgrenhado, lhe alcançava quase os ombros; seus trajes
completavam o arquétipo do eremita: Shortões ou calças
puídos ao máximo, cheios de reparos aparentes, de
costura desleixada e cores indefiníveis, dado o encardido.
Suas camisas seguiam o mesmo script. A barba não grande,
mas sempre por fazer, era o arremate, a cereja do bolo.
Aquele morador dum bairro suburbano de São Gonçalo
bem que poderia ser confundido com um elemento
antisocial (nossa língua imensa tem até um nome feio para
isso: misantropo) morando numa gruta ou caverna no
agreste do país.
Fato que contribuía para aumentar a aura de mistério
que, ao menos para as crianças da época, o envolvia:
Quando eu lhe perguntava por que ele era chamado de
84
Profeta, o desconjuntado fazia uma cara de pensador
profundo, e dizia:
– Você não ia entender, garoto...
– Mas, diga, diga que eu entendo sim, seu Profeta.
– Garoto, isso está muito além de sua mente de criança.
Sabe, eu vejo mundos...
– Mundos??!!! Caramba!!! Fale sobre esses mundos.
– Esqueça isso, moleque, você é muito jovem para
entender. São mistérios...
Por incrível que pareça, este diálogo se repetiu algumas
boas vezes, sempre com o mesmo desenlace inconclusivo.
E vez após vez o diabrete da curiosidade plantava seu
feijão mágico em minhas terras férteis.
Pois bem, as primeiras experiências de mercar
reciclagem de todos os moleques do bairro começaram
com Profeta – ainda que, depois, fôssemos migrando para
ferros-velhos mais distantes, mas que em compensação
pagavam melhor. Antecipando-se aos movimentos
feministas de igualdade laboral, até meninas se
apresentavam naquele entreposto para vender ferragens
e garrafas!
Recordo de que era comum na época catarmos ferro e
latas principalmente. Essas hodiernas embalagens
plásticas dos óleos de soja, ou as latinhas com partes de
papelão de alguns leites em pó inexistiam: Era tudo tecido
na mais pura lata. Assim, era bem fácil acumular boa
quantidade do (já àquela época) desvalorizado material. E,
como dito nalgum lugar, não havia coleta de lixo pelos
despudorados poderes públicos: A cada esquina e meia
havia um lixãozinho a céu aberto.
Renato Cascão e Sammy Maluco - Uma dupla do balacobaco - Sammis Reachers
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Renato Cascão e Sammy Maluco - Uma dupla do balacobaco - Sammis Reachers

  • 1. 1
  • 3. 3 Sammis Reachers Renato Cascão & Sammy Maluco Uma dupla do balacobaco
  • 4. 4 Copyright ©2021 Sammis Reachers Ilustrações de Franciliudo G. Freitas – Studio Lin Ilustra ISBN: 978-65-00-32330-6
  • 5. 5 “É melhor escrever sobre o riso do que sobre a lágrima. Porque o riso é próprio do homem.” Rabelais
  • 6. 6
  • 7. 7 Sumário Apresentação.....................................................................07 Capítulo 1: Situando os quiprocós...................................10 Capítulo 2: Um assalto à horta do hospício ...................14 Capítulo 3: Sexto Sentido..................................................18 Capítulo 4: Sobre paus, pedras e sopapos ....................21 Capítulo 5: A fundação do MMA numa comuna gonçalense.........................................................................24 Capítulo 6: Meganha, raça do cão ................................28 Capítulo 7: Papita e o atoleiro .........................................31 Capítulo 8: Ri por último quem ri de bolso cheio ..........36 Capítulo 9: O sítio mal-assombrado de Seu Pedro.......39 Capítulo 10: As doces mangas – e o muro – do velho Lauro ....................................................................................45 Capítulo 11: A rapina bananal.........................................49 Capítulo 12: Jamelões!......................................................54 Capítulo 13: De quando fomos desafiar o famigerado Lobão para um jogo de bolas de gude .........................57 Capítulo 14: Sobre nossos apelidos.................................60 Capítulo 15: O Triciclo dos Alucinados...........................62 Capítulo 16: Renato e seu cachorro Bugui.....................65 Capítulo 17: Volnei Peito-de-Aço....................................67 Capítulo 18: Os caronistas................................................73 Capítulo 19: Vamos falar sobre etnia..............................78 Capítulo 20: Casemiro, O Profeta ....................................82 Capítulo 21: O Pau-de-Sebo ............................................87 Capítulo 22: Gambá e o Gran Cassino Palha Seca......93 Capítulo 23: O Tempero Colombiano.............................99 Capítulo 24: Epílogo.........................................................107 Sobre o autor ....................................................................112
  • 8. 8 Introdução Este pequeno volume reúne algumas memórias de minha infância, transcorrida entre meados da década de 80 e inícios da década de 90 do século passado. Não faz assim tanto tempo, mas ainda era numa época em que as crianças, então não feridas pelas virtualidades da web ou enjauladas pelo risco da violência lá fora, brincavam de fato e de direito. E era um brincar na acepção plena do termo, na configuração máxima das 24 horas do dia, onde os pequerruchos exploravam o seu geralmente vasto espaço vital à exaustão. Claro, nem tudo eram flores; a pobreza exercia o seu duro reinado, e aprendendo a driblá-la levávamos a vida – uma vida sofrida, transida de malandragem e inocência, mas, atropelando os pesares, profundamente feliz. Afinal, o chão da memória é apagar o grosso das sofrências, ou romantizar pela nublagem o rude dos amargos momentos. Há um texto anônimo de grande beleza, e que acredito sirva de excelente introdução às pequenas e divertidas narrativas que aqui vão rascunhadas: O QUE É UM MENINO? Os meninos se apresentam em tamanho, peso e cores sortidas. Encontram-se por toda a parte, em cima, em baixo, dentro, fora, trepados, pendurados, caindo, correndo, saltando. As mães os adoram, as meninas os detestam, as irmãs e os irmãos mais velhos os toleram, os
  • 9. 9 adultos os ignoram e o céu os protege. Um menino é a verdade de cara suja, a sabedoria de cabelo esgadelhado, a esperança de calças caindo. Tem o apetite do cavalo, a digestão do avestruz, a energia da bomba atômica, a curiosidade do mico, os pulmões de um ditador, a imaginação de Júlio Verne, a timidez da violeta, a audácia da mola, o entusiasmo do buscapé e tem cinco polidáctilos em cada mão, quando pratica suas reinações. Adora os doces, os canivetes, as serras, o Natal e a Páscoa; admira os reis e os livros de figuras coloridas; gosta do guri do vizinho, do ar livre, da água, dos animais grandes, do papai, dos automóveis e dos trens, dos domingos, das bombas e traques. Abomina as visitas, o catecismo, a escola, os livros sem figuras, as lições de música, as gravatas, os casacos, os barbeiros, as meninas, os adultos e a hora de dormir. Levanta cedo e está sempre atrasado à hora das refeições. Nos seus bolsos há sempre um canivete enferrujado, uma fruta verde mordida, um pedaço de barbante, dois botões e algumas bolinhas de gude, um estilingue, um pedaço de substância desconhecida e um objeto raro, que lhe é precioso por 24 horas. É uma criatura mágica. Você pode fechar-lhe a porta do seu quarto de ferramentas, mas não a do seu coração... Pode expulsá-lo do seu escritório, mas não do seu pensamento. Toda a sua importância e a sua autoridade se desmoronam diante dele, que é o seu carcereiro, seu chefe, seu amo... Ele, um despótico e ruidoso mandãozinho!... Mas quando você volta para casa, à noite, de esperanças e ambições
  • 10. 10 despedaçadas, ele pode compô-las num instante com as suas palavrinhas mágicas: "OH! — MAMÃE!". É de se imaginar que as travessuras aqui narradas tenham como personagens principais esses dois aí do título: Meu amigo de infância, Renato “Cascão”, e o Sammy “Maluco”, este pacato alucinado que vos escreve. Mas não apenas eles ou nós: Outros atores desta ópera- bufa que é a vida numa periferia se fazem presentes, emprestando suas histórias para, queira Deus, trazer um pouco de alegria e diversão a você, amigo leitor.
  • 11. 11 Capítulo 1 Situando os quiprocós Toponímia é aquela área de estudo que se ocupa dos nomes próprios de lugares. Iniciemos este relato esclarecendo alguns embaraços toponímicos, sem os quais o leitor talvez não consiga se situar no teatro dos eventos. A região aqui em geral referida pertence “legalmente” ao bairro de Tribobó; sim, o bairro com um dos nomes mais divertidos – ou ridículos – do Brasil. Situado no município fluminense de São Gonçalo, o extenso Tribobó é composto pelo que se chama de sub-bairros, que, oficiais ou não, são pequenas repartições ou regionalizações adotadas principalmente pelos moradores desses lugares. Ao trecho de Tribobó em que fui criado chamamos de Jardim Nazaré, também grafado Jardim Nazareth, ou o termo que hoje o faz, não com justiça, conhecido alhures: Palha Seca. Evito em geral o termo Palha Seca pois ele hoje refere uma ampla área, que, tendo visto nascer nos últimos trinta anos algumas favelas em seu corpo, agora recebe até a designação de complexo, o “Complexo do Palha Seca”. Assim, com Jardim Nazaré busco definir uma área delimitada dentro disso que se chama Palha Seca; sim, um pequeno trecho composto por três ruas principais e mais umas quatro paralelas. Levantado nosso cercadinho, vamos fundamentar os relatos.
  • 12. 12 Boa parte de minha infância e primeira adolescência foi passada na favelinha Beira do Rio ou Beira Rio, pequeno bocado de chão do já pequeno Jardim Nazaré. Ela recebe esse nome, você já pode imaginar, por margear trecho de um rio – neste caso, o Rio Alcântara, que nasce no município niteroiense de Pendotiba, alguns quilômetros acima de nosso ponto, e percorre quase meia São Gonçalo (mudando de quando em quando ou de trecho em trecho de nome, como um fugitivo) em sua peregrinação soturna em busca da Baía de Guanabara. Morando numa rua de acesso à movimentada Beira Rio, sua influência, como um ímã, não poderia me deixar escapar, estando eu a tão poucos metros de sua fervura. Muitas aventuras foram vividas ali – ou não exatamente nela, mas em andanças a partir dela – andanças em que eu e os companheiros de ocasião percorríamos quilômetros que, hoje, me defenestrariam as pernas, caso eu tentasse encará-los. Um desses companheiros de ocasião era na verdade um companheiro de muitas ocasiões, um amigo, na medida em que este termo se aplicava às relações sempre algo hostis que eram mantidas naqueles tempos, naquele lugar. Seu nome era Renato. Renato Batista dos Santos. Irmão de quatro irmãos, paupérrimos – moravam todos quase amontoados num barraco de um único cômodo. Minha situação era bem mais favorável, embora eu fosse, claro, perfeitamente pobre. Devo a Renato muito de minhas iniciações no mundo real, iniciações que, a duras penas, conseguiram romper o perfeito inapto ou inocente
  • 13. 13 que eu era. As lições de “malandragem” eram aplicadas diariamente, sem muita cerimônia. Uma de nossas maiores ocupações era, quase que todos os dias, catar ferro-velho – reciclagem, cobre, alumínio, garrafas e até ferro, ferro depois abandonado pois o lucro não compensava o sacrifício de, franzinos moleques que éramos, carregar todo aquele peso. Ocupados em nosso ofício – cujo objetivo era conseguir dinheiro para comprar picolés e sorvetes da Kibom, pão com mortadela, refrigerantes, doces, jogar fliperamas e, ao menos no meu caso, comprar figurinhas variadas – como dito, andávamos quilômetros, a cada dia traçando uma rota. Na época não havia coleta de lixo na região, lixo que era então despejado em “pequenos” lixões (terrenos baldios) que abundavam em cada bairro e sub-bairro. Renato me ensinava nessas andanças a primeira lição da vida ou daquela vida – cada um por si, nada de catar em conjunto. E ele, claro!, sempre conseguia mais materiais de valor que eu. O bicho enxergava como uma águia! Com o tempo, fui melhorando. Outra lição – essa vergonhosa e perfeitamente dispensável – que Renato me ensinou foi a roubar. Mas calma lá, leitor, que não lhe quero escandalizar logo neste início de livrete: Não eram furtos dignos do risco ou talvez da fama, eram apenas surrupios de pequenos pedaços de cobre, que jaziam amarrando canos e cercas; garrafas de cerveja e garrafões de vinho largados em algum depósito de fundo de quintal; panelas velhas que eram utilizadas como vasos de planta – ah, quantas plantas eu deitei fora,
  • 14. 14 eu que depois aprendi a amá-las! Quando podia, removia cautelosamente a planta e sua touceira de terra da panela, depositando a touceira gentilmente a um canto. Quem sabe a madame não conseguisse um outro vaso para reacondicioná-la? Esses pequenos furtos também foram uma severa escola – em geral, nos quintais mais “arriscados”, eu, mais lerdo e ainda por cima mais “visível” pela minha pele amarelona, ficava de vigia, enquanto Renato lá ia tentar aliviar... LIXO, mas era roubo pois o “lixo” tinha dono, e trazia na corcunda seu risco. Há quem diga que éramos pueris ecovisionários promovendo ou ao menos “adiantando” a reciclagem de materiais que, largados como estavam na “natureza”, levariam séculos e oh!, quiçá milênios para se decomporem, comprometendo ecossistemas locais e globais. Para esses, fomos paladinos da sustentabilidade, arautos de um futuro eco-responsável (particularmente, gosto bastante desta versão). A mesma tática utilizávamos para afanar frutas, ciência esta universal, e atividade que exercíamos com alguma perícia e grande prazer. Embora antes pedíssemos ao dono, humildemente, para nos deixar arrancar algumas frutas – mangas, goiabas e quetais. Em caso de negativa, bem...
  • 15. 15 Capítulo 2 Um assalto à horta do hospício Iniciemos nosso controverso elenco de encrencas pelo surrupio de gêneros alimentícios, pois quem tem fome tem pressa, asseverava o grande benemérito Betinho. Próximo de nossas casas havia um Hospital Psiquiátrico, de caráter particular, que fazia as vezes de asilo. Era um estabelecimento assentado sobre um imenso terreno, que tinha entre seus domínios, além das instalações principais, uma sinistra casa abandonada digna de filmes de terror, uma pequena capela para velar os mortos do hospital, e um pequeno, mas belo e denso trecho de Mata Atlântica onde coletávamos os deliciosos (tinham gosto de jaca!) coquinhos-catarro, que em outras plagas são conhecidos como jerivá, baba-de-boi e até coquinho-meleca, dentre outros nomes mais ou menos nauseantes. Mas o que fortuitamente passou a interessar-nos, a mim e a Renato, foi uma horta de grande tamanho que eles iniciaram certa vez. Não que fôssemos grandes comedores de hortaliças, mas eram muitas e dava gosto de ver uma roça daquela, tão cuidada e sortida, luminosa como uma aquarela. Tentação feita, nossas almas foram vencidas. E certa manhã de sol retumbante foi a escolhida para nossa incursão. No assalto a tal horta, seguimos o já cansado script de sempre: Renato avançava enquanto eu ficava de vigia, acocorado sob uma moita. Era quase impossível ver aquele
  • 16. 16 moleque destemido que rastejava qual um perfeito milico, como se tivesse recebido algum treinamento militar. E, de mais a mais, apenas os pacientes – todos doentes mentais acometidos das mais diferentes patologias – ficavam tomando sol num dos calçadões da parte do hospital que dava para a horta. Não teriam mente, olhos, interesse ou consciência para nos notar. Bem, assim pensávamos. Quando o moleque esperto estava já na borda da horta, arrancando pés de alface e couve que estavam à mão, não é que um dos “loucos” – que de louco devia ter muito pouco – deu o alarme? E os demais que com ele estavam principiaram a berrar, num coro alucinado: “Pega ladrão! “Per-rega ladrão! Perrr-rega ladrão!” E daí, poderia ser dizer. A horta ficava num ponto exterior ao asilo/hospício, que dava justamente para a região de onde viéramos, e para onde nos bastava fugir. Mas o problema era que o hospital tinha um “zelador”: Seu Ciro, que estava sempre a postos com sua espingarda de sal grosso nas mãos, e os dois cachorros vira-latas que, se sozinhos eram apenas observadores passivos e desinteressados, quando estavam com ele se tornavam verdadeiros dogues de caça. E eles prontamente se apresentaram, os perdigueiros e seu senhor: O bruto do seu Ciro parecia um lorde inglês, já com cabelos brancos, mas correndo feito um adolescente, com aquela espingarda fazendo fogo e atiçando aqueles cachorros de dúplice proceder... Foi uma corrida infernal, mato adentro, ignorando trilhas e abrindo novas no peito, até chegarmos ao rio – o rio Alcântara, que corta quase que meio município de São
  • 17. 17
  • 18. 18 Gonçalo – e que separava a “nossa área” da micro região que chamávamos apenas de “morro” – na verdade um enorme trecho composto por um encadeado de montes, onde a mata de cerrado e chaparral se intercalava com bolsões de Mata Atlântica, micro região no meio da qual estava justamente o tal Hospital. Corremos como desvairados, mas o tinhoso do Renato, ou Nato para os íntimos, não largou nenhum dos muitos pés de alface que confiscara... Era um signatário da velha máxima brasileira: “Vergonha é roubar e não conseguir carregar”. E aplicou mais uma vez uma lição a que eu tive que me submeter infindas vezes: Ele corria mais do que eu, não olhava para trás e muito menos para mim. Nem um “corre, mané”, ele soltava. Apenas corria, firme em sua ideologia do “cada um por si” e ai de mim se não percebesse a fuga – fosse lá do que fosse – e não partisse em sua traseira...
  • 19. 19 Capítulo 3 Sexto Sentido Isso me leva a recordar de outros episódios, agora divertidos, pelos quais passei. Eu ainda não relatei, mas Renato possuía algo que perturbava minha mente que, embora infantil, era leitora de enciclopédias e já manifestava a tendência racional-científica que fundou a frio nosso mundo tecno-científico e a tudo manieta, retifica e constrange. Esse algo era o que se costuma chamar de “sexto sentido”. Sim, aquele rapazinho que jamais entrara numa escola (não havia lei, ou a lei não tinha força que obrigasse a mãe dele, Bebete, a matriculá- lo), possuía um sinistro sexto sentido que o avisava, geralmente com apenas alguns segundos de vantagem, de que algo de ruim estava prestes a acontecer; que a jangada pirata iria naufragar, a aventura do momento estava em vias de dar errado. Relato uma das mais prosaicas e inofensivas destas vezes em que tal sentido do malandrim nato se manifestou. Certa noite, ele me chamou para “darmos uma espiada” em frente da casa de uma certa menina, uma linda negrinha, que estava há pouco tempo no bairro. Nato estava enamorado... Acontece que a tal menina morava numa casa, a de sua avó, em que infelizmente (isso sempre é uma infelicidade quando acontece com a mulher de quem você gosta)
  • 20. 20 moravam muitos homens – eram os tios dela, todos solteiros e ainda albergados em roda da saia da matrona. Pois bem, lá estávamos nós, acocorados no mato em frente daquela casinha de telhas francesas e sem cercas. A rua estava deserta, pois o bairro naqueles tempos era menos povoado e a hora já ia avançando noite adentro; podíamos divisar, dentro da casa de janelas de madeira abertas, o trânsito dos moradores, inclusive da princesinha de ébano. Eu olhava para a rua de quando em quando, pois nossa atitude, embora de intenções inocentes, era também suspeita. Foi quando Renato, fulminado por seja lá que tição do céu ou do inferno, entregou o oráculo: “Tô com a sensação de que vai acontecer alguma merda...”. “Que nada, a rua tá deserta e nós não estamos fazendo nada”, respondi. Um breve momento de indefinição foi suspenso pela aparição, ex nihilo, sim, direto do nada, de um dos tios da menina, bem na nossa frente. Como aquilo se deu? E era justamente Elias, o mais “brabo” dos moradores da casa. Renato foi apanhado pelo braço, e tomou uma salva de cascudos. Eu também levei o meu e me dei por satisfeito – bem, em geral eu ficava para trás e arcava com as consequências sozinho. As explicações sobre os puros sentimentos do jovem Romeu, ao invés de tocarem o coração de Elias, tiveram o resultado oposto, enfurecendo ainda mais o valentão. Se tivéssemos corrido quando o oráculo deu o alarme... Carimbados de cascudões e devidamente jurados em caso de reincidência em tal “crime” – simplesmente observar o evolar de uma virginal donzela, veja você –
  • 21. 21 partimos para nossas casas, contrariados por mais uma injustiça da vida. Renato jurava “vingança” quando crescesse. Quanto a mim, bem, em boa parte de minha infância, receber um cascudo era como receber um bom dia.
  • 22. 22 Capítulo 4 Sobre paus, pedras e sopapos Parte do lecionário dos meninos, numa comunidade pequena mas algo hostil como aquela, assim como acontece e aconteceu em quase todo o mundo e ao longo de toda a divertida história humana, era dedicado ao combate corpo a corpo. Em minha nascente biografia, esse foi um problema que demorou para ser remediado – eu era bem mais bobo que a maioria dos moleques da rua. Ao menos dos moleques daquele trecho do bairro, um pouco mais barra-pesada ou, termo melhor, pragmatista, mas foi ali que resolvi fincar os paus de minha mal-armada barraca. Não tive irmãos homens, apenas irmãs; pior: não tive primos próximos, apenas primas, muitas primas. Meu pai, bom homem, arauto da pacatitude, nunca foi de briga. Meus três tios que moravam no bairro eram muito ocupados, e dois deles tinham deficiência numa das pernas – resquícios de poliomielite, sofrida na infância ainda nas Minas Gerais. Mesmo se quisessem, a vida cedo os impedira de fazer carreira de sucesso no rude mundo da trocação de chutes e socos. Ou seja: Eu nem tinha quem me defendesse, nem tinha quem me ensinasse o ofício. Para casos assim especiais, a vida tem uma solução terminal: tentativa e erro, ou: aprender a bater por osmose, depois de muito apanhar. Ou nunca aprender. Bem, eu custei, mas aprendi.
  • 23. 23 Desses meus doutrinadores de rua, novamente Renato foi o primeiro e o maior deles: vez por outra eu era espancado, para recalibrar meu entendimento da hierarquia que rege o cosmos. Brigávamos num dia e, no dia seguinte, lá estava ele no portão de minha casa, gritando: “Ô Sâmi! Sâââ-mêêê!!! Ô Sâââmiii!!! Bora catar ferro-velho!” E lá ia eu, despudorado, mais perdoador que o futuro cristão que eu haveria de ser. Mas nem tudo eram murros colecionados. Enquanto não aprendia a utilizar os punhos, desenvolvi um mecanismo de defesa, dissuasão ou vingança que acabou se tornando “lendário” nas cercanias: virei franco-atirador. Funcionava mais ou menos assim: Você, mais forte do que eu, me aplicava uma pancada, me constrangia com alguma ameaça, ou mesmo me lançava alguns desaforos e impropérios numa dose acima do que eu estava disposto a metabolizar. Ato contínuo eu, sempre num sinistro e sintomático silêncio, me recolhia à minha insignificância pugilista e existencial, dava vinte passos, sempre lentos, quase tristes. Cabeça baixa, expressão contrita, era só um garotinho fracote recolhendo-se à convalescença aconchegante no lar. Em seguida, cumpridos os passos cerimoniais, garantia de segurança em caso de fuga, num movimento rápido e contínuo, eu apanhava uma pedra do chão e me virava atirando-a. Era um agachar-apanhar-atirar sem pausa, manobra tinhosa, um giro rápido e perfeito. E enquanto aquela pedra, aquela Nêmesis de minha vingança cruzava os ares, outra já estava sendo recolhida e disparada. Antes das armas de fogo, a metralha já pipocava na favela...
  • 24. 24 Foram tantas as pedras despachadas (eram tempos conflagrados!) que adquiri alguma especialização, e aquilo passou a ser temido na rua. Eu sou um tipo esquisito ou incompleto de ambidestro: escrevo com a direita, mas uso a mão esquerda para atirar objetos. Lenda reza que minha mãe, a melhor mãe do mundo mas acabrunhada pela educação de roça das profundas Minas Gerais, ao perceber minha tendência inicial para a canhotice, vendo que eu rabiscava com a pata sinistra ao invés da destra, forçou a barra para que eu me corrigisse, que aquilo de escrever com a esquerda era coisa do capiroto. Ah, Minas Gerais, misto de poesia e sensaboria, que tantas fábulas pariu!!! Mas voltemos ou avancemos até à idade da pedra: Se no futebol, que àquelas alturas detestava, eu era ninguém, e minhas duas pernas eram cegas, no tiro ao alvo eu era o canhotinha de ouro, artilheiro isolado por quatro, cinco anos. Magoei algumas carnes, rachei uma ou duas cabeças – com duras consequências. Parte da fama do Sammy Maluco foi alicerçada no melhor da alvenaria: pedras de brita e lascas de tijolo. Mas a rua tinha uma máxima, um provérbio cruento, de cuja verdade nem toda a perícia balística me safaria: Nem só com paus e pedras se defenderá o homem: O punho será sua bandeira.
  • 25. 25 Capítulo 5 A fundação do MMA numa comuna gonçalense Demorou bastante para que eu aprendesse a devolver com mínima perícia os golpes que levava. Nesse curso fui ajudado por algo em que nosso bairro foi o pioneiro. Sim, se hoje somos o país do MMA, as Mixed Martial Arts (Artes Marciais Mistas), naquelas alturas ou profundezas da década de oitenta os Gracies talvez ainda nem sonhassem em criar esta modalidade. E nosso bairro já contava com uma, deixe-me celebrar em maiúsculas, ARENA COMUNITÁRIA DE COMBATES. Mas, como era isso? Nosso rio Alcântara era fonte do ganha-pão de alguns dos moradores da comunidade. Efetivos ou esporádicos, muitos moradores defendiam seu trocado tirando areia do rio. Sim, sim, não havia IBAMA que os impedisse, e a fonte parecia mesmo inesgotável. Até eu, em infância, certa vez me somei a um mutirão de moleques para tirar areia do rio em troca de... tomar banho numa grande piscina, num casarão onde certo conhecido era caseiro. Sim, sim, também não havia Conselho Tutelar que nos salvasse, e nossos pais de nada sabiam. Era um tempo em que o moleque ia para a rua de manhã, voltava sujo para almoçar, e antes que a mãe desse por ele ou terminasse de desfilar a bronca, o brucutu já se evadia para a rua de novo, vadiando até o anoitecer.
  • 26. 26 Amigos, ao poder da pá, da enxada e da chibanca, não apenas a areia era o recurso natural explorado pela comunidade. A areola, com sua fina textura marrom, utilizada em emboços, na massa para assentar tijolos e também como terra para plantas, era outro recurso lucrativo, esse escavado dos muitos terrenos baldios. Acontece que um empreendedor, um inovador desconhecido do bairro, teve a suprema ideia de matar dois coelhos com uma só bordoada. Ou pazada, ou enxadada que seja. Na margem do rio, em certo ponto, ele começou a escavar areola, que era prontamente vendida. Quanto ao espaço que ficara escavado, um imenso retângulo, ele o usava para jogar a areia que arrancava do rio – o que era facilitado pela diminuição do patamar da margem, já escavada. Assim ele conseguia produzir os dois “gêneros” num mesmo local. O inusitado foi que, numa feliz ação do destino guerreiro que rege a espécie humana, uma cheia do rio – que sofria cheias regulares – submergiu aquele trecho. Quando as águas desceram, uma surpresa nos agraciou, presente dos deuses da guerra: Aquele grande “quadrado” escavado às margens do rio fora ocupado completamente por areia – mas não era a areia mais grossa ou cascalhenta que costumava ser tirada do rio para a venda: era uma areia mais fina, como a areia de praia. Aquele vácuo, atingido pela cheia, serviu como uma espécie de baía que, com o fluxo do rio, acumulou apenas a areia mais fina, a que conseguia flutuar em suspensão nas partes mais altas
  • 27. 27 do fluxo de água da enchente. Assim, ao baixarem as águas barrentas, somente a areia fina fora “capturada”. Aquele lugar era amplo, mas insuficiente para o jogo de futebol, a famosa pelada – e para isso a comunidade já contava com um campinho mais acima do morro. E as areias eram muitas. Assim, uma solução foi encontrada: O areal passou a ser campo de honra – não, não um cemitério – mas campo onde as honras entravam em disputa. E assim as briguinhas entre as crianças passaram a ser resolvidas ali – do outro lado do rio (na margem contrária donde havia moradias), longe da vista ou ao menos da ação dos pais. Todo dia tinha pancadaria, não apenas “à vera”, mas “à brinca” também. Um contra um, dois contra dois... Até battle royale (todos contra todos) foi experimentada em nosso caldeirão. César, Septímio Severo, Caracala, qualquer imperador romano exultaria ao ver aquela pequena e mambembe escolinha de gladiadores gonçalense! E, por Deus!, quanta porrada tomei ali!!! Aquilo se tornara também um campo de sadismo para alguns dos moleques mais velhos, que incorporavam aquele espírito universal, o do sargentão de caserna: Eles estimulavam os combates, impediam a fuga dos desertores e ainda puniam os rebeldes – apanhando-nos pelos membros e balançando-nos como fardos que, após ganhar força cinética, eram lançados de costas – ou como fosse, Deus nos ajudasse – sobre a areia. Antes do MMA ser criado, antes das artes marciais mistas serem efetivadas no gosto nacional, a Beira Rio já
  • 28. 28 formava – a ferro, fogo e lágrimas empapadas com areia – seus campeões.
  • 29. 29 Capítulo 6 Meganha, raça do cão Uma das aventuras mais divertidas – hoje é tudo muito divertido – que passei em minha vida de coletor de reciclagem com Renato foi assim: Num belo e ensolarado dia, enquanto transitava sozinho por um trecho da RJ 106 um pouco distante de nossas casas, já no final do bairro Arsenal, Renato viu, desperdiçado ao fundo de um riacho ou valão que cortava a rodovia, um eixo de automóvel. Sim, cinquenta ou mais quilos de ferro estavam ali, jogados fora, sem marca nem dono. Acontece que o ferro-velho em que vendíamos os frutos de nosso trabalho era relativamente perto daquele ponto – talvez a menos de um quilômetro... Bem, Renato não conseguiria levantar aquele peso lá de baixo do riacho até a altura do asfalto, pois eram quase três metros de pequena e íngreme ribanceira. E mesmo que fossem 30 centímetros: Uma criança não suportaria aquele peso. Foi já com um plano em mente que Renato chegou na Beira Rio. Após o relato, entendi que não poderíamos carregar aquilo sozinhos. Pergunta daqui, chama dali, e nenhum dos “tradicionais” catadores se dispôs – ou tinha disponibilidade – a ir. Por fim conseguimos convencer dois primos, os “amadores” Rodrigo e Andinho, a nos acompanharem naquele garimpo. Conseguida uma corda, sem a qual não poderíamos içar o butim, partimos em marcha de quase três quilômetros até o tal valão.
  • 30. 30 Chegados ao local, o diligente líder da expedição logo desceu para tentar amarrar a corda em volta do grande eixo. Agora restava a parte mais doce: Suspender todo aquele peso “no braço”, numa encosta íngreme. Enquanto nós três puxávamos com tudo o que tínhamos, Renato empurrava o grande troço, que vinha lento e agarrando-se vez por outra nas ramas de mato, como quem resiste a sair de seu cemitério pacífico. Acho que nunca nenhum dos quatro fizera tanta força na vida. Conseguido o suado intento, agora era fácil: Após a pausa para respirar, bastava arrastar asfalto afora aquele pedação de ferro, até o ferro-velho. E lá fomos nós. A (des)graça da aventura aconteceu quando, poucos metros após o tal riacho, passamos em frente a uma loja de telhas coloniais e pedras ornamentais. Lá de dentro daquele estabelecimento decorativamente burguês, um indivíduo barbudo gritou, espavorido: “Ei! Ei! Cheguem aqui!” Suspeitosos, e ocupados que estávamos arrastando aquele fardo, fizemos menção de seguir nosso caminho. Mas o indivíduo veio ao nosso encontro, e nos fez arrastar o peso para dentro do “quintal” da tal loja. Em seguida, iniciou um interrogatório digno de filmes de mocinho e bandido. Queria saber onde conseguíramos aquele eixo, afirmando peremptoriamente que era de um carro roubado. Queria informações do roubo. Explicamos que ele estava “jogado fora” dento de um valão ali perto, talvez há anos já. Mas o elemento, apresentando-se agora como policial, não se satisfazia. Apertava-nos, queria confissões, queria saber se conhecíamos ladrões e já nos tratava, moleques de dez e onze anos, como tais.
  • 31. 31 O agravante que enfurecia o meganha era Renato, que não segurava o riso durante aquele interrogatório, fato que nem eu compreendia. Os outros dois expedicionários, Andinho e Rodrigo, esvaíam-se em lágrimas, achando que seríamos presos, e imaginando a surra que levariam em suas casas. Não posso afirmar com certeza, mas talvez até eu tenha chorado... Resumo da ópera bufa: O pilantra supostamente a serviço da lei, após nos explicar que aquilo era de um carro roubado e que todas as peças possuem um registro numérico, disse que não poderíamos de maneira alguma vendê-la, e nos obrigou a arrastar o eixo novamente até o riacho, e jogá-lo ribanceira abaixo. Embaralhados em alívio e revolta, fizemos isso, enquanto o canalhinha nos observava, de frente à loja – que, passados quase trinta anos, ainda existe. Voltamos para casa, uns desiludidos, outros aliviados, e todos com calos nas mãos, lanhadas por aquela maldita corda, por aquela maldita ideia de Natão, o elucubrador de ideias... Terá nascido aí, em arquétipo, minha ojeriza contra a classe policial? Quem sabe.
  • 32. 32 Capítulo 7 Papita e o atoleiro Se o assunto é ferro-velho, vamos falar de outra aventura, uma aventura não feérica (fantasiosa), mas ferrada de apertos e perrengues. Preciso informar, por cortesia ao entendimento do leitor, que Renato sempre tinha um argumento para me convidar a ir até tal ou qual lugar, em geral longínquo, em busca de ferro-velho: “Passei por lá e há muita coisa, muita coisa!”. O canalha não havia passado por lugar algum, mas eu sempre caía na conversa. Deve ter sido meu primeiro contato direto com um discurso político! De certa feita, convidou-me a dar um rolê pelo sub- bairro conhecido como Tribobó City (não confundir com Tribobó, bairro de fato e direito, do qual o tal Tribobó City era apenas um dos pedaços de chão). Sabe-se lá por que cargas d’água ou de cobres, Renato convidou para a peneira um outro catador esporádico, Papita, a quem chamávamos também e simplesmente de Mudinho, em virtude dele ser (quase totalmente) surdo- mudo. Papita era um desses personagens folclóricos: Você precisava de tempo de convivência para passar a entender os grunhidos que ele soltava. Era maior do que nós, e a vida na favelinha já havia nos ensinado que estar com um maior é estar submetido, estado péssimo para livres-andarilhos e anarco-presepeiros como nós.
  • 33. 33 Amigo leitor, deixe-me abrir um parêntesis: Já terá sua distinta pessoa se servido, em seus momentos de intimidade, dos papéis higiênicos e toalhas de papel Cotton, Deluxe, Klass, Coquetel? Que tal as fraldas descartáveis Looney Tunes? Eles e muitos outros bons produtos são fabricados pela empresa Carta Fabril, que até pouco tempo atrás era localizada aqui, em Tribobó City, na em sonhos linda São Gonçalo. Foi pelos matagais e terrenos baldios circunvizinhos dela que fomos nos aventurar, em busca de alumínio e cobre. Afinal, Renato passara por ali e os vira... Amigos, outro parêntesis, pois precisamos aproveitar a Literatura para isso: Naqueles tempos, num córrego que cruzava dos fundilhos desta tal empresa, era descarregado um líquido colorido, por vezes azul, por vezes verde, que se dirigia diretamente para o já citado rio Alcântara. Poluição pura, sem filtros nem firulas. Pior: Sem saber direito do que se tratava, e acostumado àquela vida de “bravuras”, certa vez entrei no trecho do rio Alcântara que recebia aquela química toda, venenosidade que lhe mudava a cor daquele ponto em diante. Graças a Deus não me aconteceu nada. Bem, sabe-se lá. Feita a denúncia, voltemos à aventura. Nossas andanças por Tribobó City (parece nome de cidadezinha de filme de Faroeste, hum?) redundaram em NADA, coisa que por vezes acontecia quando eu seguia as projeções de Renato. Mas havia um outro problema, esse sim, novo: Papita, que não vira nada de “curpiu” – assim ele chamava o alumínio, em sua diferenciada língua de mudo. O bruto murmurava, e pode o leitor imaginar o que seria um mudo “falante”,
  • 34. 34 irritado até os infernos, bradando e gesticulando como uma matrona italiana?! Papita ameaçava nos aplicar fartas cargas de cascudos, caso nada encontrássemos. Afinal, o fizéramos desabalar-se de sua paz para nos seguir na peneira em terras longínquas e inóspitas. Meus queridos, tudo que é ruim pode piorar, e aquele dia estava funestamente atípico. Realmente não havia NADA nos lixões dos terrenos baldios. Era como se algum outro catador houvesse passado por ali, momentos antes. Bem, resolvemos então nos aventurar pela parte de trás da tal empresa de papéis. Era um misto de matagal e aterro. Havia chovido bem no dia anterior, e eu temi entrar num lugar novo para mim, justamente quando ele aparentava formar tanta lama. Mas avançamos, sempre sem nada encontrar, com um olho nos caminhos e outro no furioso Papita, sempre prestes a explodir. Chegamos então a uma pequena ribanceira, da qual não poderíamos descer sem nos sujarmos todos de barro. Era preciso pular lá para baixo, para continuarmos nosso avanço. Olhamos para a terra desnuda, molhada pela chuva, e nos pareceu fácil, coisa de dois metros de altura, para nós que pulávamos de até cinco, sem quebrar as perninhas. Eu e Renato cometemos então o principal erro do dia: Pulamos ao mesmo tempo, cada qual numa direção. O resultado foi surpreendente: Aquele amontoado de terra era na verdade um lamaçal de aterro encharcado, um amontoado tão fofo que, já no impacto, afundamos até a cintura na lama.
  • 35. 35
  • 36. 36 Pare um pouco para imaginar: crianças de onze anos, corpos fracos, num lugar desconhecido, presas até a cintura em lama movediça. Sem forças para sair, e pelo contrário: Quanto mais força fazíamos, parecia que mais afundávamos... Bateu a brisa do desespero, logo transfeita em vendaval. Chorei, confesso que chorei. Papita, do alto do barranco, apenas observava a cena. Por isso chorei: Pensando naquela velocidade hipersônica do medo, imaginei que ele, furioso, nos abandonaria ali, longe das vistas de qualquer pessoa, para morrermos como num maldito filme de meu herói, o também catador e ladrão de ferro-velho Indiana Jones. Mas Papita pulou – E pulou, estranhamente, num lugar onde quase não afundou. Em seguida, aproximando-se devagar, puxou as mãos de Renato, que a muito custo conseguiu desprender-se da lama pegajosa. Após, foi a minha vez. Consegui sair com grande penúria, mas um de meus chinelos ficara preso lá no fundo da lama, numa fundura que meus braços não alcançariam. O inesperadamente generoso Papita, adiantando-se, enfiou seus longos braços no lamaçal e retirou minha sandália. Conseguimos por fim contornar aquele matagal, e sair daquele lugar miasmático. Já na pista, totalmente sujos, sem sequer uma grama de cobre ou alumínio nas mãos, Papita cobrou o seu preço: Cada um de nós tomou uma sequência de dez ou mais cascudos em cascata. Bem, ficou barato: sempre está barato quando se escapa andando sobre as próprias pernas. Estávamos até agradecidos. E nunca mais chamamos Papita para nada...
  • 37. 37 Capítulo 8 Ri por último quem ri de bolso cheio As catanças de ferro-velho abarcavam, a partir de nosso sub-bairro Jardim Nazareth ou Palha Seca (a “fronteira” entre os bairros de Tribobó e Arsenal) diversos outros bairros: No poder arcano da canela, alcançávamos Jockey Club e Anaia, Capote e Arsenal, chegando até a Rio do Ouro e Maria Paula, quando não Colubandê e Bairro Almerinda. Era muito chão! Naqueles finais da década de 80, o bairrismo não era armado pelo tráfico como depois tornou-se, mas existia: Os daqui não se misturavam com os de lá. Mesmo que os de lá fossem os dali, da rua seguinte à sua... Nessa época de “galeras” e entreveros, surgiu certa feita aqui na Beira do Rio uma dupla de irmãos folgazões, ou folgadaços mesmo. Metidos a bambas, vinham na intenção de namoricar as meninas da área. Bem, as NOSSAS meninas. Na época eu não estava realmente interessado em namoros, mas a marra daqueles espertões incomodava, tanto a mim quanto a muitos outros. Mais fortes que eu e Renato, me lembro de uma feita em que, em plena e nossa área, os sacanas nos intimidaram com sinistras ameaças. Acuados, num tempo em que eu ainda era um péssimo ou inútil boxeur de rua, colocamos a viola no saco e ficamos quietinhos... Eles vinham de uma área próxima, uma espécie de sub- bairro a que chamávamos de “Buraco Quente”. Acontece
  • 38. 38 que este mesmo Buraco Quente era área fiel de nossas coletas, pois havia lá um enorme lixão comunitário, instalado numa espécie de cratera. E não é que foi numa dessas andanças naquelas paragens que acabamos descobrindo em que casa moravam os tais Romeus valentões? Tempo passou, e belo dia fomos nós nos abeirando da casa deles, cuja cerca de arame farpado, já banguela, coitada, fazia lado a um terreno baldio, coberto por moitas e arbustos. Apenas batíamos aquele terreno em busca de algo, inchados de inocência, quando, lá ao fundo do tal terreno e fronteiriço à cerca da casa dos sacanas, percebemos uma enorme caixa de ferro – um desses baús de geladeiras antigas. Ao nos acercarmos com cuidado, a falha dos valentinos foi descoberta: Os trouxas deixavam, do lado DE FORA de seu quintal, um depósito de reciclagens composto apenas de alumínio, cobre, chumbo e metal, um depósito repleto. Alumínio já bem amassado, fios de cobre já descascados ou queimados, com sabor de mel. Não era preciso dizer mais nada, e Renato nem tentou. Apenas sorriu cinicamente; e Deus, como sinto falta daquele sorriso!, eu entendi o que faríamos. Nas semanas seguintes, aplicamos sobre aqueles canalhinhas nossa velha e experimentada tática do morde- e-assopra: A cada semana pegávamos uma pequena “carga” das mercadorias, para que as vítimas não sentissem o impacto. A marra daqueles garotões, que depois acabaram “expulsos” de nossa área pelos moleques maiores, nós a
  • 39. 39 consumimos nos sabores Chocolate e Flocos dos sorvetes da Kibom, nossos preferidos... O dono da padaria sorria quando entrávamos, sujos e amarrotados, mas cheios de dinheiro de nosso suado trabalho – e nossa justa & vingativa rapina!
  • 40. 40 Capítulo 9 O sítio (mal-assombrado) de Seu Pedro Alguns dos melhores dias da infância aqui no Jardim Nazareth foram passados no Sítio do seu Pedro. O sítio era na verdade de um japonês misterioso – do qual seu Pedro era o caseiro. Ou semidono, pois o tal japonês quase nunca aparecia. No grande sítio, tomei o primeiro contato – não numa gôndola de supermercado, não numa sacola de compras de meu pai, mas pegando nas mãos, no próprio pé – com diversas frutas como jambo, carambola, jabuticaba. Até um pé de caqui havia, e curiosidades como uma árvore de cortiça. Mas a principal “lavoura” ali eram as mangas: Dezenas de pés, um carnaval, um tsunami, um apocalipse- ragnarok-mahapralaya de tanta manga. O sítio também possuía um equipamento esportivo misterioso para todos nós àquela época: Uma quadra de tênis, em saibro, e isso mais de década antes de Gustavo Kuerten popularizar nos meios de informação o que era o tênis, e, claro, o que era uma quadra de saibro. Seu Pedro e sua família eram em geral simpáticos e tolerantes – deixavam, a quem pedia com educação, entrar no sítio. Havia regras básicas: Não podia quebrar galhos das árvores, e nem arrancar frutas e deixar no chão (pois limpar aquela imensidão era uma tortura, e desperdiçar comida, como hoje, já era duro pecado naquela época). O acesso livre dependia também da época
  • 41. 41 do ano e de que temporada/ano era aquele. Tinha momentos em que não havia ainda mangas maduras, ou sequer manga alguma, nos pés. Mas, nos melhores anos e na alta temporada, já vi aquele velho senhor negro e franzino, de fala mansa e pausada, abrir covas profundas de uns quase dois metros de profundidade por dois de largura e bem uns quatro de extensão – ou seja, suficiente para sepultar quase um elefante! – apenas para jogar mangas podres (uma tonelada? Duas? Três!?), pois não havia o que fazer com tanta manga. Nem a população do bairro dava conta. Bem, independentemente de haver mangas e outras frutas ali ou não, a molecada amava entrar no sítio e tentar peneirar alguma coisa. Por vezes a solicitação de entrada era negada, e então os mais afoitos não se faziam de rogados, adentrando no sítio por um dos muitos pontos de acesso “encobertos”. Foi numa dessas abordagens ou penetrações não- autorizadas que me vi, em companhia de Renato e mais uns quase quinze garotos, dentro do sítio, onde entramos lá pela extremidade oposta à daquela em que ficava a casa de seu Pedro. Ah, como o tal “seu” Ciro do “hospital dos malucos” citado em capítulo anterior, seu Pedro também tinha sua espingarda de sal, e miseravelmente um cachorro que, de manso virava perdigueiro quando atiçado por seu dono. Sinistro e opressor padrão!!! Assim, era preciso entrar no sítio bem “na encolha”, e estar atento. Ali estávamos todos embaixo de um pé de manga espada que, temporão, tinha já suas frutas. A árvore ficava
  • 42. 42 em linha direta com a parte mais sinistra do sítio – Um pequeno casebre abandonado, construído ao lado da tal quadra de tênis. A casa era habitável, e não entendíamos por que ficava vazia, até que um dia um dos moleques ali daquela área – sim, a cada rua, poucos metros de distância, havia uma “galera” mais ou menos independente e, quando queria, hostil – nos informou que aquela casinha era mal assombrada. Para uma criança, aquela informação de mau agouro caía nas costas como uma jaca de inquestionável certeza e medo... A hora era quase a do almoço, por volta das 11 da manhã, com o sol a pino. Foi quando o sexto sentido de Renato se manifestou, com garbo e brilhantismo. Me cutucando e a alguns outros moleques, ele apontava para um enorme pé de tamarindo, que fazia sombra sobre parte da quadra de saibro. É ridículo relatar isso e, acredite, foi ridículo naquele próprio momento: O que vimos foi uma sombra – sim, um ente perfeitamente translúcido – segurando uma vara de bambu e cutucando a árvore, como quem tranquilamente arrancasse tamarindos para chupar. Não é piada, nem invenção. Eu VI – foi a única vez em minha vida que vi alguma manifestação do sobrenatural – e olha que hoje e há muito tempo sou um crente pentecostal, e alguns de nós veem com certa rotina coisas do arco da velha... Mas não eu. Aquela visão inacreditável, surpreendente, inoportuna, cozida e fervida em nonsense foi apontada a um por um dos moleques ali presentes. Todos viram. A sombra,
  • 43. 43 impassível, continuava a lentamente mover aquele bambu. Após uns breves segundos de incredulidade, de tentar divisar se aquilo era aquilo mesmo, a ficha caiu. O que se seguiu foi a mais espetaculosa corrida com obstáculos que o bairro Palha Seca já viu – e ele viu muitas! Todos voamos na direção contrária à sombra, de encontro à cerca de arame que nos daria acesso à salvação que era a rua. A cerca, banguela, tinha um espaçamento entre os fios de arame que permitia a uma criança ou jovem não muito alto passar agachando-se – devagar, de um a um, claro. Mas naquele momento, moleques jogavam-se pela abertura como se fossem mísseis ou torpedos, pouco se importando com os resultados. No empurra-empurra desesperado – alguns, mais sensíveis, gritavam de terror – muitos tentavam passar ao mesmo tempo, embolando-se e lanhando-se nos arames da cerca. Na minha vez, a pressa e um baita empurrão que levei fizeram minha camiseta ganhar um belo rombo naqueles arames... Como disse, foi a única vez em minha vida que vi um fantasma, ou demônio, ou um alienígena que seja, pois como entender um diabo que, dentre o universo de coisas passíveis de entreter um espírito, se preste a arrancar tamarindos? Doravante e até a adolescência, jamais entrei novamente naquele sítio sozinho. E, mesmo acompanhado, evitava aquela casa mal-assombrada e aquele pé de tamarindo como o cramunhão evita a cruz! Anos depois, infelizmente o sítio foi vendido. O comprador foi um jogador de futebol do Flamengo, o Luiz
  • 44. 44 Alberto, que murou o sítio e o transformou num tipo de complexo esportivo, alugando quadras para peladeiros de fim de semana e fazendo festas para seus amigos. Seu Pedro não ficou desamparado: Sua casinha e parte do terreno lhe foram concedidas, justificadamente pelos serviços prestados. E, neste momento em que escrevo, o espaço foi novamente vendido, e agora um enorme condomínio de apartamentos populares se ergue naquele lugar, já prontos para a habitação. Os novos moradores provavelmente jamais saberão de tudo o que já aconteceu naquele terreno em que habitam... *** *** *** *** Um parágrafo para acrescentar um causo sobre aquele lugar. A fama de mal-assombrado do tal sítio era de conhecimento corrente de boa parte da população do local. Durante a noite, a maior parte da rua que fazia frente ao sítio mergulhava na escuridão, pois a iluminação pública não chegava até ali. Em frente a este sítio, cabe dizer, havia outro sítio menor, o Cariri, este murado. Ou seja: Por um bom trajeto, aquele que ali passasse de noite teria de um lado as muitas e sombrias árvores do sítio do seu Pedro, e do outro, um inoportunamente longo e frio muro. Nenhuma casa alcançável, nenhuma vida, nenhum refúgio ou lâmpada de 60 watts. Era apavorante! Certa noite, aproveitando-se da fama do lugar, numa época em que não havia muita coisa pra se fazer, um indivíduo – que hoje é um seríssimo pastor evangélico, o Gilson – subiu numa das mangueiras do sítio que margeavam a rua e, lá de cima, na mais profunda
  • 45. 45 escuridão, balançava os galhos e emitia sinistros gritos, a cada alma desafortunada que por ali passasse. Muita coragem embolada com muita safadeza do então jovem Gilson! Já na rua, era tanta correria que aquele chão ficou compactado, de tanta patada de medroso em fuga!
  • 46. 46 Capítulo 10 As doces mangas – e o muro – do velho Lauro Como eu disse, uma das mais doces atividades da idade, figurada e literalmente, era apanhar frutas – dentro ou fora da legalidade, pois à época a fronteira entre tais picuinhas era muito sutil. Em linhas paralelas, nosso pequeno sub-bairro era formado por apenas quatro longas ruas. A primeira, margeando o rio Alcântara, era a Manoel Bandeira, nosso terno e frágil poeta. Em seguida vinha a central e principal, honrando o grande Pastor Martin Luther King, e para cima as outras duas. Me lembro de certa feita em que eu e Renato fomos em missão sigilosa até a última rua, que era pouco movimentada. Havia um terreno desocupado, protegido apenas por uma cerca de arame (ou seja: protegido pelo vento...) e, dentro dele, jazia solitária e imensa uma mangueira de manga espada. Ao lado do terreno ficava a casa do proprietário, essa medievalmente murada: Era o irmão Lauro, por sinal pai de uma menininha que foi minha primeira paixão platônica. Assim, vendo que o tempo era propício e as mangas convidativas, lá fomos nós naquela manhã surrupiar algumas delas. Eu e Renato já tínhamos certo know-how na área: Na casa ao lado costumávamos roubar cajás... Rua deserta e silenciosa, penetramos no minifúndio e
  • 47. 47 principiamos a tacar paus e pedras naquelas alturas, tentando derrubar algum favo daquele mel alaranjado, rainha das frutas vinda da Índia. Em meio da faina naquela dura lavoura, nem percebemos quando o Lauro, um moreno com cabelos lisos como um índio, adentrando o clube dos obesos, “brotou” já dentro da cerca. O sexto sentido de Nato falhara, e nossa captura era iminente! – Moleques safados, vou pegar vocês, vem cá! – e o brutamontes avançava, senhor de seu direito, afinal não pedíramos para colher os frutos. Geralmente Renato percebia a presença hostil e imediatamente desabalava a correr em silêncio: Jamais dizia sequer um “corre, Sammis”. Jamais! Eu que me virasse. Ou ficasse de boi pras piranhas. Mas neste dia ambos fomos pegos em perfeita surpresa, e corremos juntos para a única escapatória: O muro em tijolos nus que separava o terreno de Lauro da casa ao lado. Tal casa não possuía portão e o melhor, por seu quintal podiam ser acessadas duas ruas. Não era apenas a melhor rota de fuga, mas a perfeita, criada por Deus para isso. Corremos em direção ao muro e pulamos – juntos, como símios habilitados em parkour, bem antes do parkour ser “fundado” em França. Éramos magricelas, mas o pedreiro que erguera aquele muro falhara em algo: Assim que tocamos nossas mãos no alto do muro, de forma perfeitamente síncrona, algo divertidíssimo – ou triste no momento, mas hoje divertidíssimo – aconteceu: O muro começou a tombar com o nosso peso. Sim, nos agarramos no muro e ele
  • 48. 48
  • 49. 49 “quebrou” quase ao meio. A sincronicidade dos moleques do balacobaco naquele dia foi elevada a nível olímpico, como de uma dupla de salto ornamental: Ainda no ar, caindo para trás com o muro, entendemos imediatamente que seríamos esmagados – nada que matasse, mas alguns ossos poderiam se quebrar e a fuga seria frustrada. Assim, em pleno ar, demos impulso com o pé de apoio no muro que caía, para que nos livrássemos de seu raio de impacto. Amigos, cai em pé no chão, seguido pelo esboroar-se do muro, a coisa de apenas uns cinco centímetros de esmagar meus pés. E os de Renato, que caíra à mesma distância. Pronto, subíramos de nível e já éramos Ninjas da Presepada. Mas não era caso de comemorar o feito. Sem olhar para trás, pulamos por sobre os tijolos e o cotôco de muro que restara, enquanto o bom Lauro – poderia ter sido meu sogro! – multiplicava seu ódio ao perceber o prejuízo com o muro – muro que talvez ele mesmo tivesse erguido... Aquela aventura não teve maiores consequências, pois o tal Lauro, ainda que conhecesse meus pais, aparentemente não me conhecia ou reconhecera, e nem a Renato, senão a notícia teria chegado lá em casa, como tantas chegaram, para alegria da vara de goiabeira e da sandália Havaianas de minha mãe, minhas inimigas figadais.
  • 50. 50 Capítulo 11 A rapina bananal Uma fruta de apelo universal estava entre as mais cobiçadas pelos pequenos corsários de água doce da Beira Rio: A banana. A fruta, oriunda do sudeste asiático e que árabes, portugueses e espanhóis ajudaram a espalhar pelo mundo, dava com alguma abundância ao longo das margens do rio, compondo partes da mata ciliar. O problema era que ela crescia nos fundos das casas e barracos que margeavam o Alcântara – ou seja, possuíam “dono”. Dura palavra! E agora, como roubar uma fruta que era de difícil e o pior, barulhenta colheita? Sim, pois além das pencas estarem situadas a considerável altura, se conseguíssemos cortar todo o cacho – subindo numa árvore paralela à bananeira ou mesmo utilizando uma providencial escada – não tínhamos, crianças que éramos, força nos braços para segurar ou aparar aquela imensidão de bananas. E se cortássemos o cacho, ou mesmo a bananeira inteira, e deixássemos a carga simplesmente desabar no chão, o barulho da queda daqueles reservatórios de potássio sempre despertava os donos. Desgraça pouca, reza o cliché, é sempre bobagem. Tínhamos alguns agravantes. A casa cujos fundos eram mais ricos em bananas – um verdadeiro bananal – certa altura foi ocupada por moradores novos, desconhecidos. Um casal sem filhos. O valete, viemos a saber depois, era marinheiro.
  • 51. 51 A descoberta de que a casa mudara de dono deu-se da maneira mais desagradável possível: Ao lado desta casa, dentre ela e outra, ficava um beco, um beco apartadíssimo, claustrofóbico até, e que só permitia mesmo a passagem de crianças. Aquela era nossa rota usual e mais confortável para acessarmos “a beira do rio” de fato, de onde seguíamos pelos fundos das casas catando ferro velho ou vadiando à esmo. Acontece que ninguém avisara ao marujo de que aquilo era caminho comunitário. O resultado? Por duas vezes, ao tranquilamente passar por ali, fazendo despreocupado barulho nas muitas folhas caídas do bananal – veja, nem íamos roubar bananas, que demoravam para ficar prontas – fomos recepcionados a tiros, tiros de espingarda de chumbinho. Malditas espingardas, onipresentes nos anos oitenta! Por sorte nunca fomos atingidos – ou o marujo-milico era ruim de tiro, ou atirava para errar, buscando assustar a molecada. Aquilo era um agravante. Doravante tínhamos que usar de toda a nossa felinidade, todo o nosso ninjitsu (aprendido nos filmes da franquia American Ninja que lotavam a Seção da Tarde) para passar por ali com o máximo de silêncio possível. Se passar já era ruim, imagine agora para roubar as bananas! Mas você já ouviu aquele outro clichê ou ditado popular que afirma que “a necessidade faz o sapo pular”? Éramos os piratas titulares daquele rio, não seria um anônimo marujo de água salgada, caído de paraquedas em nossa favelinha, quem iria nos impedir.
  • 52. 52 Sabe-se lá quem foi o autor da façanha, o portador da chama de tirocínio roubada dos deuses da rapina, mas uma solução foi encontrada. A ideia primava pela simplicidade, que é sempre a marca, selo das ideias revolucionárias: Munidos de um facão, entrávamos silenciosamente naquele bananal e, sempre à moda dos ninjas ou dos samurais, peritos maiores no manejo da espada, desferíamos um fulminante golpe contra o tronco da bananeira. Aqui estava a sabedoria: O golpe deveria abarcar menos da METADE do tronco, de preferência apenas um terço de sua circunferência. Desferido o silencioso golpe, o espadachim fugia para outro ponto: em geral do outro lado do rio, de cujas margens, escondidos sob as moitas, aguardávamos os poucos minutos para que a mágica surtisse efeito. E era infalível: dentro de quatro a seis minutos, aquele talho, aquela mágoa no frágil tronco da bananeira comprometia o restante de sua estrutura e, sob o peso do cacho de bananas, a arvorezinha tombava a partir do corte, sempre com grande estrondo. O estrondo, claro, despertava o marinheiro, aquele colonizador moreno que viera feitoriar nossas terras livres. O bruto abria a janelinha por onde costumava efetuar os disparos, olhava para todo aquele mato compacto e, não vendo ninguém, tomava por certo que alguma bananeira tombara sozinha, o que não era assim muito impossível. A paciência é uma virtude samurai, uma diretriz mestra dos guerreiros orientais em quem nos inspirávamos. Assim, muitos minutos aguardávamos, antes de atravessar o rio e ir até o nosso cacho. Cortávamos então junto ao talo aquele butim e, segurando um de cada lado daquele
  • 53. 53 pesado botijão de comida, melindrosamente saíamos daquele campo minado. Já do outro lado do rio, era hora de preparar as coisas para livrarmo-nos de uma outra e tinhosa dificuldade: O Pedágio de Dona Maria. Enfiávamos aquele imenso cacho inteiro num desses grandes sacos de farinha, de preferência duplo que era para impedir os muitos curiosos – e alcaguetas – do bairro de perceberem o que transportávamos. E, por cima, colocávamos jornais e o principal: Latas, muitas latas. Assim, para todos os efeitos, era ferro-velho o que transportávamos naquele pesado saco. Avançávamos então até a casa de algum dos meliantes, onde enfim dividíamos o fruto da rapina. Mas, voltando ao pedágio, era o seguinte: Residindo pouco adiante do local do bananal, e bem na rua onde devíamos passar para chegar às nossas casas, morava uma idosa muito pitoresca, daquelas de marcar a história de um lugar, para bem ou para mal. Era dona Maria, afeita ao candomblé, mulher sem papas na língua e com quem, na infância, aprendi a xingar, ao ouvir dia após dia ela esbravejar toneladas de decibéis de impropérios do arco da velha. Éramos vizinhos de fundos e, ainda pequeno, sempre que eu era repreendido pelos palavrões que vomitava como sendo “coisa feia pra um menino dizer”, me defendia: “Dona Maria é velha e xinga, por que eu não posso xingar?” Além de brava e amedrontadora, dona Maria costumava fiscalizar os moleques transeuntes – ou melhor, fiscalizar as “bagagens”. Assim, se passássemos com alguma bolsa de frutas ou algo que lhe chamasse a atenção, ela se adiantava e, dona daquele trecho,
  • 54. 54 esbravejando com sua rouca voz de trovão ou taquara rachada, tomava posse do pedágio, sempre farto para o lado dela... Assim, elaboramos a estratégia do saco de latas. E olha que mesmo assim a velha ainda costumava dizer, com aqueles olhos ao mesmo tempo esbugalhados e aquilinos, nos fulminando por sobre o baixo muro de sua casa: “Estranho isso aí hein... tanto moleque para carregar um saco de lata...” Saudosa dona Maria, matriarca de uma grande família de outras matriarcas, mulheres guerreiras que criaram seus filhos e filhas praticamente sozinhas. A velha não dava mole pra ninguém!
  • 55. 55 Capítulo 12 Jamelões! Nem só de frutas surrupiadas viviam os sobreviventes da Beira Rio. Havia, no espaço entorno, alguns frutos “ao ar livre”, em terrenos baldios ou na mata. Mas era coisa misérrima, de abalar uma infância. Recordo dois pés de ingá, dos quais o mais próximo dava frutos do mais insosso dos sabores: low carb, sugar free, zero açúcar. Hoje, faria sucesso, mas naqueles idos... O outro, situado numa pequena ravina e ao lado de uma nascente, esse sim dava doces bagas; mas eram sempre poucas, para muitos esfaimados que circulavam por ali. Outro signo da miséria com que a natura nos solapava era o araçá. Eita arbustiva sofrida! Enquanto sua prima, a goiabeira, é famosa por dar frutos às toneladas, os mirrados pés de araçá espalhados pelos morros do entorno davam de quando em vez (uma vez ao ano?) alguns frutinhos. Dois, três num pé. Sim, ao menos eram deliciosos. Apenas uma frutinha tínhamos em abundância e livre de latifundiários, despida de cercas, não vigiada por cachorros ou espingardas de sal grosso: Os jamelões. Ao contrário dos nativos ingá e araçá, o jamelão é originário do sul/sudeste asiático, mais especificamente da Índia, a mesma pátria ou mundo (pois a Índia é um mundo à parte) que nos deu a manga. O jamelão, se você não conhece, é fruta que dá em pencas, e também em pencas
  • 56. 56 ela possui nomes. Abra o peito e apare, segure a rajada nomenclatural: Jambolão, jamborão, baguaçu, jalão, joão- bolão, topin, manjelão, azeitona-preta, ameixa roxa, baga- de-freira, oliveira, azeitona-roxa, brinco-de-viúva e ainda guapê. E sabe-se lá quais nomes mais. Aqui tínhamos uma ampla e plana área – por sinal vizinha ao já citado sítio do seu Pedro, a que chamávamos de “Sek” – sabe-se lá por quê. Bem, a Sek abrigava o campo do Nazaré, famoso campo de peladas regional. Mas, de futebol só fui gostar após os quatorze anos. Naquela altura, eram os quase trinta (valei-me Deus!) pés de jamelão que me solicitavam todas as mesuras. As maiores daquelas árvores chegavam a mais de dez metros, e impunham-se na paisagem, como gigantes – de quem nos aproximávamos com um misto de amor e temor, como se fossem totens. Ah, quantas tardes dediquei a empoleirar-me com Renato, Wilson e outros amigos por aqueles galhos, e passar horas e horas colhendo o arroxeado pomo, e papeando – jogando conversa fora com a repetitiva e ampla frequência com que cuspíamos os caroços. A cada ano, aguardávamos com sofreguidão a estação da frutinha, e a comíamos até sofrer de prisão de ventre. Sim, a fartura tinha um efeito colateral severo. “Pelávamos” um pé até exauri-lo, como gafanhotos; enquanto isso, outro chegava “no ponto” de colheita. Não era fruta que se prestasse a comércio e armazenamento: Guardada, rapidamente mudava de sabor, o que era tolerado por muito poucos. Era fruta esculpida pelo Deus dos moleques para ser comida no pé.
  • 57. 57 Até hoje, quando vejo um pé de jamelão à beira duma estrada – e há deles em beiras de estradas por todo o estado do Rio de Janeiro, e todo o Brasil – sinto uma melancolia feliz, e uma tristeza por não poder achegar-me. De mais a mais, já não tenho preparo para escalar rudes troncos, nem peso para arriscar a sorte sobre finos galhos. Hoje, toda a região da Sek, que fica na rua Dalva Raposo, foi ocupada por um condomínio, de estranho nome: Atenas. A pátria da democracia nomeia uma usurpação latifundiária que nos roubou nosso campo de anarquia, nossa livre-lavoura de prazer e sustância.
  • 58. 58 Capítulo 13 De quando fomos desafiar o famigerado Lobão para um jogo de bolas de gude Confesso uma vergonha: Nunca fui bom com atividades ou brincadeiras manuais, e mesmo com esportes. Não me interessava por soltar papagaio (que aqui chamamos de cafifa); nunca aprendi direito a jogar bolinha de gude, rodar pião, sequer jogar um bilboquê! De tal desacerto nem eu sei o motivo. Talvez fosse, além de uma inabilidade nata, preguiça em aprender. De toda forma, a bola de gude era uma febre difícil de ser vencida. Eu queria estar na rua, queria companhia, e assim, mesmo sem ser um jogador, eu me dispunha acompanhar outros jogadores em suas disputas, na falta de ter algo melhor para fazer. Renato era um grande “fominha” das bolinhas de vidro, e um formidável jogador. A coisa nestas paragens era tão evoluída que por vezes os melhores jogadores do bairro agiam como no velho oeste: Um desafiava o outro, e marcava hora e tudo para a troca de tiros, perdão, de boladas de gude. Foi numa noite húmida de verão que Renato me chamou para acompanhá-lo até a casa de um elemento que eu conhecia apenas de vista, até porque ele era mais velho que nós, um mal encarado a quem chamavam de Lobão – sim, como o cantor de rock, popular naqueles fins da década de oitenta.
  • 59. 59 Chegados em frente da casa do bruto, começamos a chamar. Chama que chama e o tal Lobão, que de lobo parecia não ter nada pois pelo visto era quase surdo, não respondia. Continuamos a chamança, a chamação, o chamado, a chamadeira ou que seja, e nada do lupino pilantra dar as caras. Eu já queria ir embora, mas Renato, fominha, queria jogo, queria duelo, queria aumentar sua colença daquelas inúteis bolas de vidro. Lobão morava num quintal de duas casinhas, quintal cuja frente era protegida por um murete, coisa de um metro, metro e vinte de altura, tijolos assentados sem chapisco nem reboco. Ninguém dava sinal de dentro da casinha, embora pudéssemos ouvir até a TV ligada, e resolvemos nos achegar à mureta para berrar com mais gosto. O que se seguiu foi um processo contínuo e fulminante: Apenas encostamos na mureta, para melhor chamar o tal lobo surdo, e a maldita veio abaixo, desmontando-se como se feita de pecinhas de Lego, como se o cimento na junção dos tijolos fosse barro... No mesmo instante, como se sacado de uma cartola de Mandrake, o lobo pulou para fora da toca, furioso como um diabo, xingando nossas mães, avós e irmãs. Dessa vez não deu pra fugir, e olha que de minha parte cheguei a fazer menção de disparar para casa. Ele sabia onde morávamos e iria com certeza aparecer por lá. E agora? Chora daqui, se desculpa dali, e a solução imposta pelo grandão foi que reerguêssemos o muro: Ali mesmo, naquele impropício momento, no escuro abafado duma noite de verão.
  • 60. 60 Nas praticamente duas horas seguintes, eu e Renato fomos feitos de pedreiros, trôpegos, confusos, aloprados – montando tijolos uns sobre os outros, sem massa nem nada, apenas “no encaixe” como num jogo de Lego mesmo – sob o olhar furioso do Lobo mau. Mais uma vez, o prejuízo da trupe ficou barato: Se meus pais fossem acionados, eu levaria mais uma coça. Não teve jogatina naquela noite: Após concluirmos a cansativa montagem, fomos honrados com um belo cascudo cada um, e voltamos para casa em silêncio. Amanhã é sempre um outro dia...
  • 61. 61 Capítulo 14 Sobre nossos apelidos Amigo leitor, percebo que até aqui eu não dei nota sobre a origem de nossos apelidos. Vamos, pois, a isso. Renato Cascão vem, claramente, do famoso personagem de Maurício de Souza, membro da Turma da Mônica e cuja marca distintiva era... a ojeriza por água, ou melhor, por tomar banho. Mas a alcunha, como a maioria delas, tinha muito de lenda e de maledicência: Renato evitava o tal banho “quase” como qualquer moleque da idade, mas eu o via tomar banho algumas vezes. Espere, dirá você, como isso? Como afirmei anteriormente, a família dele sobrevivia em grande carestia. Não havendo banheiro no humilde barraco (a latrina ficava num cubículo à parte), os banhos eram tomados no quintal, apanhando- se a água de um galão que, dia e noite, transbordava alimentado pelas águas “gratuitas” da Cedae, nossa companhia estadual de águas e esgotos. Era banho de canecão mesmo, na água gelada e ali, do lado de fora! Assim, fica fácil para qualquer moleque descuidar do asseio... As muitas e diárias andanças numa terra que jamais vira asfalto tinham seu efeito colateral: As pernas do pretinho estavam sempre ruças, brancas de poeira, quando não de frio nos momentos de invernia. E estava assim pintado o quadro, ou melhor, o personagem de quadrinhos...
  • 62. 62 Já o meu apelido, esse sim era bem merecido. O “maluco” era devido a meus esporádicos ataques de fúria – sim, segundo os psicólogos do tempo, causados por um problema de disritmia. Nesses ataques eu quebrava coisas, fazia pirraça, feria pessoas: ficava mesmo possesso como um pequeno javali. Você pode imaginar que causei muitos dissabores para meus pais, em alguns episódios – dos poucos que me lembro – de que até hoje me envergonho. É comum todo morador antigo que teve convívio comigo ter alguma história para contar, e eu mesmo quase que duvido quando as ouço. Por Deus, admiro meu pai por não ter me desintegrado na pancada!!! Lamento pelo leitor de pundonores, talvez pelos psicólogos, mas apanhei bastante, e hoje julgo que foi até bem pouco, pelo volume de encrencas que eu deflagrei. Meu quadro melhorou na primeira adolescência, com as gotinhas “amansa-leão” que a minha mãe me dava depois do almoço, jogando-as no suco de maracujá (suco que, por anos depois, evitei). E principalmente por visitas regulares a um psicólogo da APAE. Aquelas conversas, somadas ao tempo, panaceia de tudo, me mudaram. Mas, na infância, minha fama de “maluco”, embora sempre exagerada, era corrente. O preconceito que sofria aqui e ali, mesmo e covardemente por parte de adultos, foi algo que me marcou, mas cujo relato, nestas memórias de tom humorístico, é melhor evitar, amigo leitor. Feitas as apresentações, embora quase já em meados do livro, bem se entende que a vida unisse tais párias – o “mais pobre” da rua e o “maluco” da rua – na celebração de algumas peripécias...
  • 63. 63 Capítulo 15 O Triciclo dos Alucinados Bem no início de nossa estranha amizade, me lembro de que o avô de Renato ainda era vivo. O quintal onde moravam era composto pela casinha desse avô, seu Cândio (provavelmente “Cândido”), e sua esposa, dona Conceição, e aos fundos ficava o barraco da família de Renato. Na frente, havia uma pequena birosca – Uma barraca, como chamamos aqui, que é na verdade uma minúscula venda dedicada fundamentalmente ao comércio de destilados (cachaça). No tempo eu era bem pequeno, mas uma memória que guardo era do coco em conserva: Pedaços de coco curtidos numa espécie de salmoura, que eram vendidos a alguns centavos cada porção. Eram gostosos! Foi ali naquela birosca, ainda na infância, que Renato iniciou suas aventuras em algo que, anos depois, se tornaria um vício e lhe custaria a vida: O consumo de bebidas alcóolicas. Mas deixemos de lado as rudezas da vida, e vamos ao pitoresco. Esse seu Cândio, homem negro com traços que lembravam de muito longe o ator Grande Otelo, era cadeirante, em decorrência das pernas amputadas. O velho possuía uma estranhíssima cadeira de rodas: Era na verdade um tipo de triciclo, com uma manivela ligada a um
  • 64. 64 eixo de pedais como de uma bicicleta, adaptada para ser movida com as mãos. Assim, forçando aquela manivela, o velho podia mover a cadeira-triciclo, ganhando alguma autonomia. No objetivo de comprar mercadorias para sua venda, e também apanhar algumas doações que os comerciantes do CEASA lhe forneciam, seu Cândio costumava ir até o CEASA de São Gonçalo, que ficava a coisa de uns cinco quilômetros de nosso bairro. De ônibus são apenas dez minutos. Mas, na força da canela, era duríssima a caminhada! Pois o velhote ia naquele triciclo, sendo quase sempre empurrado ou por Volnei, irmão mais velho de Renato, ou pelo próprio. Numa dessas idas ao CEASA (que eu não tinha a menor ideia do que e onde era), fui convidado a juntar-me à expedição. Quem sabe não foi aí que surgiu ou sedimentou-se nossa dupla expedicionária canelar? Confesso que não me lembro. E lá fomos nós, para uma distância que eu jamais havia percorrido a pé, avançando pela perigosa beira da pista ou estrada. Na volta, já exaurido, participei de algo que era normal de ocorrer, segundo Renato, quando ele saía assim com o avô: Tendo chegado na altura do que hoje é a Honda Motos, naquela pequena ladeira que vai dar onde atualmente é o Instituto Médico Legal e o posto da Polícia Rodoviária de Tribobó, Renato, no que o segui, pendurou- se na parte de trás do triciclo (sim, havia um pedestal aparentemente para isso!), e lá fomos nós, descendo a toda numa única cadeira de rodas, três pessoas: Duas crianças e um senhor de quase setenta anos!
  • 65. 65 Imagine a cena, amigo leitor: Você, pacato citadino passando de automóvel ou ônibus, avançando sorumbático para seu trabalho ou estudo, refém de mil horários e sistemas, e vendo do livre lado de fora uma sinistra cadeira de rodas descendo a grande, insana velocidade asfalto abaixo, com um velhinho amputado como “piloto” e duas crianças de carona!!! Era a vida loka ainda no seu modo 1.0... Pouco tempo depois, seu Cândio infelizmente veio a falecer, e a vendinha foi fechada.
  • 66. 66 Capítulo 16 Renato e seu cachorro Bugui Durante longo tempo de nossas infâncias, Renato possuiu um cachorro – Bugui era o nome dele. Bem, todo mundo tinha ou teve ou tem um cachorro, mas aquele ali era diferenciado, lotado de singularidades. Saíamos sozinhos em zigue-e-zague, algumas vezes por quilômetros catando reciclagens aqui e ali, entrecruzando ruas, matagais e levantando poeira em três, quatro bairros diferentes, e quando menos esperávamos, Bugui estava atrás de nós. Ou melhor, de Renato. Amigos, ainda hoje eu só posso atribuir aquilo à esfera do sobrenatural: Como seguir um rastro de cheiro por quilômetros, de ponto em ponto, até chegar ao seu dono? Isso era constante, a um nível em que eu chegava a dizer, não importa em que cafundó estivéssemos, fosse asfalto, chão ou mato: “Daqui a pouco Bugui aparece”. E em minutos o cão brotava, como se teleportado – sem dar sinal de sua presença silenciosa, que só por acaso notávamos. Aquele vira-latas, negro com faixas brancas e amarelas no peito e focinho, com o couro aqui e ali já marcado pelas agruras da vida, não latia em momento algum. Também não era afável; a relação deles não envolvia carinho baseado em toque, como é o ordinário de acontecer entre um animal e seu dono.
  • 67. 67 Eu não entendia aquilo, eu miseravelmente não entendia aquilo, pois sempre fui um desavergonhado abraçador de animais. Pelo contrário, aquela era uma relação rude: O dono por vezes até lhe batia para afugentá- lo, e o cão não dava demonstrações de alegria ou contrariedade: era impassível, fizesse o que fizesse, sofresse o que fosse. Que tipo de relação estóica era aquela? Aqueles dois entes espartanos, acostumados aos cardos e abrolhos da vida, que jamais davam demonstrações mais visíveis de amor um pelo outro – como se atraíam naquele nível sobrenatural? Sempre acreditei que aquele cachorro possuía um elo telepático com o dono. Dono que mais o enxotava do que qualquer outra coisa. “Não trate o cachorro assim”, eu repetia. “Ele não liga”, ouvia em eco. Para que você tenha uma perfeita ideia, quando brincávamos de pique-esconde na rua, a presença de Renato era denunciada pelo cachorro – que insistia em segui-lo para lá e para cá. Ninguém se escondia perto de Nato, pois o cachorro denunciaria a presença do dono e possivelmente de mais alguém naquele ponto... Quando Bugui morreu, eu, que talvez jamais o tocara – pois ele não era desses, ele não era do comum dos cachorros – senti um baque que não podia entender. O estranhamento de alguma forma nos vinculara.
  • 68. 68 Capítulo 17 Volnei Peito-de-Aço Como relatei, Renato tinha quatro irmãos. O mais velho deles era o Volnei. Lembro de Volnei pelo peitoral largo – provavelmente pela atividade de tirar, no poder da pá, areia do rio para vender, atividade por sinal praticada por muitos moradores do local, como já relatei. E na qual até eu me aventurei, embora meus músculos imediatamente dessem alerta de que não podiam com aquilo. O rosto afilado, como se achatado dos lados. Sempre de poucas palavras, trabalhador, pacífico. Vou contar um causo envolvendo o “bruto”. Como relatei no início, nossa região é marcada pela presença do rio: do lado de cá as casas, do lado de lá era apenas o “mato”, por um imenso trecho, sendo a presença humana mais próxima do lado de lá, o tal hospital psiquiátrico. Nas décadas de 80 e 90, o balonismo, o triste e perigoso balonismo, corria solto, pois ainda não era (e agora, é?) combatido pelas autoridades. Assim, eram muitos os festivais de balões, inclusive um aqui próximo, o Festival do Saldanha. Muitos balões, principalmente nos finais de semana ou na segunda feira pela manhã, caíam no nosso morro, uma área então inacessível por carros e mesmo motos. Assim, as levas de vadios que ainda hoje saem em carreata e motociata atrás dos balões, para recuperá-los e reutilizá-
  • 69. 69 los – ou apenas pelo prazer da “caça” – tinham grande dificuldade de apanhar os balões que aqui caíam. Dificuldade essa que não nos afligia: O terreno era nosso conhecido, e os balões, ah, nós mesmos os apanhávamos e relançávamos ao ar, em ocasião oportuna. Não tínhamos dinheiro para comprar (ou desperdiçar em) sequer parafina para as buchas dos balões. E sabe como resolvíamos o problema? De forma sustentável, e aqui também há pioneirismo: Íamos a um trecho do rio chamado de “Ponte Caída” – outro dos lugares fortes do bairro, lugar de mortes e histórias – e raspávamos a sobra das muitas e muitas velas que os adeptos da macumbaria, religiões de matriz afro e wicca que fossem, deixavam queimar para suas entidades. Que horror, você dirá. Sortilégio! Sim, era com temor que o fazíamos, em geral arrastados pelo exemplo de algum moleque mais ousado. Raspávamos e ensacávamos ecumenicamente toda aquela parafina que fora destinada sabe-se lá para qual força, seja anjo, Gaia, deus ou demônio, e lá íamos fazer o nosso próprio “festival”: Em geral três ou quatro balões de tamanho pequeno a médio, cujo lançamento reunia gente, principalmente a molecada, como se fosse inauguração de creche pública. Bem, acontece que, numa dessas capturas de balão no morro, os moleques da área pegaram um imenso, com bandeira e tudo. Após dobrá-lo cuidadosamente, vieram descendo do morro, para atravessar o rio em direção a nossa favelinha. Perceberam então alguns homens – sim, todos adultos – estranhos observando sua aproximação, colocados bem no ponto onde se dava nossa travessia.
  • 70. 70 Além daquele trecho, não havia muita opção de atravessar o rio sem ter que se molhar. E, de mais a mais, a área era nossa, o que temeríamos? Ao chegarmos, os cidadãos de bem simplesmente disseram que aquele balão era deles. Retrucamos: “Não levem a mal não, mas fomos nós que pegamos. Ele agora é nosso”. Sem muita cerimônia, e sem vontade de prosseguir nos debates, um dos homens simplesmente levantou a camisa e mostrou uma arma, no que foi seguido por um outro daquele bando. Com a força matadora de tal argumento, fomos filosoficamente vencidos na contenda e entregamos o balão aos pilantras, que entraram em seus dois carros e partiram com nosso butim. Amigos, as forças do mal trabalham de forma misteriosa, e obedecendo a algum sinistro ciclo. Quinze dias depois, num outro final de semana de céu repleto de balões, eis que outro dos bitelos caiu em nosso caldeirão, em “nosso” morro. A molecada, composta de alguns de minha idade como Renato, e da geração dois a quatro anos mais velha, como Volnei, avançou célere para impedir que o balãozão em queda, ao pousar e tombar sobre si mesmo, pegasse fogo. A muito custo e pagando o tributo de muita pele arranhada nas lânguidas lâminas de mato – um trecho do morro era famoso por sua “lavoura” do perigoso capim- navalha – o balão foi apanhado, e cuidadosamente dobrado. Aquele sim iria para o depósito comunitário! Descendo do morro em direção ao ponto de travessia, eis que alguém soltou, no meio da patota:
  • 71. 71 – Ei ei, olha aquele carro lá, aquele Passat branco! São os caras que tomaram nosso balão no outro dia! A percepção de que os mesmos calhordas estavam ali, no mesmo ponto, comodamente esperando que lhes trouxéssemos, já dobrado e desmontado, o balão, encheu a todos de fúria. Um dos rapazes, não me lembro se Tonho, teve uma ideia, que prontamente comunicou aos demais. Os moleques continuaram sua aproximação, até certo ponto. Depois estacaram. Os caça-balões (gente, tanta mulher no mundo e aqueles homens barbados caçando balões!), percebendo o impasse, gritaram: - Ei moleques! Tragam o nosso balão! Bora! Era aquilo que Tonho queria ouvir. Apanhando o grande embrulho ou trouxa que era o balão dobrado, gritou de volta: – Esse balão aqui? Esse balão é de vocês também? – Sim, é nosso sim, nós que o soltamos! Pode trazer! – Se esse balão não é nosso, esse balão não é de ninguém, seus otários! Em seguida Tonho, cheio de cerimônia, como se fosse um xamã realizando um ritual, ergueu o grande embrulho sobre a cabeça e despedaçou todo o balão, com uma fúria teatral, enquanto a galera, zoadora que era, urrava num delírio animalesco! A reação daqueles adultos foi a menos adulta possível. Pior, foi desumana, diabólica: Sacando suas armas, fizeram fogo, fogo contra crianças e adolescentes, fogo por causa de um amontoado de papel colado. Como disse, boa parte do morro, inclusive aquela onde os moleques estavam, era coberta por vegetação de
  • 72. 72 cerrado, capim de baixo e médio porte e alguns arbustos. Assim, era “campo aberto” para aqueles diabos treinarem tiro-ao-alvo. A debandada foi geral, cada um vazou para um lado! E toma pipoco, toma tiro cantando no chão. Foi então que o sobrenatural de almeida se manifestou: Volnei, desesperado, desceu por uma ravina correndo como um cavalo ou um gambá em telhado de zinco quente, cabeça baixa como se para protegê-la ou concentrar forças na corrida. Não dava mesmo tempo de olhar pra nada! Só que, camuflada pelo capim alto, havia uma cerca – uma cerca de arame farpado. Amigos, Volnei, já em vias de bater o recorde dos 200 metros rasos, chocou-se com todo aquele peitoral contra a cerca... E seguiu em frente, desabalado em seu desespero, aparentemente sem sequer perceber que acabara de arrebentar ou fazer soltar de suas presilhas três fios de arame farpado, como se fosse um mamute. Nem todos vocês terão a dimensão de um feito desses. Deixe-me ajudar a esclarecer: Por três vezes eu também já me choquei com cercas de arame “sem ver”. E sem ultrapassá-las, claro. Em todas eu também estava correndo. Numa delas, eu descia de uma íngreme ribanceira, onde subira para fotografar paisagens – uma já perdida paixão de adolescência. Passara agachado pela tal cerca, mas na volta, esquecido do embaraço aramado e temeroso de descer devagar e vir a quebrar minha preciosa maquininha Zenit “semiprofissional”, resolvi descer a ribanceira correndo, pois por incrível que pareça
  • 73. 73 a velocidade acaba favorecendo a aderência ao terreno. Só faltou mesmo foi acertar o plano com a dona cerca... E nela bati com toda a força, sendo imediatamente jogado para trás, com furos numa das mãos e na barriga. Não consegui romper nem um fio do arame, e Volnei levou três... Mas fique tranquilo: Graças a Deus ninguém ficou ferido por aqueles disparos. Deixe-me finalizar com outra de Volnei. Ainda hoje temos as garrafas (cascos) de vidro da Coca-Cola. Antigamente – e por um longo antigamente – só havia o tradicional casco de um litro. Os mais velhos irão se lembrar que aquela garrafa possuía o vidro mais grosso do mercado: No fundo chegava a um centímetro de puro vidro. Pois, numa das andanças pela beira do rio, margeando o fundo das casas e barracos, Volnei – que só andava descalço, o bruto, assim como Renato costumava fazer – pisou sem querer bem no meio de uma garrafa de Coca- Cola. A garrafa foi esmigalhada e Volnei, incólume como um Aquiles, seguiu sua marcha. Qualquer outro teria levado trinta pontos e deixado as partidas de pelada no campinho do morro para sempre...
  • 74. 74 Capítulo 18 Os caronistas Um dos grandes prazeres de minha infância de diabruras era pegar carona. Mas, como assim? O lance era o seguinte: Qualquer caminhão que passasse pelo bairro, na época todo feito, todo trabalhado em esburacadas ruas de chão e terra socada, era um convite, um chamariz tocado à diesel, um poleiro convidando os frangos que éramos. A melhor das caronas era a usufruída nos caminhões de pipa d’água: Sua carga balouçante e pesada lhes impedia de andarem muito rápido, e somado a isso o caminhão tinha para-choques e poleiros como que feitos especialmente para que alguém neles se pendurasse. Coisa de design e ergometria, fui aprender anos depois. Ou não. Bem, o importante era a diversão. E quando um caminhão vinha em nossa direção, enquanto saracoteávamos tranquilamente pela rua, e ao passar por nós víamos que já havia um ou mais moleques pendurados na traseira? Ohh! Aquilo era tomado na conta dos ultrajes, afinal ninguém poderia dar uma festa sem nos convidar. E lá íamos nós também. Havia mesmo uma apurada técnica para escaparmos das vistas dos motoristas e ajudantes, alguns já tarimbados em lidar com aquilo. Passando pelo caminhão, continuávamos em frente, jamais observando-o diretamente ou demonstrando qualquer agitação. Alguns
  • 75. 75 passos adiante, do canto da rua andávamos para o centro da mesma, até atingir o delicioso “ponto cego”, centralizados bem atrás do caminhão e ficando invisíveis aos espelhos retrovisores. Neste momento dávamos meia- volta e literalmente voávamos em disparada, para agarrar nas ferragens. Outra carona muito praticada era a realizada nas portas dos ônibus. Naqueles tempos, os ônibus possuíam um balaústre (espécie de apoio ou corrimão) para o lado DE FORA das portas – o que nos modelos posteriores foi sabiamente alterado, ficando agora do lado de dentro das mesmas, e sendo expostos apenas quando as portas se abrem. Pois bem, aquelas duas “asas” para fora dos ônibus eram um convite para nos agarrarmos ali, equilibrando os pés nos sopés das portas. Íamos para a loja da Popó Piscinas, início da rua principal do bairro, e assim que o ônibus entrava, lá íamos nós agarrados, curtindo o vento nas fuças até a nossa rua. A Anarquia era deusa celebrada naqueles idos e sofridos: alguns dos motoristas já nem ligavam. Mas outros, furiosos, paravam o ônibus ou pior, aceleravam à toda, sacolejando a sulapa de ferro e lata para ver se desistíamos – ou caíamos, catapultados pelo tremelique do navio pirata. O ônibus que atendia ao bairro fazia a linha 17, da empresa Icaraí (hoje ABC), que cumpria o trajeto entre os bairros de Maria Paula a Jardim Catarina. Ainda hoje a linha existe, mas agora passa por uma outra rua. As más línguas dizem que eu ajudei a remover o ônibus de nosso bairro,
  • 76. 76 de tantos vidros que quebrei. Mas deixemos esses comentários venenosos para os maledicentes. Quanto às caronagens clandestinas nas portas dos ônibus, eu e Renato éramos ali os talvez mais hábeis praticantes desse esporte radical e suburbano – atletas de ponta, campeões irreconhecidos dum esporte hoje proscrito pelo duro julgamento da lei. Bem, certa feita as coisas não saíram como o corriqueiro. A atividade caronística tinha seus riscos, que eram algo calculados: O ônibus, ainda que o motorista acelerasse, geralmente parava de uma a quatro vezes bairro adento, para descarregar passageiros, isso apenas até chegar em nossa rua, situada no quarto “ponto”. Dali em diante, por sinal, não havia iluminação pública, e ainda por cima as casas escasseavam, num “vácuo” humano que ia por quilômetros até o distante bairro de Maria Paula, já na fronteira com o município de Niterói, onde tal linha de ônibus tinha seu ponto final. Assim, de maneira alguma poderíamos passar de nossa rua, sob risco de nos vermos, em plena noite, “perdidos” e sozinhos bem longe de casa. A boa etiqueta recomendava que descêssemos ao menos na segunda parada, por via das dúvidas. Pois vai que ninguém descesse nas seguintes? Mas nessa noite fatídica, após apanharmos nossa democrática condução, notamos que o motorista já iniciara a acelerar desde o primeiro ponto. Passou um ponto e ninguém descera, outro e nada... Chegamos no terceiro e igualmente ninguém puxou a “cigarra”, a campainha para descer do veículo. Eu e Renato ficamos preocupados. Enquanto aproximava-se de nosso limite, o
  • 77. 77 ponto que dava para nossa “rua”, notamos que o miserável acelerava ainda mais – talvez já nos conhecesse! Vendo que ninguém iria descer, que o carroção tremia em solavancos cada vez maiores, e que acabaríamos lá em Maria Paula ou coisa pior, Renato, meu sinistro mestre, nãos se fez de rogado: Pulou dentro de uma fossa de esgotos que margeava certo trecho da rua! Enquanto avançava agarrado com força àquela porta, ainda pude ver o bitelão se levantando da lama, todo “cagado”. Mesmo em desgraça, encontrei tempo de gargalhar e gritar, caçoando do “espertalhão medroso”, que confirmava a fama de “Cascão”! Entretanto, poucos metros adiante era o limite, a linha vermelha entre a civilização e o breu total. Tentei pensar o mais rápido que pude, ao ver que naquele último ponto ninguém desceria mesmo, e o satanáquia do motorista só fazia acelerar. Foi só então que me ocorreu que não havia mais fossas de esgoto. Ou moitas e matagais. Era apenas chão. Chão duro, compactado, coberto de esfoliante cascalho. Agora em mortal desespero, qual Ícaro de desfeitas asas, foi naquele chão que me joguei. Não me lembro bem como foi o impacto. Bem, nem bem, nem mal. Testemunhas dizem que capotei pelo chão como um dublê de filmes de ação. Como de nada recordo, devo ter desmaiado na primeira pancada. O resto foi por conta e divertimento da lei da gravidade... Acordei com algumas pessoas sobre mim, me abanando. Uma, a irmã de Renato, Rosana, correu imediatamente pata avisar meus pais – o que me fez tentar levantar-me para detê-la, possuído de ódio e medo, pois
  • 78. 78 eu tomaria mais uma coça, uma surra homérica! Ela não se comoveu, que não era disso, nem eu tive forças: e lá vieram meus pais. Jogado nos bancos de um Fusca ou Brasília, fui levado às pressas até um hospital para o raio-x rotineiro. Nada quebrara, por sorte. Nos dias seguintes, aquele de quem ri, o que se jogara na maciez pútrida de uma vala, me zoou como a um asno, dizendo que eu preferira me jogar no chão duro e “apagara” como um pavão ou heroína de novela das sete. E eu aprendera mais uma lição de meu mestre de presepadas...
  • 79. 79 Capítulo 19 Vamos falar sobre etnia Filho de um paranaense de Arapongas com uma mineira de Itanhomi que, um a trabalho e outra a passeio, no Rio de Janeiro se encontraram e, fulminados pelo terrorista Cupido, num insosso e depauperado subúrbio gonçalense resolveram fundar família, fui um menino branco criado fundamentalmente entre negros. Meus pais, pela graça de Deus, assustadoramente não demonstravam traços perceptíveis do racismo deslavado ou sequer do quase onipresente racismo estrutural que, como um verme, trafega nos intestinos de nossa sociedade. Essa indiferenciação de pessoas, fosse qual fosse sua pele, foi imediatamente passada a mim e a minhas irmãs. Meus amigos, colegas, seus pais, até meus desafetos, negros em sua grande maioria, me fizeram quem sou, definiram meu modo de ser, e nem posso imaginar ter sido criado numa realidade diferente. Tenho um imenso orgulho de tudo o que vivi, de todos eles, e este livro é um dos braços ou frutos desse orgulho. Se sofri o chamado “racismo reverso” (que por sinal não existe, mas isso é uma outra conversa), ou melhor, se fui acossado por ser “branco”? Sim, boas vezes. E devolvi racismo com racismo, invertendo os impropérios: A cada “branco vela”, ou “vela de macumba” eu lançava um “picolé de carvão” ou coisa parecida. Sim, hoje tudo muito feio, enquadrado no código penal. Mas aquelas ofensas
  • 80. 80 entre moleques (e meninas), aqueles tapas verbais terminavam como as ofensas baseadas em tapas físicos: No dia seguinte, ou tardar numa semana, tudo havia passado. Antes que eu pudesse compreender todas as vantagens indevidas que a minha cor, que não escolhi, me concedia e concederia enquanto eu vivesse – às custas do sangue, do suor e das oportunidades roubadas de meus irmãos negros – sim, aqueles negros por cuja amizade eu optei e a cujo círculo eu chorei para dele pertencer, para ser entre eles aceito – uma outra e divertida “vantagem”, essa mais condizente com este livro de humor, foi muito explorada pela malandragem beirarriense. Notadamente, claro, por meu mestre-de-ofícios, o Renato. O caso era que, em nossa Beira Rio, havia já àquela altura dos anos oitenta algumas famílias de nordestinos. Os nordestinos, gente humilde e trabalhadora, fosse por inadequação, temor ou timidez, não era de se misturar com os demais comunitários. Viviam suas vidas entre o trabalho e o lar, e reuniam-se apenas entre eles mesmos. Algumas dessas reuniões corriqueiras transcorriam durante os aniversários, principalmente os infantis. Bem, se não conheciam ou tinham desenvolvido amizade ainda com quase ninguém do bairro, era comum que suas festas reunissem apenas outros nordestinos: tanto próximos quanto distantes, os ao mesmo tempo humildes mas festivos nordestinos celebravam seus bons momentos com fartura em comes e bebes. Comes e bebes: Pode haver, para moleques de rua, expressão mais atratora? Mas, como entrar numa festa em
  • 81. 81 que não se fora convidado? Tentávamos como podíamos, como joões-sem-braço, na base do cerca-lourenço, devagar e sempre, ou mesmo na marra, entrando de bonde. Não importava o método, o resultado era o mesmo: Todos aqueles “pretinhos” eram imediatamente identificados, claro, como penetras, como bicões naquelas festas de nordestinos brancos. O ocorrido numa ocasião em que entráramos numa das festinhas despertou a atenção do malicioso Renato: Dos cinco bicões que se intrometeram naquele festim, quatro foram expulsos; mas eu, branco, fui deixado incólume. Não era racismo: Eu simplesmente fora confundido com o filho de um deles. Chamado ao portão, fui instado (bem, talvez ameaçado) por Renato e demais a apanhar guloseimas e salgadinhos dentro da festa e trazer para fora, para a partilha do pão com meus irmãos de destino. Funcionou. E assim, doravante, eu me tornei o agente infiltrado oficial da Beira Rio: O falso nordestino que era arroz-de- festa, sempre presente em todas. “Você é filho de quem mesmo?” “Da Francisca, da Francisca”, eu dizia, mesmo sem conhecer Francisca alguma. Um dia o engodo caiu por terra: Eu fora finalmente identificado como o “filho de dona Lia, uma que mora ali, assim, assim”; como não-nordestino e principalmente, como não-convidado, as portas, não sem justiça passaram a se fechar, para decepção de meia rua... E de mais a mais eu, sempre muito tímido, já estava mesmo farto daquele constrangimento, e daquele peso
  • 82. 82 de, ainda tão jovem, ser o responsável, o arrimo, pela alimentação de tantas bocas!
  • 83. 83 Capítulo 20 Casemiro, O Profeta Impossível coordenar no mesmo período os termos Jardim Nazaré e catar ferro-velho sem elencar o terceiro elemento que completa a equação: Profeta. Seu nome, ao que consta, era Casemiro. Possuía um ferro-velho em sua casa, na rua principal do bairro. Quando o conheci, era já um ermitão. Meus pais diziam que tivera esposa, que aparentemente abandonara o coitado. Era homem já pelos seus 60 ou mais (ou menos, que a vida trata a cada um com um rigor diferente), senhor de suas rugas e verrugas. Seu cabelo, alvo e sempre desgrenhado, lhe alcançava quase os ombros; seus trajes completavam o arquétipo do eremita: Shortões ou calças puídos ao máximo, cheios de reparos aparentes, de costura desleixada e cores indefiníveis, dado o encardido. Suas camisas seguiam o mesmo script. A barba não grande, mas sempre por fazer, era o arremate, a cereja do bolo. Aquele morador dum bairro suburbano de São Gonçalo bem que poderia ser confundido com um elemento antisocial (nossa língua imensa tem até um nome feio para isso: misantropo) morando numa gruta ou caverna no agreste do país. Fato que contribuía para aumentar a aura de mistério que, ao menos para as crianças da época, o envolvia: Quando eu lhe perguntava por que ele era chamado de
  • 84. 84 Profeta, o desconjuntado fazia uma cara de pensador profundo, e dizia: – Você não ia entender, garoto... – Mas, diga, diga que eu entendo sim, seu Profeta. – Garoto, isso está muito além de sua mente de criança. Sabe, eu vejo mundos... – Mundos??!!! Caramba!!! Fale sobre esses mundos. – Esqueça isso, moleque, você é muito jovem para entender. São mistérios... Por incrível que pareça, este diálogo se repetiu algumas boas vezes, sempre com o mesmo desenlace inconclusivo. E vez após vez o diabrete da curiosidade plantava seu feijão mágico em minhas terras férteis. Pois bem, as primeiras experiências de mercar reciclagem de todos os moleques do bairro começaram com Profeta – ainda que, depois, fôssemos migrando para ferros-velhos mais distantes, mas que em compensação pagavam melhor. Antecipando-se aos movimentos feministas de igualdade laboral, até meninas se apresentavam naquele entreposto para vender ferragens e garrafas! Recordo de que era comum na época catarmos ferro e latas principalmente. Essas hodiernas embalagens plásticas dos óleos de soja, ou as latinhas com partes de papelão de alguns leites em pó inexistiam: Era tudo tecido na mais pura lata. Assim, era bem fácil acumular boa quantidade do (já àquela época) desvalorizado material. E, como dito nalgum lugar, não havia coleta de lixo pelos despudorados poderes públicos: A cada esquina e meia havia um lixãozinho a céu aberto.