Este poema descreve uma conversa entre um leão e uma leoa sobre onde passar o verão. A leoa prefere climas frescos e propõe ir para o pólo norte, ao passo que o leão sugere locais mais quentes. No final, descobrem que o pólo está fechado devido ao frio e decidem comer um gelado.
1. Um Pouco Mais de Nós
Podes dar uma centelha de lua, Quando Eu For Pequeno
um colar de pétalas breves
Quando eu for pequeno, mãe,
ou um farrapo de nuvem;
quero ouvir de novo a tua voz
podes dar mais uma asa
na campânula de som dos meus dias
a quem tem sede de voar
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
ou apenas o tesouro sem preço
Subirás comigo as ruas íngremes
do teu tempo em qualquer lugar;
com a certeza dócil de que só o empedrado
podes dar o que és e o que sentes
e o cansaço da subida
sem que te perguntem
me entregarão ao sossego do sono.
nome, sexo ou endereço;
podes dar em suma, com emoção, Quando eu for pequeno, mãe,
tudo aquilo que, em silêncio, os teus olhos voltarão a ver
te segreda o coração; nem que seja o fio do destino
podes dar a rima sem rima desenhado por uma estrela cadente
de uma música só tua no cetim azul das tardes
a quem sofre a miséria dos dias sobre a baía dos veleiros imaginados.
na noite sem tecto de uma rua;
Quando eu for pequeno, mãe,
podes juntar o diamante da dádiva
nenhum de nós falará da morte,
ao húmus de uma crença forte e antiga,
a não ser para confirmarmos
sob a forma de poema ou de cantiga;
que ela só vem quando a chamamos
podes ser o livro, o sonho, o ponteiro
e que os animais fazem um círculo
do relógio da vida sem atraso,
para sabermos de antemão que vai chegar.
e sendo tudo isso serás ainda mais,
anónimo, pleno e livre, Quando eu for pequeno, mãe,
nau sempre aparelhada para deixar o cais, trarei as papoilas e os búzios
porque o que conta, vendo bem, para a tua mesa de tricotar encontros,
é dar sempre um pouco mais, e então ficaremos debaixo de um alpendre
sem factura, sem fama, sem horário, a ouvir uma banda a tocar
que a máxima recompensa de quem dá enquanto o pai ao longe nos acena,
é o júbilo de um gesto voluntário. SELECÇÃO DE IDALMIRA lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno
E, afinal, tudo isso quanto vale ? e a orfandade até nos olhos deixa marcas.
Vale o nada que é tudo in O Livro Branco da Melancolia
sempre que damos de nós
o que, sendo acto amor, ganha voz
e se torna eterno por ser único e total.
2. Porque os outros se mascaram mas tu não Poema
Porque os outros usam a virtude
A minha vida é o mar o Abril a rua
Para comprar o que não tem perdão. O meu interior é uma atenção voltada para fora
Porque os outros têm medo mas tu não. O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Porque os outros são os túmulos caiados
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Onde germina calada a podridão. Sabendo que o real o mostrará
Porque os outros se calam mas tu não.
Não tenho explicações
Olho e confronto
Porque os outros se compram e se vendem E por método é nu meu pensamento
E os seus gestos dão sempre dividendo. A terra o sol o vento o mar
Porque os outros são hábeis mas tu não. São a minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Porque os outros vão à sombra dos abrigos Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
E tu vais de mãos dadas com os perigos. Não me perguntem datas nem moradas
Porque os outros calculam mas tu não. De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
SELECÇÃO DE YURAN SEMEDO Cada dia preparada
3. É urgente o amor
É urgente o amor. O sal da Língua
É urgente um barco no mar. Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
É urgente destruir certas palavras, Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
ódio, solidão e crueldade,
a vida de ninguém - mas quem
alguns lamentos,
é hoje capaz de salvar o mundo
muitas espadas.
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
É urgente inventar alegria,
Escuta-me, não te demoro.
multiplicar os beijos, as searas,
É coisa pouca, como a chuvinha
é urgente descobrir rosas e rios que vem vindo devagar.
e manhãs claras. São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
Cai o silêncio nos ombros e a luz para que não se extinga o seu lume,
impura, até doer. o seu lume breve.
É urgente o amor, é urgente SELECÇÃO DE RAMIRO CÁ Palavras que muito amei,
permanecer.
4. A leoa convenceu o leão,
depois de uma grande discussão,
a passarem juntos o Verão.
Sei lá... talvez no Ceilão!
O leão, convencido,
com a leoa foi mesmo querido:
- Ouve lá o teu rico marido:
e se fôssemos para um sítio bem florido?
A leoa rosnou e ripostou:
- Sabes bem como é que eu sou.
Há climas com os quais eu não me dou.
Prefiro o fresco. Para o pólo eu vou.
E lá partiram, a rugir, para a zona polar.
Fartaram-se de pular, de rosnar e de andar.
Chegaram lá... o pólo estava a fechar:
Pedimos desculpa, mas estamos a gelar!
- O pólo está fechado?
- gritou a leoa. O leão, escaldado,
olhou de alto a baixo e depois de lado.
SELECÇÃO DE VICTA SOARES - Anda daí, vamos mas é comer um gelado!