Este documento discute a proposta da PEC 308/204 que cria uma nova carreira policial penitenciária. Primeiro, analisa a evolução dos sistemas policiais no Brasil e a necessidade de valorização das carreiras. Segundo, argumenta que a proposta é legítima e não contraria a Constituição, visando melhorar a segurança e administração dos presídios. Terceiro, afirma que há correlação entre as atividades policiais e penitenciárias, justificando a criação da nova carreira.
Estudo sobre a pec 308204 solicitado pela federação sindical nacional de servidores penitenciários
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PARECER: 001/2015
A CONSULTA
A Federação Sindical Nacional de Servidores Penitenciários
– FENASPEN solicita-nos um estudo sobre a PEC 308/204 que,
alterando os artigos 21 (inciso XIV), 32 (§4º) e acrescendo os in-
cisos VI, VII e §§ 10 e 11 ao art. 144, da Constituição, cria uma
nova carreira policial penitenciária, com funções de polícia pre-
ventiva, investigativa e ostensiva, na supervisão e coordenação da
segurança interna e externa dos estabelecimentos penais.
É o que passamos a fazer.
1. Evolução institucional.
Da constatação da necessidade de regras jurídicas de convi-
vência social e, então, de caráter obrigatório, intersubjetivo e co-
ercitivo, para a proteção das esferas de liberdades, tanto quanto de
bens essenciais ao indivíduo e à sociedade (liberdade, vida, saúde,
intimidade, amor, respeitabilidade, etc.)1
, chegou-se a formulação
de uma série de institutos e instituições que visam assegurar (ou
buscar) a efetividade destas normas, direitos e deveres correlatos,
cada vez com maior especialização e acuro, dentre as quais os
Sistemas Policiais.
1
“O Direito Penal é o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de sele-
cionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes
de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los co-
mo infrações penais, cominando-lhes, em consequência, as respectivas sanções, além
de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e
justa aplicação.” (Capez, Fernando, Curso de direito penal, volume 1, parte geral: arts.
1º a 120, Fernando Capez, 15ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, pág.19).
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No Brasil os Sistemas Policiais foram gradualmente modifi-
cados, num processo lento, descontínuo e inconstante, com avan-
ços, recuos e desvios, até que, pela democratização, a representa-
ção de classe e formação de uma intelligentsia dedicada ao seu es-
tudo, começa a amadurecer de forma vigorosa.
A partir de meados da década de 1980, num processo de revi-
são, foram reformados e criados cursos e academias de polícia,
ampliadas cargas horárias e currículos destes centros de ensino e
treinamento, para o aperfeiçoamento da atividade policial, proces-
so ainda hoje em curso, com longo caminho a trilhar2
.
E se nos tempos do Império, a chefia da polícia ainda era
confiada a um magistrado e havia confusão entre a função de in-
vestigar, acusar, julgar e punir, acelerou-se uma progressiva espe-
cialização destas funções, num longo caminho foi percorrido.
E a especialização é desejável não só por favorecer a exce-
lência (quem faz apenas uma coisa, faz melhor), mas porque evita
os inconvenientes da promiscuidade de atividades, pois os melho-
res estudos e a experiência prática revelaram que aquele que acu-
sa não deve julgar; o que investiga não deve punir e, assim, suces-
sivamente3
, pois a separação funcional, em órgãos distintos, evita
concentração de poderes e os limita, favorece a busca da verdade
real e evita que o apenamento se torne em vingança.
2
Sobre a necessidade de modernização dos sistemas veja “O inquérito policial no Bra-
sil: uma pesquisa empírica / Michel Misse (organizador). – Rio de Janeiro: NEC-
VU/IFCS/UFRJ; BOOKLINK, 2010, págs. 9 a 101.
3
Exempli gratia: CORRÊA, Vanessa Pitrez de Aguiar. O papel da polícia judiciária no Es-
tado Democrático de Direito. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, v. 21,
n. 1, jan. 2009; MORAES, Elster Lamoia de. Princípios do moderno inquérito policial.
Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2068, 28 fev. 2009.
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Daí a atividade investigativa ter sido gradativamente destaca-
da jurisdicional e acusatória, amadurecendo, criando técnicas pró-
prias, e terem-se desenvolvido instituições penitenciárias aparta-
das dos órgãos investigativos.
A despeito dessa inegável evolução, o nosso sistema prisional
ainda opera de modo disfuncional, no limite crítico de sua capaci-
dade física e com carência de pessoal especializado.
A população carcerária, que por si só revela a importância do
problema: O número total de presos já tangenciava meio milhão
em 20104
, enquanto a capacidade era de aproximadamente 363
mil vagas, sendo hoje o déficit é de mais de 200 mil vagas.
Mas a superlotação não é o único gargalo. A deficiência de
servidores, em quantidade e qualidade (treinamento), tem tornado
a improvisação a regra, o que inclui o desvio funcional de investi-
gadores pela manutenção de presos em delegacias, criando um ti-
po de violência peculiar contra os servidores que um estudioso
chamou de Violência Burocrática, decorrente da imposição de a-
tividade diversa do concurso, do treinamento e, possivelmente, da
habilidade do servidor:
"Una variante (tipo específico) de violencia política, perpetrada (so-
bre los agentes del sector público), por funcionarios políticos de la
Administración Pública y por funcionarios estables de alto rango
(Personal Jerárquico con funciones ejecutivas y personal a cargo)
4
Conforme relatório do InPen, do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério
da Justiça, divulgado em 2/3/11, já eram 496.251 presos em dezembro de 2010, vide
em file://servidor/clientes/CBA%20e%20RFA/FENASPEN/PEC%20308_2004/2010Pop
Carceraria.pdf.
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que tienen la responsabilidad social, 13 legal y en este caso, adminis-
trativa, de cuidar a los trabajadores del Estado y de cumplir y hacer
cumplir las normas administrativas vigentes."5
E não basta, construir presídios e cadeias6
. O sistema padece
de múltiplas carências e o mero investimento em recursos materi-
ais, especialmente presídios, será insuficiente e impossível:
'A solução mais simplista seria a construção maciça de presídios.
“Para um déficit de 100 mil vagas, precisaríamos construir 200 esta-
belecimentos com capacidade para 500 presos, mas não há dinheiro
para fazê-lo, já que o custo de cada um desses projetos é da ordem de
R$ 15 milhões”.' (KUEHNE, Maurício. Disponível em:
http://www.lexeditora.com.br/ojurista/default.asp?noticia_id=79&edi
cao_id=11&edicao_numero=07)
Dentre os sistemas da Segurança Pública o menos prestigiado
pela atenção política tem sido o penitenciário, talvez por não ser o
melhor investimento eleitoreiro. Para constatar essa verdade basta
lembrar a postura de autoridades de municípios destinatário de
projetos de novos estabelecimentos prisionais7
e o desprazer de
políticos quando recursos são destinados a este equipamento8
.
5
SCIALPI, Diana. La violencia laboral en la administración pública Argentina. Venezuela.
Revista Venezolana de Gerencia. Año 7, n. 18, 2002.
6
Para todo problema complexo, existe uma solução clara, simples e errada. George
Bernard Shaw
7
Políticos de Pará de Minas/MG foram contra a instalação no município da Penitenciá-
ria Pio Canedo, em 2003, a despeito da precariedade da cadeia pública. Agora, quem
recusa a instalação de um novo presídio é o Prefeito de Pitangui, a despeito de ser dali
boa parte dos internos de Pio Canedo.
8
Na década de 1990 a cidade mineira de Paracatu não tinha uma cadeia pública. A u-
nidade que existira ruiu e não foi reedificada, cheguei a presenciar presos algemados a
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Então, a solução possível é complexa, incluindo a racionali-
zação na imputação das penas, melhoria dos presídios existentes,
construção de novos e, acima de tudo, a boa administração das u-
nidades todas, por servidores treinados e condignamente remune-
rados para tanto, além de uma assistência jurídica adequada que
possa extirpar outro mal crônico do sistema: o preso com pena in-
tegralmente cumprida ou excesso de prazo na prisão preventiva,
cujos números são expressivos.9
2. Valorização das carreiras.
Pelo volume de recursos necessários à mera adequação da
população à capacidade dos presídios é possível avaliar o necessá-
rio para a recuperação das unidades existentes10
e concluir que a
modificação da administração do sistema é urgente, pela profis-
sionalização dos servidores e sua valorização.
Só a profissionalização, modernização e valorização das car-
reiras pode otimizar os recursos já existentes e preservar os que
vierem a ser aplicados, prover a adequada conservação dos equi-
pamentos, reduzir as retenções ilegais de presos e prover o trata-
mento humanizado do interno e familiares, além de maior segu-
rança das unidades operadas por profissionais.
um cabo de aço chumbado no piso de uma praça, ao relento. O jovem Promotor de
Justiça que lá chegou à época, vendo a situação calamitosa e humilhante liderou uma
campanha cívica que levou a arrecadação de fundos para a edificação de uma nova u-
nidade, recebendo título de cidadão honorário pela iniciativa. Na cerimônia de entrega
do título e inauguração da unidade o então prefeito lamentou o gasto, preferia inaugu-
rar um hospital ou escola. Não consta, entretanto que tenha erigidos equipamentos
em sua gestão, escola, hospital, ou mesmo uma utilíssima rede de esgoto.
9
Levantamentos estimam que 9.000 pessoas permaneçam presas após cumprir suas
penas e 30% da população carcerária é de presos “provisórios”.
10
Em pronunciamento público o Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo admitiu que
o Sistema Prisional é “medieval”.
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Não se deve olvidar, ainda, a importância da avaliação cons-
tante do fenômeno delitivo a partir de dados do Sistema Peniten-
ciário, que pode ajudar na criação e implementação de políticas
públicas preventivas e repressivas mais eficientes, como assinala
o estudo "Modernização da Polícia Civil Brasileira – aspectos
conceituais, perspectivas e desafios", elaborado pelo Grupo de
Trabalho criado pela Portaria nº 2, de 21 de dezembro de 2004
(DOU nº 10, seção 2, 14/1/05.), páginas 23 e 24:
“O mesmo se pode dizer quanto aos dados produzidos no campo da
administração prisional, de onde se pode praticar uma observação pro-
funda do comportamento dos infratores, especialmente para fins de
avaliação das possibilidades de reincidência. Uma medida pode ser
apontada como nuclear neste processo de articulação – o intercâmbio
entre o Centro de Inteligência Policial e os sistemas informatizados do
Subsistema Judicial e de Administração Prisional.”
E diversos foram os caminhos buscados para esta valorização
em cada sistema e carreiras que os integram. Reivindicação de re-
estruturação de carreiras, equiparações, pedidos de treinamento
preparatório, de reciclagem e de uso de novas tecnologias. E, não
raro se espelhar em outras carreiras já reestruturadas11
correlatas
ou próximas, com maior ou menor sucesso.
A PEC examinada propõe via peculiar; a criação de uma no-
va carreira policial, dedicada à atividade penitenciária, mirando-se
nas carreiras policiais dos Estados e da União, tudo com base na
inegável correlação entre as respectivas atividades, mas com fun-
ções bem distintas e definidas.
11
O Ministério Público buscou equiparação com a Magistratura, os Delegados de Polí-
cia e Procuradores dos Estados e União com o Ministério Público. Tentam agora os De-
legados se despregar da carreira policial, comparando-se à Magistratura e MP.
7. Página7
3. Aspectos técnicos e jurídicos.
A pretensão é legítima e não padece contraindicações jurídi-
cas, como já concluiu a própria Relatora na comissão de Constitu-
ição e Justiça da Câmara:
“Inexiste óbice constitucional, legal ou regimental à aprovação da proposta. O
número de assinaturas mostra-se suficiente e atende ao inciso I, do artigo 60, da
Constituição Federal. A criação da polícia penitenciária está em sintonia com as
necessidades da segurança pública, um complemento necessário à organização
policial que se afina com o sistema em vigor.”
A justificativa da proposta encontra eco no meio social. Do ponto de vista da téc-
nica legislativa, o preceito contido no artigo 3º, do projeto, introduzindo o inciso
VI com o §10, carece de conteúdo. Trata-se de norma em branco cuja amplitude
se afigura inconveniente. Do ponto de vista jurídico, o §11 e seus incisos contêm
matéria que deve ser regulada em lei ordinária. Tais dispositivos devem ser su-
primidos do projeto. Voto, pois, pela aprovação da proposta nos termos da E-
menda Supressiva que apresento a seguir.”
Também não colide com a ideia de carreira policial única,
sendo justamente o que propõe para a atividade penitenciária.
É inegável a correlação entre as carreiras policiais já institu-
cionalizadas e a atividade penitenciária, existindo ainda, inclusi-
ve, função penitenciária em carreiras policiais, como é o caso da-
queles servidores policiais encarregados da custódia de presos12
.
O próprio Executivo da União admite a correlação e o caráter
policial da atividade penitenciária ao incluí-la no esquema dos
Sistemas Policiais, em torno da atividade do que definiu como
Sistemas da Polícia Civil, num satélite denominado Sistemas da
Execução Penal, contido na página 32 do documento "Moderni-
12
LEI 13064 de 30/12/2014, Altera a nomenclatura do cargo de Agente Penitenciário
da Carreira de Polícia Civil do Distrito Federal, de que trata a Lei nº 9.264, de 7 de feve-
reiro de 1996, para Agente Policial de Custódia
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zação da Polícia Civil Brasileira – aspectos conceituais, perspec-
tivas e desafios", elaborado pelo Grupo de Trabalho criado pela
Portaria nº 2, de 21 de dezembro de 2004.
A nova carreira pode inclusive superar os graves problemas
decorrentes da mercantilização da execução penal, como a inten-
siva e indiscriminada terceirização e privatização de presídios, na
medida que poderá viabilizar uma experiência mais consistente do
problema prisional, estudando soluções possíveis e adequadas.
Há fixação das competências, entretanto, suprimida do texto
pelo voto da Relatora, Deputada Juíza Denise Frossard, contudo,
é conveniente, de modo a distinguir claramente as competências
da nova polícia, especialmente no que se refere à delimitação das
funções investigativas, que devem se restringir, a nosso juízo, às
tarefas de inteligência e administração prisional e não com o fito
de instruir processo penal.
E se, talvez o texto original tenha proposto em excesso, a de-
limitação de competências seria seguramente benéfica, em pari-
dade do havido com as demais carreiras policiais na própria cons-
tituição, como nos §§ do artigo 144 da CRF, no que se refere às
carreiras policiais pré-existentes, evitando promiscuidade e sobre-
posição funcional, especialmente quanto às polícias judiciárias.
É o que nos parece, salvo melhor juízo.
Belo Horizonte, 14 de julho de 2015.
Cezar Britto
OAB/DF 32.147
Bruno Reis de Figueiredo
OAB/MG 102.049
Sílvio de Magalhães Carvalho Júnior
OAB/MG 56.920