1. Biocidadania e medicina
personalizada
A quantificação dos corpos como método de incorporação de
um novo ethos
José Carlos Pinto da Costa
(CRIA-FCSH/UNL)
The Quantification of Bodies
Organism, Health and Representation:
From Renaissance to Big Data
International Congress 29th November 2019
University of Coimbra (FLUC)
3. Introdução
Argumento de partida:
Pelo registo, monitorização e fornecimento de grandes
quantidades de dados biométricos, os indivíduos
simultaneamente coproduzem o ideal da medicina personalizada
e incorporam uma nova ética, que tem na figura da biocidadania
o seu corolário. Esta nova ética projeta o desejo por um futuro
em que os indivíduos são plenamente esclarecidos e informados
sobre a sua responsabilidade em gerir a sua saúde e os sistemas
de saúde são totalmente eficientes
Proposta:
Propor à discussão o significado social e antropológico da
narrativa da nova biomedicina, na qual a quantificação dos
corpos obtém o seu contexto
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4. Desenvolvimento I
A medicina 4P e o imperativo da saúde digital
• Medicina 4 P*
Preditiva
Preventiva
Personalizada
Participativa
• Saúde digital
• Cuidados de saúde
baseados em Valor
(* 5º P – Precisa)
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5. Medicina 4 P
As oportunidades do modelo 4P são inúmeras. Os impactos da
sua implementação plena serão indubitavelmente enormes no
futuro. Ainda é cedo para se perceber a real dimensão social
destes impactos*. Um dos maiores desafios é incluir a
população no processo, potenciando, com isso, a participação
do indivíduo (o quarto P) no “idioma da emergência”, que é
marcado pela invasão do novo e da discursividade
tecnocientífica que a população não está habituada a perceber
e a usar.
* Saxena, M. & Saxena, A. (2018). Personalized Medicine: A Bio-Medicine derived
from Big Data Analytics. Proceedings of the 12th INDIACom; INDIACom-2018;
IEEE. (Accessed 13th January 2019). Available at: http://studentlearning.in/wp-
content/uploads/2018/08/Personalized-Medicine-A-Bio-Medicine-derived-from-
Big-Data-AnalyticsMohit.pdf
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6. Saúde digital
“O uso de produtos, serviços e processos TIC,
combinados com a mudança organizacional nos
sistemas de saúde e nas suas capacidades [com o
objetivo de melhorar] a saúde dos cidadãos, a
eficiência e a produtividade dos cuidados de saúde
e o valor económico e social da saúde”*
* CE (2012). Communication from the Commission to the Council, the European Parliament, the
European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions: eHealth Action
Plan 2012-2020 - Innovative healthcare for the 21st century (COM(2012)736 final).
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7. • A saúde digital desafia os profissionais de saúde, os
investigadores e os empreendedores a responder ao
problema maior de melhorar os processos e os sistemas
tradicionais de cuidado, caracterizados pela
estandardização dos procedimentos, de forma a
transformá-los num novo sistema que seja inteligente,
isto é, que seja fornecido no quadro de um ajustamento
entre os recursos e as necessidades, em concordância
com as premissas da economia formal.
• A introdução das novas tecnologias nos cuidados de
saúde e nos tratamentos médicos é vista como a
oportunidade para pensar este ajustamento. Neste
processo, é necessário mobilizar os recursos ao alcance.
A visão economicista da saúde apoiada no valor, de
Michael Porter, encontra aqui a sua filosofia de base.
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8. Desenvolvimento II
A cidadania biológica e a discursividade da
biomedicalização
A biomedicalização da própria vida (humanos, plantas e animais) é
uma força movida por imperativos tecnológicos (Clarke 1998).*
O conceito sintetiza e apresenta uma “visão geral das mudanças na
biomedicina e na medicalização, [envolvendo cinco processos] mais
amplos: (1) privatização e mercantilização, (2) risco e vigilância, (3)
expansão das práticas tecnocientíficas, (4) produção e distribuição
de conhecimentos e (5) transformações de corpos e subjetividades.”
(Clarke et al., 2010:viii)**
* Clarke, A. (1998). Disciplining Reproduction: Modernity, American Life Sciences, and “the Problems of Sex.”
Berkeley: University of California Press..
**Clarke, A. ; Shim, J. ; Mamo, L. ; Fosket, J. & Fishman, J. (2010). Biomedicalization: A theoretical and
substantitve introduction. In Adele Clarke et al. (Eds.) Biomedicalization: Technoscience, Health, and Illness in
the U.S. (pp. 1-44). Durham & London: Duke University Press.
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9. Retirado de McKinlay, J (1981). Social network influences on morbid episodes and the career of help seeking. In L.
Eisenberg and A. Kleinman (Eds.) The Relevance of Social Science for Medicine (pp. 77-107). Dordrecht, Boston
and London: D. Reidel Publishing Company, p. 79.
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10. A prioridade é agora prever e prevenir as doenças, e, para isso,
é necessário que as pessoas participem, fundamentalmente,
adotando as práticas da quantificação como modo regular de
comportamento, responsabilizando-se pela sua saúde. E é
aqui que a adoção de comportamentos regulares de
quantificação se transforma também ela em adoção de modos
de regular o comportamento. Ao fornecer os seus dados, o
paciente passa a ser co-produtor de um novo status quo,
envolvendo-se desta forma na perseguição de uma utopia
(Bell & Pahl, 2018*).
* Bell, D. & Pahl, K. (2018) Co-production: towards a utopian approach. International Journal of
Social Research Methodology, 21(1), 105-117.
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11. Parecendo que está a recuperar o discurso, a
tomar assento nos processos hegemónicos de
inscrição, o paciente co-produtor está, na
verdade, a submeter-se à moldagem de um
modelo específico de biocomunicabilidade,
situando-se entre o papel de consumidor de
serviços e o de agente diluído na multidão dos
co-produtores que, como ele, são estruturados
pela força do discurso da biomedicalização.
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12. De acordo com Briggs & Hallin (2007, 2010)*, o
modelo de biocomunicabilidade atual é
potencialmente híbrido, ou mesmo múltiplo.
Permanecem combinados na atualidade, no âmbito
do acesso aos cuidados de saúde, o modelo da
autoridade médica, o modelo do paciente-
consumidor e o modelo da esfera pública. A
combinação destes modelos na contemporaneidade
significa que o “paciente” vê o seu estatuto tornar-se
uma amálgama confusa de sobreposição de
normatividades – uma normatividade multi-
normativa – a de “paciente”, a de “consumidor” e a
de “cidadão co-produtor”.
* Briggs, C. & Hallin, D. (2007). Biocommunicability: The Neoliberal Subject and its
contradictions in new coverage of health issues. Social Text, 25(4): 43-66.
Briggs, C. & Hallin, D. (2010). Health reporting as political reporting:
Biocommunicability and the public sphere, 11(2), 149-165.
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13. Este é o sinal mais característico de um tempo de
transformação (mais do que de mudança ou de
evolução). O trabalho diário da biomedicalização
acontece por via destes processos de
biocomunicabilidade (Briggs & Hallin, 2016)*,
estruturando-se em figuras de biosocialidade (Rabinow,
1996)**, como a biocidadania (Petryna, 2002)*** ou a
cidadania biológica (Rose & Novas, 2005)****,
transformando-se, no processo, tanto o indivíduo como a
comunidade (Ajana, 2013)*****
* Briggs, C. & Hallin, D. (2016). Making Health Public: How News Coverage Is Remaking Media,
Medicine, and Contemporary Life. London and New York: Routledge.
** Rabinow, P. (1996). “Artificiality and Enlightenment: From Sociobiology to Biosociality”, in
Essays on the Anthropology of Reason (pp. 91-111). Princeton: Princeton University Press.
*** Petryna, A. (2002). Life Exposed: Biological: Citizens After Chernobyl. Princeton: Princeton
University Press.
**** Rose, N. & Novas, C. (2005). Biological Citizenship, in S. Collier & A. Ong (Eds.) Global
Assemblages: Technology, politics, and ethics as anthropological problems (pp. 439-463).
Malden: Blackwell Publishing.
***** Ajana, B. (2013). Governing through Biometrics: The Biopolitics of Identity. London: Palgrave
MacMillan.
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14. No meu entender, esta é a forma final do processo de
quantificação dos corpos. Uma forma extremamente
complexa que promove a expressão de uma realidade
também ela ambivalente, em que não deixarão de
coexistir planos de existência caracteristicamente
utópicos e distópicos. Com efeito, a figura da
biocidadania “produz novas identidades, comunidades,
expertise e esperança. Mas também tem uma capacidade
de diferenciação e de disciplinação, uma vez que a
cidadania biológica gera novas formas de desigualdade e
fortalece a hegemonia dos quadros de referência
biomédicos” (Mulligan, 2017)*.
* Mulligan, J. (2017). Biological citizenship. Oxford Bibliographies. (Accessed June 12th
2018). Available at: https://www.oxfordbibliographies.com/view/document/obo-
9780199766567/obo-9780199766567-0164.xml
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15. Conclusões
A quantificação dos corpos é um procedimento que
produz figuras ambivalentes sobre o que é o humano
e sobre o que poderá o humano fazer do humano.
Numa constante produção de desequilíbrios entre a
liberdade do indivíduo (para a capacitação) e a
dataficação e a apropriação dos seus sinais para a
gestão dos corpos e da vida, a quantificação dos
corpos apresenta-se como um instrumento de
formatação de um novo paradigma de organização
social no qual interferem múltiplas visões e
múltiplos interesses.
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16. As práticas de monitorização, de registo, de
interpretação de sinais e de desenho de estados
de forma (diagnóstico) vão deixando de ser
exclusivas dos técnicos e dos médicos e passam a
ser reclamadas pelos indivíduos e, ainda que
utopicamente, pela sociedade em geral. E é neste
quadro que poderá emergir em pleno a figura de
uma nova cidadania, cingida ao biológico.
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17. Em suma, ao se integrarem nos processos de co-
produção da biomedicalização, os indivíduos
tornam-se co-participantes no estabelecimento de
contingências hegemónicas, as quais, por sua vez,
moldam as sociedades e os indivíduos, ao
produzirem as normas que regulam a discursividade
e as práticas dos sistemas sociotécnicos mais
abrangentes, como é o caso dos sistemas de saúde.
Neste processo, são transformados tanto o estatuto
do paciente como o papel das instituições,
emergindo um novo ethos.
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