Leitura, por convite, do colóquio de encerramento do i Curso Bruno Latour no Sertão, da Escola Multicampi de Ciências Médicas (EMCM) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), coordenado por Raquel Litterio de Bastos
3. Assemblagem (cf. Deleuze/Latour)
What is na assemblage? It is a multiplicity which
is made up of many heterogeneous terms and
which establishes liaisons, relations between
them, across ages, sexes and reigns – diferente
natures. Thus, the assemblages’ only unity is
that of a co-functioning: it is a symbiosis, a
“sympathy”. It is never filiations which are
importante, but aliances, alloys; thes are not
successions, lines of descent, but contagious,
epidemics, the wind.
(Deleuze, in Deleuze & Parnet, Dialogues II: 69)
Fundamentos:
_ Propriedades emergentes – propriedade de
um todo que não estão presentes nas suas
partes
_ Relações de exterioridade entre partes – as
assemblagens como todos emergentes em que
as suas partes possuem uma certa autonomia
Formada por dois eixos:
_ Material-Expressivo, referindo-se às funções
que cada componente pode desempenhar
_ Territorialização-Desterritorialização,
referindo-se a processos que podem estabilizar
ou desestabilizar a identidade emergente da
assemblagem
4. Montagem (cf. Did-Huberman/McLean)
“a creative practice
oriented less toward the
naturalistic depiction of
existing realities than
toward the production of
new objects of knowledge
and reflection”
(McLean, 2013: 67)
5. Assemblagem vs. Montagem
• Assemblagem (cf. Deleuze/Latour)
• Refere-se à produção de relações dinâmicas entre coisas, à organização e à estratégia
• Esquematiza a unidade com o fito da totalidade
• Foca-se no movimento enquanto estratégia da história e exclui o que é fixo
• Apoia-se em relações de exterioridade
• Montagem (cf. Didi-Huberman/McLean)
• Refere-se à criação de correspondências estáveis, à liminaridade e à imaginação
• Salienta a incompletude, o ainda-não
• Foca-se na instabilidade generativa que simultaneamente conjuga e diferencia
elementos justapostos e intervalos espácio-temporais
• Apoia-se em relações de interioridade
8. O “ser do meio”
_ Confrontar os limites da explicação social ao
reconhecer a primazia ontológica do entre
O “in-between”
_ Reconhecer a primazia ontológica do entre
toma a forma de uma exploração, que
Crapanzano (2003, 2005) designa por
“horizontes imaginativos” – momentos de
transição ou transformação que resistem à
articulação através de características familiares
I would suggest that the between can be
understood not only as a void or absence but
also as a superabundant plenitude, overflowing
our received explanatory categories
(McLean, 2013: 61)
11. A liminaridade – a primazia ontológica do “entre” (cf.
Crapanzano, 2004, que critica Turner por se focar ou na
estrutura ou na anti-estrutura, fornecendo primazia ontológica
a um ou a outro momento.
O problema da concessão da primazia ontológica quer à
estrutura quer à anti-estrutura não é evitado pela adoção da
assemblagem como instrumento analítico, uma vez que esta
atribui primazia ontológica à anti-estrutura (Marcus & Saka,
2006). Desta forma, a assemblagem não pode ser usada como
único instrumento analítico para resolver o problema,
promovendo um novo reducionismo, acrescentando-o ao
micro-reducionismo (do interacionismo simbólico) ao macro-
reducionismo (do funcional-estruturalismo) e ao meso-
reducionismo (das teorias de prática – Bourdieu – e da dupla
estruturação – Giddens)
13. A saúde digital, ou eHealth, consiste no
“uso de TIC nos produtos de saúde,
serviços e processos combinado com a
mudança organizacional nos sistemas de
saúde e em novas competências, de
modo a melhorar a saúde dos cidadãos,
a eficiência e a produtividade na
prestação de cuidados de saúde, e o
valor económico e social da saúde. A
saúde digital cobre a interação entre
pacientes e serviços prestadores de
cuidados, transmissão de dados
instituição-para-instituição, ou
comunicação par-para-par entre
pacientes e/ou profissionais de saúde”
(Comissão Europeia, 2012, p. 3).
Recentemente, o conceito de saúde
digital tornou-se mais abrangente e
passou a integrar a eHealth (que inclui a
mHealth, ou a saúde digital por via
móvel, através do smartphone,
fundamentalmente) e algumas áreas
emergentes, como “o uso de ciências de
computação avançada em big data, a
genómica e a inteligência artificial”
(Organização Mundial de Saúde, 2021).
14. A partir do discurso sobre a saúde digital
percebe-se claramente que “há uma
necessidade global para uma organização nova
dos sistemas de saúde” (Martins, 2020: 290),
porém, ainda há muita resistência à
implementação das suas premissas.
A resistência e a dispersão das organizações
de saúde e uma certa falta de visão
integradora, por parte dos decisores, não
tem possibilitado uma ampla
desmaterialização de muitos processos que
suportam as atividades do setor, com grande
prejuízo na produtividade e na eficiência das
organizações, além de um enorme
transtorno e insatisfação para os seus
utilizadores
(Ribeiro, 2019: 13).
Henrique Martins identificou as necessidades
para a construção do sistema digital de saúde
em Portugal da seguinte maneira: “a saúde
digital precisa de padrões de
interoperabilidade, arquitetura empresarial,
gestão de serviço, capacidade de operação a
uma escala elevada, cooperação internacional,
estratégia de cibersegurança, uso de dados,
um calendário (roadmapping) e vigilância
ética” (Martins, 2020: 291). Só desta forma se
pode, de facto, empoderar tanto o sistema
como os cidadãos. Porém, atingir um tal nível
de excelência não é fácil, uma vez que, como
este autor lembra, a instalação da saúde digital
acontece por cima de um sistema pré-
existente, que possui uma determinada
logística e uma certa complexidade. O enxerto
de um sistema sobre outro é um processo
difícil de fazer, por isso, há quem fale na
substituição de um modelo por outro, de uma
transformação radical (Ribeiro, 2019), cultural
(Martins, 2019).
15. Civilização 2.0?
A chamada quantificação do self e dos corpos é a pedra de base da discursividade global da
saúde digital e da sua montagem transcultural.
Através de práticas de quantificação, mudam a prática e o acesso à medicina. As práticas
médicas e os comportamentos de “ir ao médico” tendem a não ser simplesmente exercícios
para fornecer/prescrever cuidados ou para procurar ajuda, respetivamente.
O cruzamento da fronteira entre as fases pré-paciente e paciente gradualmente ocupa um
significado secundário. A prioridade agora é prever e prevenir doenças e, para tanto, é
necessária a participação das pessoas, fundamentalmente, para que adotem práticas de
quantificação como forma regular de se comportarem, tornando-se cada vez mais
responsáveis pela sua saúde.
A adoção de comportamentos regulares de quantificação torna-se numa adoção de
comportamentos para regular comportamentos.
Ao fornecer os seus dados, o paciente torna-se um coprodutor de um novo status quo,
envolvendo-se, assim, na busca de uma utopia.
16. Conclusão
• A discursividade global sobre a saúde digital é uma variável da
discursividade global sobre a saúde. Por sua vez, a discursividade global
sobre a saúde é um processo fundamental de uma dada economia
política sobre a saúde global.
• Adicionalmente, a economia política da saúde global é uma variação
de uma dada economia política global, que, em última instância, tem
como propósito regular a vida dos indivíduos e das populações.
• Consequentemente, a discursividade global sobre a saúde digital é um
instrumento de regulação da vida dos indivíduos e das populações, ou,
para usar outro termo, é um instrumento biopolítico.
• Como instrumento envolvido na prossecução de uma dada
biopolítica, ou política sobre a vida, a discursividade global sobre a
saúde digital justifica-se e legitima-se pelo seu valor económico-político.
• A discursividade global sobre a saúde digital é uma discursividade
impelida por ideais neoliberais que vai sendo adaptada para as
realidades nacionais na forma de exceções neoliberais que moldam a
cidadania (cf. Ong. 2006).
17. Referências
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