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lô9
O DIREITO À LTTERATURA
I
assuntoque me foi confiado nestasérieé aparentemente
meio desligadodos problemasreais:"Direitos humanose
literatura".As maneirasde abordáìo sãomuitas,masnão
possocomeçara faÌarsobreo temaespecífico
semfazeralgumasre-
ílcxõespréviasa respeitodospróprios direitoshumanos.
É impressionantecomo em nosso tempo somos contraditórios
neste
capítulo,
Começoobservando
queem comparaçào
a eraspas
sadaschegamosa um máximo de raçionalidadetécnicae de domí-
nio sobrea natureza.Issopermite imaginar a possibilidadede resol-
ver grandenúmero de problemasmateriaisdo homem, quem sabe
inclusiveo da alimentação.No entanto,a irracionalidadedo com-
portamento é também máxima,servidafreqüêntemente
peÌosmes-
mos meiosque deveriamrealizarosdesígniosda racionalidade.
As-
sim, com a energiaatômicapodemosao mesmotempo gerarforça
criadorae destruir a vida pelaguerra;com o incrível progressoin-
dustrial aumentamoso conforto até alcançarníveisnunca sonha-
dos,masexcluímosdeleasgrandesmassas
quecondenamosà misé-
ria;em certospaises,
como o Brasil,
quantomaiscresce
a riqueza,
mais aumentaa péssimadistribuição dos bens.Portanto,podemos
dizer que os mesmosmeiosque permitem o progressopodem pro-
vocara degradação
da maioria.
Ora, na Gréciaantiga,por exemplo,teria sido impossívelpensar
numa distribuição equitativados bens materiais,porque a técnica
ainda não permitia superar as formas brutais de exploraçãodo
homem, nem criar abundânciapara todos. Mas em nossotempo é
possívelpensarnisso,e no entantopensamosreÌativamentepouco.
Essainsensibilidadenegauma daslinhas mais promissorasda his-
tória do homem ocidental,aquelaque senutriu dasidéiaamadure-
cidasno correrdosséculos
XVIII exlx, gerandoo liberalismoetendo
no socialismoa suamanifestação
mais coerente.ElasabÌiÌam pers-
pectivasque pareciamìevarà soluçãodosproblemasdramáticosda
vida em sociedade,E de fato, durante muito tempo acreditou-se
que, removidosuns tantos obstáculos,como a ignorânciae os sis-
temasdespóticosde governo,asconquistasdo progresso
seriamca,
nalizadasno rumo imaginadopelosutopistas,porquea instrução,o
sabere a técnicalevariamnecessariamente
à felicidadecoletiva.No
entanto,mesmoonde estesobstáculosforam removidosa barbárie
continuou entreos homens.
Todossabemos
que a nossaépocaé profundamentebárbara,em-
bora setratedeuma barbárieligadaaomiáximodecivilização.Penso
queo movimento pelosdireitoshumanosseentroncaaí,pois somos
a primeira era da história em que teoricament€é possívelentreyer
uma soÌuçàopara as grandesdesarmonias
que gerama injustiça
contra a quallutam oshomensdeboavontadeà busca,não maisdo
estadoidealsonhadopelosutopistasracionaisquenosantecederam,
mas do máximo viávelde igualdadee justiça,em correlaçãoa cada
momento da história.
Mas estaverificaçãodesalentadora
devesercompensadapor ou-
tra, mais otimista: nós sabemosque hoje os meiosmateriaisneces-
sáriospara nos aproximarmosdesseestágiomelhor existem,e que
muito do que era simplesutopia setornou possibilidadereaÌ.Seas
possibilidadesexistem,a luta ganha maior cabimento e se torna
maisesperançosa,
apesarde tudo o que o nossotempo apresenta
de
negativo.Quem acreditanosdireitoshumanosprocura transfoÌmar
a possibilidadeteóricaem reaÌidade,
empenhando-se
em fazercoin-
cidir uma com a outra. Inversamente,
um traço sinistro do nosso
tempo é saberque é possívela soluçãode tantosproblemase no en-
tanto não seempenharnela.Masde qualquermodo, no meio da si-
tuaçãoatrozem que vivemoshá perspectivas
animadoras.
É verdadeque a barbáriecontinua até crescendo,
mas não sevê
maiso seuelogio,como setodossoubessem
queelaé aÌgoa serocul-
tado e nãoproclamado.Sobesteaspecto,
ostribunais deNuremberg
foram um sinaldostemposnovos,mostrandoquejá nãoé admissível
a um general
vitoriosomandarfazerinscrições
dizendoqueconstruiu
l7l
o DIRIITO À rITERÂruR^
umapiràmidecomascabeças
dosinimigosmortos,ou quemandou
cobrir asmuralhasde Nínive com assuaspelesescorchadas'
Fazem-
secoisasparecidase atéPiores,mas elasnão constituemmotivo de
celebração.
Paraemitir uma nota positivano fundo do horror' acho
que issoé um sinal favorável,pois se o mal é praticado' mas não
proclamado,quer dizer que o homem não o achamaistão natural'
No mesmos€ntidoeu inlerpretaria
certas
mudanças
no compor-
tamento quotidiano e na Íìaseologiadasclasses
dominantes' Hoje
nãoseafirmacoma mesmatranqüilidade
do meutempodemenino
que haverpobresé a vontadede Deus,que elesDãotêm asmesmas
necessidades
dosabastados,
queosempregados
domésticosnãopre-
cisamdescansar,
quesómorredefomequemfor vadio,ecoisas
assim'
Eústeem relaçãoao pobre uma novaatitude,quevai do sentimento
de culpa atéo medo.Nascaricaturasdosjornais e dasrevistaso es-
farrapadoe o negronão sãomaistemaPrediletodaspiadas'porque
a sociedade
sentiu que elesPodemserum fator de Íompimento do
estadode coisas,
e o temor é um doscaminhospara a compreensão'
SintomacomPlementareu veio na mudançado discursodos Po-
líticoseempresários
quandoaludemà suaposiçãoideológicaou aos
problemas
sociais.
Ïbdos eles'a começarpelopresidente
daRepública'
fazemafirrnações
queatéPoucotemPoseriamconsideradas
subver-
sivase hoje fazemparte.dopalavreado
bem-pensantePor exempÌo'
qu€ não é maispossivel
tolerarasgrandes
diferenças
econômicas'
sendonecessário
promover uma distribuiçãoequitativa É claro que
ninguémseempenhaparaque de Íato isto aconteça,
mastaisati-
tudese pronunciamentosParecemmostrar que agoraa imagemda
injustiçasocialconstrange,
e que a insensibilidadeem faceda misé-
ria deve ser pelo menos disfarçada,porque pode comPrometera
imagem dos dirigentes.Estahipocrisia generalizada,
tributo que a
iniquidadepagaà justiça,é um modo de mostrarqueo sofrimento
já não deixatão indiferentea médiada opinião'
Do mesmomodo, osPolíticose €mpresários
de hoje nãosedecÌa-
ram conservadores,
como antes,quando a exPressão
classes
conser'
vadoras eraum gaardão.Todos são invariavelmente de centro' e até
de centro-esquerda,
inclusive os fiancamente reacionários'E nem
t72
poderiamdizer outra coisa,num tempo em que a televisâo
mosrraa
cadainstante,em imagenscuio intuito émero sensacionalismo,
mas
cujo efeito pode ser poderosopara despertaras consciências,
crr_
ançasnordestinasraquíticas,populaçõesinteirassemcasa,
posserros
massacrados,
desempregados
morandona rua.
De um ânguÌootimista,tudo issopoderiaserencaradocomo ma-
rÌifestação
infusada çonsciência
cadavezmaisgeneralizada
deque a
desigualdade
é insuportávele pode seratenuadaconsideravelmente
no estágioatual dosrecursostécnicose de organização.
Nesse
senti_
do,talvezsepossafalarde um progresso
no sentimentodo próximo,
mesmosema disposiçãocorrespondente
de agir em consonância.
E
aí entra o problema dos que lutam para que issoaconteça,
ou sera:
entra o problema dosdireitoshumanos,
2
Porquê?Porquepensarem direitoshumanostem um pressuDosÌo:
reconhecerque aquilo que consideramosindispensável
para nós é
tambémindispensável
parao próximo. Estame parecea essència
do
problema,
inclusive
nopÌanoestritamenle
individual.
poisénecessârio
um grandeesforçodeeducaçâo
eauto_educação
a fim de reconhecer_
mossrnceramente
estepostulado.Naverdade,
a tendência
maisfunda
éacharqueosnossosdireitossãomaisurgentesqueosdo próximo.
Nesse
ponto aspessoas
sãofreqüentem€nte
ütimas de uma curiosa
obnubilação.Elasafirmam que o próximo tem direito, semdúvida,
a certosbens fundamentais,como casa,comida, instrução,saúde,
colsasque ninguém bem formado admite hoje em dia que sejam
privilégio de minorias, como sãono Brasil.Mas seráque pensurn
que o seusemelhante
pobre t€ria direito a ler Dostoievskioì ouurr
os quartetos de Beethoven?
Apesar das boas intençõesno outro
setor,talvezisto não lhespassepelacabeça.
E não por mal, mas so_
menteporque quando arroÌam os seusdireitosnão estendemtodos
elesao semelhante.Ora, o esforço para incluir o semeÌhanteno
mesmo eÌencode bens que reivindicamosestána baseda reflexao
sobreosdireitoshumanos,
O DIREITO À LITERATURÁ
A €sterespeitoé fundamentalo ponto de vistade um grandeso-
ciólogofrancês,o padredominicano Louis-fosephLebret,fundador
do movimento Economiae Humanismo, com quem tive a sortede
convivere que atuou muito no Brasilentre os anosde 1940e 1960.
Pensona suadistinção entre "bens compressíveis"
e "bens incom-
pressíveis",
que estáligadaa meu ver com o problema dos direitos
humanos,pois a maneirade concebera estesdependedaquiÌo que
classificamos
como bensincompressíveis,
isto é,os que não podem
sernegadosa ninguém.
Certosbenssãoobviamenteincompressíveis,
como o alimento,a
casa,
a roupa.Outros sãocompressíveis,
como oscosméticos,
osen-
feites,as roupassupérfluas.Mas a Íìonteira entre ambos é muitas
vezes
diÍícil de fixar,mesmoquandopensamos
nosquesãoconside-
radosindispensáveis.
O primeiro litro de arrozdeumâ sacaé menos
impoÍtantedo queo úÌtimo,e sabemos
quecom baseem coisas
como
estaseeìaborouemEconomiaPolíticaateoriada"utilidademarginaÌ'l
segundoaquaÌo valor de uma coisadependeem grandeparteda ne
cessidade
relativaquetemosdela.0 fato é quecadaépocae cadacuÌ-
tura fixam oscritériosdeincompressibilidade,
queestãoligadosà di-
visão da sociedadeem classes,
pois inclusive a educaçãopode ser
instrumento paraconvenceraspessoas
de que o que é indispensável
parauma camadasocQlnâoo éparaoutra,Na classe
médiabrasileira,
os da minha idade ainda lembram o tempo em que sedizia que os
empregâdos
nãotinham necessidade
desobremesa
nem de folgaaos
domingos, porque não estandoacostumadosa isso,não sentiamfalta..,
Portanto,é precisoter critériosseguros
paraabordaro problemados
bensincompressíveis,
sejado ponto devistaindividual,sejado ponto
de vistasocial.Do ponto de vistaindividual, é importante a consci-
ênciadecadaum a respeito,sendoindispensável
fazersentirdesdeâ
infânciaqueospobrese desvalidos
têm direito aosbensmateriais(e
queportanto não setrata de exerceÌcaridade),assimcomo asmino-
riastêm direito à igualdadede tratamento.Do ponto de vistasocial
é precisohaverleisespecíficas
garantindo estemodo dever.
Por isso,a luta pelosdireitos humanos pressupõea consideração
de taisproblemas,e chegandomaisperto do temaeu lembraria que
t74
sâobens incompressiveis
não apenasos que asseguram
a sobrevl-
vênciafísicaem níveisdeçe
espirituaÌ.
são
incomo,",,r:i;':.ï:;ï[ï"ïiiiï;]:ïï1':;i:
o vestuário,a instrução,a saúde,
a liberdadeindividual, o amparoda
justiça púbÌica, a resistênciaà opressãoetc.j e também o djreito à
crença,à opinião,ao lazere,por quenão,à arte e à literatura.
Masa Íìuição daarteedaliteratuÌa estariamesmonestacategoria?
Como noutros casos,
a respostasó pode serdadasap,rd"r_o", ."r_
ponder a uma questãoprévia,istoé,elassópoderãoserconsideradas
bensincompressíveis
segundouma organização
justadasociedaqe
se
corresponderem
a necessidades
profundasdo serhumano,a necessr_
dadesque não podem deixar de ser satisfeitas
sob pena de desor_
ganizaçâo
pessoal,
ou pelo menosde frustraçãomutiladora.A nossa
questãobásica,
portanto,ésaberse
aliteraturaéuma necessidade
des_
te tipo. Sóentâoestaremos
em condiçõesde concÌuìra respeito.
3
Chamareide literatura,da maneiramais ampla possível,
todasas
criaçôes
de toquepoético,ficcionalou dramáticoem todososnívets
de uma sociedade,
em todos os tipos de cultura, desdeo que cha-
mamos folclore,Ìenda,chiste,até asformas mais complexase diff_
ceisdaproduçàoescrita
dasgrandes
civilizaçóes.
Vista destemodo a literatura aparececlaramenteçomo maniÍes,
tação universaÌde todos os homens em todos os tempos.Não há
n:::
rà" há homemque possa
viversemela.istoê,sema possi_
bilidade de entrar em contacto com alguma espéciede fabulaçao.
Assimcomo todos sonhamtodasasnoites,ninguém é capazde pas_
sarasvrntee quatro horasdo dia semalgunsmomentosde entreca
ao universofabulado.O sonho assegura
durante o sono a preseniu
indispensáveì
desteuniverso,independentemente
da nossavontade.
E durante a vigília a criaçãoficcionalou poética,que é a mola da li_
teratura em todos os seusníveise modalidades,estápresenteem
cadaum denós,anaÌfabeto
ou erudito,como anedota,
causo,
históna
em quadrinhos,noticiário policial, cançãopopular,moda de viola.
O DIREITO A LI TERAT U RA
sambacarnavalesco.
Elasemanifestadesdeo devaneioamorosoou
econômicono ônibus atéa atençãofixadana noveladetelevisãoou
na leitura seguidade um romance.
Ora, seninguém podepassarvinte e quatro horassemmergulhar
no universoda ficçãoe da poesia,a literatura concebidano sentido
amplo a que me referi parececorrespondera uma necessidade
uni-
versal,queprecisasersatisfeita
e cujasatisfação
constituium diÌeito.
Alterando um conceito de Otto Ranke sobre o mìto, podemos
dizer que a literaturaé o sonho acordadodasciviÌizaçôes.
Portanto,
assimcomo não é possíveÌhaverequilíbrio psíquico sem o sonho
duranteo sono,talveznãohajaequilíbriosociaÌsemaÌiteratura.Des-
te modo, ela é fator indispensável
de humanizaçãoe, sendoassim,
confirma o homem na suahumanidade,inclusiveporque atua em
grandeparte no subconsciente
e no inconsciente.Nestesentido,eÌa
podeter importância equivalenteà dasformasconscientes
de incul-
camentointencional,como a educaçãofamiliar, grupaÌ ou escolar
Cadasociedade
cria assuasmanifestaçóes
ficcionais,poéticase dra-
máticasdeacordocom osseusimpuÌsos,assuaS
crenças,
osseussen-
timentos,assuasnormas,a fim defortalecerem cadaum a presenca
e atuaçãodeles.
Por issoé que nasnossas
sociedades
a literaturatem sido um ins-
trumento poderoso.deinstruçãoe educação,
entrando noscurrícu-
los,sendopropostaa cadaum como equipamentointelectuaÌe afe-
tivo. Os valoresque a sociedade
preconiza,ou osque considerapre-
judiciais, estãopresentesnas diversasmanifestações
da ficção, da
poesiae da açãodramática.A literatura confirma e nega,propõe e
denuncia,apóiae combate,fornecendoa possibilidadedevivermos
dialeticamente
os problemas.Por issoé indispensável
tanto a litera-
tura sancionada
quanto aliteraturaproscrita;a queospoderessuge-
Ìem e a que nascedos movimentos de negaçãodo estadode coisas
predominante.
A respeitodestesdoisladosda literatura,convémlembrar que ela
nãoé uma experiência
inofensiva,
masuma aventuraquepodecausar
problemaspsíquicose morais, como acontececom a própria vida,
da qual é imagem e transfiguração.Isto significaque elatem papel
formador da personalidade,
nas não segundoasconvenções;
seria
antessegundoa força indiscriminada e poderosada própria reali_
dade.Por isso,nasmãos do leitor o livro pode serfator de pertur_
baçãoe mesmo de risco.Daí a ambivalênciada sociedadeem face
dele,suscitandopor vezescondenações
violentasquando eleveicu-
la noçõesou oferecesugestões
que a visãoconvencionalgostariade
proscrever.
No âmbito da instruçãoesçolaro livro chegaa gerarcon-
flitos,porque o seuefeitotranscendeasnormas estabelecidas.
Numa paÌestrafeita há maisde quinze anosem reuniãoda Socie_
dade Brasileirapara o Progressoda Ciência sobreo papel da Ìite
ratura na formaçãodo homem,chameia atençãoentreoutrascoisas
para osaspectos
paradoxaisdesse
papel,na medida em que osedu_
cadoresao mesmo tempo preconizame temem o efeito dos textos
Ìiterários.De fato (dizia eu), há "conflito entre a idéia convencional
de uma literatura que elevae edífca (segundoos padrõesoficiais)e
a suapoderosaforça indiscriminadade iniciaçãona vida, com uma
variada complexidadenem sempredesejadapeloseducadores.
Ela
não corÍompeneiJn
edifim, porÍanto; mas,trazendoÌivÍementeem si
o quechamamoso bem eo quechamamoso mal,humanizaem sen-
tido profundo, porque fazviver".
4
A funçãoda literatura estáligadaà compÌexidadeda suanatureza,
queexplicainclusiveo papelcontraditório mashumanizador(talvez
humanizador porque contraditório). Analisando-a,podemos <iis_
tinguir pelo menos três faces:(1) ela é uma construÇãode objetos
autonomos como estrutura e significado;(2) ela é uma forma de
expÌessão,
isto é,manifestaemoçõese a visãodo mundo dosindiv!
duos e dosgrupos;(3) elaé uma forma de conhecimento,inclusive
con-ro
incorporaçãodifusae inconsciente.
Em geralpensamosque a literatura atua sobrenós devido ao ter_
çeiroaspecto,
isto é,porquetransmiteuma espécie
de conhecimento,
queresultaem aprendizado,como seelafosseum tipo de instrução.
Masnãoé assim.O efeitodasproduçõesliteráriasé devidoàatuação
O DIREITO A LITERÀTURÂ
simultâneadostrêsaspectos,
emboracostumemospensarmenosno
primeiro, que correspoÍtdeà maneirapelaqual a mensagemé cons-
truída; mas eslaffioneiraé o aspecto,senãomais impodante, com
certeza
crucial,porqueéo quedecideseuma comunicaçãoéliterária
ou não.Comecemospor ele.
Todaobra literária é antesde maisnadauma espécie
de objeto,de
objeto construído;e é grandeo poder humanizador destaconstru-
ção,enquantoconstruçAo.
De fato, quando elaboramuma estrutura,o poetaou o narrador
nospropõem um modelo decoerência,
geradopelaforçada palavra
organizada.
Sefossepossívelabstrairo sentidoe pensarnaspalavras
como tijolos de uma construção,eu diria que esses
tijolos represen-
tam um modo deorganizaÍ a matêÍia,e queenquanto organizaçãoeles
exercempapel ordenador sobre a nossamente. Quer percebamos
claramenteou não, o caráterde coisaorganizadada obra literária
torna-se um fator que nos deira mais capazes
de ordenar a nossa
pÍópria mente e sentimentos;e, em conseqüência,
mais capazes
de
organizara visãoque temosdo mundo.
Por isso,um poemahermético,de entendimentodifícil, sem ne-
nhuma alusãotangívelà realidadedo espírito ou do mundo, pode
funcionar nestesentido,peÌo fato de ser um tipo de ordem, suge-
rindo um modelo de superaçãodo caos.A produçãoliterária tira as
palavrasdo nadaeasdispõecomo todo articulado,Esteé o primeiro
nível humanizador,ao contrário do que geralmentesepensa.A or-
ganizaçãoda palavra comunica-seao nosso espírito e o leva,pri-
meiro, a seorganizar;em seguida,a organizaro mundo. Isto ocorre
desdeasformasmaissimpÌes,como a quadrinha,o provérbio,a his
tória debichos,quesintetizama experiênciae a reduzema sugestão,
norma, conselhoou simplesesp€táculo
mental.
"Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga."Este
provérbio é uma frasesolidamenteconstruída,com dois menbros
de setesílabascadaum, estabelecendo
um ritmo que realçao con-
ceito, torrìado mais forte pelo efeito da rima toante: "aj-U-d-e']
"madr-U-g-A'1A construçãoconsistiuem descobrira expressão
la-
pidare ordenaìasegundo
meiostêcnicos
queimpressionam
a per
F
cepção.A mensagemé inseparáveldo código, mas o código é a
condiçãoque assegura
o seuefeito.
Masaspalavrasorganizadas
sãomaisdo quea presença
deum có-
digo: elascomunicam sempÌe aÌguma coisa,que nos toca porque
obedece
a certaordem.Quandorecebemos
o impactodeuma produ-
çãoliterária,oraÌ ou escrita,eleédevidoà fusãoinextricávelda men-
sagemcom a suaorganização.
Quando digo que um texto me im-
pressiona,quero dizer que ele impressionaporque a sua possibili-
dade de impressionarfoi determinadapela ordenaçâorecebidade
quem o produziu. Em palavrasusuaislo conteúdosóatuapor causa
da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidadede
humanizardevidoà coerência
mental quepressupõe
equesugere.
O
caosoriginário, isto é,o materialbruto a partir do qual o produtor
escolheu
uma forma,setornaordem;por isso,
o meu caosinterior
tambémseoÍdenae a mensagem
podeatuar.Todaobraliteráriapres-
supõeestasuperaçâo
do caos,deterrninadapor um arranjo especial
daspalavrase fazendouma propostade sentido.
Pensemos
agora num poema simples,como a LrR^de Gonzaga
quecomeçacom o verso"Eu, Marília,não fui nenhumvaqueiro",Ele
a escreveu
no caÌabouçoda ilha dasCobrase sepoe na situaçãode
quem estámuito triste, separadoda noiva. Então começaa pensar
nela e imagina a vida que teÌiam tido senão houvesse
ocorrido a
catástrofeque o jogou na prisão.De acordo com a convençãopas-
toraÌ do tempo,transfigura-se
no pastorDirceu e transfiguraa noiva
na pastora Marília, traduzindo o seu drama em termos da vida
campestre.
A certaaltura diz:
Propunha-medormir no teu regaço
As quenteshorasda comprida sesta;
Escrever
teuslouvores
nosolmeiros,
Toucar-tede papoulasna floresta.
A extremasimplicidade desesversosremeteaatosou devaneiosdos
namorados
de todosostempos:ficar com a cabeça
no colo da namo-
rada,apanharflorespara fazeruma grinalda, escreverasrespectivas
ini-
O DI RII1'O A LITETATURA
ciaisna casca
dasárvores.
Masna experiência
decadaum de nósesses
sentimentose evocações
sãogeralrnente
vagos,informuÌados,e não
têm consistência
que os torne exemplares.
Exprimindo-os no en-
quadramento
deum estiloliterário,usandorigorosamente
osYersos
de
dez sílabas,
explorandocertassonoridades,
combinandoas Palavms
com perícia,o poetatransformao informal ou o inexpresso
em estru-
tura orgalizada,quesepõeacimado tempoe serveparacadaum re-
presentaÌ
mentalmente
assituaçÕes
amorosas
destetipo.A alternância
reguladade sílabastônicas e sflabasátonas,o poder sugestivoda rima,
a cadência
do ritmo - criaramuma ordem definidaque servede pa-
dÍãoparatodose,deste
modo,atodoshumaniza,istoé,permitequeos
sentimentos
passem
do estado
derneraemoçãoparao daforma cons-
truida, que assegura
a generaÌidade
e a permanência,Note-se,por
exemplo,o efeito do jogo de certossonsex?ressos
peÌosfonemasT e P
no úìtimo verso,
dandotranscendência
aum gesto
banaldenamorado:
Toucar-Tède PaPoulas
na floresTã.
Têsno começoe no fim, cercandoosPêsdo meio e formando com
eÌesuma sonoridademágicaque contribui paraelevara experiência
amorfaao nívelda expressão
organizada,
figurando o afetopor meio
deimagensquemapcamcom eficiênciaa transfiguração
do meio na-
turaì.A forma permitiu que o conteúdoganhasse
maior significado
e ambosjuntos aumentarama nossacaPacidade
de ver e sentir.
Digamosqueo conteúdoatuantegÌaçasà forma constituicom ela
um par indissolúvelque redundaem certamodalidadede conheci-
mento.Estepode seruma aquisiçãoconscientede noções,emoções,
sugestões,
inculcamentos;masna maior parteseProcessa
nascama-
dasdo subconsciente
e do inconsciente,incorporando-seem pro-
fundidadecomo enriquecimentodifícil de avaliar.As produçõesli-
terárias,de todos os tipos e todos os níveis,satisfazem
necessidades
básicasdo ser humano, sobretudoatravésdessâincorporação,que
enriquece
a nossapercepçâo
e a nossavisaodo mundo.O queilustrei
por meio do provérbio e dos versosde Gonzagaocorre em todo o
campodaliteraturae expÌicapor queelaé uma necessidade
universaÌ
imperiosa,e por que fruila é um direito daspessoas
de qualquer
sociedade,
desdeo índio que cantaassuasproezasde caçaou evoca
dançando a lua cheia,até o mais requintado erudito que procura
captar com sábiasredesos sentidosflutuantesde um poema her-
mético.Em todos esses
casosocorre humanizaçãoe enriquecimen-
to, da personalidade
e do grupo, por meio de conhecimentooriun-
do da expressão
submetidaa uma ordem redentorada confusâo.
Entendoaqui por àumanizaçao
(já guetenho faladotanto nela)o
processoque confirma no homem aquelestraços que Ìeputanìos
essenciais,
como o exercícioda reflexão,a aquisiçãodo saber,a boa
disposiçãopara com o próximo, o afinamentodasemoções,
a capa-
cidadede penetrarnos probÌemasda vida, o sensoda beleza,a per-
cepçãoda complexidadedo mundo e dosseres,
o cultivo do humor,
A literaturadesenvolve
em nósaquotadehumanidadena medidaem
que nos torna mais compreensivos
e abertospara a natureza,a so-
ciedade,o semeÌhante.
Issoposto,devemoslembrarquealémdo conhecimentopor assim
dizer latente,que provémda organização
dasemoçõese da visãodo
mundo, há na literatura níveisde conhecimentointencionaÌ,isto é.
pÌanejadospelo autor e conscientemente
assimilados
pelo receptor.
Estesníveissãoos que chamam imediatamentea atençãoe é neles
queo autor injetaassuasintenções
depropaganda,
ideologia,crença,
r€volta,adesãoetc. Um poema abolicionistade Castro Alves atua
peÌaeficiênciada suaorganizaçãoformal, pelaqualidadedo senti-
mento que expÌime, mastambém pelanaturezada suaposiçãopo-
Ìítica e humanitária. Nestescasosa literatura satisfaz,em outro
nível,à necessidade
de conheceros sentimentose a sociedade,
aju-
dando-nosa tomar posiçãoem facedeles.Ê aí que sesitua a litera-
tura sociana q.aalpensamosquaseexclusivamente
quando setrata
de uma reaÌidadetão política e humanitária quanto a dos direitos
humanos,quepartemde uma análisedo universosocialeprocuran-r
retificar assuasiniqüidades.
Falemosportanto algumacoisaa respeitodasproduçõesliterárias
nasquaiso autor deseiaexpressamente
assumirposiçãoem facedos
probÌemas.Disso resulta uma literatura empenhada,que parte de
O DTREITO À LITERÂTURÂ
posiçõeséticas,políticas,religiosasou simplesmentehumanísticas.
Sãocasos
em queo autor tem convicções
edeseja
exprimi-las;ou par-
te de certavisãoda realidadee a manifestacom tonalidadecrítica.
Daí podesurgir um perigo:afirmar que a literaturasóalcançaa ver-
dadeirafunção quando é destetipo. Paraa IgreiaCatólica,durante
muito tempo, a boolíteratun era a que mostravaa verdadeda sua
doutrina, premiando a virtude, castigandoo pecado.Parao regime
soviético,a literaturaautênticaeraa que descrevia
aslutasdo povo,
cantavaa construçãodo socialismoou celebravaa classeoperária.
Sãoposições
falhaseprejudiciaisàverdadeira
produçãoliterária,por-
quetêm como pressuposto
que elasejustificapor meio de finalida-
desalheiasao plano estético,
que é o decisivo.De fato,sabemos
que
em literaturauma mensagem
ética,política,religiosaou maisgeral
mentesocialsó tem eficiênciaquando for reduzidaa estruturaìite-
rária, a forma ordenadora.Taismensagens
sãoválidascomo quais-
quer outras,e não podemserproscritas;masa suavalidadedepende
da forma quelhesdá existência
como um certotipo de objeto.
Feitaestar€ssalva,
vou me demorar na modalidadede Ìiteratura
quevisaa descreveJ
eeventualmente
a tomar posiçãoem facedasini-
qüidades
sociais,
asmesmasquealimentamo combatepelosdireitos
humanos.
Faleihá pouco deCastroAlves,exemplobrasileiroquegeralmente
lembramosnesses
casos.
A suaobra foi em parteum poderosolibelo
contra a escravidão,pois eÌeassumiuposiçãode luta e contribuiu
paraa causaque procuravaservir.O seuefeitofoi devido ao talento
do poeta,que fez obra autênticaporque foi capazde elaborar em
termosesteticamente
váÌidosospontos de vistahumanitários e po-
líticos.Animado pelosmesmossentimentose dotado de tempera-
mento igualmentegeneroso
foi BernardoGuimarães,
queescreveu
o
romanceA escrava
Isarratambémcomo libelo.No entanto,vistoque
sóa intençãoe o assuntonão bastam,estaé uma obra de má quali-
dadee não satisfazos requisitosque asseguram
a eficiênciareal do
texto. A paixão abolicionistaestavapresentena obra de ambos os
autores,masum delesfoi capazde criar a organização
literária ade-
quadae o outro não.A eficáciahumana é função da eficáciaestéti-
ca,e portanto o que na literaturaagecomo força humanizadoraé a
própria literatura,ou se.ja,
a capacidade
de criar formaspertinentes.
Issonão quer dizer que sóservea obra perfeita.A obra de menor
qualidadetambém atua,e em geraÌum movimento literário é cons-
tituído por textosde qualidadealta e textosde qualidademodesta,
formando no conjunto uma massade significadosque influi em
nossoconhecimentoe nosnossossentìmentos.
Paraexemplificar,
ve.jamos
o casodo rontancehumanitário esocial
do começodo séculoXIX, por váriosaspectos
umâ resposta
da lite-
ratura ao impactoda industrializaçãoque,como sesabe,promoveu
a conc€ntração
urbanaem escala
nunca vista,criando novase mais
terríveisformasde miséria,inclusivea da misériapostadiretamente
aoladodo bem-estar,
com o pobrevendoa cadainstanteosprodutos
que não poderia obter. Pelaprirneira vez a miséria se tornou um
espetáculo
inevitávele todostiveramde presenciar
a suaterrívelrea
lidade nasimensasconcentraçÕes
urbanas,para onde eram condu-
zidasou enxotadas
asmassas
de camponeses
destinados
ao trabalho
industrial, inclusivecomo exércitofaminto de reserva.Saindo das
regiõesafastadas
e dosinterstíciosdasociedade,
a misériaseinstalou
nos palcosda civilizaçãoe foi setornando cadavez mais odiosa,à
medidaquesepercebiaqueelaerao quinhão injustament€imposto
aosverdadeirosprodutores da riqueza,os operários,aosquais foi
precisoum sécuÌode lutasparaveremreconhecidos
osdireitosmais
elementares.
Não é precisorecapitularo que todos sabem,masape-
naslembrarque naqueletempo a condiçãodevida sofieuuma dete-
rioraçãoterrível,quelogoalarmouasconsciências
maissensíveis
e os
observadores
lúcidos,gerandonão apenaslivros como o de Engels
sobrea condiçãoda classe
trabalhadorana Inglaterra,masuma série
de romancesque descrevem
a nova situaçãodo pobre.
Assim, o pobre €ntra de fato e de vez na literatura como tema
importante, tratado com dignidade, não mais como deÌinqüente,
personagemcômico ou pitoresco.Enquantode um lado o operário
o DrntrrTo
À
começavaa seorganizar para a grande Ìuta secularna defesados
seusdireitos ao mínimo necessário,
de outro lado os escritoresco-
meçavama percebera realidadedesses
direitos,iniciando pelanar-
rativa da suavida, suasquedas,seustriunfos, suâ realidadedesco-
nhecidapelasclasses
bem aquinhoadas.
Estefenômenoé em grande
parteligado ao Romantismo,que,seteveaspectos
fiancam€ntetra-
dicionalistase conservadores,
teve também outros messiânicose
hunanitários de grandegenerosidade,
bastandolembrar que o so-
cialismo,que seconfigurou naquelemomento, é sob muitos aspec-
tosum movimento de influênciaromântica.
Ali pelos anos de 1820-1830nós vemos o apaÌecimentode um
romance social,por vezesde corte humanitário e mesmo certos
toquesmessiânicos,
focalizandoo pobrecomo temaliterário impor-
tante.Foi o casode EugèneSue,escritorde segundaordem masex-
tremamentesignificativode um momento histórico.Nosseuslivros
elepenetrouno universoda miséria,mostroua convivência
do crime
e davirtude,misturandoosdelinqüentes
eostrabalhadores
honestos,
descrevendo
a persistência
da purezano meio do vício,numavisào
complexae mesmoconvulsada sociedade
industrial no seuinício.
Tàlvezo livro maìscaracterístico
do humanitarismoromânticoseja
Osmíseróveís,
deYlctor Hugo.Um dosseustemasbásicos
é a idéiade
que a pobreza,a ignorânciae a opressãogeram o crime, ao qual o
homem é por assimdizer condenadopelascondiçõessociais.De
maneira poderosa,apesarde decÌamatóriae prolixa, ele retrata as
contradições
dasociedade
do tempoefocalizaumasériedeproblemas
graves.
Porexemplo,o da criançabrutalizadapeÌafamília,o orfanato,
a fábrica, o explorador - o que seriaum traço freqúenteno romance
do séculoXtX.N' Os miseraveis
há a história da pobre mãesolteiÌa
Fantine,que confia a filha a um par de sinistrosmalandros,de cuja
tirania brutal elaé salvapeÌocriminoso regenerado,
JeanValjean.
Victor Hugo manifestouem vários outros lugaresda suaobra a
piedadepelo menoÌ desvalidoe brutalizado, inclusivede maneira
simbóìican' O homemqae ri, história do filho de um nobre inglês
pÍoscrito,queéentreguea uma quadrilhadebandidosespecializados
em deformar criançasparavendê-las
como obietosde divertimento
dos grandes.No caso,o pequenoé operado nos lábiose músculos
faciaisde maneiraa ter um ríctus permanenteque o mantém como
seestivesse
semprerindo. É Gwyrnplaine,cuja mutilaçãorepresenta
simbolicamenteo estigmada sociedade
sobreo desvalido.
Dickenstratou do assuntoem maisde uma obra, como Oliyer Twist.
onde narra a iniqúidade dos orfanatose a utilizâçâodos meninos
pelosladrõesorganizados,
queostransformam no quehoje chama-
mostrombadinhas.
LeitordeEugéne
SueeDickens,Dostoievski
levou
a extremosdepatéticoo problemadaviolênciacontraa infância,até
chegaràvioÌaçãosexualconfessada
por Stawogu'ieem Osdemônios
Muito da literaturamessiânica
ehumanitária daqueletempo (não
estou incluindo Dostoievski,que é outÍo setor) nos parecehoje
declamatóriae por vezescômica. Mas é curioso que o seu travo
amargoresist€no meio do quejá envelheceu
devez,mostrando que
a preocupaçãocom o que hoje chamamosdireitos humanos pode
dar àÌiteraturauma forçainsuspeitada.
E reciprocamente,
quealite-
ratura podeincutir em cadaum de nóso sentimentode uÌgênciade
taisproblemas.Por isso,creioquea entradado pobreno temário do
romance,no tempo do Romantismo,eo fato d€sertratadonelecom
adevidadignidade,éum mon.Ìento
relevante
no capítulodosdireitos
humanosatravésda literatura.
A paÍtir do período romântico a narrativa desenvolveu
cadavez
maiso Ìadosocial,como aconteceu
no Naturalismo,quetimbrou em
tomar como personagens
centraiso operário,o camponês,
o pequeno
artesão,o desvalido,a prostituta, o discdminado em geral.Na França,
Émile Zola conseguiufazeruma verdadeiraepopéiado povo opri-
mido e expÌorado,em vários liyros da série dosRougon-Macquart,
retratandoasconseqüências
da miséria,da promiscuidade,da espo-
liaçãoeconômica,o que fez deleum inspirador de atitudese idéias
políticas.
Sendoelepróprio inicialmenteapolítico,interessado
apenas
em analisarobjetivamenteosdiversosníveisda sociedade,
estacon-.
seqúênciada suaobra nada tinha a ver com suasintenções.Mas é
interessante
que a força política latentedos seustextosacaboupor
leválo à açãoe tornálo um dos maiores militantes na história da
inteligênciaempenhada.Isto se deu quando ele assumiu posição
O DIREITO À LITÊRATURÀ
contraa condenação
injustado capitãoAlfred Drelúrs, cujo proces-
so,graças
ao seufamosopanfleto/'4cc456entrou em fasede revisão,
terminadapelaabsolviçãofinal. Mas antesdesse
desfecho(que não
chegoua ver,porque já morrera), Zola foi julgado e condenadoà
prisãopor ofensaaoExército,o queo obrigou aserefugiarna Ingla-
terra.Aí estáum exemplocompletodeautor identificadocom avisão
socialda suaobra, que acabapor reunir Produçãoliterária e mili-
tânciapoÌítica.
Tanto no casoda literaturamessiânica
e idealistadosromânticos,
quanto no casoda literatura realista,na qual a cútica assumeo cu-
nho de verdadeirainvestigação
orientadada sociedade,
estamosem
facede exemplodeliteratura empenhadanuma tarefaligadaaosdi-
reitoshumanos.No Brasilisto foi claro nalgunsmomentos do Na-
tuÌalismo, mas ganhou força real sobretudo no decênio de 1930,
quando o homem do Povo com todos os seusproblemaspassoua
primeiro plano e os escritoresderam grande intensidadeao trata-
mento literário do pobre.
Issofoi devido sobretudoao fato do romancedetonalidadesociaÌ
ter passado
da denúnciaretóÍica,ou de meradescÌição,
a uma esPé-
ciedecríticacorrosiva,
quepodiaserexplícita,
comoemJorge
Amado,
ou implícita,como em GracilianoRamos,masqueem todoselesfoi
muito eficientenaqgeleperíodo, contribuindo para incentivar os
sentimentosradicaisque segeneralizaramno país Foi uma verda-
deira onda de desmascaramento
social,que aParece
não apenasnos
queaindalemoshoje,como osdoiscitadosemais)oséLins do Rego,
Rachel de Queiroz ou Érico Veríssimo, mas em autores menos
ìembrados,como Abguar Bastos,Guilhermino Cesar,Emil Farhat,
Amando Fontes, para não falar de tantos outros praticamente
esquecidos,
masque contÍibuíram para formar o batalhãode escri-
tores empenhadosem expor e denuncial a miséria,a exPloração
econômica,
a marginalizaçáo,
o que os torna' como os outros,fi-
gurantesde uma luta virtual pelosdireitoshumanos.Seriao casode
Ioão Cordeiro,ClovisAmorim, Lauro Palhanoetc.
6
Acabeide focalizara relaçãoda literatura com os direitos huma-
nos de dois ânguÌosdiferentes.Primeiro,verifiquei que a literatura
correspondea uma necessidade
universalque devesersatisfeitasob
penade mutilar a personalidade,
porque pelo fato de dar forma aos
sentim€ntos
e à visãodo mundo elanosorganiza,noslibertado caos
e portanto nos humaniza.Negara fruição da Ìiteratura é mutilar a
nossahumanidade.Em segundoìugaç a literatura podeserum ins_
trumento conscientede desmascaramento,
pelo fato de focalizaras
situações
derestriçãodosdireitos,ou denegação
deÌes,
como a misé-
ria, a servidão,a mutilação espiritual.Tànto num nível quanto no
outro elatem muito a ver com a luta pelosdireitoshumanos.
A organização
da sociedadepode restringir ou ampliar a fruição
destebem humanizador.O quehá de gravenuma sociedade
como a
brasileiraé que elamantém com a maior durezaa estratificação
das
possibilidades,
tratando como sefossemcompressíveis
muitos bens
materiaise espirituaisqu€ sãoincompressíveis.
Em nossasociedade
há ftuição segundoasclasses
na medidaem que um homem do po-
vo estápraticamenteprivado da possibilidadede conhecere apro-
veitar a leitura de MachadodeAssisou Mário deAndrade.paraele,
ficam a literatura de massa,o foÌclore, a sabedoriaespontânea,a
cançãopopular,o provérbio. Estasmodalidadessãoimportantes e
nobres,mas é graveconsideráìascomo suficientespara a grande
maioria que,devido à pobrezae à ignorância,é impedidade chegar
àsobraseruditas.
NessaaÌtura é preciso fazer duas considetações:
uma relativa à
difusâopossível
dasformasdeliteraturaeruditaem funçãodaestru-
tura e da organizaçãoda sociedade;
outra, relativaà comunicação
entre asesferas
da produçâoliterária.
Paraquea ÌiteÌaturachamadaeruditadeixede serprivilégiode pe_
quenosgrupos,é precisoquea organiza@o
da sociedade
sejafeitade
maneiraagarantirumadistribuiçãoequitativa
dosbens,Emprincípio,
so numa sociedade
igualitáriaos produtosliteráriospoderãocircular
sembarreiras,
enestedomínio a situação
é particularmente
dramática
O DIRDITO À LITËRATUI^
em países
comoo Brasil,ondea maiorìadapopulaçãoéanalfabeta,
ou
quase,
eviveemcondições
quenâopermitema margemdelazerindis-
pensável
à leitura.Por isso,numa sociedade
estratificada
destetipo a
fruiçãoda literaturaseestratifica
de maneiraabruptae alienante.
PeÌoque sabemos,quando há um esforçoreal de igualitarização
há aumento sensíveldo hábito de leitura, e portanto difusão cres-
centedasobras.A União Soviética(que nestecapítulo é modelar)
fezum grandeesforçopara isto,e lá astiragenseditoriaisâlcançam
números para nós inverossímeis,
inclusive de textos inesperados,
como os de Shakespeare,
que em nenhum outro paísé tão lido, se-
gundo vi registradonalgum lugar.Como seriaa situaçãonuma so-
ciedade idealmente organizada com base na sonhada igualdade
completa,quenuncaconhecemos
e talveznuncavenhamosa conhe-
cer?No entusiasmoda construçãosocialista,
Trotski previa que ne-
la a médiadoshomensseriado níveÌdeAristóteles,GoetheeMarx...
Utopia à parte,é certoque quanto maisigualitáriafor a sociedade,
e
quantomaislâzerproporcionar,maior deveráseradifusãohumani-
zadoradasobrasliterárias,e,portanto,a possibiìidade
de contribuí-
rem para o amadurecimentode cadaum.
Nas sociedades
de extremadesigualdade,
o esforçodos governos
esclarecidos
e doshomensde boavontadetentaremediarna medida
do possívela falta de.oportunidadesculturais. Nesserumo, a obra
maisimpressionante
queconheçono Brasilfoi de Mário deAndrade
no breveperíodoem quechefiouo DepartamentodeCultura da Ci-
dadede SãoPaulo,de 1935a 1938.Pelaprimeira vezentrenósviu-se
uma organizaçãoda cultura com vistaao público mais amplo pos-
sível.Além da remodelação
em largaescala
da BibliotecaMunicipal,
foram criados: parques infantis nas zonas populares;bibliotecas
ambulantes,em furgõesque estacionavamnos diversosbairros; a
discotecapública;osconcertosde ampla difusão,baseados
na novi-
dadede conjuntos organizadosaqui, como quarteto de cordas,trio
instrumental,orquestrasinfônica,corais.A partir de entãoa cultura
musical média alcançoupúblicos maiores e subiu de nível, como
demonstramasfichasdeconsultada Discoteca
PúblicaMunicipaleos
programasde eventos,pelosquaisseobservadiminuição do gosto
até entãoquaseexclusiyopelaópera e o solo de piano, com inçre-
mento concomitantedo gostopelamúsicade câmarae a sinfônica.
E tudo issoconcebidocomo atividadedestinadaa todo o povo, não
apenasaosgruposrestritosde amâdores.
Ao mesmotempo,Mário deAndradeincrementoua pesquisa
fol-
clórica e etnográfica,valorizandoasculturaspopulares,no pressu-
posto de que todos os níveissãodignos e que a ocotrênciadelesé
função da dinâmica dassociedades.
Ele entendiaa princípio que as
criaçõespopulareseram fonte daseruditas,e que de modo gerala
arte vinha do povo. Mais tarde, inclusive devido a uma troca de
idéiascom RogerBastide,sentiuquenaverdadehá uma correnteem
dois sentidos,e que a esferaerudita e a popular troçam influências
de maneira incessante,
fazendoda criaçãoliterária e artística um
fenômeno
de vasta
intercomunicaçào.
Isto fazlembrar que,envolvendoo problemada desigualdade
so,
cial e econômica,estáo problema da intercomunicáçãodos níveis
culturaìs.Nas sociedades
que procuram estabelecer
regimesiguali-
tários,o pressuposto
é quetodosdevemter a possibilidade
de passar
dosníveispopularesparaosníveiseruditoscomo conseqüência
nor-
mal da transformaçãode estrutura,prevendo-sea elevação
sensível
da capacidade
de cadaum graçasà aquisiçãocadavezmaior de co-
nhecimentose experiências.
Nassociedades
quemantêm a desigual-
dadecomo norma, e éo casoda nossa,
podemocorÍermovimentose
medidas,de caráterpúblico ou privado,paradiminuir o abismoen-
tre os níveise fazerchegarao povo os produtoseruditos.Mas,repi-
to, tanto num casoquanto no outro estáimplícita como questão
maior a correlaçãodosníveis.E aí a experiênciamostraque o prin-
cipalobstáculopodesera faltadeoportunidade,não a incapacidade.
A partir de 1934e do famosoCongressode Escritoresde Karkov,
generaÌizou-se
a questãoda literaturaproletór;4 que vinha sendo
debatidadesdea vitória da RevoluçãoRussa,
havendouma espécie
de convocaçãouniversalem prol da produção socialmenteempe-
nhada.Uma dasalegações
eraa necessidade
de dar aopovo um tipo
de literatura que o interessasse
realmente,porque yersavaos seus
problemasespecíficos
de um ânguloprogressista.
Nessaocasião,
um
O DI REITO À LITERATURÁ
escritorfrancês
bastante
empenhado,
masnãosectário,
Jean
Guéhenno,
publicou na revistaE roPealgunsartigosÌelatandouma exPeriência
simples:ele deu para ler a Sentemodesta,de Poucainstrução,ro-
mancespopulistas,empenhadosna Posiçãoideológicaao lado do
trabalhadoredo pobre.Masnãohouveo menor interesse
dapartedas
pessoas
a que sedirigiu. Então,deuìhes livros de Balzac'Stendhal'
Flaubert,queosfascinaramGuéhennoqueriamostrar com lsto que
a boa literatura tem alcanceuniversal,e que elaseriaacolhidadevi-
damentepelo povo sechegasse
até ele.E por aí sevê o efeitomuti-
lador da segregação
cultural segundoasclasses
Lembroaindadeter ouvido nosanosde 1940queo escritore Pen-
sadorportuguêsAgostinhoda SilvaPromoveucursosnoturnosPara
operários,nosquaiscomentavatextosde filósofos,como Platão'que
despertaram
o maior interesse
e foram devidamenteassimilados.
MariaVitória Benevides
naÍra a esler€sPeilo
um casoexemplar.
ïbmpos atrásfoi aprovadaem Milão uma lei que assegura
aosoPe-
rárioscertonúmero de horasdestinadas
a aperfeiçoamento
cultural
em matérias escolhidasPor eles próprios. A expectatiYaera que
aproveitariama oportunidadeparamelhorar o seunívelprofissional
por meio de novos conhecimentostécnicosligadosà atividade de
cadaum. Masparasurpresa
geral,o quequiseramna grandemaioria
foi aprenderbem q sua língua (muitos estavamainda ligadosaos
dialetosregionais)e conhecera literaturaitaÌiana.Em segundolugar,
queriam aprendervioÌino.
Estebeloexemplolevaa falarno poder universaldosgrandesclás-
sicos,que ultrapassama barreira da estÌatificaçãosociale de certo
modo podem redimir asdistânciasimpostaspeladesigualdade
eco-
nômica,pois têm a capacidade
de interessara todos e Portanto de-
vem serìevadosao maior número. Paraficar na Itália, é o casoas-
sombrosoda Divira comédia,conhecidaem todososníveissociaise
por todos elesconsumidacomo alimentohumanizador.Mais ainda:
dezenas
de milharesde pessoas
sabemde cor ostrinta e quatro can-
tos do INFERNo;
um número menor sabe de cor não apenaso
INFERNO,
mastambémo PuRcAróRIo;
e muitos mil sabemalémdeles
o PARÂlso,
num total de cem cantose mais de treze mil versos..
Lembro de ter conhecidona minha infância,em Poçosde Caldas,o
velho sapateiroitaliano Crispino Caponi que sabiao Iuruuo com-
pleto e recitavaqualquercanto quesepedisse,
semparar debateras
suassolas.
Os italianossãohoie alfabetizados
e a Itália é um paíssatuado da
melhor cultura-Mas noutÍos países,
mesmo os analfabetospodem
participar bem da literatura eruditaquando lhesé dadaa oportuni-
dade.Sefor permitida outra lembrança pessoal,contarei que quando
eu tinha dozeanos,na mesmacidadede Poçosde Caldas,um jar-
dineiro português € sua esposabrasileira,ambos analfabetos,me
pediramparalhesler o Amor deperdição,
deCamilo CasteloBranco,
que já tinham ouvido de uma professorana fazendaonde traba-
lhavam antes e qu€ os haüa fascinado, Eu atendi e verifiquei como
assimiìavam bem, com emoção inteligente.
O Fqusto,o Dom Quixote, Os lusíadas,Machado de Assis podem
serfruídos em todos os níveis e seriam fatores inestimáveis de afina-
mento pessoaÌ,sea nossasociedadeiníqua nâo segÌegasse
ascama-
das,impedindo a difusão dos produtos culturais eruditos e confi-
nando o povo a apenasuma part€ da cultura, a chamadapopular.A
este r€speito o Brasil sedistingue pela alta taxa de iniqúidade, pois
como é sabidotemosde um lado os maisaltosníveisde instruçãoe
de cultura erudita, e de outro a massanumericamentepredom!
nante de espoliados,
semacesso
aosbensdesta,e aliásaospróprios
bens materiais necessáriosà sobrevivência.
Nessecontexto, é revoltante o preconceito segundo o qual asmi
norias que podernparticipar dasformas requintadasde cultura são
semprecapazesde apreciáJas,o que não é verdade.As classes
domi-
nantes sãofieqúentemente desprovidasde percepçãoe interessereal
pela arte e a literatura ao seudispor, e muitos dos seussegmentosas
fruem por mero esnobismo, porque est€ ou aquele autor está na
moda,porquedá prestígiogostardesteou daquelepintor. Os exem-
plosquevimos há pouco sobrea sofreguidãocomoventecom queos
pobres e mesmo analfabetos recebem os bens culturais mais altos
mostÍam que o que há mesmo é espoliação,privação de bens espir!
tuaisque fazemfaltae deveriamestarao alcancecomo um direito.
O DIREIÍO À LITENATURA
Portanto, a luta Pelosdireitos humanos abrangea luta por um
estadode coisasem que todos Possamter acessoaosdiferentes níveis
da cultura. A distinçãoentÍe cultura popular e cultura erudita não
deveservir parajustificar e manter uma s€Paração
iníqua,como se
do ponto de vista cultural a sociedadefossedividida em esferasinco-
municáveis,dando lugar a dois tiPos incomunicáveisde ftuidores'
Uma sociedade
justapressuPõe
o resPeitodosdireitoshumanos'e a
fruição da arte e da literatura em todas asmodalidades e em todos
osníveisé um direito inalienável'
(1988)

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  • 1.
  • 2. lô9 O DIREITO À LTTERATURA I assuntoque me foi confiado nestasérieé aparentemente meio desligadodos problemasreais:"Direitos humanose literatura".As maneirasde abordáìo sãomuitas,masnão possocomeçara faÌarsobreo temaespecífico semfazeralgumasre- ílcxõespréviasa respeitodospróprios direitoshumanos. É impressionantecomo em nosso tempo somos contraditórios neste capítulo, Começoobservando queem comparaçào a eraspas sadaschegamosa um máximo de raçionalidadetécnicae de domí- nio sobrea natureza.Issopermite imaginar a possibilidadede resol- ver grandenúmero de problemasmateriaisdo homem, quem sabe inclusiveo da alimentação.No entanto,a irracionalidadedo com- portamento é também máxima,servidafreqüêntemente peÌosmes- mos meiosque deveriamrealizarosdesígniosda racionalidade. As- sim, com a energiaatômicapodemosao mesmotempo gerarforça criadorae destruir a vida pelaguerra;com o incrível progressoin- dustrial aumentamoso conforto até alcançarníveisnunca sonha- dos,masexcluímosdeleasgrandesmassas quecondenamosà misé- ria;em certospaises, como o Brasil, quantomaiscresce a riqueza, mais aumentaa péssimadistribuição dos bens.Portanto,podemos dizer que os mesmosmeiosque permitem o progressopodem pro- vocara degradação da maioria. Ora, na Gréciaantiga,por exemplo,teria sido impossívelpensar numa distribuição equitativados bens materiais,porque a técnica ainda não permitia superar as formas brutais de exploraçãodo homem, nem criar abundânciapara todos. Mas em nossotempo é possívelpensarnisso,e no entantopensamosreÌativamentepouco. Essainsensibilidadenegauma daslinhas mais promissorasda his- tória do homem ocidental,aquelaque senutriu dasidéiaamadure- cidasno correrdosséculos XVIII exlx, gerandoo liberalismoetendo
  • 3. no socialismoa suamanifestação mais coerente.ElasabÌiÌam pers- pectivasque pareciamìevarà soluçãodosproblemasdramáticosda vida em sociedade,E de fato, durante muito tempo acreditou-se que, removidosuns tantos obstáculos,como a ignorânciae os sis- temasdespóticosde governo,asconquistasdo progresso seriamca, nalizadasno rumo imaginadopelosutopistas,porquea instrução,o sabere a técnicalevariamnecessariamente à felicidadecoletiva.No entanto,mesmoonde estesobstáculosforam removidosa barbárie continuou entreos homens. Todossabemos que a nossaépocaé profundamentebárbara,em- bora setratedeuma barbárieligadaaomiáximodecivilização.Penso queo movimento pelosdireitoshumanosseentroncaaí,pois somos a primeira era da história em que teoricament€é possívelentreyer uma soÌuçàopara as grandesdesarmonias que gerama injustiça contra a quallutam oshomensdeboavontadeà busca,não maisdo estadoidealsonhadopelosutopistasracionaisquenosantecederam, mas do máximo viávelde igualdadee justiça,em correlaçãoa cada momento da história. Mas estaverificaçãodesalentadora devesercompensadapor ou- tra, mais otimista: nós sabemosque hoje os meiosmateriaisneces- sáriospara nos aproximarmosdesseestágiomelhor existem,e que muito do que era simplesutopia setornou possibilidadereaÌ.Seas possibilidadesexistem,a luta ganha maior cabimento e se torna maisesperançosa, apesarde tudo o que o nossotempo apresenta de negativo.Quem acreditanosdireitoshumanosprocura transfoÌmar a possibilidadeteóricaem reaÌidade, empenhando-se em fazercoin- cidir uma com a outra. Inversamente, um traço sinistro do nosso tempo é saberque é possívela soluçãode tantosproblemase no en- tanto não seempenharnela.Masde qualquermodo, no meio da si- tuaçãoatrozem que vivemoshá perspectivas animadoras. É verdadeque a barbáriecontinua até crescendo, mas não sevê maiso seuelogio,como setodossoubessem queelaé aÌgoa serocul- tado e nãoproclamado.Sobesteaspecto, ostribunais deNuremberg foram um sinaldostemposnovos,mostrandoquejá nãoé admissível a um general vitoriosomandarfazerinscrições dizendoqueconstruiu l7l o DIRIITO À rITERÂruR^ umapiràmidecomascabeças dosinimigosmortos,ou quemandou cobrir asmuralhasde Nínive com assuaspelesescorchadas' Fazem- secoisasparecidase atéPiores,mas elasnão constituemmotivo de celebração. Paraemitir uma nota positivano fundo do horror' acho que issoé um sinal favorável,pois se o mal é praticado' mas não proclamado,quer dizer que o homem não o achamaistão natural' No mesmos€ntidoeu inlerpretaria certas mudanças no compor- tamento quotidiano e na Íìaseologiadasclasses dominantes' Hoje nãoseafirmacoma mesmatranqüilidade do meutempodemenino que haverpobresé a vontadede Deus,que elesDãotêm asmesmas necessidades dosabastados, queosempregados domésticosnãopre- cisamdescansar, quesómorredefomequemfor vadio,ecoisas assim' Eústeem relaçãoao pobre uma novaatitude,quevai do sentimento de culpa atéo medo.Nascaricaturasdosjornais e dasrevistaso es- farrapadoe o negronão sãomaistemaPrediletodaspiadas'porque a sociedade sentiu que elesPodemserum fator de Íompimento do estadode coisas, e o temor é um doscaminhospara a compreensão' SintomacomPlementareu veio na mudançado discursodos Po- líticoseempresários quandoaludemà suaposiçãoideológicaou aos problemas sociais. Ïbdos eles'a começarpelopresidente daRepública' fazemafirrnações queatéPoucotemPoseriamconsideradas subver- sivase hoje fazemparte.dopalavreado bem-pensantePor exempÌo' qu€ não é maispossivel tolerarasgrandes diferenças econômicas' sendonecessário promover uma distribuiçãoequitativa É claro que ninguémseempenhaparaque de Íato isto aconteça, mastaisati- tudese pronunciamentosParecemmostrar que agoraa imagemda injustiçasocialconstrange, e que a insensibilidadeem faceda misé- ria deve ser pelo menos disfarçada,porque pode comPrometera imagem dos dirigentes.Estahipocrisia generalizada, tributo que a iniquidadepagaà justiça,é um modo de mostrarqueo sofrimento já não deixatão indiferentea médiada opinião' Do mesmomodo, osPolíticose €mpresários de hoje nãosedecÌa- ram conservadores, como antes,quando a exPressão classes conser' vadoras eraum gaardão.Todos são invariavelmente de centro' e até de centro-esquerda, inclusive os fiancamente reacionários'E nem
  • 4. t72 poderiamdizer outra coisa,num tempo em que a televisâo mosrraa cadainstante,em imagenscuio intuito émero sensacionalismo, mas cujo efeito pode ser poderosopara despertaras consciências, crr_ ançasnordestinasraquíticas,populaçõesinteirassemcasa, posserros massacrados, desempregados morandona rua. De um ânguÌootimista,tudo issopoderiaserencaradocomo ma- rÌifestação infusada çonsciência cadavezmaisgeneralizada deque a desigualdade é insuportávele pode seratenuadaconsideravelmente no estágioatual dosrecursostécnicose de organização. Nesse senti_ do,talvezsepossafalarde um progresso no sentimentodo próximo, mesmosema disposiçãocorrespondente de agir em consonância. E aí entra o problema dos que lutam para que issoaconteça, ou sera: entra o problema dosdireitoshumanos, 2 Porquê?Porquepensarem direitoshumanostem um pressuDosÌo: reconhecerque aquilo que consideramosindispensável para nós é tambémindispensável parao próximo. Estame parecea essència do problema, inclusive nopÌanoestritamenle individual. poisénecessârio um grandeesforçodeeducaçâo eauto_educação a fim de reconhecer_ mossrnceramente estepostulado.Naverdade, a tendência maisfunda éacharqueosnossosdireitossãomaisurgentesqueosdo próximo. Nesse ponto aspessoas sãofreqüentem€nte ütimas de uma curiosa obnubilação.Elasafirmam que o próximo tem direito, semdúvida, a certosbens fundamentais,como casa,comida, instrução,saúde, colsasque ninguém bem formado admite hoje em dia que sejam privilégio de minorias, como sãono Brasil.Mas seráque pensurn que o seusemelhante pobre t€ria direito a ler Dostoievskioì ouurr os quartetos de Beethoven? Apesar das boas intençõesno outro setor,talvezisto não lhespassepelacabeça. E não por mal, mas so_ menteporque quando arroÌam os seusdireitosnão estendemtodos elesao semelhante.Ora, o esforço para incluir o semeÌhanteno mesmo eÌencode bens que reivindicamosestána baseda reflexao sobreosdireitoshumanos, O DIREITO À LITERATURÁ A €sterespeitoé fundamentalo ponto de vistade um grandeso- ciólogofrancês,o padredominicano Louis-fosephLebret,fundador do movimento Economiae Humanismo, com quem tive a sortede convivere que atuou muito no Brasilentre os anosde 1940e 1960. Pensona suadistinção entre "bens compressíveis" e "bens incom- pressíveis", que estáligadaa meu ver com o problema dos direitos humanos,pois a maneirade concebera estesdependedaquiÌo que classificamos como bensincompressíveis, isto é,os que não podem sernegadosa ninguém. Certosbenssãoobviamenteincompressíveis, como o alimento,a casa, a roupa.Outros sãocompressíveis, como oscosméticos, osen- feites,as roupassupérfluas.Mas a Íìonteira entre ambos é muitas vezes diÍícil de fixar,mesmoquandopensamos nosquesãoconside- radosindispensáveis. O primeiro litro de arrozdeumâ sacaé menos impoÍtantedo queo úÌtimo,e sabemos quecom baseem coisas como estaseeìaborouemEconomiaPolíticaateoriada"utilidademarginaÌ'l segundoaquaÌo valor de uma coisadependeem grandeparteda ne cessidade relativaquetemosdela.0 fato é quecadaépocae cadacuÌ- tura fixam oscritériosdeincompressibilidade, queestãoligadosà di- visão da sociedadeem classes, pois inclusive a educaçãopode ser instrumento paraconvenceraspessoas de que o que é indispensável parauma camadasocQlnâoo éparaoutra,Na classe médiabrasileira, os da minha idade ainda lembram o tempo em que sedizia que os empregâdos nãotinham necessidade desobremesa nem de folgaaos domingos, porque não estandoacostumadosa isso,não sentiamfalta.., Portanto,é precisoter critériosseguros paraabordaro problemados bensincompressíveis, sejado ponto devistaindividual,sejado ponto de vistasocial.Do ponto de vistaindividual, é importante a consci- ênciadecadaum a respeito,sendoindispensável fazersentirdesdeâ infânciaqueospobrese desvalidos têm direito aosbensmateriais(e queportanto não setrata de exerceÌcaridade),assimcomo asmino- riastêm direito à igualdadede tratamento.Do ponto de vistasocial é precisohaverleisespecíficas garantindo estemodo dever. Por isso,a luta pelosdireitos humanos pressupõea consideração de taisproblemas,e chegandomaisperto do temaeu lembraria que
  • 5. t74 sâobens incompressiveis não apenasos que asseguram a sobrevl- vênciafísicaem níveisdeçe espirituaÌ. são incomo,",,r:i;':.ï:;ï[ï"ïiiiï;]:ïï1':;i: o vestuário,a instrução,a saúde, a liberdadeindividual, o amparoda justiça púbÌica, a resistênciaà opressãoetc.j e também o djreito à crença,à opinião,ao lazere,por quenão,à arte e à literatura. Masa Íìuição daarteedaliteratuÌa estariamesmonestacategoria? Como noutros casos, a respostasó pode serdadasap,rd"r_o", ."r_ ponder a uma questãoprévia,istoé,elassópoderãoserconsideradas bensincompressíveis segundouma organização justadasociedaqe se corresponderem a necessidades profundasdo serhumano,a necessr_ dadesque não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desor_ ganizaçâo pessoal, ou pelo menosde frustraçãomutiladora.A nossa questãobásica, portanto,ésaberse aliteraturaéuma necessidade des_ te tipo. Sóentâoestaremos em condiçõesde concÌuìra respeito. 3 Chamareide literatura,da maneiramais ampla possível, todasas criaçôes de toquepoético,ficcionalou dramáticoem todososnívets de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desdeo que cha- mamos folclore,Ìenda,chiste,até asformas mais complexase diff_ ceisdaproduçàoescrita dasgrandes civilizaçóes. Vista destemodo a literatura aparececlaramenteçomo maniÍes, tação universaÌde todos os homens em todos os tempos.Não há n::: rà" há homemque possa viversemela.istoê,sema possi_ bilidade de entrar em contacto com alguma espéciede fabulaçao. Assimcomo todos sonhamtodasasnoites,ninguém é capazde pas_ sarasvrntee quatro horasdo dia semalgunsmomentosde entreca ao universofabulado.O sonho assegura durante o sono a preseniu indispensáveì desteuniverso,independentemente da nossavontade. E durante a vigília a criaçãoficcionalou poética,que é a mola da li_ teratura em todos os seusníveise modalidades,estápresenteem cadaum denós,anaÌfabeto ou erudito,como anedota, causo, históna em quadrinhos,noticiário policial, cançãopopular,moda de viola. O DIREITO A LI TERAT U RA sambacarnavalesco. Elasemanifestadesdeo devaneioamorosoou econômicono ônibus atéa atençãofixadana noveladetelevisãoou na leitura seguidade um romance. Ora, seninguém podepassarvinte e quatro horassemmergulhar no universoda ficçãoe da poesia,a literatura concebidano sentido amplo a que me referi parececorrespondera uma necessidade uni- versal,queprecisasersatisfeita e cujasatisfação constituium diÌeito. Alterando um conceito de Otto Ranke sobre o mìto, podemos dizer que a literaturaé o sonho acordadodasciviÌizaçôes. Portanto, assimcomo não é possíveÌhaverequilíbrio psíquico sem o sonho duranteo sono,talveznãohajaequilíbriosociaÌsemaÌiteratura.Des- te modo, ela é fator indispensável de humanizaçãoe, sendoassim, confirma o homem na suahumanidade,inclusiveporque atua em grandeparte no subconsciente e no inconsciente.Nestesentido,eÌa podeter importância equivalenteà dasformasconscientes de incul- camentointencional,como a educaçãofamiliar, grupaÌ ou escolar Cadasociedade cria assuasmanifestaçóes ficcionais,poéticase dra- máticasdeacordocom osseusimpuÌsos,assuaS crenças, osseussen- timentos,assuasnormas,a fim defortalecerem cadaum a presenca e atuaçãodeles. Por issoé que nasnossas sociedades a literaturatem sido um ins- trumento poderoso.deinstruçãoe educação, entrando noscurrícu- los,sendopropostaa cadaum como equipamentointelectuaÌe afe- tivo. Os valoresque a sociedade preconiza,ou osque considerapre- judiciais, estãopresentesnas diversasmanifestações da ficção, da poesiae da açãodramática.A literatura confirma e nega,propõe e denuncia,apóiae combate,fornecendoa possibilidadedevivermos dialeticamente os problemas.Por issoé indispensável tanto a litera- tura sancionada quanto aliteraturaproscrita;a queospoderessuge- Ìem e a que nascedos movimentos de negaçãodo estadode coisas predominante. A respeitodestesdoisladosda literatura,convémlembrar que ela nãoé uma experiência inofensiva, masuma aventuraquepodecausar problemaspsíquicose morais, como acontececom a própria vida, da qual é imagem e transfiguração.Isto significaque elatem papel
  • 6. formador da personalidade, nas não segundoasconvenções; seria antessegundoa força indiscriminada e poderosada própria reali_ dade.Por isso,nasmãos do leitor o livro pode serfator de pertur_ baçãoe mesmo de risco.Daí a ambivalênciada sociedadeem face dele,suscitandopor vezescondenações violentasquando eleveicu- la noçõesou oferecesugestões que a visãoconvencionalgostariade proscrever. No âmbito da instruçãoesçolaro livro chegaa gerarcon- flitos,porque o seuefeitotranscendeasnormas estabelecidas. Numa paÌestrafeita há maisde quinze anosem reuniãoda Socie_ dade Brasileirapara o Progressoda Ciência sobreo papel da Ìite ratura na formaçãodo homem,chameia atençãoentreoutrascoisas para osaspectos paradoxaisdesse papel,na medida em que osedu_ cadoresao mesmo tempo preconizame temem o efeito dos textos Ìiterários.De fato (dizia eu), há "conflito entre a idéia convencional de uma literatura que elevae edífca (segundoos padrõesoficiais)e a suapoderosaforça indiscriminadade iniciaçãona vida, com uma variada complexidadenem sempredesejadapeloseducadores. Ela não corÍompeneiJn edifim, porÍanto; mas,trazendoÌivÍementeem si o quechamamoso bem eo quechamamoso mal,humanizaem sen- tido profundo, porque fazviver". 4 A funçãoda literatura estáligadaà compÌexidadeda suanatureza, queexplicainclusiveo papelcontraditório mashumanizador(talvez humanizador porque contraditório). Analisando-a,podemos <iis_ tinguir pelo menos três faces:(1) ela é uma construÇãode objetos autonomos como estrutura e significado;(2) ela é uma forma de expÌessão, isto é,manifestaemoçõese a visãodo mundo dosindiv! duos e dosgrupos;(3) elaé uma forma de conhecimento,inclusive con-ro incorporaçãodifusae inconsciente. Em geralpensamosque a literatura atua sobrenós devido ao ter_ çeiroaspecto, isto é,porquetransmiteuma espécie de conhecimento, queresultaem aprendizado,como seelafosseum tipo de instrução. Masnãoé assim.O efeitodasproduçõesliteráriasé devidoàatuação O DIREITO A LITERÀTUR simultâneadostrêsaspectos, emboracostumemospensarmenosno primeiro, que correspoÍtdeà maneirapelaqual a mensagemé cons- truída; mas eslaffioneiraé o aspecto,senãomais impodante, com certeza crucial,porqueéo quedecideseuma comunicaçãoéliterária ou não.Comecemospor ele. Todaobra literária é antesde maisnadauma espécie de objeto,de objeto construído;e é grandeo poder humanizador destaconstru- ção,enquantoconstruçAo. De fato, quando elaboramuma estrutura,o poetaou o narrador nospropõem um modelo decoerência, geradopelaforçada palavra organizada. Sefossepossívelabstrairo sentidoe pensarnaspalavras como tijolos de uma construção,eu diria que esses tijolos represen- tam um modo deorganizaÍ a matêÍia,e queenquanto organizaçãoeles exercempapel ordenador sobre a nossamente. Quer percebamos claramenteou não, o caráterde coisaorganizadada obra literária torna-se um fator que nos deira mais capazes de ordenar a nossa pÍópria mente e sentimentos;e, em conseqüência, mais capazes de organizara visãoque temosdo mundo. Por isso,um poemahermético,de entendimentodifícil, sem ne- nhuma alusãotangívelà realidadedo espírito ou do mundo, pode funcionar nestesentido,peÌo fato de ser um tipo de ordem, suge- rindo um modelo de superaçãodo caos.A produçãoliterária tira as palavrasdo nadaeasdispõecomo todo articulado,Esteé o primeiro nível humanizador,ao contrário do que geralmentesepensa.A or- ganizaçãoda palavra comunica-seao nosso espírito e o leva,pri- meiro, a seorganizar;em seguida,a organizaro mundo. Isto ocorre desdeasformasmaissimpÌes,como a quadrinha,o provérbio,a his tória debichos,quesintetizama experiênciae a reduzema sugestão, norma, conselhoou simplesesp€táculo mental. "Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga."Este provérbio é uma frasesolidamenteconstruída,com dois menbros de setesílabascadaum, estabelecendo um ritmo que realçao con- ceito, torrìado mais forte pelo efeito da rima toante: "aj-U-d-e'] "madr-U-g-A'1A construçãoconsistiuem descobrira expressão la- pidare ordenaìasegundo meiostêcnicos queimpressionam a per
  • 7. F cepção.A mensagemé inseparáveldo código, mas o código é a condiçãoque assegura o seuefeito. Masaspalavrasorganizadas sãomaisdo quea presença deum có- digo: elascomunicam sempÌe aÌguma coisa,que nos toca porque obedece a certaordem.Quandorecebemos o impactodeuma produ- çãoliterária,oraÌ ou escrita,eleédevidoà fusãoinextricávelda men- sagemcom a suaorganização. Quando digo que um texto me im- pressiona,quero dizer que ele impressionaporque a sua possibili- dade de impressionarfoi determinadapela ordenaçâorecebidade quem o produziu. Em palavrasusuaislo conteúdosóatuapor causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidadede humanizardevidoà coerência mental quepressupõe equesugere. O caosoriginário, isto é,o materialbruto a partir do qual o produtor escolheu uma forma,setornaordem;por isso, o meu caosinterior tambémseoÍdenae a mensagem podeatuar.Todaobraliteráriapres- supõeestasuperaçâo do caos,deterrninadapor um arranjo especial daspalavrase fazendouma propostade sentido. Pensemos agora num poema simples,como a LrR^de Gonzaga quecomeçacom o verso"Eu, Marília,não fui nenhumvaqueiro",Ele a escreveu no caÌabouçoda ilha dasCobrase sepoe na situaçãode quem estámuito triste, separadoda noiva. Então começaa pensar nela e imagina a vida que teÌiam tido senão houvesse ocorrido a catástrofeque o jogou na prisão.De acordo com a convençãopas- toraÌ do tempo,transfigura-se no pastorDirceu e transfiguraa noiva na pastora Marília, traduzindo o seu drama em termos da vida campestre. A certaaltura diz: Propunha-medormir no teu regaço As quenteshorasda comprida sesta; Escrever teuslouvores nosolmeiros, Toucar-tede papoulasna floresta. A extremasimplicidade desesversosremeteaatosou devaneiosdos namorados de todosostempos:ficar com a cabeça no colo da namo- rada,apanharflorespara fazeruma grinalda, escreverasrespectivas ini- O DI RII1'O A LITETATURA ciaisna casca dasárvores. Masna experiência decadaum de nósesses sentimentose evocações sãogeralrnente vagos,informuÌados,e não têm consistência que os torne exemplares. Exprimindo-os no en- quadramento deum estiloliterário,usandorigorosamente osYersos de dez sílabas, explorandocertassonoridades, combinandoas Palavms com perícia,o poetatransformao informal ou o inexpresso em estru- tura orgalizada,quesepõeacimado tempoe serveparacadaum re- presentaÌ mentalmente assituaçÕes amorosas destetipo.A alternância reguladade sílabastônicas e sflabasátonas,o poder sugestivoda rima, a cadência do ritmo - criaramuma ordem definidaque servede pa- dÍãoparatodose,deste modo,atodoshumaniza,istoé,permitequeos sentimentos passem do estado derneraemoçãoparao daforma cons- truida, que assegura a generaÌidade e a permanência,Note-se,por exemplo,o efeito do jogo de certossonsex?ressos peÌosfonemasT e P no úìtimo verso, dandotranscendência aum gesto banaldenamorado: Toucar-Tède PaPoulas na floresTã. Têsno começoe no fim, cercandoosPêsdo meio e formando com eÌesuma sonoridademágicaque contribui paraelevara experiência amorfaao nívelda expressão organizada, figurando o afetopor meio deimagensquemapcamcom eficiênciaa transfiguração do meio na- turaì.A forma permitiu que o conteúdoganhasse maior significado e ambosjuntos aumentarama nossacaPacidade de ver e sentir. Digamosqueo conteúdoatuantegÌaçasà forma constituicom ela um par indissolúvelque redundaem certamodalidadede conheci- mento.Estepode seruma aquisiçãoconscientede noções,emoções, sugestões, inculcamentos;masna maior parteseProcessa nascama- dasdo subconsciente e do inconsciente,incorporando-seem pro- fundidadecomo enriquecimentodifícil de avaliar.As produçõesli- terárias,de todos os tipos e todos os níveis,satisfazem necessidades básicasdo ser humano, sobretudoatravésdessâincorporação,que enriquece a nossapercepçâo e a nossavisaodo mundo.O queilustrei por meio do provérbio e dos versosde Gonzagaocorre em todo o campodaliteraturae expÌicapor queelaé uma necessidade universaÌ
  • 8. imperiosa,e por que fruila é um direito daspessoas de qualquer sociedade, desdeo índio que cantaassuasproezasde caçaou evoca dançando a lua cheia,até o mais requintado erudito que procura captar com sábiasredesos sentidosflutuantesde um poema her- mético.Em todos esses casosocorre humanizaçãoe enriquecimen- to, da personalidade e do grupo, por meio de conhecimentooriun- do da expressão submetidaa uma ordem redentorada confusâo. Entendoaqui por àumanizaçao (já guetenho faladotanto nela)o processoque confirma no homem aquelestraços que Ìeputanìos essenciais, como o exercícioda reflexão,a aquisiçãodo saber,a boa disposiçãopara com o próximo, o afinamentodasemoções, a capa- cidadede penetrarnos probÌemasda vida, o sensoda beleza,a per- cepçãoda complexidadedo mundo e dosseres, o cultivo do humor, A literaturadesenvolve em nósaquotadehumanidadena medidaem que nos torna mais compreensivos e abertospara a natureza,a so- ciedade,o semeÌhante. Issoposto,devemoslembrarquealémdo conhecimentopor assim dizer latente,que provémda organização dasemoçõese da visãodo mundo, há na literatura níveisde conhecimentointencionaÌ,isto é. pÌanejadospelo autor e conscientemente assimilados pelo receptor. Estesníveissãoos que chamam imediatamentea atençãoe é neles queo autor injetaassuasintenções depropaganda, ideologia,crença, r€volta,adesãoetc. Um poema abolicionistade Castro Alves atua peÌaeficiênciada suaorganizaçãoformal, pelaqualidadedo senti- mento que expÌime, mastambém pelanaturezada suaposiçãopo- Ìítica e humanitária. Nestescasosa literatura satisfaz,em outro nível,à necessidade de conheceros sentimentose a sociedade, aju- dando-nosa tomar posiçãoem facedeles.Ê aí que sesitua a litera- tura sociana q.aalpensamosquaseexclusivamente quando setrata de uma reaÌidadetão política e humanitária quanto a dos direitos humanos,quepartemde uma análisedo universosocialeprocuran-r retificar assuasiniqüidades. Falemosportanto algumacoisaa respeitodasproduçõesliterárias nasquaiso autor deseiaexpressamente assumirposiçãoem facedos probÌemas.Disso resulta uma literatura empenhada,que parte de O DTREITO À LITERÂTUR posiçõeséticas,políticas,religiosasou simplesmentehumanísticas. Sãocasos em queo autor tem convicções edeseja exprimi-las;ou par- te de certavisãoda realidadee a manifestacom tonalidadecrítica. Daí podesurgir um perigo:afirmar que a literaturasóalcançaa ver- dadeirafunção quando é destetipo. Paraa IgreiaCatólica,durante muito tempo, a boolíteratun era a que mostravaa verdadeda sua doutrina, premiando a virtude, castigandoo pecado.Parao regime soviético,a literaturaautênticaeraa que descrevia aslutasdo povo, cantavaa construçãodo socialismoou celebravaa classeoperária. Sãoposições falhaseprejudiciaisàverdadeira produçãoliterária,por- quetêm como pressuposto que elasejustificapor meio de finalida- desalheiasao plano estético, que é o decisivo.De fato,sabemos que em literaturauma mensagem ética,política,religiosaou maisgeral mentesocialsó tem eficiênciaquando for reduzidaa estruturaìite- rária, a forma ordenadora.Taismensagens sãoválidascomo quais- quer outras,e não podemserproscritas;masa suavalidadedepende da forma quelhesdá existência como um certotipo de objeto. Feitaestar€ssalva, vou me demorar na modalidadede Ìiteratura quevisaa descreveJ eeventualmente a tomar posiçãoem facedasini- qüidades sociais, asmesmasquealimentamo combatepelosdireitos humanos. Faleihá pouco deCastroAlves,exemplobrasileiroquegeralmente lembramosnesses casos. A suaobra foi em parteum poderosolibelo contra a escravidão,pois eÌeassumiuposiçãode luta e contribuiu paraa causaque procuravaservir.O seuefeitofoi devido ao talento do poeta,que fez obra autênticaporque foi capazde elaborar em termosesteticamente váÌidosospontos de vistahumanitários e po- líticos.Animado pelosmesmossentimentose dotado de tempera- mento igualmentegeneroso foi BernardoGuimarães, queescreveu o romanceA escrava Isarratambémcomo libelo.No entanto,vistoque sóa intençãoe o assuntonão bastam,estaé uma obra de má quali- dadee não satisfazos requisitosque asseguram a eficiênciareal do
  • 9. texto. A paixão abolicionistaestavapresentena obra de ambos os autores,masum delesfoi capazde criar a organização literária ade- quadae o outro não.A eficáciahumana é função da eficáciaestéti- ca,e portanto o que na literaturaagecomo força humanizadoraé a própria literatura,ou se.ja, a capacidade de criar formaspertinentes. Issonão quer dizer que sóservea obra perfeita.A obra de menor qualidadetambém atua,e em geraÌum movimento literário é cons- tituído por textosde qualidadealta e textosde qualidademodesta, formando no conjunto uma massade significadosque influi em nossoconhecimentoe nosnossossentìmentos. Paraexemplificar, ve.jamos o casodo rontancehumanitário esocial do começodo séculoXIX, por váriosaspectos umâ resposta da lite- ratura ao impactoda industrializaçãoque,como sesabe,promoveu a conc€ntração urbanaem escala nunca vista,criando novase mais terríveisformasde miséria,inclusivea da misériapostadiretamente aoladodo bem-estar, com o pobrevendoa cadainstanteosprodutos que não poderia obter. Pelaprirneira vez a miséria se tornou um espetáculo inevitávele todostiveramde presenciar a suaterrívelrea lidade nasimensasconcentraçÕes urbanas,para onde eram condu- zidasou enxotadas asmassas de camponeses destinados ao trabalho industrial, inclusivecomo exércitofaminto de reserva.Saindo das regiõesafastadas e dosinterstíciosdasociedade, a misériaseinstalou nos palcosda civilizaçãoe foi setornando cadavez mais odiosa,à medidaquesepercebiaqueelaerao quinhão injustament€imposto aosverdadeirosprodutores da riqueza,os operários,aosquais foi precisoum sécuÌode lutasparaveremreconhecidos osdireitosmais elementares. Não é precisorecapitularo que todos sabem,masape- naslembrarque naqueletempo a condiçãodevida sofieuuma dete- rioraçãoterrível,quelogoalarmouasconsciências maissensíveis e os observadores lúcidos,gerandonão apenaslivros como o de Engels sobrea condiçãoda classe trabalhadorana Inglaterra,masuma série de romancesque descrevem a nova situaçãodo pobre. Assim, o pobre €ntra de fato e de vez na literatura como tema importante, tratado com dignidade, não mais como deÌinqüente, personagemcômico ou pitoresco.Enquantode um lado o operário o DrntrrTo À começavaa seorganizar para a grande Ìuta secularna defesados seusdireitos ao mínimo necessário, de outro lado os escritoresco- meçavama percebera realidadedesses direitos,iniciando pelanar- rativa da suavida, suasquedas,seustriunfos, suâ realidadedesco- nhecidapelasclasses bem aquinhoadas. Estefenômenoé em grande parteligado ao Romantismo,que,seteveaspectos fiancam€ntetra- dicionalistase conservadores, teve também outros messiânicose hunanitários de grandegenerosidade, bastandolembrar que o so- cialismo,que seconfigurou naquelemomento, é sob muitos aspec- tosum movimento de influênciaromântica. Ali pelos anos de 1820-1830nós vemos o apaÌecimentode um romance social,por vezesde corte humanitário e mesmo certos toquesmessiânicos, focalizandoo pobrecomo temaliterário impor- tante.Foi o casode EugèneSue,escritorde segundaordem masex- tremamentesignificativode um momento histórico.Nosseuslivros elepenetrouno universoda miséria,mostroua convivência do crime e davirtude,misturandoosdelinqüentes eostrabalhadores honestos, descrevendo a persistência da purezano meio do vício,numavisào complexae mesmoconvulsada sociedade industrial no seuinício. Tàlvezo livro maìscaracterístico do humanitarismoromânticoseja Osmíseróveís, deYlctor Hugo.Um dosseustemasbásicos é a idéiade que a pobreza,a ignorânciae a opressãogeram o crime, ao qual o homem é por assimdizer condenadopelascondiçõessociais.De maneira poderosa,apesarde decÌamatóriae prolixa, ele retrata as contradições dasociedade do tempoefocalizaumasériedeproblemas graves. Porexemplo,o da criançabrutalizadapeÌafamília,o orfanato, a fábrica, o explorador - o que seriaum traço freqúenteno romance do séculoXtX.N' Os miseraveis há a história da pobre mãesolteiÌa Fantine,que confia a filha a um par de sinistrosmalandros,de cuja tirania brutal elaé salvapeÌocriminoso regenerado, JeanValjean. Victor Hugo manifestouem vários outros lugaresda suaobra a piedadepelo menoÌ desvalidoe brutalizado, inclusivede maneira simbóìican' O homemqae ri, história do filho de um nobre inglês pÍoscrito,queéentreguea uma quadrilhadebandidosespecializados em deformar criançasparavendê-las como obietosde divertimento
  • 10. dos grandes.No caso,o pequenoé operado nos lábiose músculos faciaisde maneiraa ter um ríctus permanenteque o mantém como seestivesse semprerindo. É Gwyrnplaine,cuja mutilaçãorepresenta simbolicamenteo estigmada sociedade sobreo desvalido. Dickenstratou do assuntoem maisde uma obra, como Oliyer Twist. onde narra a iniqúidade dos orfanatose a utilizâçâodos meninos pelosladrõesorganizados, queostransformam no quehoje chama- mostrombadinhas. LeitordeEugéne SueeDickens,Dostoievski levou a extremosdepatéticoo problemadaviolênciacontraa infância,até chegaràvioÌaçãosexualconfessada por Stawogu'ieem Osdemônios Muito da literaturamessiânica ehumanitária daqueletempo (não estou incluindo Dostoievski,que é outÍo setor) nos parecehoje declamatóriae por vezescômica. Mas é curioso que o seu travo amargoresist€no meio do quejá envelheceu devez,mostrando que a preocupaçãocom o que hoje chamamosdireitos humanos pode dar àÌiteraturauma forçainsuspeitada. E reciprocamente, quealite- ratura podeincutir em cadaum de nóso sentimentode uÌgênciade taisproblemas.Por isso,creioquea entradado pobreno temário do romance,no tempo do Romantismo,eo fato d€sertratadonelecom adevidadignidade,éum mon.Ìento relevante no capítulodosdireitos humanosatravésda literatura. A paÍtir do período romântico a narrativa desenvolveu cadavez maiso Ìadosocial,como aconteceu no Naturalismo,quetimbrou em tomar como personagens centraiso operário,o camponês, o pequeno artesão,o desvalido,a prostituta, o discdminado em geral.Na França, Émile Zola conseguiufazeruma verdadeiraepopéiado povo opri- mido e expÌorado,em vários liyros da série dosRougon-Macquart, retratandoasconseqüências da miséria,da promiscuidade,da espo- liaçãoeconômica,o que fez deleum inspirador de atitudese idéias políticas. Sendoelepróprio inicialmenteapolítico,interessado apenas em analisarobjetivamenteosdiversosníveisda sociedade, estacon-. seqúênciada suaobra nada tinha a ver com suasintenções.Mas é interessante que a força política latentedos seustextosacaboupor leválo à açãoe tornálo um dos maiores militantes na história da inteligênciaempenhada.Isto se deu quando ele assumiu posição O DIREITO À LITÊRATURÀ contraa condenação injustado capitãoAlfred Drelúrs, cujo proces- so,graças ao seufamosopanfleto/'4cc456entrou em fasede revisão, terminadapelaabsolviçãofinal. Mas antesdesse desfecho(que não chegoua ver,porque já morrera), Zola foi julgado e condenadoà prisãopor ofensaaoExército,o queo obrigou aserefugiarna Ingla- terra.Aí estáum exemplocompletodeautor identificadocom avisão socialda suaobra, que acabapor reunir Produçãoliterária e mili- tânciapoÌítica. Tanto no casoda literaturamessiânica e idealistadosromânticos, quanto no casoda literatura realista,na qual a cútica assumeo cu- nho de verdadeirainvestigação orientadada sociedade, estamosem facede exemplodeliteratura empenhadanuma tarefaligadaaosdi- reitoshumanos.No Brasilisto foi claro nalgunsmomentos do Na- tuÌalismo, mas ganhou força real sobretudo no decênio de 1930, quando o homem do Povo com todos os seusproblemaspassoua primeiro plano e os escritoresderam grande intensidadeao trata- mento literário do pobre. Issofoi devido sobretudoao fato do romancedetonalidadesociaÌ ter passado da denúnciaretóÍica,ou de meradescÌição, a uma esPé- ciedecríticacorrosiva, quepodiaserexplícita, comoemJorge Amado, ou implícita,como em GracilianoRamos,masqueem todoselesfoi muito eficientenaqgeleperíodo, contribuindo para incentivar os sentimentosradicaisque segeneralizaramno país Foi uma verda- deira onda de desmascaramento social,que aParece não apenasnos queaindalemoshoje,como osdoiscitadosemais)oséLins do Rego, Rachel de Queiroz ou Érico Veríssimo, mas em autores menos ìembrados,como Abguar Bastos,Guilhermino Cesar,Emil Farhat, Amando Fontes, para não falar de tantos outros praticamente esquecidos, masque contÍibuíram para formar o batalhãode escri- tores empenhadosem expor e denuncial a miséria,a exPloração econômica, a marginalizaçáo, o que os torna' como os outros,fi- gurantesde uma luta virtual pelosdireitoshumanos.Seriao casode Ioão Cordeiro,ClovisAmorim, Lauro Palhanoetc.
  • 11. 6 Acabeide focalizara relaçãoda literatura com os direitos huma- nos de dois ânguÌosdiferentes.Primeiro,verifiquei que a literatura correspondea uma necessidade universalque devesersatisfeitasob penade mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentim€ntos e à visãodo mundo elanosorganiza,noslibertado caos e portanto nos humaniza.Negara fruição da Ìiteratura é mutilar a nossahumanidade.Em segundoìugaç a literatura podeserum ins_ trumento conscientede desmascaramento, pelo fato de focalizaras situações derestriçãodosdireitos,ou denegação deÌes, como a misé- ria, a servidão,a mutilação espiritual.Tànto num nível quanto no outro elatem muito a ver com a luta pelosdireitoshumanos. A organização da sociedadepode restringir ou ampliar a fruição destebem humanizador.O quehá de gravenuma sociedade como a brasileiraé que elamantém com a maior durezaa estratificação das possibilidades, tratando como sefossemcompressíveis muitos bens materiaise espirituaisqu€ sãoincompressíveis. Em nossasociedade há ftuição segundoasclasses na medidaem que um homem do po- vo estápraticamenteprivado da possibilidadede conhecere apro- veitar a leitura de MachadodeAssisou Mário deAndrade.paraele, ficam a literatura de massa,o foÌclore, a sabedoriaespontânea,a cançãopopular,o provérbio. Estasmodalidadessãoimportantes e nobres,mas é graveconsideráìascomo suficientespara a grande maioria que,devido à pobrezae à ignorância,é impedidade chegar àsobraseruditas. NessaaÌtura é preciso fazer duas considetações: uma relativa à difusâopossível dasformasdeliteraturaeruditaem funçãodaestru- tura e da organizaçãoda sociedade; outra, relativaà comunicação entre asesferas da produçâoliterária. Paraquea ÌiteÌaturachamadaeruditadeixede serprivilégiode pe_ quenosgrupos,é precisoquea organiza@o da sociedade sejafeitade maneiraagarantirumadistribuiçãoequitativa dosbens,Emprincípio, so numa sociedade igualitáriaos produtosliteráriospoderãocircular sembarreiras, enestedomínio a situação é particularmente dramática O DIRDITO À LITËRATUI^ em países comoo Brasil,ondea maiorìadapopulaçãoéanalfabeta, ou quase, eviveemcondições quenâopermitema margemdelazerindis- pensável à leitura.Por isso,numa sociedade estratificada destetipo a fruiçãoda literaturaseestratifica de maneiraabruptae alienante. PeÌoque sabemos,quando há um esforçoreal de igualitarização há aumento sensíveldo hábito de leitura, e portanto difusão cres- centedasobras.A União Soviética(que nestecapítulo é modelar) fezum grandeesforçopara isto,e lá astiragenseditoriaisâlcançam números para nós inverossímeis, inclusive de textos inesperados, como os de Shakespeare, que em nenhum outro paísé tão lido, se- gundo vi registradonalgum lugar.Como seriaa situaçãonuma so- ciedade idealmente organizada com base na sonhada igualdade completa,quenuncaconhecemos e talveznuncavenhamosa conhe- cer?No entusiasmoda construçãosocialista, Trotski previa que ne- la a médiadoshomensseriado níveÌdeAristóteles,GoetheeMarx... Utopia à parte,é certoque quanto maisigualitáriafor a sociedade, e quantomaislâzerproporcionar,maior deveráseradifusãohumani- zadoradasobrasliterárias,e,portanto,a possibiìidade de contribuí- rem para o amadurecimentode cadaum. Nas sociedades de extremadesigualdade, o esforçodos governos esclarecidos e doshomensde boavontadetentaremediarna medida do possívela falta de.oportunidadesculturais. Nesserumo, a obra maisimpressionante queconheçono Brasilfoi de Mário deAndrade no breveperíodoem quechefiouo DepartamentodeCultura da Ci- dadede SãoPaulo,de 1935a 1938.Pelaprimeira vezentrenósviu-se uma organizaçãoda cultura com vistaao público mais amplo pos- sível.Além da remodelação em largaescala da BibliotecaMunicipal, foram criados: parques infantis nas zonas populares;bibliotecas ambulantes,em furgõesque estacionavamnos diversosbairros; a discotecapública;osconcertosde ampla difusão,baseados na novi- dadede conjuntos organizadosaqui, como quarteto de cordas,trio instrumental,orquestrasinfônica,corais.A partir de entãoa cultura musical média alcançoupúblicos maiores e subiu de nível, como demonstramasfichasdeconsultada Discoteca PúblicaMunicipaleos programasde eventos,pelosquaisseobservadiminuição do gosto
  • 12. até entãoquaseexclusiyopelaópera e o solo de piano, com inçre- mento concomitantedo gostopelamúsicade câmarae a sinfônica. E tudo issoconcebidocomo atividadedestinadaa todo o povo, não apenasaosgruposrestritosde amâdores. Ao mesmotempo,Mário deAndradeincrementoua pesquisa fol- clórica e etnográfica,valorizandoasculturaspopulares,no pressu- posto de que todos os níveissãodignos e que a ocotrênciadelesé função da dinâmica dassociedades. Ele entendiaa princípio que as criaçõespopulareseram fonte daseruditas,e que de modo gerala arte vinha do povo. Mais tarde, inclusive devido a uma troca de idéiascom RogerBastide,sentiuquenaverdadehá uma correnteem dois sentidos,e que a esferaerudita e a popular troçam influências de maneira incessante, fazendoda criaçãoliterária e artística um fenômeno de vasta intercomunicaçào. Isto fazlembrar que,envolvendoo problemada desigualdade so, cial e econômica,estáo problema da intercomunicáçãodos níveis culturaìs.Nas sociedades que procuram estabelecer regimesiguali- tários,o pressuposto é quetodosdevemter a possibilidade de passar dosníveispopularesparaosníveiseruditoscomo conseqüência nor- mal da transformaçãode estrutura,prevendo-sea elevação sensível da capacidade de cadaum graçasà aquisiçãocadavezmaior de co- nhecimentose experiências. Nassociedades quemantêm a desigual- dadecomo norma, e éo casoda nossa, podemocorÍermovimentose medidas,de caráterpúblico ou privado,paradiminuir o abismoen- tre os níveise fazerchegarao povo os produtoseruditos.Mas,repi- to, tanto num casoquanto no outro estáimplícita como questão maior a correlaçãodosníveis.E aí a experiênciamostraque o prin- cipalobstáculopodesera faltadeoportunidade,não a incapacidade. A partir de 1934e do famosoCongressode Escritoresde Karkov, generaÌizou-se a questãoda literaturaproletór;4 que vinha sendo debatidadesdea vitória da RevoluçãoRussa, havendouma espécie de convocaçãouniversalem prol da produção socialmenteempe- nhada.Uma dasalegações eraa necessidade de dar aopovo um tipo de literatura que o interessasse realmente,porque yersavaos seus problemasespecíficos de um ânguloprogressista. Nessaocasião, um O DI REITO À LITERATURÁ escritorfrancês bastante empenhado, masnãosectário, Jean Guéhenno, publicou na revistaE roPealgunsartigosÌelatandouma exPeriência simples:ele deu para ler a Sentemodesta,de Poucainstrução,ro- mancespopulistas,empenhadosna Posiçãoideológicaao lado do trabalhadoredo pobre.Masnãohouveo menor interesse dapartedas pessoas a que sedirigiu. Então,deuìhes livros de Balzac'Stendhal' Flaubert,queosfascinaramGuéhennoqueriamostrar com lsto que a boa literatura tem alcanceuniversal,e que elaseriaacolhidadevi- damentepelo povo sechegasse até ele.E por aí sevê o efeitomuti- lador da segregação cultural segundoasclasses Lembroaindadeter ouvido nosanosde 1940queo escritore Pen- sadorportuguêsAgostinhoda SilvaPromoveucursosnoturnosPara operários,nosquaiscomentavatextosde filósofos,como Platão'que despertaram o maior interesse e foram devidamenteassimilados. MariaVitória Benevides naÍra a esler€sPeilo um casoexemplar. ïbmpos atrásfoi aprovadaem Milão uma lei que assegura aosoPe- rárioscertonúmero de horasdestinadas a aperfeiçoamento cultural em matérias escolhidasPor eles próprios. A expectatiYaera que aproveitariama oportunidadeparamelhorar o seunívelprofissional por meio de novos conhecimentostécnicosligadosà atividade de cadaum. Masparasurpresa geral,o quequiseramna grandemaioria foi aprenderbem q sua língua (muitos estavamainda ligadosaos dialetosregionais)e conhecera literaturaitaÌiana.Em segundolugar, queriam aprendervioÌino. Estebeloexemplolevaa falarno poder universaldosgrandesclás- sicos,que ultrapassama barreira da estÌatificaçãosociale de certo modo podem redimir asdistânciasimpostaspeladesigualdade eco- nômica,pois têm a capacidade de interessara todos e Portanto de- vem serìevadosao maior número. Paraficar na Itália, é o casoas- sombrosoda Divira comédia,conhecidaem todososníveissociaise por todos elesconsumidacomo alimentohumanizador.Mais ainda: dezenas de milharesde pessoas sabemde cor ostrinta e quatro can- tos do INFERNo; um número menor sabe de cor não apenaso INFERNO, mastambémo PuRcAróRIo; e muitos mil sabemalémdeles o PARÂlso, num total de cem cantose mais de treze mil versos..
  • 13. Lembro de ter conhecidona minha infância,em Poçosde Caldas,o velho sapateiroitaliano Crispino Caponi que sabiao Iuruuo com- pleto e recitavaqualquercanto quesepedisse, semparar debateras suassolas. Os italianossãohoie alfabetizados e a Itália é um paíssatuado da melhor cultura-Mas noutÍos países, mesmo os analfabetospodem participar bem da literatura eruditaquando lhesé dadaa oportuni- dade.Sefor permitida outra lembrança pessoal,contarei que quando eu tinha dozeanos,na mesmacidadede Poçosde Caldas,um jar- dineiro português € sua esposabrasileira,ambos analfabetos,me pediramparalhesler o Amor deperdição, deCamilo CasteloBranco, que já tinham ouvido de uma professorana fazendaonde traba- lhavam antes e qu€ os haüa fascinado, Eu atendi e verifiquei como assimiìavam bem, com emoção inteligente. O Fqusto,o Dom Quixote, Os lusíadas,Machado de Assis podem serfruídos em todos os níveis e seriam fatores inestimáveis de afina- mento pessoaÌ,sea nossasociedadeiníqua nâo segÌegasse ascama- das,impedindo a difusão dos produtos culturais eruditos e confi- nando o povo a apenasuma part€ da cultura, a chamadapopular.A este r€speito o Brasil sedistingue pela alta taxa de iniqúidade, pois como é sabidotemosde um lado os maisaltosníveisde instruçãoe de cultura erudita, e de outro a massanumericamentepredom! nante de espoliados, semacesso aosbensdesta,e aliásaospróprios bens materiais necessáriosà sobrevivência. Nessecontexto, é revoltante o preconceito segundo o qual asmi norias que podernparticipar dasformas requintadasde cultura são semprecapazesde apreciáJas,o que não é verdade.As classes domi- nantes sãofieqúentemente desprovidasde percepçãoe interessereal pela arte e a literatura ao seudispor, e muitos dos seussegmentosas fruem por mero esnobismo, porque est€ ou aquele autor está na moda,porquedá prestígiogostardesteou daquelepintor. Os exem- plosquevimos há pouco sobrea sofreguidãocomoventecom queos pobres e mesmo analfabetos recebem os bens culturais mais altos mostÍam que o que há mesmo é espoliação,privação de bens espir! tuaisque fazemfaltae deveriamestarao alcancecomo um direito. O DIREIÍO À LITENATURA Portanto, a luta Pelosdireitos humanos abrangea luta por um estadode coisasem que todos Possamter acessoaosdiferentes níveis da cultura. A distinçãoentÍe cultura popular e cultura erudita não deveservir parajustificar e manter uma s€Paração iníqua,como se do ponto de vista cultural a sociedadefossedividida em esferasinco- municáveis,dando lugar a dois tiPos incomunicáveisde ftuidores' Uma sociedade justapressuPõe o resPeitodosdireitoshumanos'e a fruição da arte e da literatura em todas asmodalidades e em todos osníveisé um direito inalienável' (1988)