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A FAB
DA CIl
ALAN CHAUMERS
"Espero que um exame detalhado da
maneira como é fabricado (no sentido
de 'fabricar': construir,elaborar) o
legítimo conhecimento científico mostre
como ele pode ser diferenciado de suas
fabricações (no sentido de 'fabricar':
montar)."
ISBN 85-7139-059-2
Copyright © 1990 by Alan F. Chalmers
Título original em inglês: Science and its fabrication
Copyright © 1994 da traduçãobrasileira:
Fundação Editora da UNESP(FEU)
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileirado Livro, SP, Brasil)
Chalmers, Alan F., 1939- A Fabricaçãoda ciência/Alan Chalmers;
tradução de Beatriz Sidou. - São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1994. - (Biblioteca básica) ,
Bibliografia.
ISBN 85-7139-059-2
l. Ciência - Aspectos 2. Ciência - Filosofia 3. Ciência -
História 4. Ciência - Metodologia I. Título. II. Série.
94-1012 CDD-500
índice para catálogo sistemático:
1. Ciências 500
OQACÃQ
BIBLIOTECA CENTRAL
H.»
EDITORA AFILIADA
j A. F. (Alan Francis)
A fabricação da ciência
50(091)/C438f
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Hugo: Levantei cedo esta manhã porque decidi agir.
Este é o alvorecer do inesperado. Que horas são?
Joshua: Doze em ponto, senhor Hugo.
Jean Anouilh, O and em volta da lua
SUMÁRIO
9 Prefacio
11 Capítulo l
A política da filosofia da ciência
1.1 A filosofia da ciência como questão política 1.2 A estratégia
positivista 1.3 Métodos e padrões historicamente contingentes
1.4 A crítica da pseudociência
23 Capítulo 2
Contra o método universal
2.1 Observações introdutórias 2.2 O recurso à natureza humana
2.3 O recurso àfísicae sua história: positivismo e falsificacionismo
2.4 Os métodos e padrões variáveisnafísica
39 Capítulo 3
A meta daciência
3.1 Observações introdutórias 3.2 A ciência como busca da
generalidade 3.3 As primeirastentativas para o estabelecimento
das generalizaçõesteóricas 3.4 A generalidade e a experimentação:
Galileu 3.5 A substituição do desenvolvimento pela certeza
3.6 A meta da ciência
g ALAN CHALMERS
61 Capítulo 4
A observação objetivada
4.1 As hipóteses empiristas sob ataque 4.2 A observação
teórico-dependente 4.3 A observação objetiva como realização
prática 4.4 O significado e o caráter problemático dos dados
de Galileu sobre o telescópio 4-5 As observações de Galileu
das luas de Júpiter 4.6 O tamanho dos planetasvistospelo telescópio
85 Capítulo 5
O experimento
5.1 A produção e a rejeição dos resultadosexperimentais
5.2 As implicaçõespara o empirismo 5.3 As implicações para
a filosofia da ciência de Popper 5.4 A defesa do experimento
contra o ataque dos céticos 5.5 O retorno do experimentador
109 Capítulo 6
A ciência e a sociologia do conhecimento
6.1 A sociologia e o ceticismo em relação à ciência 6.2 O retrato
inadequado que os sociólogos fazem de seus opositores
6.3 As origens sociais do conhecimento científico 6.4 A ênfase
inadequada na crença 6.5 A explicação sociológica restrita à má ciência
129 Capítulo 7
Dois estudos de caso sociológicos
7.1 A teoria estatística e os interesses sociais 7.2 A explicação social
de Freudenthal para os Principia de Newton 7.3 Observações finais
151 CapítuloS
A dimensão social e política da ciência
8.1 Observações introdutórias 8.2 As oportunidades objetivas
e a escolha individual 8.3 A política da atividade científica
8.4 Colocando-se a ciência em seu lugar
165 Apêndice
A extraordinária pré-história da lei da retração
175 Bibliografia
PREFÁCIO
Este livro é uma seqüência de What is this thing called science?.
Nesse livro, submeti algumas das explicações mais comuns da
ciência e seus métodos a minucioso exame crítico, mas não cheguei
a elaborar em detalhe nenhuma alternativa p^ira elas. Convenci-me
de que tal elaboração é necessária, sobretudo diante da amplitude
das críticas que, contra as minhas intenções, têm considerado
minha posição radicalmente cética, negadora de qualquer estatuto
distintivo, objetivo do conhecimento científico. Este livro contém
uma ampliação e uma reelaboração do argumento de seupredeces-
sor. Persisto em minha rejeição às concepções filosófico-ortodoxas
do chamado método científico,mas demonstro como, não obstan-
te, com algumas ressalvas, é possível uma defesa da ciência como
conhecimento objetivo. Conseqüentemente, não tenho dúvidasde
que receberei o desdém de muitos filósofos, à minha direita, e de
sociólogos da ciência, à minha esquerda.
Em muitos pontos utilizei material publicado nos seguintes
artigos: "Thecase against a universal ahistorical scientific method"
(O que há contra um método científicouniversal a-histórico, 1985);
"A non-empiricist account of experiment" (Uma história não-
empirista do experimento, 1984); "Galileo's telescopic observa-
10 ALAN CHALMERS
tions of Venus and Mars" (As observações telescópicas feitas por
Galileu de Vênus e Marte, 1985); "The sociology of knowledge
and the epistemological status of science" (A sociologia do conhe-
cimento e o estatuto epistemológico da ciência, 1988); "The
extraordinary prehistory of the law of refraction" (A extraordinária
pré-história da lei da refração, 1975). Sou muito grato aos editores,
que deram permissão para utilizar este material aqui.
Agradeço também a Patrícia Bower e Verônica Leahy, que
pacientemente ecommuitaeficiênciadatilografaram o manuscrito,
e a Wal Sutching, pela crítica proveitosa.
CAPÍTULO l
A POLÍTICA DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA
1.1 A filosofia da ciência como questão política
"Nos tempos modernos a ciência é muito respeitada." Esta é
a sentença que abre olivrodo qual esteéuma seqüência (Chalmers,
1982). Quinze anos dando aulas numa faculdade de artes, bem
como a inclinação para algumas formas da filosofia e da sociologia
contemporânea, me proporcionaram uma idéia da quantidade de
ressalvas de que essa afirmativa necessita. A ciência geralmente é
considerada desumanizadora, dando um tratamento insatisfatório
a povos, sociedades e natureza, nela considerados objetos. A
alegada neutralidade e isenção de valores da ciência é percebida
por muita gente como não-autêntíca, idéia estimulada pelo fenô-
meno, cada vezmais comum, do desacordo entre especialistas, em
lados opostos de uma discussão politicamente suscetível acerca da
substância do fato científico.A destruição eaameaça de eliminação
de nosso meio ambiente resultantes de avanços tecnológicos são
em geral consideradas algo que compromete a ciência. Existem
aqueles que consideram a faculdade de artes muito deficiente e
distanciada do mundo masculino eopressivo daciência evoltam-se
12 ALAN CHALMERS
para o misticismo, as drogas ou para a filosofia francesa contem-
porânea. Embora certamente reste o argumento de que um alto
apreço pela ciência e uma generosa avaliação de seu campo
constituam importante componente da ideologia contemporânea,
abundam as posições oponentes.
O fato das questões que dizem respeito ao estatuto da ciência
serem politicamente importantes não escapou a muitos filósofos e,
mais recentemente, a sociólogos da ciência. Foi assim que, em
1973, Imre Lakatos (1978b, p. 6-7) resumiu o assunto numa
transmissão radiofônica:
O problema da demarcação das fronteiras entre a ciência e a pseudo-
ciência tem sérias implicações ... para a institucionalização da critica. A
teoria de Copérnico foi proibida pela Igreja católica em 1616 por ser
considerada pseudocientífica. Em 1820, foi retirada do Index, porque àquela
altura a Igreja acreditou que os fatos a haviam comprovado e, portanto, ela
se tornara científica. O Comitê Central do Partido Comunista Soviético,
em 1949, declarou pseudocientífica'a genética mendeliana e matou os que
a defendiam em campos de concentração, como aconteceu ao acadêmico
Vavilov (depois do assassinato de Vavilov, a genética mendeliana foi
reabilitada). Contudo, manteve-se o direito do partido decidir o que é
científico e publicável e o que é pseudocientífico e passível de punição. O
novo establishment liberal do Ocidente também exerce o direito de negar a
liberdade de palavra ao que é considerado pseudocientífico, como já seviu
na discussão a respeito de raça e inteligência. Todos esses julgamentos
inevitavelmente baseavam-se em alguma espécie de critério de demarcação.
Esta é a razão por que o problema dos limites entre a ciência e a
pseudociência não é um pseüdoproblema defilósofosde poltrona: eletem
sérias implicações éticas e políticas.
Naturalmente, Lakatos tinha grande consideração pelaciência,
como Karl Popper, cujos passos apaixonadamente seguiu. Popper
(l 966, p. 369) explicacomo a sua defesa da racionalidadeem geral,
e da ciência em particular, é uma tentativa de ir contra o "relativis-
mo intelectual e moral", considerado por ele a "principal doença
filosóficade nosso tempo". Não é incomum que os defensores de
um elevado estatuto da ciência vejam-se como defensores da
racionalidade, da liberdade e do modo de vida ocidental, já que,
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 13
afinal de contas, "o que realmente está em jogo é nada menos que
o futuro progresso de nossa civilização"(Theocharis e Psimopou-
los, 1987, p. 597).
Paul Feyerabend é um dos filósofos mais lidos que se opõe a
e zomba dessas venerações da ciência. Segundo algumas de suas
formulações mais radicais, as atitudes atuais em relação à ciência
eqüivalem a nada menos que uma ideologia representando um
papel afim ao que desempenhou o cristianismo na sociedade
ocidental, algumas centenas de anos atrás, e da qual devemos nos
livrar. Feyerabend (1975) diz que a ciência moderna não tem
características que a tornem superior e distinta do vodu ou da
astrologia. Em seu livromais recente (l 987), eleglorifica um "adeus
à razão", onde "razão" deve ser lida como o modo de racionalidade
que os filósofos, que defendem para ela alguma situaçãoprivilegia-
da, presumem distinguir a ciência. Nas últimas décadas, tornou-se
cada vez mais comum os sociólogos voltarem sua atenção para a
dimensão social da ciência e, em especial, para os processos
implicados na construção social do conhecimento científico.Essas
investigações levaram a maioria deles a questionar as explicações
ortodoxas atribuídas ao estatuto privilegiado da ciência, e alguns
deles a assumir posturas semelhantes à defendida por Feyerabend.
Collins e Cox (1976), por exemplo, defendem explicitamente um
ponto de vista relativista intransigente, com o argumento de que
não há uma diferença intrínseca entre o método da ciência e o
método empregado por Marian Keech e seus seguidores para
convencer os outros da autenticidade de sua maneira de lidar com
seres extraterrestres.
As páginas que seguem contêm minha tentativa de esclarecer
essas discussões a respeito do estatuto da ciência. Uma investigação
detalhada da prática científica exigirá que nos unamos a Feyer-
abend e aos sociólogos contemporâneos na rejeição de boa parte
da filosofia ortodoxa da ciência. Entretanto, procurarei resistir ao
relativismo radical freqüentemente defendido por esses autores e
tentarei elaborar uma defesa restrita da ciência, interpretando o que
acredito estar correto nas noções tradicionais da objetividade e
14
ALAN CHALMERS
isenção de valores da ciência. Ou melhor, espero que um exame
detalhado da maneira como é fabricado (num certo sentido de
"fabricar": construir, elaborar) o legítimo conhecimento científico
mostre como ele pode ser diferenciado de suas fabricações (num
segundo sentido de "fabricar":montar). No capítulo final mostrarei
por que não desejo que minha defesa restrita do estatuto epistemo-
lógico da ciência seja equiparada à defesa do tipo de atitude que
prega "manter a política longe da ciência", atitude que deixa sem
questionamento o campo político, já incontestável dentro da
ciência.
1.2 A estratégia positivista
O principal objetivo dos positivistas lógicos, que floresceram
em Viena durante as décadas de 20 e 30 e cuja significativa
influência ainda persiste, era fazer a defesa da ciência e distingui-la
do discurso metafísico e religioso, que a maioria deles descartava
como bobagem não-científica. Eles procuravam construir uma
definição ou caracterização geral da ciência, incluindo os métodos
apropriados para sua construção e os critérios a que recorrer para
fazer sua avaliação. Com isso em mãos, visavam defender a ciência
e criar dificuldades para a pseudociência, mostrando como a
primeira se ajusta àcaracterização geral, e aúltima não. Os detalhes
da concepção de ciência oferecidos pelos |)ositivistas foram rejeita-
dos ou radicalmente alterados nas últimas décadas. Não obstante,
a estratégia geral contida em sua tentativa de defender a ciência
ainda tem muitos adeptos. Ou seja, como ainda pressupõem
normalmente os filósofos, cientistas e outros, para defender a
ciência devemos recorrer a uma explicação geral de seus métodos
e padrões. Além do mais, os positivistas não foram os primeiros a
tentar uma caracterizaçãogeral da ciência. O Novum organum de
Francis Bacon, o Discurso sobre o método de René Descartes e a
Crítica da razão pura de Immanuel Kant são notáveis precursores
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 15
esforços dos positivistas para elaborar uma explicação geral da
ciência e seus métodos.
A caracterizaçãogeral da ciência buscada pelos filósofos a que
me referi pretendia seruniversalea-histórica. Universal, no sentido
de que se tencionava que fosse igualmente aplicada a todas as teses
científicas. Os positivistas buscavam, por exemplo, uma "teoria
unificada da ciência" (Hanfling, 1981, capítulo 6) que pudessem
empregar para a defesa da fisica e da psicologia behaviorista e para
criticar com severidade a religião e a metafísica. A explicação que
se buscava para a ciência seria a-históricano sentido de que deveria
aplicar-se tanto às teorias passadas como às contemporâneas e às
futuras. Por conveniência, refiro-me ao objetivo de defender a
ciência por meio do recurso a uma explicação universal e não-
histórica de seus métodos e padrões como estratégia positivista, já
que esta foi uma proeminente característica do positivismo lógico.
Imre Lakatos e Karl Popper são dois eminentes filósofos da
ciência dos tempos recentes que adotam a estratégia positivista,
ainda que, é claro, sejam bastante críticos em relação à particular
explicação da ciência oferecida pelos positivistas. Imre Lakatos
(1978, p. 168-9 e 189) acreditava que o "problema central na
filosofia da ciência" era "a questão de determinar as condições
universais sob as quais uma teoria é científica". Ele sugeria que a
solução do problema "deveria oferecer-nos uma orientação a res-
peito de quando a aceitação de uma teoria científica é racional e
quando é irracional" e esperavaque isso nos ajudasse a "criar leis
para lutar contra ... a poluição intelectual". Lakatos recorria a sua
teoria da ciência para defender osfísicoscontemporâneos e criticar
o materialismo histórico e alguns aspectos da sociologia contem-
porânea, expressando o caráter universal que atribuía à ciência,
embora seu caráter a-histórico esteja evidente no uso que elefez
para defender o caráter científico da revolução copernicana e
também da einsteiniana. Alan Musgrave (1974, p. 560) considera
a solução de Popper para o relatívismo "uma insistência em
padrões objetivos absolutos". O próprio Popper (1972, p. 39;
seção 29) buscava demarcar o limite entre a ciência e a
16 ALAN CHALMERS
não-ciência em termos de um método que ele considerava caracte-
rístico de todas as ciências, inclusive as sociais.
Não é incomum encontrarem-se os próprios cientistas em
atividade expressando a idéia de que uma explicação universal do
método científico poderia ou deveria ser usada para defender ou
ajudar a aperfeiçoar a ciência. Assim, dois físicos contemporâneos
(Theocharis e Psimopoulos, 1987) insistem em que a prática e a
defesa da ciência deveriam exigir uma definição mais razoável do
método científico e deploram o quanto os cientistas em exercício
ignoram essa definição. Chegam mesmo a atribuir a essa ignorân-
cia o que consideram ser a doença atual da ciência. Outros cien-
tistas tentaram analisar ascontrovérsias contemporâneas a respeito
dos sistemas satisfatórios de classificação biológicavoltando-separa
uma "estrutura filosófica dos critérios de teorias e metodologias
científicas" (Bock, 1973, p. 381) e considerando o problema
relativo à "natureza da ciência" (Gaffhey, 1979, p. 80).
Até que ponto é amplo e profundo o sentimento de que uma
defesa da ciência deve seguir a estratégia positivista evidencia-se a
partir da reação típica dos filósofos e sociólogos da ciência que
negaram a existência de algo como uma explicação universal e
a-histórica do método e padrões científicos capazes de orientar o
trabalho dos cientistas ou de avaliar o mérito da ciência que estes
produzem. Essa reação parece motivada pelo pressuposto de que
o abandono da noção de um método ou conjunto de padrões
universais necessariamente encerra um ceticismo radical em rela-
ção à ciência, segundo o qual nenhuma teoria científica pode ser
considerada melhor do que qualquer outra; a ciência epistemolo-
gicamente eqüivale à astrologia ou aovodu, e a avaliação das teorias
científicas é questão de opinião ou gosto, atitude resumida pelo
slogan utilizado por Feyerabend (1975, p. 28) para caracterizarsua
teoria "anarquista" da ciência: "vale tudo". Theocharis e Psimo-
poulos (1987, p. 597) estão tão convencidos de que uma defesa da
ciência exige recorrência a uma explicação filosófica do método
científico que parecem deixar implícito que deveriam ser obstados
aqueles que, como eu mesmo, insinuam outra coisa aos estudantes:
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 17
Podemos nos perguntar como é que muitas universidades pelo
mundo afora proporcionam a seus estudantes de ciência cursos formais
compulsórios sobre os rigores do método científico. Em relação às univer-
sidades que proporcionam cursos optativos sobre as tendências atuais na
filosofia da ciência, será que seus corpos dirigentes têm consciência do fato
de que muitos professores desses cursos inclinam-se a sabotar o método
científico?
No próximo capítulo, exponho meu argumento contra a
estratégia positivista, que considero bastante equivocada para os
que desejam defender a ciência. Em capítulos subseqüentes, mos-
tro por que a rejeição do método universal não tem conseqüências
que possam causar quaisquer preocupações aos corpos dirigentes
das universidades.
1.3 Métodos e padrões historicamente contingentes
Digo que a reação comum de horror em relação ao abandono
de um método ou conjunto de padrões a-históricos, que vê a
mudança como um abandono total da racionalidade, resulta de
uma falha na distinção entre a rejeição do método ou conjunto
de padrões universais e imutáveis, por um lado, que defendo, e
a rejeição de todo método e padrão, por outro, a que resisto.
Como já disse em outro texto (Chalmers, 1986, p. 26): "Não
existe nenhum método universal. Não existe nenhum padrão
universal. Contudo, existem padrões a-históricos contingentes
implícitos nas atividades bem-sucedidas. Isso não significa um
vale tudo em questões epistemológicas". Não são apenas aqueles
que adotam a estratégia positivista que deixam de fazer a distinção
entre os métodos e padrões universais absolutos e os métodos e
padrões contingentes sujeitos à mudança. Feyerabend (1975,
p. 285), da mesma forma, não discrimina quando, depois de
minar as explicações ortodoxas do método científico, conclui que
"o restante são opiniões estéticas, opiniões de gosto, preconceitos
18 ALAN CHALMERS
metafísicos, ânsias religiosas, em resumo: o que resta são nossos
anseios subjetivos".
Recorrendo-se aos padrões contingentes, idéia que defendo,
será possívelbloquear ocaminho paraum tipo derelativismo cétíco
às vezes apoiado por Feyerabend e por alguns dos sociólogos da
ciência, que discutiremos mais adiante neste livro? O fato de que
uma resposta afirmativa não é uma resposta direta evidencia-se na
reação comum desses que adotam a estratégia positivista para
posturas como a minha. Isso foilevantado, por exemplo, por Barry
Gower (l 98,8) em sua crítica aalgumasde minhas idéias publicadas
anteriormente. Se há padrões implícitos nas atividades bem-
sucedidas, como sustento, como essas atividades podem ser
avaliadas de fora? Mais especificamente: se a física aristotélica
incorporasse padrões aristotélicos e a física de Galileu incorporasse
padrões galileanos, como poderíamos estar em posição de dizer
que a física de Galileu é superior à aristotélica, como desejariam
os defensores da ciência? Quando se adotam padrões aristotélicos,
a física de Aristóteles é superior, ao passo que, adotando-se os
padrões galileanos, ojulgamento é invertido. Tout comprendre, c'est
tout pardonner (Compreender tudo é tudo perdoar), resume Gower
(1988, p. 59). Para dizer que a física de Galileu é um avanço em
relação àfísica aristotélica não precisaríamos de algum superpadrão
aplicável a ambas? Isto não nos leva de volta à necessidade de um
método universal? Da mesma forma, meus oponentes podem
observar que existem métodos e padrões inerentes na astrologia ou
na parapsicologia e chegar à conclusão de que a minha postura
não deixa espaço para a crítica dessas atividades, já que eu me nego
a recorrer aospadrões universais para avaliaros métodos e padrões
implícitos em quaisquer atividades, por mais distanciadas que
estejam de qualquer ciência ortodoxa. Acompanhando essa linha
da argumentação, os defensores da estratégia positivista podem
dizer que não há meio caminho como esse a que aludi para falar
de padrões contingentes implícitos nas atividades bem-sucedidas.
Em relação à noção de sucesso aqui mencionada, meus críticos
podem insistir, como Gower, que uso essa idéia gratuitamente, a
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 19
menos que eu tenha alguma caracterização universal do sucesso,
ão há meio caminho, como aparentemente insinua essa linha de
argumentação. Ou temos padrões absolutos específicos para uma
explicação universal da ciência ou temos o relativismo cético, e a
opção entre a teoria evolucionária e a ciência da criação torna-se
urna questão de gosto ou de fé.
A tentativa que faço neste livro de apreender o campo entre o
método universal e o relativismo cético continua mais ou menos
da seguinte forma. De modo bastante pragmático, e de olho no
que a ciência física já conseguiu realizar,tento especificar qual é a
meta da ciência. A meta da física é estabelecer teorias e leis
extremamente gerais e aplicáveis ao mundo. O quanto essas leis e
teorias são realmente aplicáveis ao mundo deve ser determinado
no confronto entre elas e o mundo, da maneira mais rigorosa
possível, segundo as técnicas habituais existentes. Além do mais,
compreende-se que ageneralidade eo grau de aplicabilidade de leis
e teorias estão sujeitos a um constante aperfeiçoamento. Tendo
assim especificado a meta da ciência, depois de havê-la elaborado
e ilustrado com exemplos, para torná-la um pouco menos inócua,
e depois de argumentar que esta é uma meta não-utópica muitas
vezes satisfeita na ciência, estou em posição de avaliar métodos e
padrões com base no ponto de vista a que eles atendem. Como a
meta da ciência certamente terá de ser avaliada em relação a outros
objetivos e outros interesses, uma vezadotada essa meta, aextensão
alcançada pelos diversos métodos e padrões não é uma questão de
opinião subjetiva, mas de fato objetivo a ser determinado de
rnaneira prática.
Os defensores da estratégia positivista normalmente se apre-
sentam como defensores da ciência e da racionalidade, e seus
opositores, como inimigos da ciência e da racionalidade. Neste
Ponto, estão enganados. Ao adotar uma estratégia em defesa da
ciência condenada à falha, estão servindo de joguete nas mãos do
Movimento contra aciência, que tanto temem, etornam o trabalho
d
e Paul Feyerabend fácil demais. H. M. Collins (1983, p. 99-101),
Urr
* sociólogo da ciência de quem discordo em uma série de
ALAN CHALMERS
oportunidades neste livro, expressa de modo admirávelo que tento
demonstrar:
Enquanto a autoridade científica é legitimada em relação a filosofias
insatisfatórias da ciência, é fácil para os leigos desafiar essa autoridade. É
muito simples mostrar que a atividadecientífica em qualquer caso particular
não está de acordo com os cânones das filosofias que a legitimam. Estão
se cumprindo os temores daqueles que fazem objeção ao relatívismo com
base em suas conseqüências anárquicas, não como resultado do relativis-
mo, mas como resultante de uma confiança exageradamente prolongada
nas mesmas filosofias que se supõe cercarem a autoridade científica. Esta
cerca parece ser feita de palha. Se novas cercas tiverem de ser construídas,
elas deverão ter sua base na atividade científica.
Gosto de pensar que a defesada ciência que ofereço neste livro
é superior às defesas no estilo positivista, porque é sustentável e
porque deixa claro o terreno em que a ciência deve ser defendida.
1.4 A crítica da pseudociência
Neste livro procuro retratar a física como um empreendimento
objetivo e progressivo. A maneira como elaboro minha argumen-
tação exige um exame minucioso do que a física já realizou e de
como isto foi realizado. Particularmente, a minha formulação da
meta da ciência chegou a uma configuração bastante pragmática,
servindo aos tipos de leis e teorias estabelecidas pelo desenvolvi-
mento de métodos satisfatórios na física. Como a minha argumen-
tação assume essa forma, há limites necessários que determinam
até que ponto minha análise pode servir de base para criticar áreas
do conhecimento estranhas à física. Se alguma área do conheci-
mento, como a psicologia freudiana ou o materialismo histórico
de Marx (para tomarmos dois dos alvos favoritos dos filósofos da
ciência), tivesse de receber uma crítica fundamentada no fato de
não se ajustar à minha caracterização da física, isso implicaria que
todo conhecimento autêntico deve adaptar-se aos métodos e pa-
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 21
drões da física. Não me sinto preparado para esta pressuposição e
penso que seria muito difícil defendê-la.
À luz de minha análise, um tipo de crítica possível é contestar
pretensos conhecimentos apresentados como se fossemcientíficos
no mesmo sentido da física, talvez porque pretendam ter sido
construídos de acordo com métodos similares aos da física e,
conseqüentemente, apresentados como se tivessem um estatuto
epistemológico semelhante ao desta ciência. Se o criacionismo, a
parapsicologia, a eugenia ou o que Marian Keech diz a respeito dos
seres extraterrestres (Collins e Cox, 1976) são defendidos por
serem considerados científicos no mesmo sentido em que afísica
é científica, acredito que as ponderações apresentadas neste livro
indiquem como se pode repudiar esse tipo de pretensão.
Quando nos voltamos para campos como o da teoria ou
história social, dos quais plausivelmente se pode afirmar terem
objetivos um pouco diferentese, analogamente, métodos e padrões
também diferentes da física, minha explicação da ciência não tem
muito a oferecer, nem pretende ter muito a oferecer em relação à
maneira como as teorias nesses campos poderiam ser avaliadas.
No máximo, minha análise e defesa da física podem ser tomadas
como indicação do modo de proceder em outros casos, ou seja, na
tentativa de identificar as metas implicadas, as práticas desenvolvi-
das para corresponder a essas metas e o grau de sucesso obtido.
Na penúltima seção de What is this thing called science.7
, resumi
minha atitude em relação a essas questões da seguinte maneira:
Como agora está claro, acredito que não existe nenhuma concepção
atemporal e universal da ciência e do método científico que possa atender
ao objetivo de avaliartodas as pretensões de conhecimento. Não temos os
recursos para chegar a isso e para defender essas idéias. Não podemos
defender ou rejeitar com legitimidadepontos do conhecimento porque eles
se ajustem ou não a determinados critérios já prontos da cientifkidade. A
coisa é bem mais séria do que isso. Se, por exemplo, desejamosassumir
uma postura esclarecida sobre determinada versão do marxismo, teremos
de investigar quais são esses objetivos, quais os métodos empregados para
chegar a eles, até que ponto eles foram atingidos e quais as forcas ou fatores
ALAN CHALMERS
que determinam seu desenvolvimento. Estaríamos então em posição de
avaliar a versão do marxismo em termos da conveniência daquilo a que
almeja, do quanto seus métodos permitem que essas metas sejam atingidas
e dos interesses a que atende. (Chalmers, 1982, p. 169)
Espero que a discussão exposta nos próximos capítulos venha
a esclarecer e desenvolver mais o conteúdo dessas observações e
possa mostrar por que não sinto nenhuma necessidade de voltar
a elas. CAPÍTULO 2
CONTRA O MÉTODOUNIVERSAL
2.1 Observações introdutórias
Comojáindiquei anteriormente, os que defendem um estatuto
privilegiado para o conhecimento científico normalmente adotam
o que denominei estratégia positivista. Quer dizer: tentam definir
uma certa metodologia universal a-histórica da ciência que especi-
fique os padrões em relação aos quais se deva julgar as supostas
ciências. Popper e Lakatos, influentes filósofos da ciência, embora
antipositivistas em aspectos fundamentais, adotaram uma versão
dessa estratégia. Em época mais recente, John Worrall (1988,
P- 265 e 274) expressa muito enfaticamente sua fidelidade à
estratégia positivista. Segundo Worrall, "estabelecer princípios
fixos para avaliação da teoria científica é a única alternativa ao
relativismo", de modo que, "sem os princípios invariáveis da boa
ciência, toda idéia de explicar-se o desenvolvimento da ciência
corno um processo racional é seguramente abandonada". Da
Jttesma forma, Barry Gower (1988, p. 59) lamenta o fato'de que
a
idéiade um método característicoda pesquisa científicanão seja
Popular", e tenta resolver o problema.
ALAN CHALMERS
Neste capítulo, exponho resumidamente as razões pelas quais
uma tentativa de defender a ciência recorrendo-se auma explicação
universal a-histórica está condenada. Suponhamos, em nome da
argumentação, que existe uma categoria excepcional chamada
"ciência" e um método científico universal regendo o seu progresso
e a sua avaliação.Como poderiam osfilósofosda ciência estabelecer
uma caracterização satisfatória desta categoria, "ciência", e seu
método? Que recursos têm os filósofos à sua disposição para
determinar o que a ciência é ou deveria ser? Devo examinar uma
série de respostas possíveis e sustentar que elas são insatisfatórias.
2.2 O recurso à natureza humana
As tentativas feitas por uma série de filósofos do século XVII
para responder a minha pergunta concentravam-se na importância
da natureza humana. Colocada em termos bastante simples, sua
posição pode ser caracterizada da seguinte maneira: já que são seres
humanos que produzem e que avaliam o conhecimento em geral
e o conhecimento científico em particular, para compreender as
diversas maneiras pelas quais o conhecimento pode ser apropria-
damente adquirido devemos levar em conta a natureza de cada ser
humano que o adquire e o avalia. Devemos analisar os aspectos
relevantes da natureza humana. Esses aspectos são a capacidade
que os seres humanos têm de raciocinar e sua capacidade de
observar o mundo por meio dos sentidos. Os racionalistas clássi-
cos, como Descartes, concentraram-se no primeiro aspecto. Assim,
vemos que em seu Discurso sobre o método Descartes rejeitava o
costume e a autoridade como fontes satisfatórias para afundamen-
tação segura do conhecimento e decidira estudar por si mesmo,
usando todas as forças de sua mente numa tentativa de livrar-se
dos "muitos equívocos que possam obscurecer a luz da natureza
em nós e que nos deixam menos capazes de dar ouvidos à razão".
Para ele, a natureza do conhecimento, suas origens e seus limites
deveriam ser entendidos em termos de nossa "luznatural da razão".
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 25
xjo terreno dos empiristas, encontramos John Locke (1967,
xxxii) explicando que, diante de certas questões epistemológicas
específicas, percebera que, antes de tratar dessas questões, era
nreciso "examinar nossas próprias capacidades e verificar que
objetos de nossa compreensão eram ou não próprios para tal".
Entre essas capacidades, para Locke, muito importante era, natu-
ralmente, a capacidade dos seres humanos observarem o mundo
por meio dos sentidos. David Hume (1969, p. 42), buscando os
elementos empiristas na epistemologia de Locke, deixou muito
claro que, em sua opinião, a natureza do conhecimento deve ser
compreendida por meio da investigação da natureza dos seres
humanos que o adquirem. Para citar suas próprias palavras:
É evidente que todas as ciências têm uma relação, maior ou menor,
com a natureza humana; e, por mais que qualquer uma delas pareça
distanciar-se disso, continuarão voltando a ela por uma ou outra passagem.
Mesmo a matemática, a filosofia natural e a religião natural dependem em
certa medida da ciência do homem, pois estão além do conhecimento dos
homens e são julgadas por suas forças e suas faculdades. É impossível dizer
quais mudanças e aperfeiçoamentos poderíamos fazer nessas ciências se
estivéssemos inteiramente ao corrente da extensão e da força do entendi-
mento humano e pudéssemos explicar a natureza das idéias que emprega-
mos e das operações que realizamos em nosso raciocínio.
As teorias racionalistas eempiristas da ciência sofrem degraves
problemas internos. Os racionalistas, quando tentavam justificar
proposições advindas deum pensar claro como verdades absolutas,
eram, com efeito, obrigados a adotar certas noções problemáticas
evidentes por si mesmas. (Vale a pena lembrar que boa parte de
sua física, que Descartes tentou justificar recorrendo a seu método
racionalista, terminou por revelar-setotalmente falsa.) Os empiris-
tas estavam diante de uma série de problemas relacionados à
falibilidade e ao campo restrito dos sentidos, e do problema de
justificar as generalizações que necessariamente ultrapassam a
evidência proporcionada por determinadas aplicações dos sentidos
(o problema da indução - Chalmers, 1982, capítulos 2 e 3).Esses
Problemas internos são graves e suficientes para desacreditar as
26 ALAN CHALMERS
tentativas filosóficas tradicionais de fundamentar uma teoria da
ciência com base na naturezahumana. Contudo, não considero as
dificuldades internas com que se depararam o racionalismo e o
empirismo tradicional as principais razões para rejeitá-los como
explicações satisfatórias da ciência. Sou da opinião de que a
abordagem=geral que exigeque setrace a naturezado conhecimento
científico de acordo com a natureza dos seres humanos que o
produzem está fundamentalmente equivocada.
O ser humano é moldado pela sociedade em que vive e o
problema de definir-se algumaessência imutávelatrás dediferenças
sociais, culturais e históricas é notoriamente difícil. Sem sombra
de dúvida, um aspecto essencial dos seres humanos é sua capaci-
dade de pensar e de sentir. Entretanto, provavelmente de nada
adiantará buscar a naturezada ciência em seja lá p que de universal
existir nessa capacidade, pela simples razão de que, sejam quais
forem as resistências dos homens, os processos racionais, empíri-
cos e experimentais que a ciência historicamente encerra mudam
e evoluem. Assim, por exemplo, o cálculo infinitesimal estava à
disposição dos cientistas que vieram depois de Newton e Leibniz,
mas não antes; era possível valer-se dele na sustentação de debates
sobre infinitesimais, algo que não estava à disposição de Arquime-
des. E, repito, depois que Galileu introduziu a técnica de teste das
leis científicas sob as condições artificiais de um experimento
controlado, podia-se justificar a ordem física por trás do mundo
desordenado da experiência comum deum modo antes impossível.
Quando Galileu surgiucom o telescópio, abriu-seum novo campo
de dados para a ciência, que tornou redundante boa parte dos
dados anteriores obtidos a olho nu. * Os fatos relativos a variações
nos procedimentos racionais e empíricos empregados na ciência
não têm muito a ver com a natureza humana. As diferenças entre
os métodos de Arquimedes e Newton, Aristóteles e Galileu não
devem ser compreendidas em termos de suas respectivasnaturezas,
Esses aspectos da flsica de Galileu são discutidos mais detalhadamente em outros
capítulos.
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 27
as em termos dos cenários epistemológicos em que estavam
•mersos. A natureza do conhecimento científico, a maneira como
ela deve ser justificada com recurso à razão e à observação, muda
historicamente. Para compreendê-la e identificá-la, devemos anali-
sar os instrumentos intelectuais e práticos que um cientista tinha
à mão em determinado contexto histórico. Tentar classificar o
método científico pela análise da natureza humana é examinar
precisamente o lugar errado.
2.3 O recurso à física e sua história:
positivismo e falsificacionismo
Embora a abordagem tradicional da compreensão do conheci-
mento e da ciência, centrada nasfaculdadeshumanas, ainda tenha
hoje uma grande influência na filosofia ortodoxa da ciência, uma
série de filósofos da ciência contemporâneos procura justificar suas
explicações da ciência e do método científico de maneiras bastante
diferentes. Esses filósofos aceitam o que foi dito acima a propósito
da natureza humana e chegam à conclusão de que, se quisermos
compreender a ciência e seus métodos, devemos nos concentrar
na própria ciência e nos métodos que ela incorpora, mais do que
nos cientistas e em sua natureza. Os filósofos que adotam essa
abordagem normalmente tomam a física e sua história como um
dos melhores exemplos do que seja a ciência. Assim, o desenvol-
vimento de uma teoria científica satisfatória e de seus métodos é o
desenvolvimento da teoria que melhor corresponda à exemplar
física. Uma explicação do método científico deve ser testada em
relação à história da fisica. Thomas Kuhn, Imre Lakatos e Paul
Feyerabend são filósofos contemporâneos que dão uma atenção
detalhada à história da ciência inerente a essa abordagem. Eu diria
que, desse modo, as tentativas de justificar uma caracterização
universal da ciência e seu método enfrentam sérias dificuldades
que abalam esse projeto.
28
ALAN CHALMERS
Essa é uma grande dificuldade. Se exigimos que uma teoria
satisfatória da ciênciae seus métodos seja compatível com a história
e a prática contemporânea da física, então não temos nenhuma a
nosso dispor. Os melhores candidatos para uma explicação do
método universal não passam no teste. Essa é a questão mais
importante que Feyerabend levanta em seu livro Contra o método
e é também uma das principais conclusões a que fui levado em
meu livro anterior. Tento aqui resumir a argumentação essencial
desse livro e de outros textos. Alguns- pormenores e acréscimos
mais recentes aessesargumentos estão nos capítulos subseqüentes.
Os positivistas visavam mostrar que a ciência autêntica é
"verificada" e mostra ser verdadeira ou provavelmente verdadeira
em relação a "sentenças protocolares" - fatos revelados a observa-
dores cuidadosos por meio de seus sentidos. Contudo, relatórios
de observação são públicos, passíveis de teste e de revisão, além de
bastante diferentes da concepção que tinham os positivistas sobre
verdades indiscutíveis diretamente reveladas aos observadores por
meio dos sentidos (Chalmers, 1982, capítulo 3). A afirmação de
que "a Terra é estática" foiaceita como fato observável por milhares
de anos antes que as novas teorias do movimento levassem à sua
rejeição e substituição durante a revolução científica. Se nos
voltamos para o experimento e seu papel na física contraposto à
simples observação, o problema para a idéia dos positivistas de que
a ciência se baseia em fundamentos seguros fornecidos pelos
sentidos torna-se ainda maior, como veremos no capítulo 5.
Mesmo se admitirmos que os positivistas tiveram alguma base
observacional segurapara aciência, a suaexigência de que asteorias
científicas fossem verificadas em relação a essa base não pode ser
respondida. Inevitavelmente há uma lacuna lógica entre a prova
finita seletiva disponível como suporte de exigências científicas e a
generalidade dessas mesmas exigências. Descobriu-seque os aspec-
tos lógicos desse argumento são ampliados pela observação histó-
rica de que muitas teorias científicas do passado (inclusive as
grandemente apreciadas,como amecânica newtoniana), ainda que
bem apoiadas por diversas evidências, são deficientes e foram
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 29
superadas (I^ikatos, 1968). As exigências utópicas dos positivistas
têm como conseqüência o fato de que as nossas mais respeitadas
teorias científicas não sãocientíficas por seus critérios, e reduzem-se
a bobagens para os positivistas, que sustentam o ponto devistade
que proposições não-verificáveis são realmente bobagens.
A rival mais importante do positivismo é a explicação falsifica-
cionista da ciência, de Popper, aceita por muitos cientistas e
filósofos em atividade. Acho que não há objeções a fazer a alguns
dos aspectos mais geraisda posição de Popper. As teoriascientíficas
são falíveis e permanecem sujeitas a um aperfeiçoamento ou
substituição. Na medida em que as teorias dizem algo sobre o
mundo, elas devem ser aferidas em confronto com ele. Na prática,
a história da ciência pode ser compreendida como a sobrevivência
da teoria mais apta em condições rigorosas de teste. No entanto,
essas concessões a Popper não chegam ao ponto de admitir que
ele tenha seguido com êxito a estratégia positivista e conseguido
formular uma explicação universal e a-histórica da metodologia
científica. Se tentarmos extrair dos textos de Popper os critérios
falsificacionistas visando aceitar ou rejeitar teorias em uma ciência
ou designar áreas inteiras como científicas ou não-dentíficas,
recairemos em problemas semelhantes àqueles a que - o próprio
Popper mostrou - o positivismo estava sujeito. Ou seja, seformos
rigorosos demais em relação a nossos critérios falsificacionistas,
muitas de nossas mais admiradas teorias na física não poderão ser
consideradas boa ciência, ao passo que, se os atenuarmos, poucas
áreas deixarão de assim qualificar-se.
Por exemplo, suponhamos que o falsificacionismo exija a
rejeição das teorias falsificadas. Neste caso, a menos que este
"falsificada" seja interpretado de maneira tão branda a ponto de
ser ineficaz, teorias científicas exemplaresdeixarão de corresponder
à exigência. Por exemplo ainda, por toda sua história impressio-
nantemente bem-sucedida, a astronomia de Newton enfrentou
observações incompatíveis com ela - que iam desde observações
sobre a órbita da Lua às da órbita do planeta Mercúrio. Natural-
mente, há pontos lógicos que tornam a falha dos cientistas em
30 ALAN CHALMERS
acompanhar nossa estrita regra falsificacionista perfeitamentecom-
preensível e razoável.As situações realistas de teste na ciência são
muito complexas; não apenas contêm a teoria que está sendo
testada, mas uma série de outras pressuposições secundárias,
condições iniciais e afins. Para ser comprovada, ateoria de Newton
sobre a órbita da Lua exigiu pressuposições sobre a forma da Lua
e seus movimentos internos, bem como sobre os da Terra,
correções nas leituras do telescópio para permitir verificar-se a
refração na atmosfera da Terra - e assim por diante. Mais tarde,
foi possível poupar a teoria de Newton, localizando a causa das
aparentes falsificações em outros pontos do labirinto teórico.
Transpirou depois que os problemas colocados pela órbita de
Mercúrio não poderiam ser eliminados dessa maneira. Contudo,
seria muito implausível esperar que alguma regrafelsificacionista
estivesse à altura de indicar previamente aos cientistas que resulta-
do esperar. É uma felicidade que os físicos do século XIX não
fossem felsificacionistas, como definido pela estrita regra conside-
rada, e que eles tenham continuado a desenvolver a teoria newto-
niana, apesar do problema não-resolvido da órbita de Mercúrio.
Não seremos, assim, também forçados a fazer concessões, por
exemplo, em relação aos criacionistas ou "cientistas da criação",
por terem fechado os olhos para os aspectos problemáticos dos
registros fósseis?
O próprio Popper não defendea regrafelsificacionistarigorosa
discutida acima. Ele reconhece que se deve dar uma chance para
que as teorias mostrem seu mérito e que elas não deveriam ser
descartadas aos primeiros sinais de dificuldades.Como ele mesmo
diz (1974, p. 55): "Sempre sublinhei a necessidade de um certo
dogmatísmo - o cientista dogmático tem um papel importante a
desempenhar. Senos entregamos àcrítica muito facilmente, jamais
descobriremos onde está a verdadeira força de nossas teorias". O
critério da demarcação usado por Popper para distinguir a ciência
da não-ciência pode ser dividido entre o que se poderia chamar
uma parte "lógica" e uma parte "metodológica". A parte lógica
admite que, se uma teoria tiver de fezer alguma declaração mais
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 31
substantiva sobre como é o mundo, é porque deve havermaneiras
pelas quais se pode reconhecer que ela tem algum problema. Ou
seja, devem existir maneiras possíveis de admitir que o mundo é
diferente do que diz a teoria. Essa é uma exigência razoável,
proveniente de uma concepção muito geral do que entendemos
por conhecimento do mundo. No entanto, o problema de Popper
é que ele se satisfaz com esseleque amplo de teorias. Esseproblema
tinha sido resolvido pela física de Aristóteles, para a qual o
movimento de um projétil impunha um problema. Fora resolvido
pela astrologia, quando uma previsão nela baseada deixava de
ocorrer, e foi resolvido pela teoria de Freud, já que sua afirmação
de que os sonhos são a realização de desejos é ameaçada pela
existência dos pesadelos e dos sonhos cheios de ansiedade, para
usar um exemplo a que o próprio Popper se referiu (1983, seção
18). A simples exigência de falsificabilidade, compreendida mera-
mente como possibilidade de um conflito entre as previsões de
uma teoria e algum resultado observável, embora suficiente para
eliminar afirmações como "está chovendo" ou "não está chovendo"
ou algumaparódia mais radicalda teoria freudiana ou da astrologia,
admite bem mais do que os defensores da estratégia positivista
gostariam de admitir como ciência autêntica.
O segundo aspecto metodológico do critério da demarcação de
Popper foi projetado para responder à dificuldadeesboçada acima
e dizrespeito ao caráter da estratégia apropriada a adotar diante de
falsificações aparentes. As teorias deveriam ser expostas a críticas
e não deveriamser modificadas de maneira ad hoc com a introdução
de acréscimos impossíveis de testar para resolver evidências pro-
blemáticas. Poderíamos argumentar que foi dessa maneira nada
científica que os aristotélicos eliminaram o problema imposto pelo
movimento do projétil, introduzindo hipóteses impossíveis de
testar sobre a força motriz do ar pelo qual aquele semovimentava,
enquanto (pelo menos, segundo Popper) a resposta de Freud para
0
problema dos pesadelos foiigualmenteinsatisfatória.
O problema é que, se esse aspecto do critério de marcação de
limites de Popper é formuladocomvigor suficientepara teralguma
32 ALAN CHALMERS
força, a física deixade ser uma ciência. Nossas mais prezadas teorias
na física enfrentam e sempre invariavelmente enfrentaram proble-
mas para os quais os físicos ou fecham os olhos ou respondem de
maneira provisória. Porexemplo, no primeiríssimo documentoem
que apresentava os fundamentos de sua teoria cinética dos gases,
em 1859, Maxwell (1965, p. 409) observava que "possivelmente a
teoria não satisfazia a conhecida relação entre os dois calores
específicos de todos os gases". Todos os consideráveis êxitos da
teoria cinética ocorreram depois que a dificuldade da teoria foi
avaliada. Elanão foieliminadaaté o advento da mecânica quântica.
Os problemas que ocorrem na física atômica e nuclear contempo-
rânea são eliminados com o uso de diversas técnicas de "renorma-
lização", que em geral se admite serem ad hoc.Por que uma teoria
muito boa, com um potencial não-detectado, seria rejeitada por
enfrentar dificuldades que, segundo todas as aparências, só podem
ser resolvidasde maneira arbitrária?Que alternativas têm osfísicos
modernos, senão dar prosseguimento ao desenvolvimento dos
aspectos promissores da mecânica quântica, apesar de qualquer
mal-estar que sintam a respeito da renormalização?Se o critério
falsificacíonista de Popper receber uma formulação precisa para ter
força normatizadora, terá conseqüências indesejáveis para a ciência.
As dificuldades para o critério de demarcação de Popper que
discuti são precisamente aquelas apontadas por Lakatos. A sua
metodologia para os programas de pesquisa científica foi criada
com uma alteração do falsificacionismo de Popper, de modo a
corresponder a essas dificuldades. A metodologia de Lakatos
contém uma liberalização do critério falsificacionista de Popper.
Um bom programa de pesquisa invariavelmente depara com certas
dificuldades, alguns fenômenos recalcitrantes, mas não precisa ser
abandonado por conta disso. As evidências conflitantes com as
afirmações centrais de um programa tornam-se antes anomalias, e
não falsificações. Um programa é científicose apresenta perspecti-
vas para a pesquisa, e se essa pesquisa leva (pelo menos àsvezes)
a êxitos na forma de novas previsões. As anomalias tornam-se
falsificações de um programa apenas quando este é substituído por
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 33
outro que as explique melhor; por exemplo, podemos dizer, com
base em uma perspectiva pós-einsteiniana, que a órbita de Mercú-
rio falsifica a teoria newtoniana, enquanto no século XIX era apenas
urna anomalia.
Um problema no critério de demarcação de Lakatos é a
ausência de força normativa. Nenhum programa de pesquisa pode
ser rejeitado por falsificação porque seu sucesso pode estar logo ali
adiante, de modo que "podemos racionalmente apegar-nos a um
programa degenerescente até este ser superado por um rival e
mesmo depois" (Lakatos, 1978, p. 117). Quem diria que os grandes
êxitos, na forma de previsões confirmadas de modo impressionan-
te, estão à espera de programas dentro do marxismo ou da
sociologia contemporânea, para citar-se duas áreas de que Lakatos
não gosta...? Como instrumento para combater a pseudociência, a
metodologia de Lakatos é realmente muito rudimentar.
Uma segunda enorme dificuldade em sua metodologia provém
do quanto Lakatos a adaptou para que ela correspondesse àfísica
contemporânea (Feyerabend, 1976). Ele defende sua metodologia
testando-a em relação a episódios da história da física dos últimos
duzentos anos, mais ou menos, geralmente aceitos como grandes
realizações científicas (Lakatos, 1978, p. 124). Dado esse fato, não
basta presumir que o critério implícito para demarcação nessa
metodologia aplica-se a outras áreas que não a física. Mais uma vez,
verifica-se que a metodologia de Lakatos é um instrumento ineficaz
para combater a pseudociência.
A dificuldade acima enfrenta todas as explicações da ciência e
seus métodos e padrões implícitos na estratégia de tentar justificar
teorias gerais da ciência recorrendo-se à física e sua história.
Quando se presume que os métodos e padrões aque sechegadessa
maneira sejam em geral aplicáveisà biologia, à psicologia, à teoria
social e afins, tacitamente pressupõe-se que a física constitui o
paradigma da boa ciência, a que todas as outras ciências devem
aspirar. À primeira vista existem razões amplamente reconhecidas
para rejeitar-se essa pressuposição. Os povos, as sociedades e os
sistemas ecológicos não são objetos inanimados a serem manipu-
34
ALAN CHALMERS
lados da mesma maneira que os objetos dafísica.Os experimentos
artificiais e o papel que estes desempenham nafísicaprevisivelmen-
te não são os meios, próprios ou possíveis, suficientes para sua
compreensão. Enquanto as teorias sociais ou algumas das teorias
psicológicas influenciama disposição ou as ações das pessoas, elas
têm um efeito sobre os sistemas a que supostamente se aplicam de
uma forma que as ciências físicas não têm. Há um sentido real em
que, no desenvolvimento das ciências humanas e sociais, visamos
antes mudar do que simplesmente interpretar o mundo. Em todo
caso, este não é olugarem que sevai discutir os problemas especiais
de que se ocupam a teoria social, a ecologia e afins. Basta observar
que Lakatos e os que seguem estratégia semelhante pressupõem
que todo conhecimento científico autêntico deveria compartilhar
os métodos e padrões da física, posição essa difícil de defender e
para a qual Lakatos não oferece nenhuma defesa.
2.4 Os métodos e padrões variáveis na física
Surge mais uma dificuldadepara os que defendem os métodos
e padrões universais no momento em que se admite que os
métodos e padrões da física estão sujeitos à mudança e que estão
sujeitos aessasmudanças precisamente nas ocasiões em que a física
faz mais um avanço impressionante. Os cientistas alteram seus
métodos e padrões quando aprendem, na prática, o que se ganhará
com essa mudança. Ironicamente, um excelente exemplo histórico
desta minha argumentação está narrado num ensaio de Lakatos
publicado postumamente (1978a). O argumento deste ensaio
impõe uma séria dificuldade para a estratégia positivista contraria-
mente defendida por Lakatos.
A distinção entre a ciência e a não-ciência em geral aceita na
época de Newton era uma versão da distinção que havia na
Antigüidade entre episteme e doxa - entreo conhecimento genuíno
e a mera opinião. Sustentava-se que o conhecimento científico
genuíno deveria consistir ou basear-se em verdades necessárias
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 35
estabelecidas pela razão, enquanto muitos acrescentavam esta
exigência "essencialista" de que estas fossem verdades fundamen-
tais, ou seja, verdades que não necessitavam de uma explicação. A
geometria euclidiana era muitas vezes tomada como ciência exem-
plar, de acordo com esse ideal. A teoria do conhecimento de
Descartes, muito influente na época de Newton e considerada pelo
próprio Newton a principal explicação da ciência a levar-se em
conta para sua avaliação, deu expressão a uma idéia da ciência
baseada em princípios evidentes e muito claros a priori. A teoria
de Newton entrava em conflito com essa concepção de ciência e
com os padrões científicos da época. Sua física, especialmente sua
explicação da gravidade, não podia ser comprovada por meio de
princípios evidentes. Sua concepção da ação gravitacional à distân-
cia, longe de ser evidente, era em geral considerada ininteligível -
em certo sentido, essa era uma opinião aceita pelo próprio Newton,
que admitia que, embora pudesse descrever a ação da gravidade,
não poderia explicá-la. A teoria de Newton não proporcioríou as
explicações fundamentais.
Apesar de conflitante com os cânones aceitos da ciência, a
teoria de Newton funcionou muitíssimo bem na astronomia e na
físicaterrestre. Estava claro que, colhidos os frutos dessa teoria, os
padrões teriam de ser mudados para incorporá-la. Foi precisamente
ó que aconteceu. Os cartesianos "foram obrigados, quase contra a
vontade, a opor a tirania do evidente aos primeiros princípios
fundamentais e, assim, a mudar os padrões da crítica e da demons-
tração científica e até o próprio conceito de conhecimento" (Laka-
tos, 1978a, p. 207).
Um trecho do ensaio de Lakatos (1978a, p. 201) resume a
situação: "As grandes obras de arte podem mudar os padrões
estéticos e as grandes realizações científicas podem mudar os
padrões científicos.A história dos padrões é a história da interação
decisiva - e nem tão decisiva assim - entre os padrões e as
realizações". Desde que não se force demais a analogia com a arte,
lfi
so serve para resumir sucintamente a minha posição, pois
expressa o fato de que os padrões estão sujeitos à mudança diante
ALAN CHALMERS
das realizaçõespráticas. A minha análise da introdução do telescó-
pio na astronomia que está no capítulo 4 é mais um exemplo.
O reconhecimento de que os padrões estão sujeitos à mudança
diante da prática poderia ser indicativo de que a busca por uma
metodologia universal a-histórica substantiva é fútil. É o que
realmente penso. Como poderia Lakatos então conciliar sua expli-
cação da grande transformação que Newton levou aos padrões
científicos com sua defesa da estratégia positivista? Creio que a
seguinte citação servirá de pista para qual teria sido a resposta de
Lakatos:
Newton desencadeou o primeiro grande programa de pesquisa cientí-
ficada história dos homens; ele e seus brilhantes seguidores estabeleceram
na prática as configurações básicas da metodologia científica. Nesse sentido,
podemos dizer que o método de Newton criou a ciência moderna. (1978a,
p. 220)
A mudança nos métodos e padrões descrita por Lakatos é
interpretada por ele como, na prática, a descoberta dos métodos e
padrões corretos que presumivelmente seriam e são empregados daí
em diante de formaimutável para "ajudar-nos a criar leis para deter
... a poluição intelectual" (Lakatos, 1974, p. 89).
Há duas razõespelasquais considero insustentável essa posição
que aqui atribuo a Lakatos. Em primeiro lugar, depois de haver
concordado que é perfeitamente inteligível dizer que os métodos e
padrões mudam diante da prática, como fazLakatos em seu estudo
da física de Newton, não é razoável pressupor que semelhantes
mudanças não ocorram em outras ocasiões subseqüentes. Em
segundo lugar, é possível apresentar exemplos de mudanças nos
padrões da física depois de Newton. Por exemplo, um padrão
implícito na física do século XIX tratava de seu caráter determinista.
Dadas as condições iniciais bem-definidas de um sistema, seu
desenvolvimento posterior é determinado pelas leis da física.
Sabe-se muito bem que o abandono do determinismo restrito na
mecânica quântica desconcertou Einstein e outros. Entretanto, se
desejamos aceitar e explorar as possibilidades práticas para o
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA
37
avanço que a mecânica quântica permitiu, devemos nos adaptaràs
mudanças nos padrões que ela encerra. O advento da radioastro-
nomia deu origem a discussões a respeito do que deve ser consi-
derado evidência relevante na astronomia (Edge e Mulkay, 1976),
análogas às que surgiram quando Galileu apareceu com o telescó-
pio. Em cada um desses casos, o resultado foi uma mudança
progressiva e significativa em alguns dos padrões implícitos na
astronomia experimental. Darei um terceiro exemplo hipotético,
mas instrutivo. Suponhamos, como algumas pessoas já acreditam,
que o raciocínio dentro da mecânica quântica encerra uma nova
"lógica quântica" que viola certos princípios clássicos da lógica.
Nessa circunstância, o sucesso prático da mecânica quântica cons-
tituiria uma boa razão para mudar nossos padrões lógicos nesse
contexto. Nem mesmo nossos mais reverenciados padrões lógicos
são dados universalmente.
Outra conclusão aextrair da ponderação que apresento aseguir
reforça um argumento apresentado no final da seção 2.3. Se
admitimos o quanto os métodos e padrões da física são moldados
pela prática, podemos reconhecer o quanto é precário transferir
esses métodos e padrões para outras áreas como a sociologia ou a
história. Ainda assim, deve-se fazer precisamente isso, se tivermos
de empregar a estratégia positivista para deter a "poluição intelec-
tual", como visava Lakatos, por exemplo.
Neste capítulo, refleti sobre duas possíveis respostas para a
questão dos recursos que os filósofos têm à disposição para
estabelecer uma explicação a-histórica universal do método cientí-
fico.Levei em consideração a natureza humana e também recorri
à física e a sua história e afirmei que a questão não pode ser
respondida de modo satisfatóriolançando-se mão desses recursos,
ttá uma outra possibilidade a ser aventada, que recorre ao objetivo
da
ciência: talvez seja possível estabelecer uma determinada meto-
dologia, de forma que ela seja a mais apropriada para contribuir
Par
a a meta uma vezadotada para a ciência. Reflito sobre essa tática
e
dela extraio o que penso ter algum valor no capítulo seguinte.
CAPÍTULO 3
A META DA CIÊNCIA
3.1 Observações introdutórias
Embora seja necessário falar muito mais sobre o que exporei
resumidamente, a meta da ciência pode ser entendida como a
produção do conhecimento do mundo, ao passo que o objetivo
das ciências físicas, com as quais me preocupo neste livro, pode
serentendido como aproduçãodo conhecimento do mundo físico,
em oposição ao mundo social. Falando superficial e rapidamente,
pode-se no mínimo avaliar a distinção que existe entre o objetivo
ou o interesse na produção do conhecimento e outros objetivos,
como atender a interesses econômicos ou políticos de indivíduos,
grupos ou classes específicos.* Eu diria, contra os céticos (entre os
quais se pode incluir uma série de sociólogos contemporâneos),
que nas ciências físicas foram desenvolvidas técnicas devidamente
A idéia desenvolvida aqui tem certa afinidade com a compreensão de Althusser
(1966, capítulo 6 e p. 231) da produção do conhecimento, que ele considerava
análoga à produção material. Essa visão althusseriana está claramentearticuladae
ampliada em Sutching (1983).
ALAN CHALMERS
interpretadas para a produção do conhecimento que corresponde
à meta da ciência. A seguir apresentarei um esboçocaracterizador
da meta da ciência que, por alto, serve para distingui-la de outras
formas do conhecimento; depois, atendendo à história e à prática
da física, ofereço uma caracterização mais detalhada das metas
implícitas na ciência contemporânea. Pode-se defender métodos e
padrões do ponto devistado quanto estes atendam àversão prática
possível da meta da ciência. *
Muitos filósofos tradicionais abordam o problema da análise
da ciência procurando elaborar uma caracterizaçãogeral do conhe-
cimento genuíno para só então entender a ciência como um caso
especial dessa caracterização (ou, como interpretam os positivistas
lógicos, como o caso único). No capítulo anterior, já me referi às
tentativas dos gregos antigos de extrair uma distinção geral entre o
conhecimento autêntico e a simples opinião. Logo no início da era
da ciência moderna, encontramos John Locke (1967, capítulo l,
seção 2) descrevendo seu propósito: "... investigar a origem, a
certeza e a extensão do conhecimento humano, junto com as bases
e o grau de crença, opinião e concordância". David Armstrong
(1973) estabelece uma versão especialmente clara das tentativas de
filósofos analíticos modernos de proporcionar umacaracterização
geral do conhecimento como algo justificado, verdadeira crença ou
coisa do gênero.
Não seguirei nenhuma abordagem geral desse tipo em minha
tentativa de caracterizar a meta da ciência. Como já mostrei na
discussão dos capítulos anteriores, não acredito que os filósofos
disponham de recursos que lhes permitam formular uma explica-
ção geral do conhecimento e suas metas, sem um exame detalhado
de alguns exemplos reais do que é considerado conhecimento.
Feito isso, creio que se torna bastante clara a existência dessa
diversidade de tipos de conhecimento e que o esforçode encontrar
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 41
* Outros (Popper,1979,p. 191-205; Watkins, 1985; Laudan, 1984) recorreram à meta
da aencm para justificar suas metodologias, embora não da mesma maneiraou com
a mesmaconcepção de meta para a ciência que elaboro aqui.
.„ caracterização do conhecimento que apreenda os aspectos
rlistintivos de todos eles não está destinado a obter resultado.
Assim, além do que é normalmente considerado conhecimento
científico, temos o conhecimento do cotidiano, que é o bom senso,
conhecimento que possuem os artesãos habilidosos ou os
políticos espertos, o conhecimento contido nas enciclopédias ou
armazenado na mente de um especialista em programas de audi-
tório - e assim por diante. Além dedeixar de apreender os aspectos
distintivos de alguns ou de todos esses tipos variados de conheci-
mento, as explicações mais tradicionais falham no momento em
que passam a ser utópicas, pois especificam critérios para o
conhecimento genuíno que não podem ser satisfeitos. Esse é o
destino em que recaem as diversastentativas para a distinção entre
o conhecimento e a mera opinião que recorrem às idéias do que é
necessário ou verdade essencial, características do conhecimento
genuíno.
Os comentários do parágrafo anterior mostram como defendo
uma abordagem pragmática para aespecificação e adoção de metas.
Para serem úteis, e não fúteis, as metas não podem ser utópicas.
Devem ser tais que se possa constatar um avanço em suarealização.
Ehá mais: saber se ameta éou não utópica éalgo que só se aprende
na prática. Nossas metas podem e devem ser modificadas diante
do que aprendemos sobre o que é possível realizar.
3.2 A ciência como busca da generalidade
Um aspecto do conhecimento científico que desejo esclarecer
é sua generalidade. Se tomamos exemplos incontestáveis do conhe-
cimento científico (digamos, a geometria euclidiana e a lei da
reflexão da luz conhecida pelos antigos, ou a mecânica newtoniana
e a teoria da relatividade de Einstein, de épocas mais modernas),
não é difícil avaliar a generalidade das afirmações ali contidas. Os
teoremas da geometria aplicam-se igualmente aos domínios da
carpintaria, à topografia e à astronomia, enquanto a mecânica
ALAN CHALMERS
newtoniana tanto se aplica aos movimentos dos cometas quanto à
oscilação de um pêndulo.
A importância da generalidade, de um ponto de vista pragmá-
tico, está muito bem ilustrada pelo exemplo de Randall Albury
(1983, p. 44-5) da bomba da espinha dorsal do dragão. Era uma
bomba usada na sociedade chinesa tradicional para irrigar os
arrorais. A água era carregada em paletes, que eram elevados em
ângulo reto por um mecanismo de bicicleta. Os detalhes do
desenho dessa bomba chinesa tradicional, especialmente .a forma
dos paletes, variava de uma circunstância para outra, presumivel-
mente como resultado da experiência prática dos que a utilizavam.
A bomba foi introduzidano Ocidente durante o século XVII e era
usada em projetos hidráulicos e pelos bombeiros. No séculoXVIII,
em sua Arquitetura hidráulica, De Belidor submeteu essa bomba a
uma análise geométrica e mecânica e apresentou uma explicação
geral de seu funcionamento. Com auxílioda análisede DeBelidor,
é possível especificar-se a forma ideal do palete para uma determi-
nada circunstância. Enquanto os chineses tradicionais possuíamo
conhecimento artesanal baseado na experiência prática, o trata-
mento de De Belidor constituía um conhecimento científico. A
geometria e a teoria das máquinas que ele usou eram gerais, no
sentido de que se aplicavam a qualquer situação mecânica; a
resultante teoria da bomba da espinha dorsal do dragão poderia
ser empregada para projetar bombas destinadas tanto acircunstân-
cias novas como às já conhecidas.
O exemplo anterior serve para expor a ligaçãoque existe entre
a generalidade e autilidade. Embora a importância da ciência como
recurso para oferecer um controle aperfeiçoado e amplo sobre a
natureza tenha aumentado firmemente desde o momento da
revolução científica, muitos desejariam resistir a uma identificação
estreita entre a ciência e sua aplicação prática. Diz-se que a ciência
busca a compreensão: o aperfeiçoamento da tecnologia é um
subproduto destacompreensão aperfeiçoada.Essaidéiacertamente
satisfazia aos gregos antigos e aos filósofos medievais, muitos dos
quais procuravam entender o mundo - a "realidade por trás das
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 43
arências" - sem nenhuma preocupação especial com asaplica-
"es práticas. Talvez se possa dizer o mesmo dos cosmologistas
modernos, por exemplo. Os antigos buscavam o conhecimento
peral que explicasse o mundo cotidiano das aparências. Por exem-
nlo, tomando como certas as mudanças observáveis que ocorrem
no mundo cotidiano, como o crescimento e a decadência, o
congelamento e a ebulição, as mudanças das estações e assim por
diante, eles buscavam uma explicação do mundo que esclarecesse
como, em geral, é possível a mudança. Esse problema levou alguns
deles a propor uma teoria atômica, pela qual se explicaria a
identidade através da mudança em termos da persistência dos
átomos antes e depois da mudança, ao passo que um novo arranjo
desses átomos seria responsável pela mudança ern si. Demócrito
dizia que "na verdade só existem os átomos e o vazio". Se existe
algo mais geral do que isso, talvezseja a teoria geral da relatividade,
essencial para acosmologia moderna. Quer consideremos a ciência
em termos do controle material, quer em termos da compreensão
que ela permite, a generalidade é uma das características que a
distinguem.
Devo limitara ênfasena generalidade.As característicasimpor-
tantes da ciência, mesmo da ciência contemporânea "pura", se
perdem, se nos fixamos demais num quadro da ciênciacomo busca
de generalidades teóricas. lan Hacking (1983) ilustrou muito bem
como às vezes o experimento "tem vida própria" - o que é
importante. Por exemplo, ele descreve a maneira como David
Brewster, personagem importante na ótica experimental na primei-
ra metade do século XIX,descobriu muitas propriedades da luz,
Proporcionando assim material que seria*mais tarde incorporado
à teoria ondulatória da luz. "Brewster não estava testando ou
Comparando nenhuma teoria", observa Hacking (1983, p. 157),
e
te tentava descobrir como a luz se comporta." Para dar um
ex
emplo mais atual, Envin Hiebert (1988) descreveu como os
tísicos que faziam experimentos nucleares foram levados pela
Prática a uma "onda de novas descobertas experimentais iniciada
. Pela descoberta do nêutron, inclusive a fissão nuclear e as reações
ALAN CHALMERS
em cadeia auto-sustentadas", que pouco deviam aos desenvolvi-
mentos da teoria nuclear.
Thomas Kuhn (1977) fazuma esclarecedora distinção entre o
que chama de matemático e experimental ou ciência baconiana no
século XVII. A matemática, assim como a mecânica newtoniana,
encerrava leis matemáticas com elevado grau de generalização,
enquanto a ciência baconiana trazia implícito o conhecimento
prático, baseado na experimentação do tipo tentativa e acerto. Esta
última exigia uma investigação intencional do comportamento da
matéria emsituações novas - "torcer o rabo doleão", como colocou
Bacon. Grande parte da ótica dos séculos XVII e XVIII entra nesta
categoria, assim como a linha de pesquisa que levou à máquina a
vapor e à Revolução Industrial. Nenhuma parte dessa pesquisa
eficaz é entendida como busca da generalidade teórica. Ela pouco
deveu à teoria explicitamente formulada. A ciência baconiana,
como prática sistemática edisseminada, erauma novidade histórica
no século XVII, e a eficácia da estratégia foi uma descoberta
histórica, que permanece um componente vital da atividade cien-
tífica.Parte importante da meta da verdadeira ciência é a ampliação
dos meios de, na prática, intervir no mundo físico e controlá-lo,
sistematicamente torcendo o rabo do leão...
Acredito que existam duas razões para a existência e importân-
cia da ciência baconiana não tornar aminha ênfase na generalidade
um aspecto distintivo do conhecimento científico insatisfatório. A
primeira exigeconsiderações semelhantes às ilustradaspela história
da bomba da espinha dorsal do dragão. Como e atéonde os efeitos
práticos criados e percebidos em específicas situações experimen-
tais podem ser explorados fora delas? Uma boa resposta para essa
questão num caso determinado requer uma boa compreensão
teórica da situação, o que é comprovado pelos exemplos da ciência
baconiana citados acima. Aperfeiçoamentos drásticos no projeto
das máquinas tornaram-se possíveis com a teoria geral da termodi-
nâmica que evoluiu no século XIX,o controle da fissão nuclear
avançou muito depois que as energias de ligaçãoe similares foram
compreendidas, e a teoria ondulatória da luz, de Fresnel, abriu o
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 45
campo para possibilidades práticas que iam muito além do que
grewster foi capaz de realizar. Sem desejar negar a amplitude e
importância da ciência baconiana contemporânea, suas generaliza-
ções teóricas é que tornam a ciência diferente e mais poderosa que
a tecnologia medieval.
Uma segunda razão para meu enfoque das generalizações
teóricas da ciência é que este aspecto da ciência tem sido o principal
alvo dos ataques dos céticos ou dos relativistas intransigentes, mais
do que sua eficácia prática. Afinal de contas, no mundo contem-
porâneo de computadores, transplantes cardíacos e energia nu-
clear, é muito difícil negar a afirmação de que a ciência nos tenha
levado a meios aperfeiçoadospara um controle prático do mundo
material. Estou preocupado em defender os aspectos teóricos da
ciência da crítica cética equivocada, criando com isso espaço para
uma crítica da ciência mais eficaz, como a praticada na ciência
contemporânea. Ondesãolevantadas dúvidas céticas a respeito dos
aspectos mais práticos da ciência, como a objetividade da experi-
mentação, eu a defenderei.
Se adotamos o ponto de vista de que a meta da ciência é o
estabelecimento degeneralizaçõesque governem o comportamento
do mundo, é possível calcular que há nisso um problema funda-
mental a ser resolvido. Como se poderá fundamentar esse tipo de
generalização? Há realmente um problema a ser resolvido, algo que
vem da reflexão de que o mundo à nossa volta é complexo e
desordenado e por isso não é possível distinguir as regularidades
que poderiam constituir as generalizações científicas aplicáveis a
ele. Fora de algumas áreas da astronomia e da ótica não existem
regularidades sem exceções a observar. Mesmo os prováveis opo-
sitores que buscam regularidades com leis do tipo "objetos pesados
caem direto no chão" ou "nascem bolotas no tronco dos carvalhos"
são contrariados muitas vezes em seu próprio jardim: primeiro,
Pela queda das folhas no outono, e depois, pelas bolotas que caem
em chão pedregoso ou são estragadas por geadas e passarinhos.
Na seção 3.3 tentarei esclarecer a natureza do problema de como
as
generalizações científicas devem ser fundamentadas pelo exame
ALAN CHALMERS
seletivo da história da ciência e da filosofia, para distinguiralgumas
das soluções que têm sido oferecidas. Estaremos depois em melhor
posição para avaliar essas soluções implícitas na ciência moderna.
3.3 As primeiras tentativas para o estabelecimento
das generalizaçõesteóricas
Como se podem fundamentar as generalidades científicas sem
exceções, dada a natureza desordenada do mundo observável? Na
filosofiade Platão eAristóteles há respostas para esse problema. A
interpretação habitual da solução de Platão era pressupor que as
exigências de conhecimento aplicam-secom certeza apenas a um
mundo ideal, distinto do mundo natural em quevivemos, de modo
que, por exemplo, ageometriaconstituium conhecimento genuíno
de um mundo de cubos e triângulos ideais e assim por diante - a
que, na melhor das hipóteses, os objetos circulares e triangulares
do mundo real correspondem de maneira muito rudimentar. Essa
mudança esquiva-se do problema que apresentei a respeito do
relacionamento entre as generalizações abstratas que ocorrem no
conhecimento científico e nos eventos desordenados do mundo
real, pois estes são irrelevantes para o conhecimento platônico. O
posicionamento de Platão não constitui exatamente a solução de
nosso problema para aqueles que buscam o conhecimento do
mundo real, por mais plausível que seja a matemática. A resposta
de Aristóteles para o problema é mais interessante. Ao admitir a
ocasional eatéfreqüentedisparidade entre asexigências fundamen-
tais de suasteorias da naturezae asobservações comuns, Aristóteles
qualificava afirmações como "objetos pesados caem na direção do
centro da Terra" e "sementes de oliveiras nascem em oliveiras'
com expressões do tipo "na maioria dos casos" ou "via de regra'
(Barnes, 1975). Em segundo lugar, Aristóteles distinguia o com-
portamento e as propriedades essenciais dos acidentais, de modo
que, por exemplo, a queda de uma folha é essencial, ao passo que
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 47
sell vôo tremulante na brisa é acidental. O conhecimento só é
possível quando diz respeito ao essencial.
Qualificar as generalizaçõescom expressões como "na maioria
dos casos" é uma splução insatisfatória para nosso problema.
Embora seja um expediente que funciona razoavelmente bem na
biologia sob circunstâncias normais, já que, por exemplo, na
maioria dos casos as sementes de oliveira crescem em oliveiras,
existem impressionantes exemplos contrários em outras áreas.
Tendo em mente o comportamento usual das folhas de outono,
de penas em queda (eassim por diante), pode muito bem acontecer
que o número de objetos em queda que descem verticalmente em
direção ao centro da Terra esteja em minoria. A questão foi
retomada por muitos autores medievais, especialmente influencia-
dos por Tomás de Aquino (Wallace, 1981, p. 132-5). Seu trata-
mento continha uma assimetria entre a elucidação e a previsão.
Não é possível prever, por exemplo, queuma determinada semente
crescerá numaoliveira ou que uma pedra jogada descerá na vertical.
As ocorrências acidentais, como a intervenção dos pássaros ou dos
ventos, podem impedir que as coisas tomem seu rumo natural.
Entretanto, conforme a argumentação de muitos peripatéticos
medievais, se uma semente nasce numa oliveira ou uma pedra cai
verticalmente, isto pode ser explicado mediante referência a sua
essência e às causas naturais atuantes. Essa forma de análise era
chamada de raciocínio ex supositione. Ela se estendia à explicação
dos fenômenos naturais que só têm ocorrência rara, como as
eclipses lunares e o arco-íris (Wallace, 1974). Não se pode prever
quando ocorrerá um arco-íris, mas, quando ele aparece, sua causa
Pode ser atribuída à refração e dispersão da luz do Sol pelas gotas
da chuva.
Esse é portanto um desenvolvimento medieval de uma das
respostas de Aristóteles ao que coloquei como problema da típica
raltade consenso que existe entre as nossas teorias e os aconteci-
Itlen
tos imediatamente observáveis. Diante disso, o raciocínio ex.
*u
í>ositione evita o problema. Entretanto, permanece uma dificul-
te básica, referente ao método pelo qual se chega a explicações
48
ALAN CHALMERS
causais dos fatos que, segundo esse modo de raciocínio,presume-
se, tenham ocorrido. Essadificuldade está associadamuito de perto
à segunda resposta de Aristóteles ao problema anteriormente
mencionado. Como se podem conhecer as generalizações que
regem o comportamento da luz encerradas na explicação do
arco-íris? Que técnicas precisamente Aristóteles oferecia para dis-
tinguir o essencial do acidental? Nem Aristóteles nem seus suces-
sores medievais tinham alguma resposta satisfatória para esse tipo
de questão. Por exemplo, na física aristotélica, a distinção entre o
movimento essencial e o acidental recai na noção de um cosmos
ordenado, esférico e centrado na Terra, sendo movimentos essen-
ciais aqueles que servem para manter esta ordem (Clavelin, 1974,
p. 12-21). Não é oferecido nenhum método sistemático para se
estabelecer a existência e o caráter desta ordem. Em geral, ela se
baseava nos pressupostos comuns da época, como a imobilidade
da Terra e a distinção entre o reino terrestre e o celestial. S.
Gaukroger (1978, p. 124) diz que "a estrutura explanatória que
Aristóteles propõe que utilizemos é incoerente, pelo feto de que as
explicações do gênero requerido em princípio não podem ser dadas".
Aristóteles era um empirista que acreditava que "a experiência deve
proporcionar os princípios de qualquer assunto" (Primeiros Analíti-
cos, l, 30, 46a), mas a experiência não leva ao conhecimento das
causas necessárias, nem permite distinguir o essencial do acidental.
Não obstante, voltando-nos para filósofos antigos e medievais
talvez estejamos procurando uma resposta para o nosso problema
no lugar errado. Afinal de contas, a nossa discussão do capítulo
anterior indicava que os filósofos ainda estão lutando para encon-
trar uma boa explicação da ciência, e este livro seria muito
redundante se isso já tivesse acontecido. Entremos na própria
ciência do passado, em vez de na filosofia passada,para ver se nela
existem meios satisfatórios para dar fundamentos àsgeneralidades.
Os candidatos mais evidentes para o conhecimento científico
satisfatório estabelecido pelos gregos antigos são a geometria de
Euclides e a estática de Arquimedes. Esta última consiste na teoria
do equilíbrio, dos centros de gravidade e dos corpos flutuantes.
A FABRICAÇÃODA CIÊNCIA 49
Nessas ciências, as proposições aplicáveisao mundo eram deduzi-
das logicamente do que, na época, poderia ser plausivelmente
interpretado como princípios evidentes por simesmos, ou axiomas.
IsJão preciso estender-me sobre esse ponto em relação à geometria
euclidiana. A teoria do equilíbrio e dos centros de gravidade de
Arquimedes tratava os objetos como formas geométricas dotadas
de peso. Esses objetos poderiam ser suspensos por fios sem peso
em braços rígidos apoiados por um eixo sem fricção. Os princípios
da teoria traziam implícita a geometria euclidiana, o pressuposto
de que os corpos tendem a se mover para baixo em virtude de seu
peso e ponderações sobre a simetria, considerada evidente. (Por
exemplo, pressupunha-se que, se dois pesos iguais fossem suspen-
sos em braços iguais de uma balança, haveria equilíbrio por causa
da simetria da situação.) Nenhuma situação física real correspon-
derá com precisão às descrições da geometria euclidiana ou da
estática de Arquimedes. No entanto, quando as situações físicas
mais ou menos se ajustam às descrições de Euclides ou Arquime-
des, presume-se que essas teorias da geometria e da estática
contenham prescrições mais ou menos aplicáveis a tais situações.
Quando se adota esse ponto de vista, tanto adianta testar a estática
de Arquimedes com a observação do comportamento de balanças
reais quanto a geometria euclidiana, com a medição e a soma dos
ângulos de um triângulo material. Temos então algumaexplicação
para a relaçãoentre a teoria e a experiência que prova ser satisfatória
para uma boa diversidade de situações físicas estáticas.
Embora a ciência de Euclides e Arquimedes se baseasse em
princípios inicialmente evidentes, uma via de orientação mais
empírica para a generalidade está implícita na antiga astronomia.
A cuidadosa observação dos céus trouxe um conhecimento geral
na forma de uma especificaçãodas órbitas observadas do Sol, da
Lua e dos planetas, conhecimento suficiente para a previsão dos
eclipses e das conjunções e para servir de base a calendários
práticos. A lei da reflexão da luz é mais um exemplo do conheci-
mento geral estabelecido pelos antigos. Enquanto alguns, como
Euclides, tentavam argumentar em sua defesa recorrendo ao que
ALAN CHALMERS
consideravam princípios evidentes, Ptolomeu acreditava ser neces-
sário testar a lei por meio da experimentação. Ptolomeu suspeitava
também que houvesse uma lei regendo a refração e descreveu
experimentos projetados para determiná-la, ainda que nisso não
tenha tido muito sucesso. (Veja a minha avaliação um tanto
negativa dos experimentos de Ptolomeu em Chalmers, 1975, que
é o Anexo deste volume.)
A promessa oferecida por esses primeiros sucessos dos antigos
não teve confirmação. Não foram realizados grandes avanços em
sua contribuição para a busca do conhecimento científico aplicável
de maneira geral até a revolução científica. Retrospectivamente,
podemos verificar por que isso teria acontecido. As técnicas
introduzidas pelos antigos para o estabelecimento das generalida-
des aplicáveis aos fenômenos complexos e desordenados do mun-
do real eram satisfatórias apenas em uma série muito restrita de
circunstâncias. A busca pelos princípios físicos evidentes teve um
sucesso limitado apenas em áreas onde o mundo cotidiano da
experiência comum oferecia uma boa base para a abstração de
princípios que poderiam ser interpretados como evidentes. O
campo limitado e a confiabilidade desse procedimento tornam-se
evidentes assimque o domínio da experiência étranscendido. Hoje
sabemos, por exemplo, que a geometria euclidiana é violada na
escala astronômica, enquanto a estática deArquimedes seria inútil
para prever o comportamento deuma balança numa nave espacial.
A avaliação dessas limitações só apareceu nos tempos modernos,
naturalmente. Mais significativo para a nossa apresentação histó-
rica é o fato de que, em muitas áreas, estavam totalmente ausentes
os princípios que poderiam ser plausivelmente considerados evi-
dentes por si. Foi exatamente esse o problema que surgiu quando
Galileu tentou levar as técnicas de Arquimedes da estática para os
corpos em movimento. O bom senso ou o mundo da experiência
cotidiana não nos propiciam princípios evidentes, capazes de nos
proporcionar uma lei da queda, por exemplo.
Compreendemos hoje que os sucessos de orientação mais
empírica dos antigos dependiam de certos aspectos muito impre-
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 51
visíveis de nosso mundo físico. Como, por acaso, nosso sistema
solar consiste em um Solde grande massa acompanhado por meia
dúzia de planetas de massarelativamente menor que não interagem
de modo significativo,os movimentos da Terra e dos planetas são
suficientemente regulares para que as regularidades com algum
significado sejam discernidas pela observação empírica. De uma
perspectiva moderna, podemos dizer que o sistema solar é um
exemplo muito raro de uma instalação experimental conveniente
que por acaso ocorreu naturalmente. O comportamento regular
dos raios da luz sob uma ampla diversidade de circunstâncias
comuns também pode ser atribuído a configurações acidentais de
nosso mundo. A interação entre a luz e os campos gravitacionais
é muito pequena e o comprimento de onda da luz visível é
suficientemente pequeno para minimizar os efeitos da difração no
nível macroscópico.
Dadas as técnicas criadas pelos antigos, seu sucesso na deter-
minação do conhecimento científicogeral inevitavelmente limitou-
se a uma série restrita de casos especiais.
3.4 A generalidade e a experimentação: Galileu
Na física de Galileu encontramos uma solução inovadora para
o problema de como devem ser autenticadas as generalizações
científicas. Como indicado na seção anterior, pode-se dizer que o
principal objetivo da física de Galileu era uma extensão das técnicas
que Arquimedes havia empregado em sua estática para tratar dos
corpos em movimento (Clavelin, 1974; Shea, 1972). Vejamos
como isso levou Galileu a adotar um novo papel para a experimen-
tação na ciência.
Em seus primeiros trabalhos sobre o movimento, encontramos
Galileu tratando de situações idealizadas:balanças com eixos sem
fricção, esferas perfeitas rolando sobre planos inclinados perfeita-
mente retos e coisas afins. Nesses trabalhos, Galileu indicava ter
consciência do problema de como o tratamento dessas situações
52
ALAN CHALMERS
idealizadas se relaciona com os sistemas no mundo real e advertia
que "quem faz uma experiência sobre essa matéria não deve
surpreender-se se ela falhar" (Galileu, 1960, p. 68). Contudo, isso
significa que a teoria de Galileu não pode ser legitimada pelo
recurso à experiência. Uma vez que também se reconheça que
recorrer à evidência também é insatisfatório para nossos objetivos,
podemos ver como, nessa fase, Galileu não conseguiu resolver o
nosso problema.
A física experimentada de Galileu continha uma solução
qualitativa. Suaciência do movimento encerrava atese de que todos
os corpos têm propensão natural a mover-se para baixo com uma
aceleração uniforme e que o movimento horizontal é preservado.
Essas hipóteses combinadas produziram uma trajetória parabólica
para os projéteis. Galileu (1974, p. 223) sabia que em geral essas
afirmações não eram provenientes da experiência.
As conclusões abstratamente demonstradas são alteradas no concreto
e são tão falsificadas que nem o movimento horizontal é igual, nem a
aceleração natural ocorre exatamente na proporção pressuposta, nem a
linha do projétil é parabólica - e assim por diante.
Uma razão fundamental pela qual os movimentos reais em
geral não correspondem aos descritos na teoria de Galileu é a
existência de uma série de obstáculos de atrito ao movimento.
Considerando-se apenas o obstáculo que o ar impõe aos movimentos
em questão aqui, descobre-se que ele os perturba a todos numa infinitude
de maneiras, segundo as infinitamente inúmeras maneiras que variam as
formas, os pesos e as velocidades das coisas móveis.
Devido a problemas desse tipo, as bases da teoria de Galileu
só poderiam ser testadas em situações experimentais criadas espe-
cialmente para isso. As mais famosas eram as experiências com
planos inclinados. Galileu testou suas afirmações sobre a inércia e
a queda livre rolando bolas de bronze "bem redondas e polidas"
por um canal num cilindro que era o mais reto possível. Para
restringir a fricção a um mínimo, "dentro do canal foi colado um
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 53
pedaço de pergaminho, o mais macio e limpo possível" (Galileu,
1974, p-169). Os movimentos que serviramcomoexemplificações
e testes da teoria de Galileu não são do tipo que surge espontanea-
mente. Por exemplo, uma importante seqüência de movimentos
investigada por Galileu tratava de uma bola que descia um plano
inclinado, era desviada para um plano horizontal e saía deste para
uma queda livre (Drake, 1973). Foi necessário que Galileu criasse
situações artificiais especialmente planejadas com o objetivo de
testar sua teoria, reduzindo a um mínimo os efeitos indesejáveis.
Ele introduziu uma série de técnicas para reduzir os obstáculos e
para tratar dos que restavam, e desde então elas setornaram padrão
da atividade experimental (Koertge, 1977).
O quadro da ciência que melhor atende a teoria do movimento
de Galileu pode ser resumido da maneira seguinte: as teorias e as
leis científicas descrevem as tendências que têm os sistemas de
comportar-se de determinadas maneiras. Nas situações físicas reais,
essas tendências se combinarão de maneiras complexas, de modo
que poucas regularidades aparecerão no nível dos eventos obser-
váveis. Fazendo uma intervenção experimental, podemos tentar
isolar e investigar as tendências individuais e discernir as leis que
as regem. Pressupõe-se então que essas leis, cuja demonstração é
comprovada aqui e ali por meio de intervenções experimentais,
aplicam-se tanto ao mundo exterior quanto ao mundo interno das
situações experimentais (Bhaskar, 1978). Essa é a solução que
Galileu deu ao problema da generalização e que se tornou lugar-
comum na física.
E preciso impor algumas reservas ao caráter dessa "solução".
Não existe nenhuma garantia a priori de que as leis identificadas
na atividade experimental continuem a ser aplicadas fora das
situações experimentais. O que se pode obter, pressupondo que
isso aconteça, é algoque terá de seraprendido na prática. O sucesso
que a física goza desde Galileu é suficiente para confundir o cético
intransigente quanto a esse aspecto, e não pode ser superestimado.
Embora a física tenha provado ser eficientíssima para tratar de
situações tecnológicas maquinadas artificialmente, sua capacidade
ALAN CHALMERS
para tratar do mundo natural é limitada fora de determinados
aspectos da astronomia. Isso é exemplificado pela notória feita de
confiabilidade das previsões meteorológicas ou, mais grave, pela
precariedade de nossas avaliações do impacto ambiental das inter-
venções tecnológicas no mundo natural.
Uma segunda ressalva necessária diz respeito à limitada ampli-
tude que se pode dizer que Galileu tinha com relação à consciência
das implicações de sua atividade experimental. Em minha interpre-
tação, Galileu transformou a problemática meta da generalidade
na ciência em uma forma que era viável em praticamente qualquer
grau: "Identifique as generalidades em situações simples e, se
necessário, artificialmente maquinadas, e pressuponha que essas
generalidades continuem a aplicar-se a todas as situações, não
importa sua complexidade". Desnecessário dizer que-Galileu não
interpretou dessa maneira suas inovações. Ele continuou atraído
pelo ideal euclidiano ou arquimediano e muitas vezes tentou
apresentar sua teoria do movimento como derivada dos princípios
evidentes, reivindicação que não poderia ser sustentada com
plausibilidade e que era incompatível com sua experimentação
(Wisan, 1978, p. 3-4).
Deve-se acrescentar ainda uma terceira ressalva: o método de
Galileu de dividir os experimentos certamente não resulta num
método de estabelecer asgeneralidades com certeza.As implicações
epistemológicas da experimentação de Galileu são discutidas no
capítulo 5.
3.5 A substituição do desenvolvimento pek certeza
Já vimos antes como,afísicade Galileu foi realmente um ponto
de partida para a idéia de que a ciência deveria basear-se em
verdades evidentes por si mesmas, ao passo que no capítulo 2
vimos como a física de Newton, da mesma forma, foi um ponto
de partida para a concepção das leis científicas como verdades
A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 55
fundamentais estabelecidas com certeza. Essas mudanças, que
colocaram afísicaem seucaminho moderno, podem ser resumidas
pela afirmaçãode que a ciência moderna substituiu a meta utópica
pela certezamediante a exigência de um aperfeiçoamentoou desen-
volvimento constante. Essa exigência de desenvolvimento implica
que uma boa teoria deve nos contar alguma coisa que não sabíamos
antes. O quanto uma teoria leva à boa previsão dos fenômenos
qualitativamente novos torna-se especialmente significativo. (A
ênfase no desenvolvimento e nas novas previsões é uma das
características das filosofias da ciência de Popper e Lakatos.)
A importância dos tipos de consideração mencionados acima
aparece como significativa no conflito entre cartesianos e newto-
nianos no final do século XVII e no início do século XVIII. Os
newtonianos, com certa justificativa, argumentavam que a física
cartesiana podia explicar apenas os fenômenos já conhecidos, e
que mesmo isso só eraobtido por meio de mecanismos necessários
criados artificialmente com essa finalidade. Assim, foram imagina-
dos vórtices etéreos para explicar os movimentos conhecidos dos
planetas; foram postuladas correntes de partículas em duas vias
emitidas pelos ímãs e fluindo ou caindo em sorvedouros de duas
vias em materiais magnéticos para explicar os fenômenos magné-
ticos. Em compensação, os newtonianos diziam, mais uma vez
justificadamente, até certo ponto, que a mecânica newtoniana não
apenas explicava de maneira não-artificial os fenômenos conheci-
dos, como os movimentos planetários, mas também podia prever
fenômenos anteriormente desconhecidos, como a não-esfericidade
da Terra, a maneira exata como varia a aceleração da gravidade em
relação à distância do centro da Terra e, mais tarde, espetacular-
mente, o retorno do cometa de Halley. O reconhecimento de que
um dos méritos da teoria de Newton era a amplitude de novas
descobertas que ela propiciava foi enfatizado, por exemplo, em
1728, em Uma visão da filosofia de sir haac Newton, obra em que
H. Pemberton observava como ela "levou ao conhecimento de
coisas tais que, antes de sua descoberta, qualquer um consideraria
menos que loucura até mesmo a simples conjetura de que
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  • 1. A FAB DA CIl ALAN CHAUMERS "Espero que um exame detalhado da maneira como é fabricado (no sentido de 'fabricar': construir,elaborar) o legítimo conhecimento científico mostre como ele pode ser diferenciado de suas fabricações (no sentido de 'fabricar': montar)." ISBN 85-7139-059-2
  • 2. Copyright © 1990 by Alan F. Chalmers Título original em inglês: Science and its fabrication Copyright © 1994 da traduçãobrasileira: Fundação Editora da UNESP(FEU) Av. Rio Branco,1210 01206-904-São Paulo-SP Tel./Fax: (011)223-9560 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileirado Livro, SP, Brasil) Chalmers, Alan F., 1939- A Fabricaçãoda ciência/Alan Chalmers; tradução de Beatriz Sidou. - São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1994. - (Biblioteca básica) , Bibliografia. ISBN 85-7139-059-2 l. Ciência - Aspectos 2. Ciência - Filosofia 3. Ciência - História 4. Ciência - Metodologia I. Título. II. Série. 94-1012 CDD-500 índice para catálogo sistemático: 1. Ciências 500 OQACÃQ BIBLIOTECA CENTRAL H.» EDITORA AFILIADA j A. F. (Alan Francis) A fabricação da ciência 50(091)/C438f (179116/02) Hugo: Levantei cedo esta manhã porque decidi agir. Este é o alvorecer do inesperado. Que horas são? Joshua: Doze em ponto, senhor Hugo. Jean Anouilh, O and em volta da lua
  • 3. SUMÁRIO 9 Prefacio 11 Capítulo l A política da filosofia da ciência 1.1 A filosofia da ciência como questão política 1.2 A estratégia positivista 1.3 Métodos e padrões historicamente contingentes 1.4 A crítica da pseudociência 23 Capítulo 2 Contra o método universal 2.1 Observações introdutórias 2.2 O recurso à natureza humana 2.3 O recurso àfísicae sua história: positivismo e falsificacionismo 2.4 Os métodos e padrões variáveisnafísica 39 Capítulo 3 A meta daciência 3.1 Observações introdutórias 3.2 A ciência como busca da generalidade 3.3 As primeirastentativas para o estabelecimento das generalizaçõesteóricas 3.4 A generalidade e a experimentação: Galileu 3.5 A substituição do desenvolvimento pela certeza 3.6 A meta da ciência
  • 4. g ALAN CHALMERS 61 Capítulo 4 A observação objetivada 4.1 As hipóteses empiristas sob ataque 4.2 A observação teórico-dependente 4.3 A observação objetiva como realização prática 4.4 O significado e o caráter problemático dos dados de Galileu sobre o telescópio 4-5 As observações de Galileu das luas de Júpiter 4.6 O tamanho dos planetasvistospelo telescópio 85 Capítulo 5 O experimento 5.1 A produção e a rejeição dos resultadosexperimentais 5.2 As implicaçõespara o empirismo 5.3 As implicações para a filosofia da ciência de Popper 5.4 A defesa do experimento contra o ataque dos céticos 5.5 O retorno do experimentador 109 Capítulo 6 A ciência e a sociologia do conhecimento 6.1 A sociologia e o ceticismo em relação à ciência 6.2 O retrato inadequado que os sociólogos fazem de seus opositores 6.3 As origens sociais do conhecimento científico 6.4 A ênfase inadequada na crença 6.5 A explicação sociológica restrita à má ciência 129 Capítulo 7 Dois estudos de caso sociológicos 7.1 A teoria estatística e os interesses sociais 7.2 A explicação social de Freudenthal para os Principia de Newton 7.3 Observações finais 151 CapítuloS A dimensão social e política da ciência 8.1 Observações introdutórias 8.2 As oportunidades objetivas e a escolha individual 8.3 A política da atividade científica 8.4 Colocando-se a ciência em seu lugar 165 Apêndice A extraordinária pré-história da lei da retração 175 Bibliografia PREFÁCIO Este livro é uma seqüência de What is this thing called science?. Nesse livro, submeti algumas das explicações mais comuns da ciência e seus métodos a minucioso exame crítico, mas não cheguei a elaborar em detalhe nenhuma alternativa p^ira elas. Convenci-me de que tal elaboração é necessária, sobretudo diante da amplitude das críticas que, contra as minhas intenções, têm considerado minha posição radicalmente cética, negadora de qualquer estatuto distintivo, objetivo do conhecimento científico. Este livro contém uma ampliação e uma reelaboração do argumento de seupredeces- sor. Persisto em minha rejeição às concepções filosófico-ortodoxas do chamado método científico,mas demonstro como, não obstan- te, com algumas ressalvas, é possível uma defesa da ciência como conhecimento objetivo. Conseqüentemente, não tenho dúvidasde que receberei o desdém de muitos filósofos, à minha direita, e de sociólogos da ciência, à minha esquerda. Em muitos pontos utilizei material publicado nos seguintes artigos: "Thecase against a universal ahistorical scientific method" (O que há contra um método científicouniversal a-histórico, 1985); "A non-empiricist account of experiment" (Uma história não- empirista do experimento, 1984); "Galileo's telescopic observa-
  • 5. 10 ALAN CHALMERS tions of Venus and Mars" (As observações telescópicas feitas por Galileu de Vênus e Marte, 1985); "The sociology of knowledge and the epistemological status of science" (A sociologia do conhe- cimento e o estatuto epistemológico da ciência, 1988); "The extraordinary prehistory of the law of refraction" (A extraordinária pré-história da lei da refração, 1975). Sou muito grato aos editores, que deram permissão para utilizar este material aqui. Agradeço também a Patrícia Bower e Verônica Leahy, que pacientemente ecommuitaeficiênciadatilografaram o manuscrito, e a Wal Sutching, pela crítica proveitosa. CAPÍTULO l A POLÍTICA DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA 1.1 A filosofia da ciência como questão política "Nos tempos modernos a ciência é muito respeitada." Esta é a sentença que abre olivrodo qual esteéuma seqüência (Chalmers, 1982). Quinze anos dando aulas numa faculdade de artes, bem como a inclinação para algumas formas da filosofia e da sociologia contemporânea, me proporcionaram uma idéia da quantidade de ressalvas de que essa afirmativa necessita. A ciência geralmente é considerada desumanizadora, dando um tratamento insatisfatório a povos, sociedades e natureza, nela considerados objetos. A alegada neutralidade e isenção de valores da ciência é percebida por muita gente como não-autêntíca, idéia estimulada pelo fenô- meno, cada vezmais comum, do desacordo entre especialistas, em lados opostos de uma discussão politicamente suscetível acerca da substância do fato científico.A destruição eaameaça de eliminação de nosso meio ambiente resultantes de avanços tecnológicos são em geral consideradas algo que compromete a ciência. Existem aqueles que consideram a faculdade de artes muito deficiente e distanciada do mundo masculino eopressivo daciência evoltam-se
  • 6. 12 ALAN CHALMERS para o misticismo, as drogas ou para a filosofia francesa contem- porânea. Embora certamente reste o argumento de que um alto apreço pela ciência e uma generosa avaliação de seu campo constituam importante componente da ideologia contemporânea, abundam as posições oponentes. O fato das questões que dizem respeito ao estatuto da ciência serem politicamente importantes não escapou a muitos filósofos e, mais recentemente, a sociólogos da ciência. Foi assim que, em 1973, Imre Lakatos (1978b, p. 6-7) resumiu o assunto numa transmissão radiofônica: O problema da demarcação das fronteiras entre a ciência e a pseudo- ciência tem sérias implicações ... para a institucionalização da critica. A teoria de Copérnico foi proibida pela Igreja católica em 1616 por ser considerada pseudocientífica. Em 1820, foi retirada do Index, porque àquela altura a Igreja acreditou que os fatos a haviam comprovado e, portanto, ela se tornara científica. O Comitê Central do Partido Comunista Soviético, em 1949, declarou pseudocientífica'a genética mendeliana e matou os que a defendiam em campos de concentração, como aconteceu ao acadêmico Vavilov (depois do assassinato de Vavilov, a genética mendeliana foi reabilitada). Contudo, manteve-se o direito do partido decidir o que é científico e publicável e o que é pseudocientífico e passível de punição. O novo establishment liberal do Ocidente também exerce o direito de negar a liberdade de palavra ao que é considerado pseudocientífico, como já seviu na discussão a respeito de raça e inteligência. Todos esses julgamentos inevitavelmente baseavam-se em alguma espécie de critério de demarcação. Esta é a razão por que o problema dos limites entre a ciência e a pseudociência não é um pseüdoproblema defilósofosde poltrona: eletem sérias implicações éticas e políticas. Naturalmente, Lakatos tinha grande consideração pelaciência, como Karl Popper, cujos passos apaixonadamente seguiu. Popper (l 966, p. 369) explicacomo a sua defesa da racionalidadeem geral, e da ciência em particular, é uma tentativa de ir contra o "relativis- mo intelectual e moral", considerado por ele a "principal doença filosóficade nosso tempo". Não é incomum que os defensores de um elevado estatuto da ciência vejam-se como defensores da racionalidade, da liberdade e do modo de vida ocidental, já que, A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 13 afinal de contas, "o que realmente está em jogo é nada menos que o futuro progresso de nossa civilização"(Theocharis e Psimopou- los, 1987, p. 597). Paul Feyerabend é um dos filósofos mais lidos que se opõe a e zomba dessas venerações da ciência. Segundo algumas de suas formulações mais radicais, as atitudes atuais em relação à ciência eqüivalem a nada menos que uma ideologia representando um papel afim ao que desempenhou o cristianismo na sociedade ocidental, algumas centenas de anos atrás, e da qual devemos nos livrar. Feyerabend (1975) diz que a ciência moderna não tem características que a tornem superior e distinta do vodu ou da astrologia. Em seu livromais recente (l 987), eleglorifica um "adeus à razão", onde "razão" deve ser lida como o modo de racionalidade que os filósofos, que defendem para ela alguma situaçãoprivilegia- da, presumem distinguir a ciência. Nas últimas décadas, tornou-se cada vez mais comum os sociólogos voltarem sua atenção para a dimensão social da ciência e, em especial, para os processos implicados na construção social do conhecimento científico.Essas investigações levaram a maioria deles a questionar as explicações ortodoxas atribuídas ao estatuto privilegiado da ciência, e alguns deles a assumir posturas semelhantes à defendida por Feyerabend. Collins e Cox (1976), por exemplo, defendem explicitamente um ponto de vista relativista intransigente, com o argumento de que não há uma diferença intrínseca entre o método da ciência e o método empregado por Marian Keech e seus seguidores para convencer os outros da autenticidade de sua maneira de lidar com seres extraterrestres. As páginas que seguem contêm minha tentativa de esclarecer essas discussões a respeito do estatuto da ciência. Uma investigação detalhada da prática científica exigirá que nos unamos a Feyer- abend e aos sociólogos contemporâneos na rejeição de boa parte da filosofia ortodoxa da ciência. Entretanto, procurarei resistir ao relativismo radical freqüentemente defendido por esses autores e tentarei elaborar uma defesa restrita da ciência, interpretando o que acredito estar correto nas noções tradicionais da objetividade e
  • 7. 14 ALAN CHALMERS isenção de valores da ciência. Ou melhor, espero que um exame detalhado da maneira como é fabricado (num certo sentido de "fabricar": construir, elaborar) o legítimo conhecimento científico mostre como ele pode ser diferenciado de suas fabricações (num segundo sentido de "fabricar":montar). No capítulo final mostrarei por que não desejo que minha defesa restrita do estatuto epistemo- lógico da ciência seja equiparada à defesa do tipo de atitude que prega "manter a política longe da ciência", atitude que deixa sem questionamento o campo político, já incontestável dentro da ciência. 1.2 A estratégia positivista O principal objetivo dos positivistas lógicos, que floresceram em Viena durante as décadas de 20 e 30 e cuja significativa influência ainda persiste, era fazer a defesa da ciência e distingui-la do discurso metafísico e religioso, que a maioria deles descartava como bobagem não-científica. Eles procuravam construir uma definição ou caracterização geral da ciência, incluindo os métodos apropriados para sua construção e os critérios a que recorrer para fazer sua avaliação. Com isso em mãos, visavam defender a ciência e criar dificuldades para a pseudociência, mostrando como a primeira se ajusta àcaracterização geral, e aúltima não. Os detalhes da concepção de ciência oferecidos pelos |)ositivistas foram rejeita- dos ou radicalmente alterados nas últimas décadas. Não obstante, a estratégia geral contida em sua tentativa de defender a ciência ainda tem muitos adeptos. Ou seja, como ainda pressupõem normalmente os filósofos, cientistas e outros, para defender a ciência devemos recorrer a uma explicação geral de seus métodos e padrões. Além do mais, os positivistas não foram os primeiros a tentar uma caracterizaçãogeral da ciência. O Novum organum de Francis Bacon, o Discurso sobre o método de René Descartes e a Crítica da razão pura de Immanuel Kant são notáveis precursores A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 15 esforços dos positivistas para elaborar uma explicação geral da ciência e seus métodos. A caracterizaçãogeral da ciência buscada pelos filósofos a que me referi pretendia seruniversalea-histórica. Universal, no sentido de que se tencionava que fosse igualmente aplicada a todas as teses científicas. Os positivistas buscavam, por exemplo, uma "teoria unificada da ciência" (Hanfling, 1981, capítulo 6) que pudessem empregar para a defesa da fisica e da psicologia behaviorista e para criticar com severidade a religião e a metafísica. A explicação que se buscava para a ciência seria a-históricano sentido de que deveria aplicar-se tanto às teorias passadas como às contemporâneas e às futuras. Por conveniência, refiro-me ao objetivo de defender a ciência por meio do recurso a uma explicação universal e não- histórica de seus métodos e padrões como estratégia positivista, já que esta foi uma proeminente característica do positivismo lógico. Imre Lakatos e Karl Popper são dois eminentes filósofos da ciência dos tempos recentes que adotam a estratégia positivista, ainda que, é claro, sejam bastante críticos em relação à particular explicação da ciência oferecida pelos positivistas. Imre Lakatos (1978, p. 168-9 e 189) acreditava que o "problema central na filosofia da ciência" era "a questão de determinar as condições universais sob as quais uma teoria é científica". Ele sugeria que a solução do problema "deveria oferecer-nos uma orientação a res- peito de quando a aceitação de uma teoria científica é racional e quando é irracional" e esperavaque isso nos ajudasse a "criar leis para lutar contra ... a poluição intelectual". Lakatos recorria a sua teoria da ciência para defender osfísicoscontemporâneos e criticar o materialismo histórico e alguns aspectos da sociologia contem- porânea, expressando o caráter universal que atribuía à ciência, embora seu caráter a-histórico esteja evidente no uso que elefez para defender o caráter científico da revolução copernicana e também da einsteiniana. Alan Musgrave (1974, p. 560) considera a solução de Popper para o relatívismo "uma insistência em padrões objetivos absolutos". O próprio Popper (1972, p. 39; seção 29) buscava demarcar o limite entre a ciência e a
  • 8. 16 ALAN CHALMERS não-ciência em termos de um método que ele considerava caracte- rístico de todas as ciências, inclusive as sociais. Não é incomum encontrarem-se os próprios cientistas em atividade expressando a idéia de que uma explicação universal do método científico poderia ou deveria ser usada para defender ou ajudar a aperfeiçoar a ciência. Assim, dois físicos contemporâneos (Theocharis e Psimopoulos, 1987) insistem em que a prática e a defesa da ciência deveriam exigir uma definição mais razoável do método científico e deploram o quanto os cientistas em exercício ignoram essa definição. Chegam mesmo a atribuir a essa ignorân- cia o que consideram ser a doença atual da ciência. Outros cien- tistas tentaram analisar ascontrovérsias contemporâneas a respeito dos sistemas satisfatórios de classificação biológicavoltando-separa uma "estrutura filosófica dos critérios de teorias e metodologias científicas" (Bock, 1973, p. 381) e considerando o problema relativo à "natureza da ciência" (Gaffhey, 1979, p. 80). Até que ponto é amplo e profundo o sentimento de que uma defesa da ciência deve seguir a estratégia positivista evidencia-se a partir da reação típica dos filósofos e sociólogos da ciência que negaram a existência de algo como uma explicação universal e a-histórica do método e padrões científicos capazes de orientar o trabalho dos cientistas ou de avaliar o mérito da ciência que estes produzem. Essa reação parece motivada pelo pressuposto de que o abandono da noção de um método ou conjunto de padrões universais necessariamente encerra um ceticismo radical em rela- ção à ciência, segundo o qual nenhuma teoria científica pode ser considerada melhor do que qualquer outra; a ciência epistemolo- gicamente eqüivale à astrologia ou aovodu, e a avaliação das teorias científicas é questão de opinião ou gosto, atitude resumida pelo slogan utilizado por Feyerabend (1975, p. 28) para caracterizarsua teoria "anarquista" da ciência: "vale tudo". Theocharis e Psimo- poulos (1987, p. 597) estão tão convencidos de que uma defesa da ciência exige recorrência a uma explicação filosófica do método científico que parecem deixar implícito que deveriam ser obstados aqueles que, como eu mesmo, insinuam outra coisa aos estudantes: A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 17 Podemos nos perguntar como é que muitas universidades pelo mundo afora proporcionam a seus estudantes de ciência cursos formais compulsórios sobre os rigores do método científico. Em relação às univer- sidades que proporcionam cursos optativos sobre as tendências atuais na filosofia da ciência, será que seus corpos dirigentes têm consciência do fato de que muitos professores desses cursos inclinam-se a sabotar o método científico? No próximo capítulo, exponho meu argumento contra a estratégia positivista, que considero bastante equivocada para os que desejam defender a ciência. Em capítulos subseqüentes, mos- tro por que a rejeição do método universal não tem conseqüências que possam causar quaisquer preocupações aos corpos dirigentes das universidades. 1.3 Métodos e padrões historicamente contingentes Digo que a reação comum de horror em relação ao abandono de um método ou conjunto de padrões a-históricos, que vê a mudança como um abandono total da racionalidade, resulta de uma falha na distinção entre a rejeição do método ou conjunto de padrões universais e imutáveis, por um lado, que defendo, e a rejeição de todo método e padrão, por outro, a que resisto. Como já disse em outro texto (Chalmers, 1986, p. 26): "Não existe nenhum método universal. Não existe nenhum padrão universal. Contudo, existem padrões a-históricos contingentes implícitos nas atividades bem-sucedidas. Isso não significa um vale tudo em questões epistemológicas". Não são apenas aqueles que adotam a estratégia positivista que deixam de fazer a distinção entre os métodos e padrões universais absolutos e os métodos e padrões contingentes sujeitos à mudança. Feyerabend (1975, p. 285), da mesma forma, não discrimina quando, depois de minar as explicações ortodoxas do método científico, conclui que "o restante são opiniões estéticas, opiniões de gosto, preconceitos
  • 9. 18 ALAN CHALMERS metafísicos, ânsias religiosas, em resumo: o que resta são nossos anseios subjetivos". Recorrendo-se aos padrões contingentes, idéia que defendo, será possívelbloquear ocaminho paraum tipo derelativismo cétíco às vezes apoiado por Feyerabend e por alguns dos sociólogos da ciência, que discutiremos mais adiante neste livro? O fato de que uma resposta afirmativa não é uma resposta direta evidencia-se na reação comum desses que adotam a estratégia positivista para posturas como a minha. Isso foilevantado, por exemplo, por Barry Gower (l 98,8) em sua crítica aalgumasde minhas idéias publicadas anteriormente. Se há padrões implícitos nas atividades bem- sucedidas, como sustento, como essas atividades podem ser avaliadas de fora? Mais especificamente: se a física aristotélica incorporasse padrões aristotélicos e a física de Galileu incorporasse padrões galileanos, como poderíamos estar em posição de dizer que a física de Galileu é superior à aristotélica, como desejariam os defensores da ciência? Quando se adotam padrões aristotélicos, a física de Aristóteles é superior, ao passo que, adotando-se os padrões galileanos, ojulgamento é invertido. Tout comprendre, c'est tout pardonner (Compreender tudo é tudo perdoar), resume Gower (1988, p. 59). Para dizer que a física de Galileu é um avanço em relação àfísica aristotélica não precisaríamos de algum superpadrão aplicável a ambas? Isto não nos leva de volta à necessidade de um método universal? Da mesma forma, meus oponentes podem observar que existem métodos e padrões inerentes na astrologia ou na parapsicologia e chegar à conclusão de que a minha postura não deixa espaço para a crítica dessas atividades, já que eu me nego a recorrer aospadrões universais para avaliaros métodos e padrões implícitos em quaisquer atividades, por mais distanciadas que estejam de qualquer ciência ortodoxa. Acompanhando essa linha da argumentação, os defensores da estratégia positivista podem dizer que não há meio caminho como esse a que aludi para falar de padrões contingentes implícitos nas atividades bem-sucedidas. Em relação à noção de sucesso aqui mencionada, meus críticos podem insistir, como Gower, que uso essa idéia gratuitamente, a A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 19 menos que eu tenha alguma caracterização universal do sucesso, ão há meio caminho, como aparentemente insinua essa linha de argumentação. Ou temos padrões absolutos específicos para uma explicação universal da ciência ou temos o relativismo cético, e a opção entre a teoria evolucionária e a ciência da criação torna-se urna questão de gosto ou de fé. A tentativa que faço neste livro de apreender o campo entre o método universal e o relativismo cético continua mais ou menos da seguinte forma. De modo bastante pragmático, e de olho no que a ciência física já conseguiu realizar,tento especificar qual é a meta da ciência. A meta da física é estabelecer teorias e leis extremamente gerais e aplicáveis ao mundo. O quanto essas leis e teorias são realmente aplicáveis ao mundo deve ser determinado no confronto entre elas e o mundo, da maneira mais rigorosa possível, segundo as técnicas habituais existentes. Além do mais, compreende-se que ageneralidade eo grau de aplicabilidade de leis e teorias estão sujeitos a um constante aperfeiçoamento. Tendo assim especificado a meta da ciência, depois de havê-la elaborado e ilustrado com exemplos, para torná-la um pouco menos inócua, e depois de argumentar que esta é uma meta não-utópica muitas vezes satisfeita na ciência, estou em posição de avaliar métodos e padrões com base no ponto de vista a que eles atendem. Como a meta da ciência certamente terá de ser avaliada em relação a outros objetivos e outros interesses, uma vezadotada essa meta, aextensão alcançada pelos diversos métodos e padrões não é uma questão de opinião subjetiva, mas de fato objetivo a ser determinado de rnaneira prática. Os defensores da estratégia positivista normalmente se apre- sentam como defensores da ciência e da racionalidade, e seus opositores, como inimigos da ciência e da racionalidade. Neste Ponto, estão enganados. Ao adotar uma estratégia em defesa da ciência condenada à falha, estão servindo de joguete nas mãos do Movimento contra aciência, que tanto temem, etornam o trabalho d e Paul Feyerabend fácil demais. H. M. Collins (1983, p. 99-101), Urr * sociólogo da ciência de quem discordo em uma série de
  • 10. ALAN CHALMERS oportunidades neste livro, expressa de modo admirávelo que tento demonstrar: Enquanto a autoridade científica é legitimada em relação a filosofias insatisfatórias da ciência, é fácil para os leigos desafiar essa autoridade. É muito simples mostrar que a atividadecientífica em qualquer caso particular não está de acordo com os cânones das filosofias que a legitimam. Estão se cumprindo os temores daqueles que fazem objeção ao relatívismo com base em suas conseqüências anárquicas, não como resultado do relativis- mo, mas como resultante de uma confiança exageradamente prolongada nas mesmas filosofias que se supõe cercarem a autoridade científica. Esta cerca parece ser feita de palha. Se novas cercas tiverem de ser construídas, elas deverão ter sua base na atividade científica. Gosto de pensar que a defesada ciência que ofereço neste livro é superior às defesas no estilo positivista, porque é sustentável e porque deixa claro o terreno em que a ciência deve ser defendida. 1.4 A crítica da pseudociência Neste livro procuro retratar a física como um empreendimento objetivo e progressivo. A maneira como elaboro minha argumen- tação exige um exame minucioso do que a física já realizou e de como isto foi realizado. Particularmente, a minha formulação da meta da ciência chegou a uma configuração bastante pragmática, servindo aos tipos de leis e teorias estabelecidas pelo desenvolvi- mento de métodos satisfatórios na física. Como a minha argumen- tação assume essa forma, há limites necessários que determinam até que ponto minha análise pode servir de base para criticar áreas do conhecimento estranhas à física. Se alguma área do conheci- mento, como a psicologia freudiana ou o materialismo histórico de Marx (para tomarmos dois dos alvos favoritos dos filósofos da ciência), tivesse de receber uma crítica fundamentada no fato de não se ajustar à minha caracterização da física, isso implicaria que todo conhecimento autêntico deve adaptar-se aos métodos e pa- A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 21 drões da física. Não me sinto preparado para esta pressuposição e penso que seria muito difícil defendê-la. À luz de minha análise, um tipo de crítica possível é contestar pretensos conhecimentos apresentados como se fossemcientíficos no mesmo sentido da física, talvez porque pretendam ter sido construídos de acordo com métodos similares aos da física e, conseqüentemente, apresentados como se tivessem um estatuto epistemológico semelhante ao desta ciência. Se o criacionismo, a parapsicologia, a eugenia ou o que Marian Keech diz a respeito dos seres extraterrestres (Collins e Cox, 1976) são defendidos por serem considerados científicos no mesmo sentido em que afísica é científica, acredito que as ponderações apresentadas neste livro indiquem como se pode repudiar esse tipo de pretensão. Quando nos voltamos para campos como o da teoria ou história social, dos quais plausivelmente se pode afirmar terem objetivos um pouco diferentese, analogamente, métodos e padrões também diferentes da física, minha explicação da ciência não tem muito a oferecer, nem pretende ter muito a oferecer em relação à maneira como as teorias nesses campos poderiam ser avaliadas. No máximo, minha análise e defesa da física podem ser tomadas como indicação do modo de proceder em outros casos, ou seja, na tentativa de identificar as metas implicadas, as práticas desenvolvi- das para corresponder a essas metas e o grau de sucesso obtido. Na penúltima seção de What is this thing called science.7 , resumi minha atitude em relação a essas questões da seguinte maneira: Como agora está claro, acredito que não existe nenhuma concepção atemporal e universal da ciência e do método científico que possa atender ao objetivo de avaliartodas as pretensões de conhecimento. Não temos os recursos para chegar a isso e para defender essas idéias. Não podemos defender ou rejeitar com legitimidadepontos do conhecimento porque eles se ajustem ou não a determinados critérios já prontos da cientifkidade. A coisa é bem mais séria do que isso. Se, por exemplo, desejamosassumir uma postura esclarecida sobre determinada versão do marxismo, teremos de investigar quais são esses objetivos, quais os métodos empregados para chegar a eles, até que ponto eles foram atingidos e quais as forcas ou fatores
  • 11. ALAN CHALMERS que determinam seu desenvolvimento. Estaríamos então em posição de avaliar a versão do marxismo em termos da conveniência daquilo a que almeja, do quanto seus métodos permitem que essas metas sejam atingidas e dos interesses a que atende. (Chalmers, 1982, p. 169) Espero que a discussão exposta nos próximos capítulos venha a esclarecer e desenvolver mais o conteúdo dessas observações e possa mostrar por que não sinto nenhuma necessidade de voltar a elas. CAPÍTULO 2 CONTRA O MÉTODOUNIVERSAL 2.1 Observações introdutórias Comojáindiquei anteriormente, os que defendem um estatuto privilegiado para o conhecimento científico normalmente adotam o que denominei estratégia positivista. Quer dizer: tentam definir uma certa metodologia universal a-histórica da ciência que especi- fique os padrões em relação aos quais se deva julgar as supostas ciências. Popper e Lakatos, influentes filósofos da ciência, embora antipositivistas em aspectos fundamentais, adotaram uma versão dessa estratégia. Em época mais recente, John Worrall (1988, P- 265 e 274) expressa muito enfaticamente sua fidelidade à estratégia positivista. Segundo Worrall, "estabelecer princípios fixos para avaliação da teoria científica é a única alternativa ao relativismo", de modo que, "sem os princípios invariáveis da boa ciência, toda idéia de explicar-se o desenvolvimento da ciência corno um processo racional é seguramente abandonada". Da Jttesma forma, Barry Gower (1988, p. 59) lamenta o fato'de que a idéiade um método característicoda pesquisa científicanão seja Popular", e tenta resolver o problema.
  • 12. ALAN CHALMERS Neste capítulo, exponho resumidamente as razões pelas quais uma tentativa de defender a ciência recorrendo-se auma explicação universal a-histórica está condenada. Suponhamos, em nome da argumentação, que existe uma categoria excepcional chamada "ciência" e um método científico universal regendo o seu progresso e a sua avaliação.Como poderiam osfilósofosda ciência estabelecer uma caracterização satisfatória desta categoria, "ciência", e seu método? Que recursos têm os filósofos à sua disposição para determinar o que a ciência é ou deveria ser? Devo examinar uma série de respostas possíveis e sustentar que elas são insatisfatórias. 2.2 O recurso à natureza humana As tentativas feitas por uma série de filósofos do século XVII para responder a minha pergunta concentravam-se na importância da natureza humana. Colocada em termos bastante simples, sua posição pode ser caracterizada da seguinte maneira: já que são seres humanos que produzem e que avaliam o conhecimento em geral e o conhecimento científico em particular, para compreender as diversas maneiras pelas quais o conhecimento pode ser apropria- damente adquirido devemos levar em conta a natureza de cada ser humano que o adquire e o avalia. Devemos analisar os aspectos relevantes da natureza humana. Esses aspectos são a capacidade que os seres humanos têm de raciocinar e sua capacidade de observar o mundo por meio dos sentidos. Os racionalistas clássi- cos, como Descartes, concentraram-se no primeiro aspecto. Assim, vemos que em seu Discurso sobre o método Descartes rejeitava o costume e a autoridade como fontes satisfatórias para afundamen- tação segura do conhecimento e decidira estudar por si mesmo, usando todas as forças de sua mente numa tentativa de livrar-se dos "muitos equívocos que possam obscurecer a luz da natureza em nós e que nos deixam menos capazes de dar ouvidos à razão". Para ele, a natureza do conhecimento, suas origens e seus limites deveriam ser entendidos em termos de nossa "luznatural da razão". A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 25 xjo terreno dos empiristas, encontramos John Locke (1967, xxxii) explicando que, diante de certas questões epistemológicas específicas, percebera que, antes de tratar dessas questões, era nreciso "examinar nossas próprias capacidades e verificar que objetos de nossa compreensão eram ou não próprios para tal". Entre essas capacidades, para Locke, muito importante era, natu- ralmente, a capacidade dos seres humanos observarem o mundo por meio dos sentidos. David Hume (1969, p. 42), buscando os elementos empiristas na epistemologia de Locke, deixou muito claro que, em sua opinião, a natureza do conhecimento deve ser compreendida por meio da investigação da natureza dos seres humanos que o adquirem. Para citar suas próprias palavras: É evidente que todas as ciências têm uma relação, maior ou menor, com a natureza humana; e, por mais que qualquer uma delas pareça distanciar-se disso, continuarão voltando a ela por uma ou outra passagem. Mesmo a matemática, a filosofia natural e a religião natural dependem em certa medida da ciência do homem, pois estão além do conhecimento dos homens e são julgadas por suas forças e suas faculdades. É impossível dizer quais mudanças e aperfeiçoamentos poderíamos fazer nessas ciências se estivéssemos inteiramente ao corrente da extensão e da força do entendi- mento humano e pudéssemos explicar a natureza das idéias que emprega- mos e das operações que realizamos em nosso raciocínio. As teorias racionalistas eempiristas da ciência sofrem degraves problemas internos. Os racionalistas, quando tentavam justificar proposições advindas deum pensar claro como verdades absolutas, eram, com efeito, obrigados a adotar certas noções problemáticas evidentes por si mesmas. (Vale a pena lembrar que boa parte de sua física, que Descartes tentou justificar recorrendo a seu método racionalista, terminou por revelar-setotalmente falsa.) Os empiris- tas estavam diante de uma série de problemas relacionados à falibilidade e ao campo restrito dos sentidos, e do problema de justificar as generalizações que necessariamente ultrapassam a evidência proporcionada por determinadas aplicações dos sentidos (o problema da indução - Chalmers, 1982, capítulos 2 e 3).Esses Problemas internos são graves e suficientes para desacreditar as
  • 13. 26 ALAN CHALMERS tentativas filosóficas tradicionais de fundamentar uma teoria da ciência com base na naturezahumana. Contudo, não considero as dificuldades internas com que se depararam o racionalismo e o empirismo tradicional as principais razões para rejeitá-los como explicações satisfatórias da ciência. Sou da opinião de que a abordagem=geral que exigeque setrace a naturezado conhecimento científico de acordo com a natureza dos seres humanos que o produzem está fundamentalmente equivocada. O ser humano é moldado pela sociedade em que vive e o problema de definir-se algumaessência imutávelatrás dediferenças sociais, culturais e históricas é notoriamente difícil. Sem sombra de dúvida, um aspecto essencial dos seres humanos é sua capaci- dade de pensar e de sentir. Entretanto, provavelmente de nada adiantará buscar a naturezada ciência em seja lá p que de universal existir nessa capacidade, pela simples razão de que, sejam quais forem as resistências dos homens, os processos racionais, empíri- cos e experimentais que a ciência historicamente encerra mudam e evoluem. Assim, por exemplo, o cálculo infinitesimal estava à disposição dos cientistas que vieram depois de Newton e Leibniz, mas não antes; era possível valer-se dele na sustentação de debates sobre infinitesimais, algo que não estava à disposição de Arquime- des. E, repito, depois que Galileu introduziu a técnica de teste das leis científicas sob as condições artificiais de um experimento controlado, podia-se justificar a ordem física por trás do mundo desordenado da experiência comum deum modo antes impossível. Quando Galileu surgiucom o telescópio, abriu-seum novo campo de dados para a ciência, que tornou redundante boa parte dos dados anteriores obtidos a olho nu. * Os fatos relativos a variações nos procedimentos racionais e empíricos empregados na ciência não têm muito a ver com a natureza humana. As diferenças entre os métodos de Arquimedes e Newton, Aristóteles e Galileu não devem ser compreendidas em termos de suas respectivasnaturezas, Esses aspectos da flsica de Galileu são discutidos mais detalhadamente em outros capítulos. A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 27 as em termos dos cenários epistemológicos em que estavam •mersos. A natureza do conhecimento científico, a maneira como ela deve ser justificada com recurso à razão e à observação, muda historicamente. Para compreendê-la e identificá-la, devemos anali- sar os instrumentos intelectuais e práticos que um cientista tinha à mão em determinado contexto histórico. Tentar classificar o método científico pela análise da natureza humana é examinar precisamente o lugar errado. 2.3 O recurso à física e sua história: positivismo e falsificacionismo Embora a abordagem tradicional da compreensão do conheci- mento e da ciência, centrada nasfaculdadeshumanas, ainda tenha hoje uma grande influência na filosofia ortodoxa da ciência, uma série de filósofos da ciência contemporâneos procura justificar suas explicações da ciência e do método científico de maneiras bastante diferentes. Esses filósofos aceitam o que foi dito acima a propósito da natureza humana e chegam à conclusão de que, se quisermos compreender a ciência e seus métodos, devemos nos concentrar na própria ciência e nos métodos que ela incorpora, mais do que nos cientistas e em sua natureza. Os filósofos que adotam essa abordagem normalmente tomam a física e sua história como um dos melhores exemplos do que seja a ciência. Assim, o desenvol- vimento de uma teoria científica satisfatória e de seus métodos é o desenvolvimento da teoria que melhor corresponda à exemplar física. Uma explicação do método científico deve ser testada em relação à história da fisica. Thomas Kuhn, Imre Lakatos e Paul Feyerabend são filósofos contemporâneos que dão uma atenção detalhada à história da ciência inerente a essa abordagem. Eu diria que, desse modo, as tentativas de justificar uma caracterização universal da ciência e seu método enfrentam sérias dificuldades que abalam esse projeto.
  • 14. 28 ALAN CHALMERS Essa é uma grande dificuldade. Se exigimos que uma teoria satisfatória da ciênciae seus métodos seja compatível com a história e a prática contemporânea da física, então não temos nenhuma a nosso dispor. Os melhores candidatos para uma explicação do método universal não passam no teste. Essa é a questão mais importante que Feyerabend levanta em seu livro Contra o método e é também uma das principais conclusões a que fui levado em meu livro anterior. Tento aqui resumir a argumentação essencial desse livro e de outros textos. Alguns- pormenores e acréscimos mais recentes aessesargumentos estão nos capítulos subseqüentes. Os positivistas visavam mostrar que a ciência autêntica é "verificada" e mostra ser verdadeira ou provavelmente verdadeira em relação a "sentenças protocolares" - fatos revelados a observa- dores cuidadosos por meio de seus sentidos. Contudo, relatórios de observação são públicos, passíveis de teste e de revisão, além de bastante diferentes da concepção que tinham os positivistas sobre verdades indiscutíveis diretamente reveladas aos observadores por meio dos sentidos (Chalmers, 1982, capítulo 3). A afirmação de que "a Terra é estática" foiaceita como fato observável por milhares de anos antes que as novas teorias do movimento levassem à sua rejeição e substituição durante a revolução científica. Se nos voltamos para o experimento e seu papel na física contraposto à simples observação, o problema para a idéia dos positivistas de que a ciência se baseia em fundamentos seguros fornecidos pelos sentidos torna-se ainda maior, como veremos no capítulo 5. Mesmo se admitirmos que os positivistas tiveram alguma base observacional segurapara aciência, a suaexigência de que asteorias científicas fossem verificadas em relação a essa base não pode ser respondida. Inevitavelmente há uma lacuna lógica entre a prova finita seletiva disponível como suporte de exigências científicas e a generalidade dessas mesmas exigências. Descobriu-seque os aspec- tos lógicos desse argumento são ampliados pela observação histó- rica de que muitas teorias científicas do passado (inclusive as grandemente apreciadas,como amecânica newtoniana), ainda que bem apoiadas por diversas evidências, são deficientes e foram A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 29 superadas (I^ikatos, 1968). As exigências utópicas dos positivistas têm como conseqüência o fato de que as nossas mais respeitadas teorias científicas não sãocientíficas por seus critérios, e reduzem-se a bobagens para os positivistas, que sustentam o ponto devistade que proposições não-verificáveis são realmente bobagens. A rival mais importante do positivismo é a explicação falsifica- cionista da ciência, de Popper, aceita por muitos cientistas e filósofos em atividade. Acho que não há objeções a fazer a alguns dos aspectos mais geraisda posição de Popper. As teoriascientíficas são falíveis e permanecem sujeitas a um aperfeiçoamento ou substituição. Na medida em que as teorias dizem algo sobre o mundo, elas devem ser aferidas em confronto com ele. Na prática, a história da ciência pode ser compreendida como a sobrevivência da teoria mais apta em condições rigorosas de teste. No entanto, essas concessões a Popper não chegam ao ponto de admitir que ele tenha seguido com êxito a estratégia positivista e conseguido formular uma explicação universal e a-histórica da metodologia científica. Se tentarmos extrair dos textos de Popper os critérios falsificacionistas visando aceitar ou rejeitar teorias em uma ciência ou designar áreas inteiras como científicas ou não-dentíficas, recairemos em problemas semelhantes àqueles a que - o próprio Popper mostrou - o positivismo estava sujeito. Ou seja, seformos rigorosos demais em relação a nossos critérios falsificacionistas, muitas de nossas mais admiradas teorias na física não poderão ser consideradas boa ciência, ao passo que, se os atenuarmos, poucas áreas deixarão de assim qualificar-se. Por exemplo, suponhamos que o falsificacionismo exija a rejeição das teorias falsificadas. Neste caso, a menos que este "falsificada" seja interpretado de maneira tão branda a ponto de ser ineficaz, teorias científicas exemplaresdeixarão de corresponder à exigência. Por exemplo ainda, por toda sua história impressio- nantemente bem-sucedida, a astronomia de Newton enfrentou observações incompatíveis com ela - que iam desde observações sobre a órbita da Lua às da órbita do planeta Mercúrio. Natural- mente, há pontos lógicos que tornam a falha dos cientistas em
  • 15. 30 ALAN CHALMERS acompanhar nossa estrita regra falsificacionista perfeitamentecom- preensível e razoável.As situações realistas de teste na ciência são muito complexas; não apenas contêm a teoria que está sendo testada, mas uma série de outras pressuposições secundárias, condições iniciais e afins. Para ser comprovada, ateoria de Newton sobre a órbita da Lua exigiu pressuposições sobre a forma da Lua e seus movimentos internos, bem como sobre os da Terra, correções nas leituras do telescópio para permitir verificar-se a refração na atmosfera da Terra - e assim por diante. Mais tarde, foi possível poupar a teoria de Newton, localizando a causa das aparentes falsificações em outros pontos do labirinto teórico. Transpirou depois que os problemas colocados pela órbita de Mercúrio não poderiam ser eliminados dessa maneira. Contudo, seria muito implausível esperar que alguma regrafelsificacionista estivesse à altura de indicar previamente aos cientistas que resulta- do esperar. É uma felicidade que os físicos do século XIX não fossem felsificacionistas, como definido pela estrita regra conside- rada, e que eles tenham continuado a desenvolver a teoria newto- niana, apesar do problema não-resolvido da órbita de Mercúrio. Não seremos, assim, também forçados a fazer concessões, por exemplo, em relação aos criacionistas ou "cientistas da criação", por terem fechado os olhos para os aspectos problemáticos dos registros fósseis? O próprio Popper não defendea regrafelsificacionistarigorosa discutida acima. Ele reconhece que se deve dar uma chance para que as teorias mostrem seu mérito e que elas não deveriam ser descartadas aos primeiros sinais de dificuldades.Como ele mesmo diz (1974, p. 55): "Sempre sublinhei a necessidade de um certo dogmatísmo - o cientista dogmático tem um papel importante a desempenhar. Senos entregamos àcrítica muito facilmente, jamais descobriremos onde está a verdadeira força de nossas teorias". O critério da demarcação usado por Popper para distinguir a ciência da não-ciência pode ser dividido entre o que se poderia chamar uma parte "lógica" e uma parte "metodológica". A parte lógica admite que, se uma teoria tiver de fezer alguma declaração mais A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 31 substantiva sobre como é o mundo, é porque deve havermaneiras pelas quais se pode reconhecer que ela tem algum problema. Ou seja, devem existir maneiras possíveis de admitir que o mundo é diferente do que diz a teoria. Essa é uma exigência razoável, proveniente de uma concepção muito geral do que entendemos por conhecimento do mundo. No entanto, o problema de Popper é que ele se satisfaz com esseleque amplo de teorias. Esseproblema tinha sido resolvido pela física de Aristóteles, para a qual o movimento de um projétil impunha um problema. Fora resolvido pela astrologia, quando uma previsão nela baseada deixava de ocorrer, e foi resolvido pela teoria de Freud, já que sua afirmação de que os sonhos são a realização de desejos é ameaçada pela existência dos pesadelos e dos sonhos cheios de ansiedade, para usar um exemplo a que o próprio Popper se referiu (1983, seção 18). A simples exigência de falsificabilidade, compreendida mera- mente como possibilidade de um conflito entre as previsões de uma teoria e algum resultado observável, embora suficiente para eliminar afirmações como "está chovendo" ou "não está chovendo" ou algumaparódia mais radicalda teoria freudiana ou da astrologia, admite bem mais do que os defensores da estratégia positivista gostariam de admitir como ciência autêntica. O segundo aspecto metodológico do critério da demarcação de Popper foi projetado para responder à dificuldadeesboçada acima e dizrespeito ao caráter da estratégia apropriada a adotar diante de falsificações aparentes. As teorias deveriam ser expostas a críticas e não deveriamser modificadas de maneira ad hoc com a introdução de acréscimos impossíveis de testar para resolver evidências pro- blemáticas. Poderíamos argumentar que foi dessa maneira nada científica que os aristotélicos eliminaram o problema imposto pelo movimento do projétil, introduzindo hipóteses impossíveis de testar sobre a força motriz do ar pelo qual aquele semovimentava, enquanto (pelo menos, segundo Popper) a resposta de Freud para 0 problema dos pesadelos foiigualmenteinsatisfatória. O problema é que, se esse aspecto do critério de marcação de limites de Popper é formuladocomvigor suficientepara teralguma
  • 16. 32 ALAN CHALMERS força, a física deixade ser uma ciência. Nossas mais prezadas teorias na física enfrentam e sempre invariavelmente enfrentaram proble- mas para os quais os físicos ou fecham os olhos ou respondem de maneira provisória. Porexemplo, no primeiríssimo documentoem que apresentava os fundamentos de sua teoria cinética dos gases, em 1859, Maxwell (1965, p. 409) observava que "possivelmente a teoria não satisfazia a conhecida relação entre os dois calores específicos de todos os gases". Todos os consideráveis êxitos da teoria cinética ocorreram depois que a dificuldade da teoria foi avaliada. Elanão foieliminadaaté o advento da mecânica quântica. Os problemas que ocorrem na física atômica e nuclear contempo- rânea são eliminados com o uso de diversas técnicas de "renorma- lização", que em geral se admite serem ad hoc.Por que uma teoria muito boa, com um potencial não-detectado, seria rejeitada por enfrentar dificuldades que, segundo todas as aparências, só podem ser resolvidasde maneira arbitrária?Que alternativas têm osfísicos modernos, senão dar prosseguimento ao desenvolvimento dos aspectos promissores da mecânica quântica, apesar de qualquer mal-estar que sintam a respeito da renormalização?Se o critério falsificacíonista de Popper receber uma formulação precisa para ter força normatizadora, terá conseqüências indesejáveis para a ciência. As dificuldades para o critério de demarcação de Popper que discuti são precisamente aquelas apontadas por Lakatos. A sua metodologia para os programas de pesquisa científica foi criada com uma alteração do falsificacionismo de Popper, de modo a corresponder a essas dificuldades. A metodologia de Lakatos contém uma liberalização do critério falsificacionista de Popper. Um bom programa de pesquisa invariavelmente depara com certas dificuldades, alguns fenômenos recalcitrantes, mas não precisa ser abandonado por conta disso. As evidências conflitantes com as afirmações centrais de um programa tornam-se antes anomalias, e não falsificações. Um programa é científicose apresenta perspecti- vas para a pesquisa, e se essa pesquisa leva (pelo menos àsvezes) a êxitos na forma de novas previsões. As anomalias tornam-se falsificações de um programa apenas quando este é substituído por A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 33 outro que as explique melhor; por exemplo, podemos dizer, com base em uma perspectiva pós-einsteiniana, que a órbita de Mercú- rio falsifica a teoria newtoniana, enquanto no século XIX era apenas urna anomalia. Um problema no critério de demarcação de Lakatos é a ausência de força normativa. Nenhum programa de pesquisa pode ser rejeitado por falsificação porque seu sucesso pode estar logo ali adiante, de modo que "podemos racionalmente apegar-nos a um programa degenerescente até este ser superado por um rival e mesmo depois" (Lakatos, 1978, p. 117). Quem diria que os grandes êxitos, na forma de previsões confirmadas de modo impressionan- te, estão à espera de programas dentro do marxismo ou da sociologia contemporânea, para citar-se duas áreas de que Lakatos não gosta...? Como instrumento para combater a pseudociência, a metodologia de Lakatos é realmente muito rudimentar. Uma segunda enorme dificuldade em sua metodologia provém do quanto Lakatos a adaptou para que ela correspondesse àfísica contemporânea (Feyerabend, 1976). Ele defende sua metodologia testando-a em relação a episódios da história da física dos últimos duzentos anos, mais ou menos, geralmente aceitos como grandes realizações científicas (Lakatos, 1978, p. 124). Dado esse fato, não basta presumir que o critério implícito para demarcação nessa metodologia aplica-se a outras áreas que não a física. Mais uma vez, verifica-se que a metodologia de Lakatos é um instrumento ineficaz para combater a pseudociência. A dificuldade acima enfrenta todas as explicações da ciência e seus métodos e padrões implícitos na estratégia de tentar justificar teorias gerais da ciência recorrendo-se à física e sua história. Quando se presume que os métodos e padrões aque sechegadessa maneira sejam em geral aplicáveisà biologia, à psicologia, à teoria social e afins, tacitamente pressupõe-se que a física constitui o paradigma da boa ciência, a que todas as outras ciências devem aspirar. À primeira vista existem razões amplamente reconhecidas para rejeitar-se essa pressuposição. Os povos, as sociedades e os sistemas ecológicos não são objetos inanimados a serem manipu-
  • 17. 34 ALAN CHALMERS lados da mesma maneira que os objetos dafísica.Os experimentos artificiais e o papel que estes desempenham nafísicaprevisivelmen- te não são os meios, próprios ou possíveis, suficientes para sua compreensão. Enquanto as teorias sociais ou algumas das teorias psicológicas influenciama disposição ou as ações das pessoas, elas têm um efeito sobre os sistemas a que supostamente se aplicam de uma forma que as ciências físicas não têm. Há um sentido real em que, no desenvolvimento das ciências humanas e sociais, visamos antes mudar do que simplesmente interpretar o mundo. Em todo caso, este não é olugarem que sevai discutir os problemas especiais de que se ocupam a teoria social, a ecologia e afins. Basta observar que Lakatos e os que seguem estratégia semelhante pressupõem que todo conhecimento científico autêntico deveria compartilhar os métodos e padrões da física, posição essa difícil de defender e para a qual Lakatos não oferece nenhuma defesa. 2.4 Os métodos e padrões variáveis na física Surge mais uma dificuldadepara os que defendem os métodos e padrões universais no momento em que se admite que os métodos e padrões da física estão sujeitos à mudança e que estão sujeitos aessasmudanças precisamente nas ocasiões em que a física faz mais um avanço impressionante. Os cientistas alteram seus métodos e padrões quando aprendem, na prática, o que se ganhará com essa mudança. Ironicamente, um excelente exemplo histórico desta minha argumentação está narrado num ensaio de Lakatos publicado postumamente (1978a). O argumento deste ensaio impõe uma séria dificuldade para a estratégia positivista contraria- mente defendida por Lakatos. A distinção entre a ciência e a não-ciência em geral aceita na época de Newton era uma versão da distinção que havia na Antigüidade entre episteme e doxa - entreo conhecimento genuíno e a mera opinião. Sustentava-se que o conhecimento científico genuíno deveria consistir ou basear-se em verdades necessárias A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 35 estabelecidas pela razão, enquanto muitos acrescentavam esta exigência "essencialista" de que estas fossem verdades fundamen- tais, ou seja, verdades que não necessitavam de uma explicação. A geometria euclidiana era muitas vezes tomada como ciência exem- plar, de acordo com esse ideal. A teoria do conhecimento de Descartes, muito influente na época de Newton e considerada pelo próprio Newton a principal explicação da ciência a levar-se em conta para sua avaliação, deu expressão a uma idéia da ciência baseada em princípios evidentes e muito claros a priori. A teoria de Newton entrava em conflito com essa concepção de ciência e com os padrões científicos da época. Sua física, especialmente sua explicação da gravidade, não podia ser comprovada por meio de princípios evidentes. Sua concepção da ação gravitacional à distân- cia, longe de ser evidente, era em geral considerada ininteligível - em certo sentido, essa era uma opinião aceita pelo próprio Newton, que admitia que, embora pudesse descrever a ação da gravidade, não poderia explicá-la. A teoria de Newton não proporcioríou as explicações fundamentais. Apesar de conflitante com os cânones aceitos da ciência, a teoria de Newton funcionou muitíssimo bem na astronomia e na físicaterrestre. Estava claro que, colhidos os frutos dessa teoria, os padrões teriam de ser mudados para incorporá-la. Foi precisamente ó que aconteceu. Os cartesianos "foram obrigados, quase contra a vontade, a opor a tirania do evidente aos primeiros princípios fundamentais e, assim, a mudar os padrões da crítica e da demons- tração científica e até o próprio conceito de conhecimento" (Laka- tos, 1978a, p. 207). Um trecho do ensaio de Lakatos (1978a, p. 201) resume a situação: "As grandes obras de arte podem mudar os padrões estéticos e as grandes realizações científicas podem mudar os padrões científicos.A história dos padrões é a história da interação decisiva - e nem tão decisiva assim - entre os padrões e as realizações". Desde que não se force demais a analogia com a arte, lfi so serve para resumir sucintamente a minha posição, pois expressa o fato de que os padrões estão sujeitos à mudança diante
  • 18. ALAN CHALMERS das realizaçõespráticas. A minha análise da introdução do telescó- pio na astronomia que está no capítulo 4 é mais um exemplo. O reconhecimento de que os padrões estão sujeitos à mudança diante da prática poderia ser indicativo de que a busca por uma metodologia universal a-histórica substantiva é fútil. É o que realmente penso. Como poderia Lakatos então conciliar sua expli- cação da grande transformação que Newton levou aos padrões científicos com sua defesa da estratégia positivista? Creio que a seguinte citação servirá de pista para qual teria sido a resposta de Lakatos: Newton desencadeou o primeiro grande programa de pesquisa cientí- ficada história dos homens; ele e seus brilhantes seguidores estabeleceram na prática as configurações básicas da metodologia científica. Nesse sentido, podemos dizer que o método de Newton criou a ciência moderna. (1978a, p. 220) A mudança nos métodos e padrões descrita por Lakatos é interpretada por ele como, na prática, a descoberta dos métodos e padrões corretos que presumivelmente seriam e são empregados daí em diante de formaimutável para "ajudar-nos a criar leis para deter ... a poluição intelectual" (Lakatos, 1974, p. 89). Há duas razõespelasquais considero insustentável essa posição que aqui atribuo a Lakatos. Em primeiro lugar, depois de haver concordado que é perfeitamente inteligível dizer que os métodos e padrões mudam diante da prática, como fazLakatos em seu estudo da física de Newton, não é razoável pressupor que semelhantes mudanças não ocorram em outras ocasiões subseqüentes. Em segundo lugar, é possível apresentar exemplos de mudanças nos padrões da física depois de Newton. Por exemplo, um padrão implícito na física do século XIX tratava de seu caráter determinista. Dadas as condições iniciais bem-definidas de um sistema, seu desenvolvimento posterior é determinado pelas leis da física. Sabe-se muito bem que o abandono do determinismo restrito na mecânica quântica desconcertou Einstein e outros. Entretanto, se desejamos aceitar e explorar as possibilidades práticas para o A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 37 avanço que a mecânica quântica permitiu, devemos nos adaptaràs mudanças nos padrões que ela encerra. O advento da radioastro- nomia deu origem a discussões a respeito do que deve ser consi- derado evidência relevante na astronomia (Edge e Mulkay, 1976), análogas às que surgiram quando Galileu apareceu com o telescó- pio. Em cada um desses casos, o resultado foi uma mudança progressiva e significativa em alguns dos padrões implícitos na astronomia experimental. Darei um terceiro exemplo hipotético, mas instrutivo. Suponhamos, como algumas pessoas já acreditam, que o raciocínio dentro da mecânica quântica encerra uma nova "lógica quântica" que viola certos princípios clássicos da lógica. Nessa circunstância, o sucesso prático da mecânica quântica cons- tituiria uma boa razão para mudar nossos padrões lógicos nesse contexto. Nem mesmo nossos mais reverenciados padrões lógicos são dados universalmente. Outra conclusão aextrair da ponderação que apresento aseguir reforça um argumento apresentado no final da seção 2.3. Se admitimos o quanto os métodos e padrões da física são moldados pela prática, podemos reconhecer o quanto é precário transferir esses métodos e padrões para outras áreas como a sociologia ou a história. Ainda assim, deve-se fazer precisamente isso, se tivermos de empregar a estratégia positivista para deter a "poluição intelec- tual", como visava Lakatos, por exemplo. Neste capítulo, refleti sobre duas possíveis respostas para a questão dos recursos que os filósofos têm à disposição para estabelecer uma explicação a-histórica universal do método cientí- fico.Levei em consideração a natureza humana e também recorri à física e a sua história e afirmei que a questão não pode ser respondida de modo satisfatóriolançando-se mão desses recursos, ttá uma outra possibilidade a ser aventada, que recorre ao objetivo da ciência: talvez seja possível estabelecer uma determinada meto- dologia, de forma que ela seja a mais apropriada para contribuir Par a a meta uma vezadotada para a ciência. Reflito sobre essa tática e dela extraio o que penso ter algum valor no capítulo seguinte.
  • 19. CAPÍTULO 3 A META DA CIÊNCIA 3.1 Observações introdutórias Embora seja necessário falar muito mais sobre o que exporei resumidamente, a meta da ciência pode ser entendida como a produção do conhecimento do mundo, ao passo que o objetivo das ciências físicas, com as quais me preocupo neste livro, pode serentendido como aproduçãodo conhecimento do mundo físico, em oposição ao mundo social. Falando superficial e rapidamente, pode-se no mínimo avaliar a distinção que existe entre o objetivo ou o interesse na produção do conhecimento e outros objetivos, como atender a interesses econômicos ou políticos de indivíduos, grupos ou classes específicos.* Eu diria, contra os céticos (entre os quais se pode incluir uma série de sociólogos contemporâneos), que nas ciências físicas foram desenvolvidas técnicas devidamente A idéia desenvolvida aqui tem certa afinidade com a compreensão de Althusser (1966, capítulo 6 e p. 231) da produção do conhecimento, que ele considerava análoga à produção material. Essa visão althusseriana está claramentearticuladae ampliada em Sutching (1983).
  • 20. ALAN CHALMERS interpretadas para a produção do conhecimento que corresponde à meta da ciência. A seguir apresentarei um esboçocaracterizador da meta da ciência que, por alto, serve para distingui-la de outras formas do conhecimento; depois, atendendo à história e à prática da física, ofereço uma caracterização mais detalhada das metas implícitas na ciência contemporânea. Pode-se defender métodos e padrões do ponto devistado quanto estes atendam àversão prática possível da meta da ciência. * Muitos filósofos tradicionais abordam o problema da análise da ciência procurando elaborar uma caracterizaçãogeral do conhe- cimento genuíno para só então entender a ciência como um caso especial dessa caracterização (ou, como interpretam os positivistas lógicos, como o caso único). No capítulo anterior, já me referi às tentativas dos gregos antigos de extrair uma distinção geral entre o conhecimento autêntico e a simples opinião. Logo no início da era da ciência moderna, encontramos John Locke (1967, capítulo l, seção 2) descrevendo seu propósito: "... investigar a origem, a certeza e a extensão do conhecimento humano, junto com as bases e o grau de crença, opinião e concordância". David Armstrong (1973) estabelece uma versão especialmente clara das tentativas de filósofos analíticos modernos de proporcionar umacaracterização geral do conhecimento como algo justificado, verdadeira crença ou coisa do gênero. Não seguirei nenhuma abordagem geral desse tipo em minha tentativa de caracterizar a meta da ciência. Como já mostrei na discussão dos capítulos anteriores, não acredito que os filósofos disponham de recursos que lhes permitam formular uma explica- ção geral do conhecimento e suas metas, sem um exame detalhado de alguns exemplos reais do que é considerado conhecimento. Feito isso, creio que se torna bastante clara a existência dessa diversidade de tipos de conhecimento e que o esforçode encontrar A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 41 * Outros (Popper,1979,p. 191-205; Watkins, 1985; Laudan, 1984) recorreram à meta da aencm para justificar suas metodologias, embora não da mesma maneiraou com a mesmaconcepção de meta para a ciência que elaboro aqui. .„ caracterização do conhecimento que apreenda os aspectos rlistintivos de todos eles não está destinado a obter resultado. Assim, além do que é normalmente considerado conhecimento científico, temos o conhecimento do cotidiano, que é o bom senso, conhecimento que possuem os artesãos habilidosos ou os políticos espertos, o conhecimento contido nas enciclopédias ou armazenado na mente de um especialista em programas de audi- tório - e assim por diante. Além dedeixar de apreender os aspectos distintivos de alguns ou de todos esses tipos variados de conheci- mento, as explicações mais tradicionais falham no momento em que passam a ser utópicas, pois especificam critérios para o conhecimento genuíno que não podem ser satisfeitos. Esse é o destino em que recaem as diversastentativas para a distinção entre o conhecimento e a mera opinião que recorrem às idéias do que é necessário ou verdade essencial, características do conhecimento genuíno. Os comentários do parágrafo anterior mostram como defendo uma abordagem pragmática para aespecificação e adoção de metas. Para serem úteis, e não fúteis, as metas não podem ser utópicas. Devem ser tais que se possa constatar um avanço em suarealização. Ehá mais: saber se ameta éou não utópica éalgo que só se aprende na prática. Nossas metas podem e devem ser modificadas diante do que aprendemos sobre o que é possível realizar. 3.2 A ciência como busca da generalidade Um aspecto do conhecimento científico que desejo esclarecer é sua generalidade. Se tomamos exemplos incontestáveis do conhe- cimento científico (digamos, a geometria euclidiana e a lei da reflexão da luz conhecida pelos antigos, ou a mecânica newtoniana e a teoria da relatividade de Einstein, de épocas mais modernas), não é difícil avaliar a generalidade das afirmações ali contidas. Os teoremas da geometria aplicam-se igualmente aos domínios da carpintaria, à topografia e à astronomia, enquanto a mecânica
  • 21. ALAN CHALMERS newtoniana tanto se aplica aos movimentos dos cometas quanto à oscilação de um pêndulo. A importância da generalidade, de um ponto de vista pragmá- tico, está muito bem ilustrada pelo exemplo de Randall Albury (1983, p. 44-5) da bomba da espinha dorsal do dragão. Era uma bomba usada na sociedade chinesa tradicional para irrigar os arrorais. A água era carregada em paletes, que eram elevados em ângulo reto por um mecanismo de bicicleta. Os detalhes do desenho dessa bomba chinesa tradicional, especialmente .a forma dos paletes, variava de uma circunstância para outra, presumivel- mente como resultado da experiência prática dos que a utilizavam. A bomba foi introduzidano Ocidente durante o século XVII e era usada em projetos hidráulicos e pelos bombeiros. No séculoXVIII, em sua Arquitetura hidráulica, De Belidor submeteu essa bomba a uma análise geométrica e mecânica e apresentou uma explicação geral de seu funcionamento. Com auxílioda análisede DeBelidor, é possível especificar-se a forma ideal do palete para uma determi- nada circunstância. Enquanto os chineses tradicionais possuíamo conhecimento artesanal baseado na experiência prática, o trata- mento de De Belidor constituía um conhecimento científico. A geometria e a teoria das máquinas que ele usou eram gerais, no sentido de que se aplicavam a qualquer situação mecânica; a resultante teoria da bomba da espinha dorsal do dragão poderia ser empregada para projetar bombas destinadas tanto acircunstân- cias novas como às já conhecidas. O exemplo anterior serve para expor a ligaçãoque existe entre a generalidade e autilidade. Embora a importância da ciência como recurso para oferecer um controle aperfeiçoado e amplo sobre a natureza tenha aumentado firmemente desde o momento da revolução científica, muitos desejariam resistir a uma identificação estreita entre a ciência e sua aplicação prática. Diz-se que a ciência busca a compreensão: o aperfeiçoamento da tecnologia é um subproduto destacompreensão aperfeiçoada.Essaidéiacertamente satisfazia aos gregos antigos e aos filósofos medievais, muitos dos quais procuravam entender o mundo - a "realidade por trás das A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 43 arências" - sem nenhuma preocupação especial com asaplica- "es práticas. Talvez se possa dizer o mesmo dos cosmologistas modernos, por exemplo. Os antigos buscavam o conhecimento peral que explicasse o mundo cotidiano das aparências. Por exem- nlo, tomando como certas as mudanças observáveis que ocorrem no mundo cotidiano, como o crescimento e a decadência, o congelamento e a ebulição, as mudanças das estações e assim por diante, eles buscavam uma explicação do mundo que esclarecesse como, em geral, é possível a mudança. Esse problema levou alguns deles a propor uma teoria atômica, pela qual se explicaria a identidade através da mudança em termos da persistência dos átomos antes e depois da mudança, ao passo que um novo arranjo desses átomos seria responsável pela mudança ern si. Demócrito dizia que "na verdade só existem os átomos e o vazio". Se existe algo mais geral do que isso, talvezseja a teoria geral da relatividade, essencial para acosmologia moderna. Quer consideremos a ciência em termos do controle material, quer em termos da compreensão que ela permite, a generalidade é uma das características que a distinguem. Devo limitara ênfasena generalidade.As característicasimpor- tantes da ciência, mesmo da ciência contemporânea "pura", se perdem, se nos fixamos demais num quadro da ciênciacomo busca de generalidades teóricas. lan Hacking (1983) ilustrou muito bem como às vezes o experimento "tem vida própria" - o que é importante. Por exemplo, ele descreve a maneira como David Brewster, personagem importante na ótica experimental na primei- ra metade do século XIX,descobriu muitas propriedades da luz, Proporcionando assim material que seria*mais tarde incorporado à teoria ondulatória da luz. "Brewster não estava testando ou Comparando nenhuma teoria", observa Hacking (1983, p. 157), e te tentava descobrir como a luz se comporta." Para dar um ex emplo mais atual, Envin Hiebert (1988) descreveu como os tísicos que faziam experimentos nucleares foram levados pela Prática a uma "onda de novas descobertas experimentais iniciada . Pela descoberta do nêutron, inclusive a fissão nuclear e as reações
  • 22. ALAN CHALMERS em cadeia auto-sustentadas", que pouco deviam aos desenvolvi- mentos da teoria nuclear. Thomas Kuhn (1977) fazuma esclarecedora distinção entre o que chama de matemático e experimental ou ciência baconiana no século XVII. A matemática, assim como a mecânica newtoniana, encerrava leis matemáticas com elevado grau de generalização, enquanto a ciência baconiana trazia implícito o conhecimento prático, baseado na experimentação do tipo tentativa e acerto. Esta última exigia uma investigação intencional do comportamento da matéria emsituações novas - "torcer o rabo doleão", como colocou Bacon. Grande parte da ótica dos séculos XVII e XVIII entra nesta categoria, assim como a linha de pesquisa que levou à máquina a vapor e à Revolução Industrial. Nenhuma parte dessa pesquisa eficaz é entendida como busca da generalidade teórica. Ela pouco deveu à teoria explicitamente formulada. A ciência baconiana, como prática sistemática edisseminada, erauma novidade histórica no século XVII, e a eficácia da estratégia foi uma descoberta histórica, que permanece um componente vital da atividade cien- tífica.Parte importante da meta da verdadeira ciência é a ampliação dos meios de, na prática, intervir no mundo físico e controlá-lo, sistematicamente torcendo o rabo do leão... Acredito que existam duas razões para a existência e importân- cia da ciência baconiana não tornar aminha ênfase na generalidade um aspecto distintivo do conhecimento científico insatisfatório. A primeira exigeconsiderações semelhantes às ilustradaspela história da bomba da espinha dorsal do dragão. Como e atéonde os efeitos práticos criados e percebidos em específicas situações experimen- tais podem ser explorados fora delas? Uma boa resposta para essa questão num caso determinado requer uma boa compreensão teórica da situação, o que é comprovado pelos exemplos da ciência baconiana citados acima. Aperfeiçoamentos drásticos no projeto das máquinas tornaram-se possíveis com a teoria geral da termodi- nâmica que evoluiu no século XIX,o controle da fissão nuclear avançou muito depois que as energias de ligaçãoe similares foram compreendidas, e a teoria ondulatória da luz, de Fresnel, abriu o A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 45 campo para possibilidades práticas que iam muito além do que grewster foi capaz de realizar. Sem desejar negar a amplitude e importância da ciência baconiana contemporânea, suas generaliza- ções teóricas é que tornam a ciência diferente e mais poderosa que a tecnologia medieval. Uma segunda razão para meu enfoque das generalizações teóricas da ciência é que este aspecto da ciência tem sido o principal alvo dos ataques dos céticos ou dos relativistas intransigentes, mais do que sua eficácia prática. Afinal de contas, no mundo contem- porâneo de computadores, transplantes cardíacos e energia nu- clear, é muito difícil negar a afirmação de que a ciência nos tenha levado a meios aperfeiçoadospara um controle prático do mundo material. Estou preocupado em defender os aspectos teóricos da ciência da crítica cética equivocada, criando com isso espaço para uma crítica da ciência mais eficaz, como a praticada na ciência contemporânea. Ondesãolevantadas dúvidas céticas a respeito dos aspectos mais práticos da ciência, como a objetividade da experi- mentação, eu a defenderei. Se adotamos o ponto de vista de que a meta da ciência é o estabelecimento degeneralizaçõesque governem o comportamento do mundo, é possível calcular que há nisso um problema funda- mental a ser resolvido. Como se poderá fundamentar esse tipo de generalização? Há realmente um problema a ser resolvido, algo que vem da reflexão de que o mundo à nossa volta é complexo e desordenado e por isso não é possível distinguir as regularidades que poderiam constituir as generalizações científicas aplicáveis a ele. Fora de algumas áreas da astronomia e da ótica não existem regularidades sem exceções a observar. Mesmo os prováveis opo- sitores que buscam regularidades com leis do tipo "objetos pesados caem direto no chão" ou "nascem bolotas no tronco dos carvalhos" são contrariados muitas vezes em seu próprio jardim: primeiro, Pela queda das folhas no outono, e depois, pelas bolotas que caem em chão pedregoso ou são estragadas por geadas e passarinhos. Na seção 3.3 tentarei esclarecer a natureza do problema de como as generalizações científicas devem ser fundamentadas pelo exame
  • 23. ALAN CHALMERS seletivo da história da ciência e da filosofia, para distinguiralgumas das soluções que têm sido oferecidas. Estaremos depois em melhor posição para avaliar essas soluções implícitas na ciência moderna. 3.3 As primeiras tentativas para o estabelecimento das generalizaçõesteóricas Como se podem fundamentar as generalidades científicas sem exceções, dada a natureza desordenada do mundo observável? Na filosofiade Platão eAristóteles há respostas para esse problema. A interpretação habitual da solução de Platão era pressupor que as exigências de conhecimento aplicam-secom certeza apenas a um mundo ideal, distinto do mundo natural em quevivemos, de modo que, por exemplo, ageometriaconstituium conhecimento genuíno de um mundo de cubos e triângulos ideais e assim por diante - a que, na melhor das hipóteses, os objetos circulares e triangulares do mundo real correspondem de maneira muito rudimentar. Essa mudança esquiva-se do problema que apresentei a respeito do relacionamento entre as generalizações abstratas que ocorrem no conhecimento científico e nos eventos desordenados do mundo real, pois estes são irrelevantes para o conhecimento platônico. O posicionamento de Platão não constitui exatamente a solução de nosso problema para aqueles que buscam o conhecimento do mundo real, por mais plausível que seja a matemática. A resposta de Aristóteles para o problema é mais interessante. Ao admitir a ocasional eatéfreqüentedisparidade entre asexigências fundamen- tais de suasteorias da naturezae asobservações comuns, Aristóteles qualificava afirmações como "objetos pesados caem na direção do centro da Terra" e "sementes de oliveiras nascem em oliveiras' com expressões do tipo "na maioria dos casos" ou "via de regra' (Barnes, 1975). Em segundo lugar, Aristóteles distinguia o com- portamento e as propriedades essenciais dos acidentais, de modo que, por exemplo, a queda de uma folha é essencial, ao passo que A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 47 sell vôo tremulante na brisa é acidental. O conhecimento só é possível quando diz respeito ao essencial. Qualificar as generalizaçõescom expressões como "na maioria dos casos" é uma splução insatisfatória para nosso problema. Embora seja um expediente que funciona razoavelmente bem na biologia sob circunstâncias normais, já que, por exemplo, na maioria dos casos as sementes de oliveira crescem em oliveiras, existem impressionantes exemplos contrários em outras áreas. Tendo em mente o comportamento usual das folhas de outono, de penas em queda (eassim por diante), pode muito bem acontecer que o número de objetos em queda que descem verticalmente em direção ao centro da Terra esteja em minoria. A questão foi retomada por muitos autores medievais, especialmente influencia- dos por Tomás de Aquino (Wallace, 1981, p. 132-5). Seu trata- mento continha uma assimetria entre a elucidação e a previsão. Não é possível prever, por exemplo, queuma determinada semente crescerá numaoliveira ou que uma pedra jogada descerá na vertical. As ocorrências acidentais, como a intervenção dos pássaros ou dos ventos, podem impedir que as coisas tomem seu rumo natural. Entretanto, conforme a argumentação de muitos peripatéticos medievais, se uma semente nasce numa oliveira ou uma pedra cai verticalmente, isto pode ser explicado mediante referência a sua essência e às causas naturais atuantes. Essa forma de análise era chamada de raciocínio ex supositione. Ela se estendia à explicação dos fenômenos naturais que só têm ocorrência rara, como as eclipses lunares e o arco-íris (Wallace, 1974). Não se pode prever quando ocorrerá um arco-íris, mas, quando ele aparece, sua causa Pode ser atribuída à refração e dispersão da luz do Sol pelas gotas da chuva. Esse é portanto um desenvolvimento medieval de uma das respostas de Aristóteles ao que coloquei como problema da típica raltade consenso que existe entre as nossas teorias e os aconteci- Itlen tos imediatamente observáveis. Diante disso, o raciocínio ex. *u í>ositione evita o problema. Entretanto, permanece uma dificul- te básica, referente ao método pelo qual se chega a explicações
  • 24. 48 ALAN CHALMERS causais dos fatos que, segundo esse modo de raciocínio,presume- se, tenham ocorrido. Essadificuldade está associadamuito de perto à segunda resposta de Aristóteles ao problema anteriormente mencionado. Como se podem conhecer as generalizações que regem o comportamento da luz encerradas na explicação do arco-íris? Que técnicas precisamente Aristóteles oferecia para dis- tinguir o essencial do acidental? Nem Aristóteles nem seus suces- sores medievais tinham alguma resposta satisfatória para esse tipo de questão. Por exemplo, na física aristotélica, a distinção entre o movimento essencial e o acidental recai na noção de um cosmos ordenado, esférico e centrado na Terra, sendo movimentos essen- ciais aqueles que servem para manter esta ordem (Clavelin, 1974, p. 12-21). Não é oferecido nenhum método sistemático para se estabelecer a existência e o caráter desta ordem. Em geral, ela se baseava nos pressupostos comuns da época, como a imobilidade da Terra e a distinção entre o reino terrestre e o celestial. S. Gaukroger (1978, p. 124) diz que "a estrutura explanatória que Aristóteles propõe que utilizemos é incoerente, pelo feto de que as explicações do gênero requerido em princípio não podem ser dadas". Aristóteles era um empirista que acreditava que "a experiência deve proporcionar os princípios de qualquer assunto" (Primeiros Analíti- cos, l, 30, 46a), mas a experiência não leva ao conhecimento das causas necessárias, nem permite distinguir o essencial do acidental. Não obstante, voltando-nos para filósofos antigos e medievais talvez estejamos procurando uma resposta para o nosso problema no lugar errado. Afinal de contas, a nossa discussão do capítulo anterior indicava que os filósofos ainda estão lutando para encon- trar uma boa explicação da ciência, e este livro seria muito redundante se isso já tivesse acontecido. Entremos na própria ciência do passado, em vez de na filosofia passada,para ver se nela existem meios satisfatórios para dar fundamentos àsgeneralidades. Os candidatos mais evidentes para o conhecimento científico satisfatório estabelecido pelos gregos antigos são a geometria de Euclides e a estática de Arquimedes. Esta última consiste na teoria do equilíbrio, dos centros de gravidade e dos corpos flutuantes. A FABRICAÇÃODA CIÊNCIA 49 Nessas ciências, as proposições aplicáveisao mundo eram deduzi- das logicamente do que, na época, poderia ser plausivelmente interpretado como princípios evidentes por simesmos, ou axiomas. IsJão preciso estender-me sobre esse ponto em relação à geometria euclidiana. A teoria do equilíbrio e dos centros de gravidade de Arquimedes tratava os objetos como formas geométricas dotadas de peso. Esses objetos poderiam ser suspensos por fios sem peso em braços rígidos apoiados por um eixo sem fricção. Os princípios da teoria traziam implícita a geometria euclidiana, o pressuposto de que os corpos tendem a se mover para baixo em virtude de seu peso e ponderações sobre a simetria, considerada evidente. (Por exemplo, pressupunha-se que, se dois pesos iguais fossem suspen- sos em braços iguais de uma balança, haveria equilíbrio por causa da simetria da situação.) Nenhuma situação física real correspon- derá com precisão às descrições da geometria euclidiana ou da estática de Arquimedes. No entanto, quando as situações físicas mais ou menos se ajustam às descrições de Euclides ou Arquime- des, presume-se que essas teorias da geometria e da estática contenham prescrições mais ou menos aplicáveis a tais situações. Quando se adota esse ponto de vista, tanto adianta testar a estática de Arquimedes com a observação do comportamento de balanças reais quanto a geometria euclidiana, com a medição e a soma dos ângulos de um triângulo material. Temos então algumaexplicação para a relaçãoentre a teoria e a experiência que prova ser satisfatória para uma boa diversidade de situações físicas estáticas. Embora a ciência de Euclides e Arquimedes se baseasse em princípios inicialmente evidentes, uma via de orientação mais empírica para a generalidade está implícita na antiga astronomia. A cuidadosa observação dos céus trouxe um conhecimento geral na forma de uma especificaçãodas órbitas observadas do Sol, da Lua e dos planetas, conhecimento suficiente para a previsão dos eclipses e das conjunções e para servir de base a calendários práticos. A lei da reflexão da luz é mais um exemplo do conheci- mento geral estabelecido pelos antigos. Enquanto alguns, como Euclides, tentavam argumentar em sua defesa recorrendo ao que
  • 25. ALAN CHALMERS consideravam princípios evidentes, Ptolomeu acreditava ser neces- sário testar a lei por meio da experimentação. Ptolomeu suspeitava também que houvesse uma lei regendo a refração e descreveu experimentos projetados para determiná-la, ainda que nisso não tenha tido muito sucesso. (Veja a minha avaliação um tanto negativa dos experimentos de Ptolomeu em Chalmers, 1975, que é o Anexo deste volume.) A promessa oferecida por esses primeiros sucessos dos antigos não teve confirmação. Não foram realizados grandes avanços em sua contribuição para a busca do conhecimento científico aplicável de maneira geral até a revolução científica. Retrospectivamente, podemos verificar por que isso teria acontecido. As técnicas introduzidas pelos antigos para o estabelecimento das generalida- des aplicáveis aos fenômenos complexos e desordenados do mun- do real eram satisfatórias apenas em uma série muito restrita de circunstâncias. A busca pelos princípios físicos evidentes teve um sucesso limitado apenas em áreas onde o mundo cotidiano da experiência comum oferecia uma boa base para a abstração de princípios que poderiam ser interpretados como evidentes. O campo limitado e a confiabilidade desse procedimento tornam-se evidentes assimque o domínio da experiência étranscendido. Hoje sabemos, por exemplo, que a geometria euclidiana é violada na escala astronômica, enquanto a estática deArquimedes seria inútil para prever o comportamento deuma balança numa nave espacial. A avaliação dessas limitações só apareceu nos tempos modernos, naturalmente. Mais significativo para a nossa apresentação histó- rica é o fato de que, em muitas áreas, estavam totalmente ausentes os princípios que poderiam ser plausivelmente considerados evi- dentes por si. Foi exatamente esse o problema que surgiu quando Galileu tentou levar as técnicas de Arquimedes da estática para os corpos em movimento. O bom senso ou o mundo da experiência cotidiana não nos propiciam princípios evidentes, capazes de nos proporcionar uma lei da queda, por exemplo. Compreendemos hoje que os sucessos de orientação mais empírica dos antigos dependiam de certos aspectos muito impre- A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 51 visíveis de nosso mundo físico. Como, por acaso, nosso sistema solar consiste em um Solde grande massa acompanhado por meia dúzia de planetas de massarelativamente menor que não interagem de modo significativo,os movimentos da Terra e dos planetas são suficientemente regulares para que as regularidades com algum significado sejam discernidas pela observação empírica. De uma perspectiva moderna, podemos dizer que o sistema solar é um exemplo muito raro de uma instalação experimental conveniente que por acaso ocorreu naturalmente. O comportamento regular dos raios da luz sob uma ampla diversidade de circunstâncias comuns também pode ser atribuído a configurações acidentais de nosso mundo. A interação entre a luz e os campos gravitacionais é muito pequena e o comprimento de onda da luz visível é suficientemente pequeno para minimizar os efeitos da difração no nível macroscópico. Dadas as técnicas criadas pelos antigos, seu sucesso na deter- minação do conhecimento científicogeral inevitavelmente limitou- se a uma série restrita de casos especiais. 3.4 A generalidade e a experimentação: Galileu Na física de Galileu encontramos uma solução inovadora para o problema de como devem ser autenticadas as generalizações científicas. Como indicado na seção anterior, pode-se dizer que o principal objetivo da física de Galileu era uma extensão das técnicas que Arquimedes havia empregado em sua estática para tratar dos corpos em movimento (Clavelin, 1974; Shea, 1972). Vejamos como isso levou Galileu a adotar um novo papel para a experimen- tação na ciência. Em seus primeiros trabalhos sobre o movimento, encontramos Galileu tratando de situações idealizadas:balanças com eixos sem fricção, esferas perfeitas rolando sobre planos inclinados perfeita- mente retos e coisas afins. Nesses trabalhos, Galileu indicava ter consciência do problema de como o tratamento dessas situações
  • 26. 52 ALAN CHALMERS idealizadas se relaciona com os sistemas no mundo real e advertia que "quem faz uma experiência sobre essa matéria não deve surpreender-se se ela falhar" (Galileu, 1960, p. 68). Contudo, isso significa que a teoria de Galileu não pode ser legitimada pelo recurso à experiência. Uma vez que também se reconheça que recorrer à evidência também é insatisfatório para nossos objetivos, podemos ver como, nessa fase, Galileu não conseguiu resolver o nosso problema. A física experimentada de Galileu continha uma solução qualitativa. Suaciência do movimento encerrava atese de que todos os corpos têm propensão natural a mover-se para baixo com uma aceleração uniforme e que o movimento horizontal é preservado. Essas hipóteses combinadas produziram uma trajetória parabólica para os projéteis. Galileu (1974, p. 223) sabia que em geral essas afirmações não eram provenientes da experiência. As conclusões abstratamente demonstradas são alteradas no concreto e são tão falsificadas que nem o movimento horizontal é igual, nem a aceleração natural ocorre exatamente na proporção pressuposta, nem a linha do projétil é parabólica - e assim por diante. Uma razão fundamental pela qual os movimentos reais em geral não correspondem aos descritos na teoria de Galileu é a existência de uma série de obstáculos de atrito ao movimento. Considerando-se apenas o obstáculo que o ar impõe aos movimentos em questão aqui, descobre-se que ele os perturba a todos numa infinitude de maneiras, segundo as infinitamente inúmeras maneiras que variam as formas, os pesos e as velocidades das coisas móveis. Devido a problemas desse tipo, as bases da teoria de Galileu só poderiam ser testadas em situações experimentais criadas espe- cialmente para isso. As mais famosas eram as experiências com planos inclinados. Galileu testou suas afirmações sobre a inércia e a queda livre rolando bolas de bronze "bem redondas e polidas" por um canal num cilindro que era o mais reto possível. Para restringir a fricção a um mínimo, "dentro do canal foi colado um A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 53 pedaço de pergaminho, o mais macio e limpo possível" (Galileu, 1974, p-169). Os movimentos que serviramcomoexemplificações e testes da teoria de Galileu não são do tipo que surge espontanea- mente. Por exemplo, uma importante seqüência de movimentos investigada por Galileu tratava de uma bola que descia um plano inclinado, era desviada para um plano horizontal e saía deste para uma queda livre (Drake, 1973). Foi necessário que Galileu criasse situações artificiais especialmente planejadas com o objetivo de testar sua teoria, reduzindo a um mínimo os efeitos indesejáveis. Ele introduziu uma série de técnicas para reduzir os obstáculos e para tratar dos que restavam, e desde então elas setornaram padrão da atividade experimental (Koertge, 1977). O quadro da ciência que melhor atende a teoria do movimento de Galileu pode ser resumido da maneira seguinte: as teorias e as leis científicas descrevem as tendências que têm os sistemas de comportar-se de determinadas maneiras. Nas situações físicas reais, essas tendências se combinarão de maneiras complexas, de modo que poucas regularidades aparecerão no nível dos eventos obser- váveis. Fazendo uma intervenção experimental, podemos tentar isolar e investigar as tendências individuais e discernir as leis que as regem. Pressupõe-se então que essas leis, cuja demonstração é comprovada aqui e ali por meio de intervenções experimentais, aplicam-se tanto ao mundo exterior quanto ao mundo interno das situações experimentais (Bhaskar, 1978). Essa é a solução que Galileu deu ao problema da generalização e que se tornou lugar- comum na física. E preciso impor algumas reservas ao caráter dessa "solução". Não existe nenhuma garantia a priori de que as leis identificadas na atividade experimental continuem a ser aplicadas fora das situações experimentais. O que se pode obter, pressupondo que isso aconteça, é algoque terá de seraprendido na prática. O sucesso que a física goza desde Galileu é suficiente para confundir o cético intransigente quanto a esse aspecto, e não pode ser superestimado. Embora a física tenha provado ser eficientíssima para tratar de situações tecnológicas maquinadas artificialmente, sua capacidade
  • 27. ALAN CHALMERS para tratar do mundo natural é limitada fora de determinados aspectos da astronomia. Isso é exemplificado pela notória feita de confiabilidade das previsões meteorológicas ou, mais grave, pela precariedade de nossas avaliações do impacto ambiental das inter- venções tecnológicas no mundo natural. Uma segunda ressalva necessária diz respeito à limitada ampli- tude que se pode dizer que Galileu tinha com relação à consciência das implicações de sua atividade experimental. Em minha interpre- tação, Galileu transformou a problemática meta da generalidade na ciência em uma forma que era viável em praticamente qualquer grau: "Identifique as generalidades em situações simples e, se necessário, artificialmente maquinadas, e pressuponha que essas generalidades continuem a aplicar-se a todas as situações, não importa sua complexidade". Desnecessário dizer que-Galileu não interpretou dessa maneira suas inovações. Ele continuou atraído pelo ideal euclidiano ou arquimediano e muitas vezes tentou apresentar sua teoria do movimento como derivada dos princípios evidentes, reivindicação que não poderia ser sustentada com plausibilidade e que era incompatível com sua experimentação (Wisan, 1978, p. 3-4). Deve-se acrescentar ainda uma terceira ressalva: o método de Galileu de dividir os experimentos certamente não resulta num método de estabelecer asgeneralidades com certeza.As implicações epistemológicas da experimentação de Galileu são discutidas no capítulo 5. 3.5 A substituição do desenvolvimento pek certeza Já vimos antes como,afísicade Galileu foi realmente um ponto de partida para a idéia de que a ciência deveria basear-se em verdades evidentes por si mesmas, ao passo que no capítulo 2 vimos como a física de Newton, da mesma forma, foi um ponto de partida para a concepção das leis científicas como verdades A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 55 fundamentais estabelecidas com certeza. Essas mudanças, que colocaram afísicaem seucaminho moderno, podem ser resumidas pela afirmaçãode que a ciência moderna substituiu a meta utópica pela certezamediante a exigência de um aperfeiçoamentoou desen- volvimento constante. Essa exigência de desenvolvimento implica que uma boa teoria deve nos contar alguma coisa que não sabíamos antes. O quanto uma teoria leva à boa previsão dos fenômenos qualitativamente novos torna-se especialmente significativo. (A ênfase no desenvolvimento e nas novas previsões é uma das características das filosofias da ciência de Popper e Lakatos.) A importância dos tipos de consideração mencionados acima aparece como significativa no conflito entre cartesianos e newto- nianos no final do século XVII e no início do século XVIII. Os newtonianos, com certa justificativa, argumentavam que a física cartesiana podia explicar apenas os fenômenos já conhecidos, e que mesmo isso só eraobtido por meio de mecanismos necessários criados artificialmente com essa finalidade. Assim, foram imagina- dos vórtices etéreos para explicar os movimentos conhecidos dos planetas; foram postuladas correntes de partículas em duas vias emitidas pelos ímãs e fluindo ou caindo em sorvedouros de duas vias em materiais magnéticos para explicar os fenômenos magné- ticos. Em compensação, os newtonianos diziam, mais uma vez justificadamente, até certo ponto, que a mecânica newtoniana não apenas explicava de maneira não-artificial os fenômenos conheci- dos, como os movimentos planetários, mas também podia prever fenômenos anteriormente desconhecidos, como a não-esfericidade da Terra, a maneira exata como varia a aceleração da gravidade em relação à distância do centro da Terra e, mais tarde, espetacular- mente, o retorno do cometa de Halley. O reconhecimento de que um dos méritos da teoria de Newton era a amplitude de novas descobertas que ela propiciava foi enfatizado, por exemplo, em 1728, em Uma visão da filosofia de sir haac Newton, obra em que H. Pemberton observava como ela "levou ao conhecimento de coisas tais que, antes de sua descoberta, qualquer um consideraria menos que loucura até mesmo a simples conjetura de que