Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 131 - O Mundo e a Crença
A teologia de lutero
1. A TEOLOGIA DE LUTERO - PARTE I
BASES DA FORMAÇÃO TEOLÓGICA
DE LUTERO.
Lutero foi sem dúvida o principal nome da Reforma (1483-1546).
Lutero iniciou seus estudos em Erfurt, em 1501. O acontecimento na
vida de Lutero que muito influênciou sua teologia, foi a sua entrada ao
mosteiro dos eremitas agostinianos em Erfurt a 17 de julho de 1505, a
qual se deu logo após a conclusão do estudo artístico com licentiatura
de magister (mestrado). Inicialmente Lutero vai sofrer a influência do
occamismo. Os “occamistas” de Efurt eram discípulos do último grande
occamista Gabriel biel em Tibingen, o qual naturalmente tinha sua
teologia de cunho próprio, e se encontravam em todos os casos com
isso indiretamente dentro da tradição occamista. E o próprio Occam,
um franciscano procedente da Inglaterra na primeira metade do século
XVI, se situa com toda a sua orientação novamente na tradição de toda
a escola dos franciscanos. Para esses, em todos os casos desde Duns
Scotus, Deus não é como para Tomás de Aquino e toda a sua escola o
ser supremo e inimaginável, mas sim a vontade onipotente. Sua
onipotência, liberdade e majestade absoluta é que perfazem o caráter
divino de Deus, e toda a teologia dos franciscanos é teologia da
soberania de Deus. Já a sua doutrina do conhecimento é determina a
partir daí. Deus não se torna cognoscível através da razão, com a qual
procuramos compreendê-lo, mas pela revelação, na qual ele se nos dá
livremente a conhecer. Salvação e bem-aventurança são concedidas
àqueles que Deus elegeu para isso através de uma aceitação, uma
acceptatio de Deus. No entanto os franciscanos não vêem apenas em
Deus a liberdade perfeita. Também o homem é um ente livre. Ele tem
todas as possibilidades de fazer o bem e de se fazer digno da aceitação.
A doutrina da salvação dos franciscanos, especialmente a occamista,
também conta com a liberdade humana e resulta num dramático
conflito entre liberdade de Deus e a liberdade do homem. Não é bem
2. claro de que maneira reage interiormente a pessoa que se deixa atingir
pessoalmente pelas sentenças teológicas occamistas. Occamismo
também foi muitas vezes sentido como um caminho bastante seguro
para ser aceito. Provavelmente Lutero quis trilhar esse caminho
seguro, afligido pelo seu estado presente, mas colocando suas
esperanças nas boas obras, através das quais ele haveria de se tornar
perfeito e digno da aceitação por parte de Deus. Em todos os casos, a
teologia occamista, na medida em que ela já influência o estudante de
Filosofia Lutero, deve ter sido por ele interpretada de modo incomum
para a esfera pessoal; e com isso já nos encontramos novamente no
campo da personalidade, - Por menos que possamos jamais enxergar
os detalhes, Lutero deve tido uma luta religiosa interior.
É evidente que como um sacerdote, Lutero iria receber uma formação
teológica de acordo com os princípios da sua ordem. Sobretudo a obra
de Gabriel Biel sobre o cânone da missa, ou seja as orações que
antecedem o sacrifício, Lutero que estudar a fundo. Mas um estudo
teológico propriamente dito não era uma condição para a ordenação ao
sacerdócio, e podia se seguir a essa. Assim se deu com Lutero. Estudar
teologia significava aprofundar-se num determinado número de obras
teológicas. Nós sabemos com bastante precisão quais foram as obras
que Lutero estudou e podemos supor que ele realmente as assimilou
em grande parte. Lutero era dono de uma brilhante memória; e para
uma época, em que o número dos livros a serem lidos era bastante
menor que hoje, podemos contar de um modo geral com um grau de
assimilação literal que hoje não mais conhecemos. Com certeza Lutero
estudou profundamente as seguintes obras teológicas: As sentenças de
Pedro Lombardo, e como comentários das mesmas o assim chamado
Colletaneum de Gabriel Biel e as Quaestiones de Guilherme de Occam
e as de um teólogo da época do Concílio de Constança, Pierre d’Ailli, e,
para a interpretação da escrita, a Glossa Ordinária (atribuída a
WalahfridStrabo, do nono século). Como a pesquisa católica fez
questão de salientar, estas são todas elas obras da escolástica posterior,
nominalista, exceto naturalmente o comentário bíblico mencionado
por último e as Sentenças do bispo parisiense Pedro, chamado o
Lombardo, as quais foram escritas já no século XII, antes do
surgimento dos grandes sistemas escolásticos. Mas ao que tudo indica,
as Sentenças, usadas em toda parte, já havia séculos, como livro de
doutrina dogmática, se tornaram conhecidas e familiares a Lutero
dentro da interpretação nominalista. Mesmo assim dificilmente se
poderá sustentar a tese católica de que Lutero não teria conhecido de
maneira alguma o catolicismo clássico da Alta Escolástica, mas sim
uma distorção que dificilmente ainda era católica, ou seja o
nominalismo. Por um lado, até hoje o nominalismo ainda não foi
condenado por mais prioridade que se dê a Tomás de Aquino; por
3. outro mesmo não havendo certeza se Lutero então já pode estudar a
“SummaTheologiae” de Tomás de Aquino, ele ao menos chegou a
conhecer a Tomás, Duns e Alexandre de Hales, e hoje está se
evidenciando que o personagem mais recente do nominalismo,
representado por Gabriel Biel em Tubigen (1495). Talvez já teria
assumido novamente uma coloração tomista. O conhecimento da
escolástica por parte de Lutero não foi nem permaneceu unilateral. Ao
estudo de livros se acrescentava a obrigação de ouvir preleções na
universidade e no estudo geral da ordem do mosteiro. Nas preleções
eram novamente lidos livros, intercalando-se ocasionalmente
explicações. Havia ainda uma tarefa que se atribuía ou podia ser
atribuída ao estudante de teologia. Se ele tinha concluído bem o seu
estudo artístico, ele era graduado, ou seja, ele se tornava bacharel e
depois Magister artium. Com isso, porém, ele tinha o direito de ensinar
nos estudos artísticos. Numa faculdade ele ensinava, noutra ele
estudava. Desse direito Lutero fez uso durante seus anos no convento.
Sim, até aconteceu que a ordem simplesmente o transferiu para
Wittenberg. Ali havia uma universidade recentemente fundada, na qual
a ordem tinha que preencher várias cadeiras. Em 1508 o jovem Lutero
teve que assumir uma cadeira de filosofia moral na idade de 25 anos, se
bem que por um tempo relativamente curto. Alí ele teve que dar
preleções sobre a Ética Nicomaquiana de Aristóteles.
A INFLUÊNCIA DE AGOSTINHO NA TEOLOGIA DE LUTERO
Lutero apoiou-se muito em Agostinho. Em seus primeiros anos, como
regra geral, identificava sua posição com a de Agostinho. Foi o
ensinamento agostiniano de pecado e graça que Lutero deseja manter
em oposição à doutrina da escolástica sobre justificação. Isso também
foi decisivo no que tange à relação entre Lutero e o ocamismo.
A doutrina da predestinação impregnava fortemente os temores de
Lutero no convento. Lutero sabia haver pessoas que, em virtude de
imperscrutável decisão de Deus, estavam pre-determinadas para a
bem-aventurança, e outras para a condenação. Lutero sentiu de modo
angustiante, temporariamente até medo arrasador, que ele poderia
estar entre os condenados. O medo de Lutero era medo da
predestinação. Aquilo que ele observava e sentia em si mesmo ele
acreditava ser um sinal de que ele estaria condenado. “Horrível medo
me assaltou, ao desespero me levou, lançando-me ao inferno” – essas
palavras de seu hino composto muito mais tarde (possivelmente me
1523; “Cristãos, vós todos jubilai”) se referem a sua terrível experiência
da época do convento. É impossível dar uma explicação resumida e
conclusiva que esclarecesse tudo nessa catástrofe interior de Lutero. É
de Agostinho que a igreja recebeu a doutrina da predestinação efetuada
4. por aquele Deus que através de soberana decisão divino concede a uns
a graça irresistível, destinando-os à bem aventurança, enquanto que
deixa os outros a sós, à mercê da perdição. O medo da predestinação de
saída faz pensar em influência de Agostinho. – Apesar dessas
explicações que de modo algum explicam tudo, mas apenas conseguem
esclarecer certos contextos, é difícil chegar a resultados claros, uma vez
que não se consegue localizar a época em que Lutero começou a ter
esses temores, tampouco quando ele começou a se profundar em
Agostinho. Observações da mão de Lutero à margem de textos de
Agostinho nós possuímos do ano 1509. Mas isso não ajuda muito. Nós
precisamos nos contentar com a constatação de que o Occamismo e
Agostinho também desempenharam um papel muito importante não
só na formação do monge Lutero, como na formação do Lutero teólogo.
Como é sabido Agostinho foi fortemente fecundado pelo neo
platonismo, e sua teologia é um dos portões de entrada do pensamento
neoplatônico no pensamento cristão. Esquemas de pensamento como
mundo superior e inferior, eterno e terreno em Lutero provêm de
Agostinho ou mesmo do neo-platonismo. Seja qual for a validade da
tese do elemento neoplatônico-agostiniano na primeira preleção sobre
os Salmos, em todos os casos é necessário perguntar se a teologia de
Agostinho prestou serviços de obstreta em seu renascimento. Esse
certamente foi o caso. Como occamista, Lutero cresceu numa
concepção do mundo que deduz tudo da vontade e juízo de deus, tanto
o pecado do homem como também a graça que lhe é concedida. Pecado
significa em primeiro lugar que Deus está irado com uma pessoa, e
graça, que deus lhe proporciona sua bondade misericordiosa ou que
aceita suas boas obras. Bom e mau não são qualidades do homem, mas
conceitos que Deus dá sobre a pessoa. Aquilo que a pessoa é, ele é pelo
juízo de que Deus dela faz. Para a conceituação sobre o homem pecador
isso podia tornar-se perigoso. O homem que é repudiado perante Deus
talvez pode, desconsiderando-se uma vez esse julgamento de Deus, ser
moralmente muito valioso e bem sucedido, só que ele não pode
alcançar totalmente benevolência desse Deus enigmático. Também é
nisso que resulta a doutrina occamista sobre o homem: O homem faz
aquilo que está dentro de si. Desenvolve todas as suas boas
potencialidades; aproveite a graça – e então Deus também haverá de
modificar seu conceito e lhe concederá sua benevolência. Em
contraposição à concepção occamista do homem pecado, Lutero
desenvolveu uma antropologia própria e bem diferente. Ele tem uma
concepção bem inoccamista do pecado. Pecado não é apenas um
conceito atribuído por Deus, mas uma corrupção muito profunda, um
dano terrível. Esse fato do ser o pecado algo tão terrível, um
acorrentamento ao egoísmo, Lutero experimentou no convento. Mas
ele podia ter aprendido de Agostinho .
5. ASPECTOS GERAIS DA TEOLOGIA DE LUTERO
De que maneira devemos compreender Lutero como teólogo? O corpus
luterano contém muitos gêneros diferentes de escritos: comentários,
catecismos, tratatados polêmicos, controvérsias, hinos, sermões, cartas
pessoais, a Conversa de Mesa, etc. Em nenhum deles, entretanto, há
algo que remotamente se assemelhe a uma teologia sistemática.
Mesmo a Confissão de Augsburgo, pela qual Lutero foi apenas
parcialmente responsável, fornece afirmações teológicas específicas,
não um sistema doutrinário completo. Os escritos de Lutero são
invariavelmente contextuais, ad hoc, dirigidos a situações particulares,
com metas definidas em mente. Isso não significa que a teologia de
Lutero era casual, nem que não havia temas gerais e padrões em seu
pensamento. Entretanto, devemos deixar os temas emergirem das
próprias preocupações primordialmente pastorais de Lutero, em vez de
impor nossa estrutura sobre ele. Para fazer isso, será bastante útil
examinar o enfoque teológico básico de Lutero. O qual podemos
descrever sob o aspecto de três características constantes. A teologia
de Lutero era ao mesmo tempo bíblica, existencial e
dialética.
Lutero era um teólogo essencialmente bíblico. Isso pode significar
simplesmente que ele era um professor de exegese, sobretudo do
Antigo Testamento, na Universidade de Wittenberg. Em termos mais
amplos, contudo, isso significa uma ruptura radical com o currículo
padrão da teologia escolástica e uma reorientação da teologia ao texto
bíblico.
Lutero instrui-se completamente na tradição nominalista da
baixa Idade Média. Em certos tópicos, tais como a questão dos
universais, Lutero continuou sendo um expoente da via moderna,
mesmo após seu aparecimento como reformador. Entretanto, bem
cedo em sua carreira, quando ainda um Sententarius, Lutero revelou
um profundo ceticismo acerca do valor da atividade teológica: “A
teologia é céu, sim, mesmo o reino dos céus; o homem, entretanto, é
terra, e suas especulações são fumaça”. A percepção de Lutero com
respeito ao abismo intransponível entre a teologia e as “especulações”
humanas intensificou-se à medida que ele mergulhava mais
profundamente nos textos bíblicos. A partir de 1515, ele se referiu aos
nominalistas com “teólogos-porcos”. Em setembro de 1517,
aproximadamente dois meses antes da explosão da controvérsia das
indulgências, Lutero resumiu seu ataque contra a teologia escolástica
num disparo contra Aristóteles:
6. É um erro dizer que homem não pode tornar-se teólogo sem
Aristóteles. A verdade é que não pode tornar-se teólogo sem se livrar de
Aristóteles. Em resumo, comparado com o estudo da teologia, o todo
de Aristóteles é como a escuridão para a luz.
Lutero não tinha nada contra Aristóteles em si. O que ele rejeitava era
todo o esforço da teologia escolástica de fazer da filosofia Aristótelica a
pressuposição da doutrina cristã, de interpretar a revelação bíblica
relativamente à “sofística” pagã,de reduzir os grandes temas das
Escrituras – graça, fé, Justificação – à algaravia escolástica. No espírito
de Tertuliano, Lutero perguntava o que Jerusalém tinha a ver com
Atenas, a igreja com a academia, a fé com a razão.
Para lutero Lutero, no campo da verdadeira teologia, a razão
funcionava apenas expost facto, ou seja, como princípio ordenador pelo
qual a revelação bíblica era claramente apresentada. A razão
iluminada, a razão incorporada ã fé, poderia assim “servir a fé ao
pensar sobre alguma coisa”, porque a razão informada pelo Espírito
Santo “extrai todos os seus pensamentos da Palavra”. Isso deve ser
firmemente lembrado quando ouvimos a famosa declaração de Lutero
em Worms: “A menos que seja condenado pelas Escrituras e pela razão
simples, não posso e não irei me retratar”. A razão não era uma fonte
independente de autoridade paralela às Escrituras – sua consciência
ainda estava “cativa à Palavra de Deus”- mas meramente a inferência
necessária das próprias Escrituras. Lutero não depreciava a
racionalidade humana; ele até mesmo conferiu à razão redimida uma
tarefa funcional no trabalho da teologia. O que ele realmente rejeitou
como teólogo bíblico foi a arrogância da razão, que, na teologia
escolástica, tirou a primazia da revelação.
Quando chamamos Lutero de teólogo existencialista, queremos dizer
que, para ele, o interesse por Deus era uma questão de vida ou morte ,
envolvendo não apenas o intelecto de um homem, mas sua existência
como um todo. Para Lutero a teologia era sempre intensamente
pessoal, experiencial e relacional.