Texto aula 9 moura a brincadeira como encontro de todas as artes
Teatro na educação: aprendendo a ver o mundo sob novas perspectivas
1. ISSN 1982 - 0283
Linguagem teatral e práticas
pedagógicas
Ano XX boletim 04 - Maio 2010
Secretaria Ministério da
de Educação a Distância Educação
2. SUMÁRIO
Linguagem teatral e práticas pedagógicas
Apresentação da série ........................................................................................................... 3
Rosa Helena Mendonça
Proposta da série
O espelho do mundo: teatro-educação e a criação de novos olhares para a vida ........................... 4
Francis Wilker
Texto 1 – Os sentidos do teatro
Teatro em cena ....................................................................................................................... 12
Rita de Almeida Castro
Texto 2 – A linguagem cênica
Percorrendo o fazer teatral: um caminho para a compreensão da linguagem cênica e sua prática
pedagógica ............................................................................................................................. 20
Paulina Maria Caon
Texto 3 – Aprender e ensinar teatro
Diretor de Teatro ou Arte-Educador? Dilemas de um artista na educação através da arte ........... 27
Henrique Fontes
3. Linguagem teatral e práticas pedagógicas
APRESENTAÇÃO DA SÉRIE
Viver várias vidas, transitar por diversos intercambiáveis), o teatro, integrado ao cur-
lugares, habitar diferentes tempos. Ousar, rículo, possibilita diferentes aprendizagens.
radicalizar, transgredir, sonhar, inventar, su-
A série Linguagens teatrais e práticas pedagó-
perar o sofrimento, ser feliz para sempre...
gicas, que o programa Salto para o Futuro,
Como na canção de Chico Buarque e Edu
da TV Escola (MEC) apresenta, conta com a
Lobo, entender que Para sempre é sempre por
1 consultoria de Francis Wilker (Faculdade de
um triz !
Artes Dulcina de Moraes; Teatro do Concre-
Desde tempos imemoriais, o ser huma- to). O objetivo é possibilitar a professores e
no busca decifrar os mistérios do mundo, professoras uma reflexão sobre os sentidos
compreender a transitoriedade da vida... E do teatro, a linguagem cênica e os diferen-
no campo infinito da imaginação, a arte do tes modos de aprender e ensinar teatro.
3
teatro possibilita trascender: ser o que não
Para tanto, os textos desta publicação pro-
somos ou o que gostaríamos de ser (ou não
blematizam as relações entre o teatro e a
ser), exorcizar o que nos horroriza, materia-
educação e, nos programas televisivos, são
lizar os nossos desejos.
apresentadas reportagens e entrevistas com
Aprendemos com o teatro a refletir sobre a profissionais de diferentes formações que
complexidade das relações humanas, com o atuam na criação teatral e como arte-edu-
teatro, portanto, nos educamos. cadores.
Embora a relação entre educação e teatro Esperamos, assim, contribuir para o desen-
exceda os limites da escola, a instituição es- volvimento das artes cênicas nas escolas e,
colar é um importante agente de aproxima- consequentemente, para a formação de pla-
ção das novas gerações com o universo das teias críticas e reflexivas.
artes cênicas.
Boas leituras e bons espetáculos!
Seja na condição de espectador ou na de
criador (ressaltando que esses dois papéis são Rosa Helena Mendonça1
1 Beatriz – O grande circo místico (1983).
2 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV ESCOLA (MEC).
4. PROPOSTA DA SÉRIE
Linguagem teatral e práticas pedagógicas
O ESPELHO DO MUNDO: TEATRO-EDUCAÇÃO E A CRIAÇÃO DE NOVOS
OLHARES PARA A VIDA
Francis Wilker1
A proposta da série Linguagem teatral e prá- te o carnaval. Além desses exemplos, talvez
ticas pedagógicas é criar um espaço de diálo- um mais simples ajude a perceber essa ca-
go e reflexão sobre o papel da arte, especial- racterística natural do ser humano em jogar
mente do teatro, na formação das pessoas e representar. Quem nunca viu uma criança
e sua relação com a escola. Para explorar brincar de assumir papéis e maneiras de agir
o tema, o programa terá três eixos nortea- de pai ou mãe, de bombeiro, de animais?
dores: os sentidos do teatro; a linguagem
cênica e, finalmente, aprender e ensinar “Desde a infância os homens têm, inscri-
teatro. Um percurso que convida professo- ta em sua natureza, ao mesmo tempo,
res e arte-educadores a se aventurarem no uma tendência a representar [...] e uma 4
mundo mágico de possibilidades que o te- tendência a sentir prazer com as repre-
atro oferece e ampliar seus conhecimentos sentações.” (Aristóteles, apud Guénoun,
sobre essa linguagem artística abrangente, 2004, p. 18).
inclusiva e que tem uma maneira única e es-
pecial de nos afetar. As crianças, sem perderem a referência de
que são elas mesmas, “brincam” “de serem
outras”. Nós nascemos com essa tendên-
Quem já teve oportunidade de assistir a uma
cia à representação e ao jogo, assim como
peça de teatro certamente reconheceu em
gostamos de ouvir as histórias contadas por
algum personagem características suas ou
nossos avós, narrativas que movimentam
de algum conhecido. Quem não teve essa
nossos sentimentos, imagens e emoções.
oportunidade, pôde ver gente grande brin-
Mas, de onde vem esse prazer? Aristóteles
cando de ser boi nos festejos do “Bumba-
argumenta que gostamos de ver imagens
meu-boi”, ou ser rainha no “Maracatu”, ou
porque nos fazem raciocinar, teorizar, pro-
ainda viu alguém se vestir de “outro” duran-
1 Coordenador do Curso de Artes Cênicas da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes. Diretor da Cia. Teatro do
Concreto. Consultor da série.
5. curar significados e generalizar esses apren- radas para as mesmas questões, revendo
dizados para outras situações e contextos; e recriando possibilidades para sua exis-
ao olhá-las, nós aprendemos a conhecer tência (ibidem, p. 32).
(Aristóteles, apud Guénoun, 2004).
O teatro é como um grande “espelho” onde
Observamos, dessa forma, que a atitude do podemos nos ver, nos reconhecer, nos ima-
espectador frente à obra teatral é ativa. É ginar e, certamente, propor a nós mesmos
nesse movimento contínuo, que busca re- mudanças para sermos e agirmos de outra
conhecer, decodificar e interpretar os signos maneira, como bem nos lembra o teatrólo-
2
presentes na cena, que a narrativa assistida go Augusto Boal :
encontra sentido e se relaciona com a expe-
riência pessoal de cada espectador. Embora O teatro nasce quando o ser humano
o teatro seja um ato coletivo, um momento descobre que pode observar-se a si mes-
único de comunhão entre atores e público, a mo: ver-se em ação. Descobre que pode
experiência e o significado desse ato tomam ver-se no ato de ver – ver-se em situação.
um sentido individual para cada pessoa que Ao ver-se, percebe o que é, descobre o
o assiste, pois as relações criadas entre o que não é, e imagina onde pode ir. Cria-
universo da cena e o universo subjetivo do se uma tríade: EU observador, EU em si- 5
espectador são muito amplas e intransferí- tuação, e o Não-EU, isto é, o OUTRO. (...)
veis, criando uma rede que se tece entre os Esta é a essência do teatro: o ser huma-
signos do espetáculo e as emoções, imagens no que se auto-observa (BOAL, 2000, p.X).
e histórias vividas pelo apreciador.
Compreendemos, dessa forma, que a arte
Ao rever os fatos de sua história, no ato
– e, mais especificamente, o teatro – pos-
de análise da obra, o espectador, além de
sui uma forma específica e contundente de
refletir sobre os acontecimentos da cena,
nos proporcionar o acesso ao conhecimen-
formula pensamentos críticos acerca
to por meio da experiência estética, palavra
de sua própria trajetória, detendo-se
de origem grega – aesthesis – que significa
de maneira distinta, renovada, ante as
“conhecimento sensorial, sensibilidade, co-
suas experiências pessoais, estando em
nhecer pelos sentidos” (CHAUÍ, 2002). Essa
condições de produzir respostas inespe-
experiência ocorre para quem cria a obra
2 Augusto Boal (Rio de Janeiro, 1931-2009) foi diretor, autor e teórico de teatro. Principal liderança do Teatro
de Arena de São Paulo nos anos 60 e criador do Teatro do Oprimido, metodologia internacionalmente conhecida
que alia teatro à ação social - hoje aplicada em mais de 70 países por centenas de grupo em áreas diversas como
Educação, Pedagogia, Saúde, Trabalhos Socioculturais e Políticos, dentre outros.
6. de arte e também para quem aprecia essa a partir da experiência pessoal, construir di-
criação, ou seja, para os atores, diretores, versas significações acerca do mundo e de
técnicos e todos os envolvidos no processo nós mesmos, ou seja, altera pontos de vista
autoral e também, porém de forma diferen- e ajuda a construir nossos próprios discur-
ciada, para os espectadores. É nesse contato sos sobre a realidade.
com o espetáculo teatral que ampliamos e
ressignificamos o nosso olhar sobre o mun-
COMO SE DÁ A RELAÇÃO ENTRE
do e somos capazes de perceber a nossa
EDUCAÇÃO E TEATRO?
própria individualidade, de nos reconhecer
(VIGANÓ, 2006). A esse respeito, segundo Ricardo Japiassu,
“(...) constata-se que o ensino das artes, na
A arte é defendida (...) como um cami- educação escolar brasileira, segue concebi-
nho para o desenvolvimento humano e do por muitos professores, funcionários de
social. Sua qualidade de despertar o con- escolas, pais de alunos e estudantes como
tato sensível com as coisas do mundo e supérfluo, caracterizado quase sempre como
sua característica de reflexão profunda lazer, recreação ou ‘luxo’– apenas permitido
e reinvenção das experiências humanas a crianças e adolescentes das classes econo-
faz com que a vivência artística seja micamente mais favorecidas” (2001, p.17). 6
vista e apreciada como um caminho al- Apresenta-se, dessa forma, a síntese de um
ternativo para a formação de crianças, preconceito de ordem social que impera nas
jovens e adultos” (VIGANÓ, 2006, p.15). várias dimensões da arte, seja no ensino, na
produção ou no acesso aos bens culturais e
Esse aprendizado ocorre de forma mais artísticos: a ideia de que arte é assunto de
ampla para aqueles que possuem o enten- gente rica. Diante dessa premissa, observa-
dimento das especificidades das linguagens se uma atitude dominante sobre a arte: têm
artísticas, sendo capazes de “desvendar” acesso a ela e a seus meios aqueles que po-
cada escolha estética presente na obra, ou dem comprá-la.
seja, indo além da sensação provocada pela
obra ou simplesmente do reconhecimento É claro que essa constatação não se refle-
do tema abordado pela mesma. Para ou- te apenas nas escolas, ela é a imagem da
tros, a leitura da obra de arte pode atingir própria relação do Estado brasileiro com a
um campo de conhecimento mais aparente, cultura. Segundo dados do Instituto de Pes-
relacionado ao tema ressaltado em primei- quisa Econômica Aplicada (IPEA), divulgados
ra instância. O importante é perceber que o em dezembro de 2009, das 5.564 cidades bra-
contato com a obra de arte nos possibilita, sileiras, 2.953, ou seja, 53% delas, não têm
7. instituição que ofereça atividades de cultura a aprenderem um conteúdo de Biologia,
e diversão com recursos públicos. Em rela- Química, História, entre outras disciplinas,
ção ao teatro, apenas 16% dos municípios ou também em organizações religiosas, em
brasileiros têm espaços para espetáculos. que o teatro é apenas um meio para se pas-
sar uma mensagem sobre uso de drogas ou
Esses dados se configuram como um desa- alguma passagem religiosa. Há, ainda, em-
fio para governos e também para as escolas presas que utilizam o teatro como meio de
que formam grande parte de nossas crian- repassar informações aos seus funcionários
ças e jovens. Se do lado de fora dos muros da como, por exemplo, montando pequenas ce-
escola não existem equipamentos culturais nas que falem sobre saúde e segurança no
apropriados como cinema, teatro, galerias trabalho.
e muitas vezes até biblioteca, como profes-
sores podem dar à arte e à cultura o relevo Nessas perspectivas de trabalho com o te-
necessário para uma boa formação de seus atro, o que está em jogo é o conteúdo, ou
estudantes? Se mesmo diante de todas as seja, a informação que se deseja repassar e
precariedades que possam circundar o coti- ajudar o público a fixar. O teatro, enquanto
diano da escola, ela não se estabelecer como linguagem, fica colocado em segundo plano.
um espaço que valoriza e oportuniza o fazer O intuito aqui não é fazer um julgamento 7
e o apreciar teatro, dificilmente o estudante desse uso do teatro, porém, assegurar um
egresso terá esse acesso fora da escola. espaço de reflexão e informação que permi-
ta compreender o teatro como arte e como
Além desse ponto de vista macro, há outro uma área do conhecimento com conteúdos
que também mostra um pouco da relação próprios constituintes de sua linguagem.
desafiadora da escola com o teatro. Muitos
de nós conhecemos o teatro na escola numa
Em 1970, a artista plástica Fayga Ostrower
abordagem pedagógica classificada de ins-
(1920-2001) realizou, a convite da Encaderna-
trumental “é pensado exclusivamente como
dora Primor S/A, um curso de artes para os
um meio eficaz para alcançar conteúdos dis-
seus operários. Essa foi uma experiência in-
ciplinares extrateatrais ou objetivos pedagó-
quietante e reveladora para a artista. Sobre
gicos muito amplos como, por exemplo, o
a importância de introduzir os operários na
desenvolvimento da ‘criatividade’” (JAPIAS-
linguagem visual, Fayga afirmaria:
SU, 2001, p.23). Essa prática é ainda bastante
recorrente nas escolas brasileiras, quando
(...) As obras de arte também contêm
o teatro é utilizado como uma ferramenta,
significados psicológicos, sociológicos,
um instrumento para ajudar os estudantes
históricos, filosóficos, sociais, às vezes
8. políticos, mas, sem se levar em conside- Esse mergulho no jogo da linguagem te-
ração o fator de linguagem como fator atral provoca o espectador a perceber,
prioritário, perde-se justamente a qua- decodificar e interpretar de maneira
lidade de arte nessas obras, os significa- pessoal os variados signos que compõem
dos artísticos que ampliam nossa sensi- o discurso cênico. O mergulho na corren-
bilidade e nosso ser consciente diante do te viva da linguagem acende também a
mundo. (OSTROWER. 2004, prefácio). vontade de lançar um olhar interpretati-
vo para a vida, exercitando a capacidade
Observamos no exemplo acima que ensinar de compreendê-la de maneira própria.
arte significa, além de desvendar os conteú- Podemos conceber, assim, que a tomada
dos diversificados na obra, ser capaz de se de consciência se efetiva como leitura de
apropriar dos elementos dessa linguagem mundo. Apropriar-se da linguagem é ga-
artística, de suas especificidades, de seus nhar condições para essa leitura.
processos de criação e das relações que (DESGRANGES, 2006, p.23).
propõem com o espectador. Se entender-
mos que a valorização da cultura, da arte Afinal, o que há no teatro que o torna tão in-
e a oportunidade de fazer e apreciar teatro teressante para se ensinar? O que existe nes-
na escola se configuram como princípios e sa linguagem que a faz capaz de sensibilizar 8
práticas para a efetivação de uma educação outras pessoas? Quais seus elementos cons-
mais rica para o cidadão brasileiro, devemos tituintes? Como promover um ensino de tea-
nos deter sobre como promover na escola tro em que o acesso à linguagem cênica seja
experiências com o teatro que possam ul- o conteúdo principal? Quais as competên-
trapassar a exploração de um tema ou de cias que estudantes desenvolvem por meio
um conteúdo, e contribuir, de fato, para que da vivência teatral? Quais as referências na
essa ação seja uma iniciação significativa na produção teatral brasileira contemporânea?
linguagem cênica e na apreciação da arte. Essas são só algumas das questões que essa
Ao mediar a leitura da apresentação teatral série do Salto para o Futuro irá investigar.
como leitura também de uma obra de arte,
se estará promovendo junto aos estudantes Acreditamos que criar uma relação diferen-
uma educação da sensibilidade. ciada com a arte na escola e buscar promo-
ver um ensino de teatro qualificado, que
A experiência teatral desafia o especta- instaure espaços de reflexão crítica e de
dor a, deparando-se com a linguagem apropriação da linguagem, contribui sobre-
própria a esta arte, elaborar os diversos maneira para a formação da consciência e
signos presentes em uma encenação. para a mudança de posturas e apreensão de
9. novas formas de ser e agir consigo mesmo, propiciar ao professor o acesso a informa-
com o outro e com o mundo, objetivos es- ções que possam ampliar sua visão e sua re-
senciais de um processo educativo. lação com essa arte viva, que só se realiza
no encontro sagrado e efêmero entre atores
É esse o convite da série Linguagem teatral
e público!
e práticas pedagógicas, uma reflexão crítica
sobre o papel do teatro na escola, que visa
TEXTOS DA SÉRIE LINGUAGEM TEATRAL E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS3
A série Linguagem teatral e práticas pedagógicas visa criar um espaço de diálogo e de reflexão
sobre o papel da arte, especialmente do teatro, na formação das pessoas, e sua relação com a
escola. Para explorar o tema, a série terá três eixos norteadores: os sentidos do teatro; a lin-
guagem cênica e, finalmente, aprender e ensinar teatro. Estes eixos são abordados em textos
elaborados especialmente para a série.
TEXTO 1 - OS SENTIDOS DO TEATRO
9
O primeiro texto da série propõe uma reflexão sobre a necessidade e o sentido do teatro. Como
essa arte que nasceu ligada a antigos rituais perdura até os dias atuais? Qual a dimensão social
e política do fazer teatral? Quais os marcos mais importantes no desenvolvimento do teatro
brasileiro? A pesquisadora Rita Castro explora o nascimento do teatro ligado ao rito e também
a relação entre ator e espectador – um encontro efêmero e vivo que se coloca como condição
fundante da arte teatral. Além disso, o texto nos oferece um breve retrato histórico de momen-
tos do teatro brasileiro e, por último, foca o trabalho do ator, esse ser capaz de, sem deixar
de ser ele mesmo, dar vida a tantas outras ‘personas’. O trabalho do ator é investigado sob o
prisma do treinamento continuado, da busca de uma técnica que lhe permita liberdade criati-
va e a condição de encontrar estados e formas que ultrapassem o que o cotidiano e a própria
cultura de massa já oferecem. Busca-se também refletir sobre a história e o sentido do teatro
na sociedade e sua importância na formação do sujeito e, consequentemente, a sua relação
com a educação.
3 Estes textos são complementares à série Linguagem teatral e práticas pedagógicas, com veiculação no
programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) de 10 a 14 de maio de 2010.
10. TEXTO 2 – A LINGUAGEM CÊNICA
O texto da pesquisadora Paulina Maria Caon convida educadores e educadoras a conhecerem
um pouco mais sobre os elementos essenciais da linguagem teatral (ator-texto-espectador)
e aponta reflexões que ajudam a pensar a prática do ensino de teatro nas escolas. Um texto
repleto de exemplos práticos, de referências a grupos de teatro contemporâneos, o que torna
bem acessível o entendimento dos conceitos trabalhados. Além disso, a autora faz considera-
ções sobre o ensino de teatro como um aprendizado que reflete na nossa capacidade de criar
novas leituras para o mundo.
TEXTO 3 – APRENDER E ENSINAR TEATRO
Este texto busca criar uma relação entre as estratégias e metodologias para ensinar teatro e as
competências, atitudes e habilidades que podem ser desenvolvidas em experiências de fazer e
apreciar teatro. Um diálogo entre princípios, planejamento de ensino e os resultados das ex-
periências concretas no ensino formal e informal. É apresentado o relato de uma experiência
desenvolvida por educadores do projeto ArteAção na ONG Casa da Ribeira, em Natal (RN).
10
Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais para o quarto programa, com entrevistas que refletem so-
bre esta temática (Outros olhares sobre Linguagem teatral e práticas pedagógicas) e para as discus-
sões do quinto e último programa da série (Linguagem teatral e práticas pedagógicas em debate).
O próximo espetáculo quem faz é você, professor, criando e inovando nas salas de aula e palcos
das escolas brasileiras!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, Ana Mae. Tópicos Utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.
BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
CARVALHO, Francis Wilker de. De quem é o palco? Festival de Teatro na Escola um processo de trans-
gressão. Universidade de Brasília: Departamento de Artes Cênicas. Brasília, 2003.
11. DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec: Edições
Mandacaru, 2006.
GUÉNOUN, Denis. O teatro é necessário? Tradução Fátima Saadi. São Paulo: Perspectiva, 2004.
OSTROWER, Fayga. Universos da Arte. Ed. Comemorativa. 24ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
VIGANÓ, Suzana Schmidt. As regras do jogo: a ação sociocultural em teatro e o ideal democrático.
São Paulo: Hucitec/Edições Mandacaru, 2006.
11
12. TEXTO 1
Os sentidos do teatro
TEATRO EM CENA
Rita de Almeida Castro1
O espaço teatral não apareceu com os gre- de lidar com esse corpo em cena têm sido
gos do século V a.C., mas muito antes. diversamente trabalhadas, de acordo com o
Como afirma Richard Schechner (1994), os contexto em que ele está inserido.
primeiros teatros eram centros cerimoniais
— faziam parte de um sistema de caça, eram Vale lembrar que a centralidade da presença
sazonais, havia o encontro entre grupos hu- cênica do ator é considerada indispensável
manos, uma celebração e a marca da cele- à caracterização do teatro desde Aristóteles.
bração por alguma forma de escritura no Trata-se, segundo o filósofo, de um dos fato-
espaço. Em outras palavras, pessoas iam até res que diferenciam a tragédia da epopeia —
12
um local especial, faziam alguma coisa que arte que recorre ao verbo sem a presença de
poderia ser chamada de teatro, ou dança e atores. Remonta à própria origem do teatro,
música, porque os três gêneros são sempre portanto, à relação instaurada entre ator e
representados juntos em tais situações, e espectador pela presença orgânica e viva de
depois seguiam seus caminhos. ambos.
Tanto nesses rituais como nos palcos tea- Essa relação parece cada vez mais neces-
trais em que se apresenta no século XXI, o sária para que o homem não se imobilize
ser humano vem criando formas diferentes com o conforto hoje oferecido pelo avanço
de comunicação, seja entre homens e deu- tecnológico, que produz um mundo virtual
ses ou dos homens entre si. Há algo caracte- e digitalizado. De fato, nessa era, marcada
rístico nesse processo que liga a experiência pela gigantesca influência da tecnologia da
grega clássica ao universo contemporâneo: informação, plena de saberes e fazeres mi-
a presença dos atores em cena. As formas diatizados e fragmentados, o teatro assume
1 Diretora, atriz e antropóloga. Doutora em Antropologia pela USP. Professora no Departamento de Artes
Cênicas do Instituto de Artes da UnB. Coordena o Grupo de Pesquisa Poéticas do Corpo: do treinamento à cena e
dirige o Grupo Teatro do Instante.
13. a condição de lócus de resistência ao fenô- Ao longo do século XVIII surgiram no Brasil
meno corrente de massificação cultural, vários teatros, construídos nos moldes euro-
mantendo-se como espaço de troca tradicio- peus e surgiram as primeiras companhias de
nal, um espaço possível para o encontro ao atores. O repertório dramatúrgico era predo-
vivo entre as pessoas. E na atualização desse minantemente europeu. Mas segundo Cac-
encontro está o seu poder de comunicação. ciaglia (1986), foi encenada em Recife, em
1780, a comédia em versos, Amor mal corres-
Fazendo uma breve reflexão sobre algumas pondido, do pernambucano Luís Alves Pinto
referências para se pensar o teatro brasilei- (1719-1789), que parece ter sido a primeira
ro, não podemos desconsiderar a extensa peça encenada de um dramaturgo brasileiro.
população indígena que aqui vivia, anterior à
chegada dos portugueses, temos aí um vasto No século XIX, no período imperial, vários au-
campo a ser aprofundado referente às mani- tores lutaram pela criação e pelo desenvol-
festações rituais de distintas etnias. No sécu- vimento de uma cena brasileira, tais como
lo XVI, junto com a colonização portuguesa Martins Pena (1815-1848), Gonçalves de Ma-
veio para o Brasil o hábito das representa- galhães (1811-1882), Gonçalves Dias (1823-
ções teatrais, sendo Anchieta (1534-1597) o 1864), José de Alencar (1829-1877), Joaquim
mais significativo evangelizador dos povos Manuel de Macedo (1820-1882), Joaquim 13
indígenas, que utilizava o teatro como ins- José da França Junior (1838-1890) e Artur
trumento de catequese e filiava-se à tradição Azevedo (1855-1908), entre outros. A pes-
religiosa medieval. Segundo Sábato Magaldi quisadora Cláudia Braga ressalta que, para
(1997), cenas eram representadas em portu- alguns desses autores, “a construção do tea-
guês, outras em castelhano e ainda muitos tro brasileiro passava pela adaptação popu-
diálogos eram realizados em tupi. Havia um lar e aclimatada dos modelos dramatúrgicos
caráter festivo nas representações jesuíticas, europeus, em especial os franceses” (2003,
realizadas em datas comemorativas, que p. 7). Também o ator carioca João Caetano
mobilizavam toda a população das aldeias. dos Santos (1808-1863), considerado um dos
maiores artistas de sua época, tinha seu re-
Durante o século XVII, segundo Mario Cac- pertório composto basicamente por peças
ciaglia (1986), continuou a produção teatral europeias, adaptadas aos costumes brasilei-
dos jesuítas, entre eles o padre Antônio Viei- ros. Segundo Décio de Almeida Prado havia
ra (1608-1697) e surgem nas ruas numerosas no Brasil dois romantismos dramáticos, que
formas de jogos, festas, divertimentos e ma- corriam paralelos: o dos atores, alimentado
nifestações dramáticas populares, como o pela dramaturgia popular estrangeira, e dos
bumba-meu-boi. autores, que raramente chegava ao palco.
14. Ao refletir sobre o teatro no Brasil, temos grandes dramaturgos nacionais e estrangei-
que considerar a diversidade brasileira, as ros.
especificidades das histórias de grupos e
artistas em cada região, embora a história Em 1943, no Rio de Janeiro, a montagem
mais divulgada seja a que se refere ao eixo da peça Vestido de Noiva, do dramatur-
Rio-São Paulo. Vamos citar, assim, apenas go Nelson Rodrigues (1912-1980), pelo gru-
algumas referências emblemáticas, que nos po amador Os Comediantes, com direção
chegaram de uma épo- do polonês Zbigniew
ca e de um modo de se Ziembinski (1908-1978),
fazer teatro. tem um grande suces-
Ao refletir sobre o
so de público e crítica.
teatro no Brasil, temos
O artista Procópio Fer- Como diz Yan Michal-
reira (1898-1979), teve
que considerar a ski (1995), é simplifica-
62 anos de carreira e diversidade brasileira, dor situar essa monta-
atuou em 461 peças, as especificidades das gem como o ponto de
mas na visão de Décio histórias de grupos e partida do moderno
de Almeida Prado (1993, teatro brasileiro, tendo
artistas em cada região,
p. 43) “tudo o afastava, em vista que muito se 14
embora a história mais
no entanto, do teatro fez nesta direção em
moderno, desde a obri-
divulgada seja a que se montagens anteriores
gação de decorar o pa- refere ao eixo Rio-São e posteriores. Mas é
pel, até a ideia ridícula Paulo. inegável que essa mon-
de que o ator necessita- tagem marcou profun-
va de alguém – o ence- damente a trajetória
nador – para guiar na criação do papel. Ele se subsequente do nosso teatro, seja pela sin-
fizera no palco e no contato com o público, gularidade do texto dramatúrgico, seja pelas
os únicos mestres que reconhecia como le- proposições arrojadas do encenador, ou ain-
gítimos”. da pela arquitetura cênica de Tomás Santa
Rosa (1909-1956).
O artista Paschoal Carlos Magno (1906-1980)
funda, em 1938, no Rio de Janeiro, o Tea- A criação, em 1948, em São Paulo, da Esco-
tro do Estudante do Brasil, inspirado nos la de Arte Dramática (EAD), de Alfredo Mes-
teatros universitários europeus, com uma quita, é um outro marco significativo para
função pedagógica, de formação teatral, e a construção do moderno teatro brasileiro.
outra artística, e se dedica à montagem de Havia a busca por se criar uma metodologia
15. para o trabalho do ator e a reflexão sobre o uma visão do homem conectado com suas
que seria uma nova ética e estética da cena. raízes. Desde então, ampliou-se considera-
Segundo Guinsburg (1992), a relação entre velmente o grupo de dramaturgos, diretores
a Escola de Arte Dramática (EAD) e o Teatro e atores nacionais.
Brasileiro de Comédia (TBC) iniciou-se de
maneira orgânica e formar atores para o TBC Um dos mais significativos grupos de teatro
constituía, aliás, um dos propósitos da EAD. de pesquisa no Brasil, o Centro de Pesquisas
Teatrais (LUME), criado em 1985 na Univer-
Recorde-se, a propósito, que a cena teatral sidade de Campinas (UNICAMP), enfatiza o
presenciou o fortalecimento inédito da fi- trabalho do ator, sua técnica e sua arte. Al-
gura do encenador ou diretor em meados guns atores desse grupo estão juntos desde
do século XX, com as montagens do Teatro o início, o que contraria a tendência hodier-
Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo. na dos que se reúnem para viabilizar uma
Naquele momento, um conjunto de direto- determinada produção e depois se separam,
res estrangeiros, tais como Adolfo Celi, Rug- premidos pela dificuldade diária da sobrevi-
gero Jacobbi, Gianni Rato, Luciano Salce, vência e pela rotatividade imposta pelo mer-
Ziembinski, entre outros, passaria a exercer cado. A longa convivência possibilitou-lhes
enorme influência sobre a primeira geração a construção da chamada cultura de grupo: 15
de diretores nacionais. um saber e uma experiência comuns, treina-
mento, visões artísticas e objetivos próprios
A atriz Dulcina de Morais (1908-1996) cria no — um universo partilhado por todos os que
Rio de Janeiro, na década de 50, a Fundação participam juntos de uma mesma história
Brasileira de Teatro, uma das primeiras es- de criação e produção teatral (Barba, 1991).
colas de formação do país. Em 1972, transfe-
re-se com sua fundação para Brasília. No perfil do LUME, como em qualquer ou-
tro grupo teatral de pesquisa, entra a pers-
Em São Paulo, as companhias Arena e Ofi- pectiva da construção de um treinamento
cina se converteriam em marcos significati- próprio para o trabalho do ator. Na verdade,
vos na busca de aliar dramaturgia nacional revela-se uma característica dos grupos de
com montagens representativas, construin- pesquisa trabalhar com o trinômio treina-
do, cada vez mais, um jeito de fazer teatro. mento-ensaio-espetáculo. Mesmo que com
O grupo Macunaíma, sob a direção de An- os anos de convívio e experiência esses trei-
tunes Filho, tornou-se em 1978 outra baliza namentos venham a se singularizar e cada
notável na trajetória teatral brasileira, por ator possa adquirir o seu repertório próprio
sua forma arrojada de trazer para a cena de treino e eficácia cênica.
16. Uma das características essenciais para o referências culturais, como ritos de transi-
ator, no seu processo de formação dentro ção e incorporação. Ambos, treinamento e
do Centro de Pesquisa Teatral do SESC (CPT), ensaio, podem convergir para o processo de
coordenado por Antunes Filho, é a busca do transição. Essas fases do processo ritual po-
desprendimento em relação ao próprio ego dem ser aplicadas à representação de outras
e a percepção de que tudo aquilo que nos maneiras. Podem-se ver o treinamento, o
cerca é impermanente e transitório. ensaio e o aquecimento do corpo como pre-
liminares, como ritos de separação do mun-
Dentro desta proposta de trabalho, a com- do cotidiano; a própria performance, como
posição teatral é algo voluntário. Tudo o que liminar, análoga aos ritos de transição; o
o ator faz em cena parte de um ato de von- desaceleramento do ator e o resultado do
tade, não existe o abandonar-se em cena. trabalho, como pós-liminares, como ritos de
Tudo o que o ator cria no palco é desenhado, incorporação na volta ao cotidiano. De uma
construído anteriormente. forma ou de outra, temos que o teatro pode
ser visto como um ritual de passagem, pro-
Nessa visão, o artista não pode ser egocên- porcionando a quem o vivencia de dentro
trico, porque senão os personagens, que são mudanças e alterações em relação a estados
os seus canais de expressão, ficam cerceados e padrões referentes ao cotidiano. 16
pelo limite da sua própria humanidade. O
artista pode ser todos os personagens, fazer Trata-se de um trabalho de ressignificação,
mutações, mas, se ele der vazão somente ao em que elementos de um determinado con-
próprio ego, disso resultará fazer sempre os texto, com uma forma determinada, são
mesmos estereótipos. Para fugir a tal pers- transformados em outra manifestação, a
pectiva, ele necessita ser receptivo a todos partir da alteração no modo de ver e inter-
os personagens, sem usar de preconceitos pretar o observado. Dessa maneira, o ator
comuns à história de vida em sociedade. — que aprende a conhecer o próprio corpo
pelo exercício constante da observação tan-
O fazer teatral passa por várias fases, como to de si mesmo como do outro — é o cerne
apontou Schechner (1985), utilizando os dessa metamorfose.
pressupostos de Van Gennep (1978) para a
análise dos ritos de passagem. Para o ator, Se, para Marcel Mauss, as pessoas criam
o espaço do treinamento é onde a experiên- suas construções corporais a partir da so-
cia cotidiana pode ser desconstruída, como ciedade em que estão inseridas e que as
rituais de separação e transição, ao passo precedem, no teatro, que é um espaço da
que os ensaios edificam, constroem novas síntese, trabalha-se a construção corporal e
17. gestual em interação com dimensões ima- com o diretor teatral Peter Brook, têm o ob-
ginárias do real. O teatro pode ser visto, as- jetivo de permitir ao ator executar o gesto
sim, como um lócus potencial de transfor- conveniente sem pensar nisso. “O ator deve
mação de gestos e posturas cotidianos. Sem ter uma concentração ampla e fluida: esta é
perder de vista que o teatro pressupõe um a chave da verdadeira disponibilidade. Mas,
outro, aquele que olha e ao mesmo tempo sem treinamento, é impossível de se obter
interfere, delimita, constrói a dimensão do uma concentração dessa qualidade, uma
que está sendo observado. concentração flutuante” (Oida, 1999, p. 60).
No teatro, o ator é seu Nessa perspectiva,
próprio universo de a concentração exi-
criação, que é continua- No teatro, o ator é ge treinamento, tal
mente exposto aos mais seu próprio universo como o corpo. Yoshi
variados estímulos e si- de criação, que é (1999) exemplifica
tuações. A partir dessa continuamente exposto que, no teatro clás-
auto-exposição contí- sico japonês, o trei-
aos mais variados
nua, o ator passa a am- namento começa por
estímulos e situações. 17
pliar sua gama de signi- pedir ao aluno que
ficados para as mesmas fixe sua concentra-
posturas e os mesmos ção no hara, ventre,
referenciais, diversificando conceitualmen- abdômen. Esse é o estágio preliminar do
te seu repertório gestual e imagético. treinamento. Uma vez assimilado, passa-se
a aprender a relaxar a concentração para li-
Mesmo quando está em situação de repre- berá-la. Adquire-se a técnica, não para ficar
sentação, o artista convive ao mesmo tem- preso a ela, mas para conseguir a liberdade
po em várias esferas, como comenta Sche- para criar.
chner: “O performer não deixa de ser ele
mesmo ou ela mesma quando ele ou ela se Como diz Marcel Mauss, “em toda socieda-
torna outro — múltiplos eus coexistem em de, todos sabem e devem saber e aprender
uma tensão dialética não resolvida” (1985, p. o que devem fazer em todas as condições”
103). (2003, p. 420), no caso do ator teatral, há
um caminho a ser percorrido, do cotidiano
Todos esses treinamentos técnicos que o social aos estados não cotidianos do palco.
ator deve adquirir, como diz o ator japonês O trabalho do ator-dançarino, intérprete,
Yoshi Oida, que trabalha há mais de 40 anos requer uma disponibilidade peculiar para
18. o autoconhecimento, e muitos atores e BIBLIOGRAFIA
dançarinos buscam práticas corporais
ARISTÓTELES. Poética. Brasília: Imprensa
como parte do seu treinamento para a
Nacional, 1992.
atuação no palco, na cena.
BARBA, Eugenio. A Canoa de Papel - Trata-
A etimologia da palavra teatro (teatrum,
do de Antropologia Teatral. São Paulo: Hu-
“lugar de onde se vê”) nos remete a uma
citec, 1994.
atitude por parte do
espectador, que pode
_____________. Além
ser de busca de uma A arte teatral é uma das ilhas flutuantes.
expressão poética do
experiência coletiva São Paulo: Hucitec,
humano. A arte teatral
que propicia novas 1991.
é uma experiência co-
letiva que propicia no-
percepções, tanto para
_____________; SA-
vas percepções, tanto o ator como para o
VARESE, Nicola. Arte
para o ator como para espectador, e instiga Secreta do Ator: Dicio-
o espectador, e instiga desdobramentos sociais nário de Antropologia
desdobramentos so- 18
ao redimensionar Teatral. São Paulo: Hu-
ciais ao redimensionar
estados cotidianos. citec, 1995.
estados cotidianos.
BRAGA, Cláudia. Em
Hoje, com a disse- Busca da Brasilidade.
minação de escolas técnicas, cursos de Teatro Brasileiro na Primeira República.
graduação, mestrado e doutorado em São Paulo: Perspectiva, 2003.
artes cênicas, temos uma ampliação da
ação do teatro, que cada vez mais alia a BROOK, Peter. Ponto de Mudança – Qua-
prática à pesquisa e à experimentação renta anos de experiências teatrais. Rio de
estética. Os desdobramentos dessa di- Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
versidade de estudos e referências poten-
cializam as vivências dentro dos ambien- _____________. A Porta aberta. Rio de Ja-
tes escolares. E o teatro ganha cada vez neiro: Civilização Brasileira, 2000.
mais uma relevância como espaço para
conhecimento de si mesmo, do outro e BURNIER, Luis Otávio. A arte de ator: da
de comunicação com a sociedade onde técnica à representação. Campinas, SP:
estamos inseridos. Editora da Unicamp, 2001.
19. CACCIAGLIA, Mario. Pequena História do Te- lo: Editora da Universidade de São Paulo,
atro no Brasil. Quatro séculos de Teatro no 1992.
Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz: Ed. da Uni-
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versidade de São Paulo, 1986.
leiro. São Paulo: Global Editora, 1997.
CASTRO, Rita de Almeida. Da persona ao si
mesmo : uma visão antropológica do teatro de MARIZ, Adriana. A ostra e a pérola – uma vi-
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torado em Antropologia – USP. Orientação: MICHALSKI, Yan. Ziembinski e o Teatro Brasi-
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FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar
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19
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VAN GENNEP, Arnold. Os Ritos de Passagem.
da (org.). Diálogos sobre Teatro. São Pau-
Petrópolis: Vozes, 1978.
20. TEXTO 2
A linguagem cênica
PERCORRENDO O FAZER TEATRAL: UM CAMINHO PARA A COMPREENSÃO
DA LINGUAGEM CÊNICA E SUA PRÁTICA PEDAGÓGICA
Paulina Maria Caon1
A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa
prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamica-
mente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das
relações entre o texto e o contexto (Paulo Freire).
Neste texto, convidamos os educadores a considerá-lo uma área de conhecimento
refletir sobre algumas especificidades da lin- e prática humana, passível, portanto, de
guagem cênica que podem ser entendidas ser percebida, estudada e experimentada
como elementos formais que a constituem. por qualquer pessoa, independente de sua
Em torno desse tema já houve diferentes idade, de suas origens ou de ideias prees- 20
estudos e abordagens, de modo que não há tabelecidas de “talento”. É interessante
“uma” gramática da linguagem cênica que lembrarmos isso, pois as diferentes lingua-
dê conta do fenômeno teatral em sua am- gens artísticas já foram compreendidas de
plitude e diversidade. Apresentaremos aqui diversas maneiras pelos próprios artistas,
um caminho para a investigação e a refle- pelo público, por legisladores, governan-
xão sobre essas especificidades, valendo-nos tes e educadores. No Brasil, por exemplo,
de autores que têm refletido sobre o teatro foi apenas com a LDB – Lei de Diretrizes e
como manifestação estética e artística pre- Bases para a Educação Nacional – de 1996,
sente em toda a história da humanidade. após anos de articulação e luta de artistas
e educadores, que o teatro, assim como as
O primeiro aspecto a ser considerado an- outras linguagens artísticas, foram consi-
tes mesmo de iniciarmos esse percurso é o deradas como disciplinas independentes e
pressuposto implícito em nosso tema: tra- igualmente relevantes para a formação do
tar o teatro como uma linguagem significa cidadão brasileiro na Educação Básica.
1 Mestre em Pedagogia do Teatro pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Professora conferencista do
Depto. de Artes Cênicas da ECA-USP na área de Metodologia do Ensino das Artes Cênicas.
21. OS MÍNIMOS VITAIS DO TEATRO exploração do corpo e da voz para a compo-
sição das ações corporais em cena, a capa-
Tomaremos como ponto de partida o insti- cidade de percepção e exploração do espaço
gante texto de Jacó Guinsburg, “Considera- em que ocorre a encenação, a capacidade
ções sobre a tríade essencial: texto, ator e de escuta e presença cênica, tanto no que
público” para iniciar o caminho de reflexão se refere à interação com seus parceiros
sobre as especificidades da linguagem cêni- de cena quanto à interação com o público.
ca. Para Guinsburg, se Tais elementos são
destilássemos o fenô- atitudes cênicas que
fazem funcionar o
meno teatral aos seus O pacto que se forma
mínimos vitais, resta- jogo teatral durante
entre a esfera dos
ria o encontro entre o a representação. Em
atores e a do público e nossa abordagem o
ator e o público num
certo espaço, enuncian-
o trânsito de sentidos ator é um jogador,
do certo texto. Percor- que ocorre entre eles que recorre a regras
ramos juntos cada um nos permitem dizer estabelecidas pela
desses elementos. que ocorreu uma encenação para ex-
perimentar criar em
21
A presença do ator vivo
representação teatral.
cena uma outra or-
em cena é um dos eixos dem, diferenciada da
fundadores da lingua- vida cotidiana, com
gem teatral. O pacto que se forma entre a suas ações e interações. Nesse contexto,
esfera dos atores e a do público e o trânsito reafirmamos o caráter lúdico do fazer tea-
de sentidos que ocorre entre eles nos permi- tral e do ofício do ator – experimentar ser
tem dizer que ocorreu uma representação outro, fazer surgir na cena outros pontos
teatral. Segundo Maria Lucia Pupo (2001), o de vista sobre si mesmo e sobre o mundo.
fenômeno teatral manifesta seu caráter de
jogo e traz à tona sua dimensão lúdica desde Por tudo isso, desde o fim do século XIX e
esse acordo tácito entre aqueles que atuam especialmente a partir das vanguardas artís-
2
e os que assistem . ticas do início do século XX, emerge a figura
de um diretor que se volta para a formação
No que cabe ao trabalho do ator, alguns ele-
de seus atores, para a criação de treinamen-
mentos são importantes: a consciência e a
2 Para um estudo mais detido sobre as relações entre jogo e teatro consulte: PUPO (2001), RYNGAERT (2009),
HUIZINGA (1971), BROUGÈRE (1998).
22. tos que desenvolvam a capacidade de estar cena ou que ela ocorra num teatro à italiana
presente no presente do ator. Mais tarde, em que o espectador é imerso na escuridão
percebemos que alguns encenadores do para que aprecie a representação teatral. O
século XX, como Meyerhold (Rússia), Jerzy público pode estar muito próximo da cena,
Grotowski (Polônia), Eugênio Barba (Dina- como no caso de peças de rua do grupo Tá
marca), Ariane Mnouchkine (França), foram na Rua (RJ), ou da Cia. São Jorge de Varie-
mestres-encenadores ou diretores-peda- dades (SP) em seu “O Santo Guerreiro e o
gogos, que não pen- Herói Desajustado”; o
savam somente nas público pode fazer par-
imagens e ações O público é outro dos te da cena, como na
que comporiam a elementos fundantes encenação “O Disfarce
peça teatral finaliza- do fenômeno teatral, de do Ovo”, do Coletivo Te-
da, mas propunham atro Dodecafônico (SP),
modo que a encenação
procedimentos de em que o público senta
só ocorre no contato
aprendizagem cria- à mesma mesa em que
tiva ao ator-jogador
com um olhar externo, as atrizes sentarão e re-
para a prática daque- que propõe outros presentarão sequências
las atitudes cênicas sentidos àquilo que está de ações com objetos 22
que citamos há pou- em cena. do cotidiano domés-
co. O olhar externo tico; o público pode
dos encenadores e as percorrer diferentes es-
suas proposições auxiliam os atores-jogado- paços sendo conduzido pelos atores, como
res no burilamento de suas capacidades e ocorre em muitas das encenações do Teatro
na composição de cenas que podem resul- da Vertigem (SP) ou da Tribo de Atuadores
tar num acontecimento teatral. Esse será Ói Nóis Aqui Traveis (RS). Historicamente, a
também o papel exercido pelo educador em relação entre atores e público foi explorada
sala da aula no processo de ensino de tea- de diferentes maneiras. Nos primórdios do
tro. teatro e no último século, entretanto, mui-
tos grupos e coletivos teatrais têm optado
O público é outro dos elementos fundantes por uma relação de aproximação e interação
do fenômeno teatral, de modo que a ence- com o público, acentuando o caráter ativo
nação só ocorre no contato com um olhar do espectador, seja no processo de entendi-
externo, que propõe outros sentidos àqui- mento da obra, seja como participante do
lo que está em cena. Tal olhar externo não acontecimento teatral durante sua realiza-
significa que o público esteja separado da ção.
23. Também é importante ressaltar que a quan- Autores do porte de Ubersfeld e Pavis,
tidade de público pode variar de acordo com entre outros, imprimiram uma promis-
o contexto em que ocorre a encenação e isso sora orientação aos estudos teatrais
manifesta escolhas dos seus criadores. No contemporâneos, ao demonstrarem
caso dos processos de ensaio, por exemplo, que o fenômeno da cena não pode ser
há público, que pode ser composto pelo en- tratado como simples transposição de
cenador e outros companheiros de trabalho um texto; ele não equivale a “um texto
dos atores-jogadores; no caso do ambiente e mais alguma coisa”. Aprendemos com
escolar, poderá ser composto pelo mestre- aqueles autores que a cena é constituída
encenador e pelos atores-jogadores em pro- por uma complexa articulação entre di-
cesso de aprendizagem; há ainda grupos e ferentes sistemas de signos que não têm
processos criativos em teatro que optam sentido absoluto em si mesmos, mas só
pela apresentação de encenações para pe- adquirem significado uns em relação aos
quenas quantidades de espectadores. Esses outros (PUPO, 2001, p. 182).
foram os casos das últimas experimentações
de Grotowski na Itália, da intervenção urba-
Desse ponto de vista, o discurso cênico
na “Aqui fora”, do grupo OPOVOEMPÉ (SP)
enunciado por uma encenação resulta da
ou da encenação “Arrufos”, do Grupo XIX 23
interação de diferentes sistemas de sig-
(SP), por exemplo.
nos durante a representação. De um modo
mais simples, uma encenação na qual há
O último elemento da tríade essencial pro-
cenários construídos para imitar a cozinha
posta por Guinsburg é o texto. Conforme o
de um restaurante, uma trilha sonora gra-
autor levanta e no teatro contemporâneo,
vada e atores utilizando figurinos de gar-
em geral, o texto não é aqui um texto tea-
çons e cozinheiros, terá uma recepção e
tral ou as palavras que são ditas em cena,
leitura diferentes de outra encenação em
mas todos os elementos que estruturam o
que uma cozinha é representada numa sala
discurso na encenação: os movimentos cor-
vazia, fazendo surgir o local por meio das
porais, os sons da voz e da trilha sonora, a
ações físicas que os atores realizam e de
organização do espaço. Mais que isso, a arti-
sons ambiente que eles próprios produzem
culação entre esses elementos compõe uma
com suas vozes. A escolha pelas diversas
escritura cênica, um enunciado que gera
maneiras de articular esses signos (visuais,
sensações e cria sentidos para os que fazem
sonoros, etc.) na representação modificará
e para os que assistem a uma apresentação
a maneira como o público irá percebê-la e
teatral. É a esse texto que o autor se refere e
interpretá-la.
que nos interessa abordar.
24. ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A com o qual o educador irá trabalhar. Um
PRÁTICA DE ENSINO DO TEATRO grupo de educandos muito habilidoso na
linguagem plástica pode iniciar seu mer-
O educador que pretende explorar a lin- gulho na linguagem teatral estudando dife-
guagem teatral na escola pode recorrer a rentes cenários de espetáculos já realizados
alguns dos elementos dessa gramática da em sua cidade ou país, produzindo maque-
linguagem cênica tratados na sessão ante- tes, propostas de cenários e figurinos para
rior. As relações com o um texto teatral ou
corpo, com o espaço, para uma encenação
com a sonoridade, com que será realizada na
a plasticidade e com o A arquitetura escolar ou
escola. Estudantes
público podem ser eixos seus espaços externos originários de diver-
norteadores de estudos podem ser interessantes sas regiões do país
práticos e teóricos em
pontos de partida para podem coletar histó-
sala de aula. rias e tradições cor-
experiências criativas
porais das localida-
entre corpo e espaço.
A prática teatral na es- des de sua origem e
cola pode ser um dos produzir seu próprio 24
caminhos para a inves- texto e sequências de
tigação sobre a linguagem e, nesse sentido, ações para uma pequena cena. Os desenca-
interessa menos a instrução técnica dos deadores de um percurso de investigação
educandos do que o investimento em sua em teatro, portanto, são os mais diversos
capacidade de jogo e de elaboração de metá- e dependerão da presença no presente do
foras por meio dos elementos da linguagem educador para escolhê-los junto de seus es-
teatral. Dessa maneira, o processo pode tor- tudantes. Como em qualquer processo de
nar-se lúdico e exploratório sem recair em aprendizagem, a capacidade do grupo de
experiências teatrais estereotipadas como estudantes e do educador de se apropriar
a escolha arbitrária de um texto e a divisão de seu percurso é um dos definidores da
também arbitrária de personagens entre os qualidade da experiência a ser vivida, assim
estudantes. como dos resultados de trabalho que pode-
rão ser apresentados à comunidade escolar,
Cada um dos eixos (corpo, espaço, sonori- por exemplo. Por isso, criar mecanismos de
dade, plasticidade, relação com o público) revelação e reflexão sobre o processo de
ainda pode se relacionar com temas gera- trabalho ao longo de sua realização é mais
dores, aspectos de interesse do grupo real do que desejável. Murais com a memória
25. do grupo, fotografias, diários pessoais e/ou CECCATO, Maria. O Teatro Vocacional e a
3
de grupo, protocolos , relatórios, coleções Apropriação da Atitude Épica/Dialética. Dis-
de imagens e rodas de conversa são alguns sertação de Mestrado apresentada à ECA-
dos procedimentos possíveis de serem uti- USP, São Paulo, 2008.
lizados para a apropriação do grupo de seu
FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de ler:
processo.
em três artigos que se completam. São Paulo:
A seguir, apresentamos a bibliografia uti- Cortez, 1989.
lizada para a composição do presente tex-
GUÉNOUN, Denis. A Exibição das Palavras.
to, assim como uma bibliografia de apoio
Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto,
ao estudo desse tema. Os textos de Maria
2003.
Lucia Pupo (2000, 2001) e Jean-Pierre Ryn-
gaert (1998, 2009) são bons começos para GUINSBURG, Jacó. “Considerações sobre a trí-
quem quer se debruçar especificamente ade essencial: texto, ator e público”. Revista
sobre a linguagem teatral e suas conexões USP. Dossiê Sociedade de Massa e Identida-
com a educação. Seguem também as indi- de, n. 32, p. 170-177, dez. 1996/ fev. 1997.
cações de textos para o estudo mais amplo
das relações entre jogo, teatro e educação. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como 25
Por fim, há a indicação de textos de Maria elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva,
Lucia Pupo (2005), Maria Ceccato (2008), 2004.
Carmela Soares (2003) e Jean-Pierre Rynga-
ert (1981) que refletem sobre processos de PUPO, Maria Lucia. Entre o Mediterrâneo e
ensino de teatro praticados em diferentes o Atlântico, uma aventura teatral. São Paulo:
locais do Brasil e do mundo, que podem Perspectiva, 2005.
contribuir para a reflexão e a prática de vo-
_________________. “O lúdico e a construção do
cês, educadores.
sentido”. Sala Preta. Departamento de Artes
Cênicas, ECA-USP, junho de 2001, p. 181- 187.
BIBLIOGRAFIA SUGERIDA PARA
____________________. “Além das dicotomias”.
ESTUDO DO TEMA
Anais do Seminário Nacional de Arte e Edu-
cação: 15ª Edição- Educação Emancipatória e
BROUGÈRE, Gilles. Jogo e Educação. Porto
Processos de Inclusão Sócio-Cultural. Mon-
Alegre: Artes Médicas, 1998.
3 Forma lúdica de registro e reflexão sobre o processo trazida para o Brasil por Ingrid Dormien Koudela.
26. tenegro, RS: Fundação Municipal de Artes de _______________. Jogar, representar. São Pau-
Montenegro, 2000. p. 31-34. lo: CosacNaify, 2009.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro contem- SOARES, Carmela Correa. Pedagogia do Jogo
porâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Teatral: uma poética do efêmero – O ensino do
teatro na escola pública. Dissertação de Mes-
_______________. O jogo dramático no meio es-
trado apresentada ao Centro de Letras e Ar-
colar. Coimbra: Centelha, 1981.
tes da UNIRIO. Rio de Janeiro, 2003.
26
27. TEXTO 3
Aprender e ensinar teatro
DIRETOR DE TEATRO OU ARTE-EDUCADOR?
DILEMAS DE UM ARTISTA NA EDUCAÇÃO ATRAVÉS DA ARTE
Henrique Fontes1
Primeiro dia de aula em uma nova escola. Este parece ser o desejo de todo jovem que
Todo educador já percebe o que eu senti. procura um projeto de arte em jornada am-
Além do frio na barriga e de uma série de pliada na escola. Além de uma mudança na
questionamentos, o desejo de que aquele rotina e a curiosidade pela linguagem artís-
pudesse ser um ano significativamente dife- tica e muitos sonhos de serem atores de no-
rente. velas ou filmes, no fundo a busca dos edu-
candos parece ser a de um refúgio prazeroso
Este foi o desejo compartilhado entre todos para o que eles dizem ser o “tédio da escola”.
os educadores do projeto ArteAção da ONG
27
Casa da Ribeira em Natal, RN, ao chegar na “Professor, quando é que a gente vai pro te-
escola O Atheneu norte-riograndense, pela atro?” Uma das primeiras perguntas já con-
primeira vez. O projeto em parceria com o firmava a busca do refúgio.
Instituto Ayrton Senna e a empresa Cosern
“Por que é que a gente não faz a aula já no
se propõe o desafio de, através do teatro, fa-
palco?” A próxima pergunta, ecoada por um
cilitar oportunidades educativas para o de-
grito de excitação de todos, já merecia a mi-
senvolvimento de competências cognitivas,
nha resposta prática:
relacionais, pessoais e produtivas.
“Vamos lá, caminhando, percebendo o espa-
Os jovens entre 14 e 18 anos, ainda desconhe-
ço...”
cidos naquele primeiro dia, traziam carac-
terísticas bem familiares a todos nós. Riso- E começava ali o jogo de (re)conhecimento
nhos, excitados, alguns apáticos, inquietos e do outro e do espaço. A troca de olhares, a
buscando naquelas três horas, uma vontade descoberta de possibilidades daquela sala já
maior de estar na escola. tão visitada por eles.
1 Arte-educador da ONG Casa da Ribeira, em Natal (RN).
28. Ao final da oportunidade, após jogos de atrasos naqueles três dias de oportunidades
confiança e de equilíbrio em espaços redu- educativas semanais. Tudo concordado co-
zidos, avaliamos o dia de trabalho e a busca letivamente e por escrito.
de cada um. Nem todos queriam falar. Uns
pareciam ainda confusos com tantas sen- Superado o primeiro dia, seguimos o itine-
sações, outros diziam que por muitas vezes rário formativo. Em vários momentos, um
nem pareciam que estavam na escola. Apro- ou outro esmorecia, recusava-se a realizar
veitei essa fala e disse: este ou aquele jogo e
eu sempre reforçava
Os jovens seguiam na
“Mas vocês estão na que a exigência não
escola. Estamos aqui descoberta de técnicas
era minha, mas sim
na mesma sala da aula teatrais, na construção do próprio jogo. Era
de Matemática ou de de personagens, no o jogo que pedia a
Português e é aqui que estudo de elementos participação deles. A
montaremos nosso es-
para criação da luz convivência, que por
petáculo e que tenta- vezes se tornava ten-
e do cenário para
remos superar nossos sa, era sempre resol-
limites. A escola é o lu- a montagem e nos 28
vida na roda do final
gar ideal para essa su- estudos das disciplinas do dia, com o firme
peração, concordam?” da escola, muitas vezes compromisso de que
correlacionadas com tudo que era tratado
Todos acenaram com a
nossa montagem. ali não sairia dali.
cabeça e Lucas, aparen-
temente um dos mais Os jovens seguiam na
tímidos da turma, per- descoberta de técnicas teatrais, na constru-
guntou: ção de personagens, no estudo de elemen-
tos para criação da luz e do cenário para a
“A gente vai apresentar a peça pra escola?”
montagem e nos estudos das disciplinas da
escola, muitas vezes correlacionadas com
“Pra toda a escola e pro resto da cidade tam-
nossa montagem. Acompanhávamos os
bém” - respondi.
avanços escolares e artísticos nas rodas de
Os olhos brilharam, alguns riram de novo e avaliação.
antes de nos despedirmos firmamos o com-
promisso das regras de chegada, limpeza Além das oportunidades na escola, come-
da sala, número de faltas e tolerância de çamos a fazer nossas apreciações na Casa
29. da Ribeira e em outros espaços da cidade. nos com tamanha segurança do seu papel
A ida ao teatro, agora já envolto em outro na peça e do envolvimento de todos para
significado, precisava de uma qualificação, transformar o auditório da escola num ver-
de uma pré-apreciação. Utilizamos de vá- dadeiro teatro. Outra funcionária observou
rios recursos, mas sempre partindo do prin- que o que mais a emocionara naquela noi-
cípio de que a gente só ama o que conhece. te foi quando chegou e todos os educandos
Assim, oportunizamos o conhecimento das que passavam por ela davam “boa-noite”.
obras e dos artistas Um gesto simples,
antes da ida a cada mas que, segundo ela,
A percepção de que
apreciação e avalia- era raro na escola.
mos depois o que foi
o “ser” deve saber
descoberto. Tem sido conviver com todos e O processo foi avan-
assim para qualquer tudo que conhece, para çando, o “Experimen-
to II” aconteceu na
obra de arte. Cada melhor fazer sua arte,
vez mais acreditamos Casa da Ribeira, em
transborda do tempo
que a apreciação deve um primeiro contato
da oportunidade e dos dos educandos com
ser diversa e multi-
culturalista. Desta
encontros semanais o palco e a caixa cê- 29
forma, aos poucos, e passa a contagiar o nica de um teatro. A
outras oportunidades olhar e as atitudes dos empolgação era cada
de apreciação vão se educandos em toda a vez maior, sobretudo
apresentando. Seja do daqueles que haviam
sua vida.
conjunto arquitetôni- escolhido participar
co do entorno da es- dos núcleos de ilumi-
cola, da culinária da mãe de um educando nação e cenografia,
ou até mesmo do pôr-do-sol no rio Potengy, pois agora eles teriam mais suportes téc-
sempre relacionamos o apreciado com o nicos para colocar em prática tudo o que
apreciador. estudavam.
Após 3 meses de oportunidades, fizemos o Este segundo experimento se apresentou
“Experimento I”, apresentando uma esque- como um divisor de águas. A linguagem
te teatral fruto de jogos em sala, para os teatral e o processo de desenvolvimento
pais e comunidade escolar. Ao final da peça, de cada educando se misturavam definiti-
ouvimos comentários da diretora, que disse vamente. A percepção de que o “ser” deve
ter sido surpreendida quando viu os meni- saber conviver com todos e tudo que conhe-
30. ce, para melhor fazer sua arte, transborda Perguntei os motivos e, depois de muito re-
do tempo da oportunidade e dos encontros lutar em dizer, ele revelou que os pais o ha-
semanais e passa a contagiar o olhar e as viam pressionado para trabalhar, uma vez
atitudes dos educandos em toda a sua vida. que já tinha 18 anos, e que teria que parar a
As competências começam a ganhar senti- escola para procurar emprego. Ele dizia que
dos mais amplos. Este é o momento em que não tinha forças para fazer tudo e as opor-
o artista-educador, nesse caso eu, entrava tunidades de trabalho de meio expediente
em conflito com a sua eram muito raras, por
arte. isso iria abandonar a
escola. Eu pedi que ele
A peça que montáva- Muitas vezes, quando
ficasse e participasse
mos revelava a supe- criamos em teatro, daquele dia de oportu-
ração de cada um ali, nos deixamos levar por nidade e que no final,
mas o resultado esté-
aquilo que “poderia ser”, na roda de avaliação,
tico ainda não era al-
pelo que idealizamos, colocasse para todos, o
cançado. O jogo exigia
que ele havia decidido.
cada vez mais dos edu-
ficando cegos ao que o
candos, e eles, ávidos, processo nos oferece. 30
Comecei o alonga-
queriam mais, no en- mento e a preparação
tanto, certos conheci- para o ensaio, mas em
mentos, sobretudo na meus pensamentos só ecoava a história de
arte, requerem tempo, vivência, amadureci- Lucas. Decidi, então, mudar o foco do dia de
mento. trabalho. Comecei a trabalhar com as an-
gústias pessoais de cada educando na dinâ-
Qual seria o limite da exigência? Onde se-
mica do “muro das lamentações” (dinâmi-
riam equilibrados os papéis de diretor de te-
ca vocal onde as vogais são ditas à medida
atro e arte-educador?
que o educando vai estapeando a parede) e,
Um episódio colocou luz sobre a questão. em seguida, pedi que a voz mais forte deles
Há menos de dois meses da estreia do espe- encontrasse o “caminhar do gigante”. Du-
táculo, Lucas (aquele educando tímido) me rante esse caminhar, o gigante sofria todo
chamou antes de começar a oportunidade tipo de impedimentos físicos para seguir sua
para uma conversa. Ele veio me comunicar trajetória e seguir emitindo sons. Ao final,
que estava saindo do projeto. Em seus olhos o gigante conseguia conviver com os outros
eu via o quanto doía para ele dizer aquilo. gigantes, sem perder o passo e a voz na sua
caminhada.
31. Pedi, então, que esses gigantes, com vozes mente deve ser desenhado ao se caminhar,
gigantescas, ensaiassem a peça e várias des- claro que não se trata da dependência de
cobertas foram feitas. Os personagens come- uma inspiração ou de “milagres” que sim-
çavam a descortinar nuances para além das plesmente aconteçam. Para compreender
características físicas dos atores-educandos. e fazer uso do que o processo nos oferece,
temos que trabalhar arduamente. Todo pro-
Na roda de avaliação, Lucas ficou calado e,
cesso é fruto de dedicação, compromisso e
quando eu perguntei se ele tinha algo a di-
da vivência do artista, neste caso, também
zer para o grupo, ele disse que muitas vezes
dos artistas-educandos. No entanto, ficava
na vida nós temos que enfrentar gigantes, às
claro que a aposta devia ser no processo e
vezes são pessoas que nós amamos muito,
a exigência pelo jogo, sempre. Fazia-se ne-
mas temos que superá-los para podermos
cessário também intensificar as apreciações
ser também gigantes. Ele disse, ainda, que
e a absorção de “arquivo” para a criação. É
precisava melhorar muito sua voz para a
essencial ter de onde tirar.
peça, mas que ninguém iria dizer que ele de-
veria desistir porque ele fazia parte daque- O último mês de ensaio revelou-me ainda
le grupo e iria até o final. Aproveitei e disse outra boa dinâmica: a “ausência progra-
que ele realmente teria que melhorar muito mada”. Algumas cenas não se resolviam na 31
em termos vocais e que os enfrentamentos peça, sobretudo porque os educandos não se
sempre devem ser feitos com muita genero- escutavam. Quando eu estava presente, eles
sidade. se esforçavam para criar a tensão dramática
necessária, mas bastava eu sair da sala para
Este dia me mostrou a força que o processo
checar o ateliê de cenografia e a confusão
criativo e suas dinâmicas têm. Muitas vezes,
estava feita. Assim, eu disse que eles tinham
quando criamos em teatro, nos deixamos le-
a próxima oportunidade para, sozinhos, des-
var por aquilo que “poderia ser”, pelo que
cobrirem a solução da cena e a apresenta-
idealizamos, ficando cegos ao que o proces-
rem para mim ao final, quando eu chegaria.
so nos oferece. É como aquele cientista que
Na avaliação desse dia, eles falaram que dis-
tem uma metodologia fechada e elabora um
cutiram muito até que perceberam que não
questionário de campo para apenas preen-
estavam ouvindo as ideias propostas por
cher as respostas, sem se dar conta do que
cada um. Assim que decidiram realizar cada
os sujeitos ou objetos pesquisados estão lhe
proposta sugerida, a cena começou a ser re-
revelando. É fundamental a abertura para
solvida. Eles entenderam que deveriam bus-
todo e qualquer estímulo que possa ser usa-
car a disciplina e a escuta mesmo na minha
do na construção da obra. O caminho clara-
ausência, o jogo pedia isso.
32. Chegamos na semana de estreia e o ner- ganizam sua forma e se reestruturam para
vosismo já havia tomado conta de todos. resistir. Resiliência parecia mesmo uma boa
Mais uma vez o limite entre diretor e arte- palavra para resumir todo aquele processo.
educador foi testado. Eu deveria dar espaço
para eles descobrirem as causas do que não As luzes se apagaram na plateia e duran-
funcionava, mas também tive que guiar al- te uma hora, o palco se acendeu com um
guns passos para que a comunicação fosse jogo vivo entre os atores-educandos. Peque-
efetivada com o público e propostas artís- nas falhas técnicas ficaram imperceptíveis.
ticas singulares não se perdessem. Tive a Esquecimentos logo foram supridos pela
oportunidade de ver soluções cenográficas capacidade de escuta e de jogo que eles
mirabolantes, que já mostravam indícios desenvolveram. Uma falha na sonoplastia
de impossibilidade, exigirem dias e noites foi prontamente substituída por uma per-
dedicados à recriação e descobertas bem cussão improvisada nos bastidores, por um
mais interessantes. A equipe de iluminação dos educandos. O espetáculo comunicou e
também trabalhou todos os dias na semana divertiu pais, professores e outras pessoas
final. Eles criaram procedimentos para mon- que, alheias ao projeto, foram à Casa da Ri-
tagem e cada um operava a luz por dia de beira ver uma peça de teatro. No entanto,
apresentação. Eles viraram um verdadeiro ninguém saiu incólume daquela noite. Ao 32
time de luz. final, realizamos a oportunidade que deno-
minamos “diálogo em cena”, os pais se co-
Noite de estreia e todos muito empolgados locavam emocionados de ver seus filhos tão
e nervosos. Os atores-educandos, em espe- envolvidos e com tanta responsabilidade.
cial, temiam que as cenas não funcionassem Algumas pessoas ficaram impressionadas de
ou que alguém esquecesse uma deixa, uma ver um grupo que apresentava uma primeira
marca. De mãos dadas antes do início da peça com tantos elementos criativos. Uma
apresentação, eu pedi que dissessem uma professora disse que, no começo, não acre-
palavra que resumisse o que marcou aque- ditava que aqueles educandos estivessem fa-
le processo de quase um ano. Muitos deles zendo algo “de futuro” no projeto, mas ficou
repetiram uma palavra que eu havia repas- comovida de ver o nível de dedicação.
sado de outro mestre, em uma das oportu-
nidades: “resiliência.” Para aqueles que não Este percurso, que no ArteAção chamamos
têm tanta familiaridade com a física, esta é de Itinerário Formativo, acontece todos os
uma característica dos metais nobres que, anos e percebemos cada vez mais que os va-
por mais que sofram ações externas como lores que estamos descobrindo de “oportu-
calor ou frio, não são partidos, apenas reor- nidade de escolha”; “ausência programada”;
33. “exigência pelo jogo”; “limites e regras”; “só escolher no futuro, ser um profissional ético,
amamos o que conhecemos” e “confiança no generoso e respeitador. Até porque de nada
processo” nos possibilitam caminhos para a adianta garantirmos um ensino de qualidade,
facilitação de uma educação pela arte que ga- uma educação técnica exemplar, se não ga-
ranta a autonomia dos educandos, mas que, rantirmos que esses jovens possam ter opor-
sobretudo, reforça o compromisso que cada tunidades que os auxiliem na difícil arte de
um tem de, independente da profissão que tornarem-se seres humanos melhores.
33
34. Presidência da República
Ministério da Educação
Secretaria de Educação a Distância
Direção de Produção de Conteúdos e Formação em Educação a Distância
TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO
Coordenação-geral da TV Escola
Érico da Silveira
Coordenação Pedagógica
Maria Carolina Machado Mello de Sousa
Supervisão Pedagógica
Rosa Helena Mendonça
Acompanhamento Pedagógico
Carla Ramos 34
Coordenação de Utilização e Avaliação
Mônica Mufarrej
Fernanda Braga
Copidesque e Revisão
Magda Frediani Martins
Diagramação e Editoração
Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV Brasil
Gerência de Criação e Produção de Arte
Consultor especialmente convidado
Francis Wilker
E-mail: salto@mec.gov.br
Home page: www.tvbrasil.org.br/salto
Rua da Relação, 18, 4o andar – Centro.
CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ)
Maio 2010