O documento descreve o caso de um adolescente chamado "A" que estava com baixo rendimento escolar. Durante o tratamento psicopedagógico, "A" escreveu várias cartas analisadas pela psicopedagoga. Uma carta para a mãe de "A" revelou conflitos emocionais profundos ligados à sua história familiar e identidade. A análise mostrou a importância da escrita para ajudar "A" a lidar com sentimentos recalcados da infância.
1. CARTA DE UM ADOLESCENTE: A QUESTÃO DO SUJEITO
Silvana Bartilotti
Introdução:
Um adolescente, que doravante será chamado apenas “A”, foi
encaminhado para tratamento psicopedagógico por estar com baixo
rendimento escolar.
Quando foi avaliado, percebeu-se que ele não tinha dificuldade de
aprender, mas apenas não dispunha de espaço para tais conteúdos,
devido ao grau de preenchimento com suas questões pessoais, tão
profundas, vitais...
Iniciando otratamento, ‘A” com seu jeito sensível, confiou suas dúvidas e
certezas à psicopedagoga. Sabia que não era mais um menino e sentia
sua responsabilidade.
Nesta dialética do “não ser mais X então ser” pressentia que algum dia iria
saber e vacilava se suportaria.
Demonstrava grande solidão individual, e de tão lúcido, sentia-se
irreal, causava a impressão de que andava perdido. Dentro dele tudo se
apagava e cada noite parecia a última. Sentia-se como estivesse
morrendo.
Nesse vendaval, lia o social quegerava sentidos invertidos, que o
estado normal do indivíduo, num mundolouco como é o nosso, é mesmo a
loucura. Forma absolutamente poética e original de denunciar, da maneira
mais sutil, a inversão de valores, a perversão da condição humana num
mundo injusto como o de hoje.
Daí começou a expressar na forma escrita, como processo de auto
revelação e possibilidade de cura, sua angústia de vida, do existir, de
saber-se parte deste todo, tendo dimensão do humano, cujosemelhantes
jamais se entenderam. E numa tentativa de complementariedade passa a
viver montando invisível.
Dentre as produções de texto elaboradas durante o período trabalhado
selecionou-se um recorte, é uma carta à sua mãe para fazer análise da
presença do sujeito psíquico.
Neste artigo contempla-se a pertinência da produção textual produzido
por um adolescente em consultório psicopedagógico, como uma das
possibilidades de tratamento. Para tanto, usar-se –á, como embasamento
teórico, a psicanálise freudiana.
2. Vale ressaltar cuidar-se de um trabalho de psicopedagogia clínica, o
qualfocou-se não somente o sujeito aprendente, cognoscente mas,
principalmente, em como esse sujeito de desejo ( inconsciente) -se
constitui e de como ele articula para construir conhecimento.
Embasamento Teórico- Teoria Psicanalítica Freudiana
Tomar-se-ão como princípios norteadores a:
Teoria do recalque – o aparelho psíquico tem três planos: o
Inconsciente(ID), que são as primeiras impressões; o Pré-Consciente (
Superego), formado pelo sub- consciente e o consciente; e o Consciente
(Ego), externo.
Na passagem do Inconsciente para o Superego forma-se a primeira
censura ( Repressão) que deixa uma cicatriz ( Recalque). A passagem que
se dá dentro do Superego, ou seja entre o sub-consciente e o consciente
forma uma segunda censura (Filtro) e dá-se a fixação.
Segundo Freud, o recalque seria:
“uma primeira fase de repressão ( leia-se do Recalcado) que
consisteem negar entrada no consciente ao representante psíquico
(ideacional) do instinto ( pulsão). Com isso, esta- belece-seuma
fixação, a partir de então o representante
em questão continua inalterado e o instinto ( leia-se pulsão) permanece
ligado a ele”
O recalque é oriundo de uma situação de desprazer cuja essência
consiste em afastar determinadas representações do consciente (
pensamentos, imagens e recordações); mantendo-se no insconciente.
Os sintomas se explicam por um retorno do recalcado.
A noção do inconsciente (ID) – essência da teoria psicanalítica, pode
ser considerado um sistema psíquico distinto dos demais e dotado de
atividade própria. “Tudo que é reprimido deve permanecer no
inconsciente; mas logo de início declaramos que o reprimido não abrange
tudo que é inconsciente. O alcance do inconsciente é mais amplo, o
reprimido é apenas uma parte do inconsciente”.
A importância da dinâmica da transferência –Quando ou onde? A
emergência do recalcado é a própria emergência dos derivados do
inconsciente, que somente através de um processo analítico ( de
transferência) podem tornar-se consciente.
3. Visão panorâmica sobre o desenvolvimento infantil – Freud divide o
desenvolvimento em diversas fases, divididas em estágios, a saber:
Oral- Onde a zona bucal é a fonte corporal de todas as excitações pulsionais.
O objeto desta etapa é oseio, ou seja, tudo que se refere ao seio materno
ou seu substituto. A funçãonutritiva acham-se associadas ao ato de sugar.
Sádico- anal – O ato de defecar ocupa lugar importante no desenvolvimento
psicossexual da criança. O bolo fecal é um elemento concreto, herdeiro do
objeto-peito da fase precedente e, por outro lado, antecessor do pênis,
objeto da fase subsequente. O bolo fecal representaum valor de troca
entre a criança e o meio- externo. Nesta etapa a criançadiferencia,
através do controle esfincteriano, o mundo externo do interno e as fezes
passam a ser vivenciadas como conteúdos que são exteriorizados. Há um
aspecto dual no relacionamento objetal por não ser este ainda o triangular
edípico, desde quando inexiste diferenciação sexual nesta fase.
Fálico -Os órgãos sexuais serão alvo de concentração energética pulsional.
Pode-se perceber que a diferença sexual não é propriamentepercebidae sim
negada, pois ambos os sexos acreditam na existência do pênis, onde este
não existe. A aceitação da diferença sexual acarretaria a perda da ilusão
de quetodos seríamos iguais. A significação que adquire a descoberta da
desigualdadeficará marcada no psiquismo e contribuirá para a
construção do sujeito e de suas relações objetais.
A criança começa a ter diversos questionamentos sobre a origem das
diferenças, vivenciando angústias, tendo, entretanto, uma noção de sua
posição no mundo, de qual é o lugar ocupado por ela dentro desta
estrutura. Há a queda da onipotência narcísica da infância, relacionando
este “não” estruturante à impossibilidade de construção de desejos
edípicos.
Genital – O último estágio. Nele se fundamenta a organização central da
personalidade humana, que é o complexo de Édipo. Um conflito que
envolve três personagens, pai, mãe e sujeito, pessoas que vão adquirindo
papéis diversos em diferentes momentos.
O aparelho psíquico apresenta sua organização entre 5 e 6 anos,
quando a triangulação edipiana é maior. Este se completa na adolescência
e na puberdade, quando, após já terem sido feitas as identificações com
os progenitores, o sujeito parte para o exercício de sua sexualidade fora
deles.
Adolescência, a construção do sujeito social – A adolescência traz
problemas inerentes à própria transição, como por exemplo, distinguir
4. passado, presente e futuro. A questão do tempo é uma característica do
inconsciente, como Freud apresentou em A interpretação dos sonhos, e
Nesta dificuldade temporal encontram-se quase todas dificuldades do
adolescente para vive-las, todas vinculadas à sua identidade: quem ele
será no amanhã e que que amanhã será este, tão incerto, que não se
garante mais a certeza de um diploma universitário......
A busca de identidade está intrinsecamente ligada aos lutos, que
precisa viver, entre a perda da infância, do próprio corpo, que se
transforma; e que lhe é desconhecido à medida que surge. O adolescente
vive uma perda de referência, sentida interna e externamente através do
seu corpo que se transforma,suas glândulas sexuais começam a atuar de
forma mais sensível, gerando os sentimentos de perda do corpo infantil. O
que pode esperar, senão insatisfação e desequilíbrio?
São consideradas características da adolescência a saída da
dependência, em busca da independência; a necessidade de transformar o
controle externo em controle interno frente a uma sociedade que reprime
a sexualidade. Há aí reversão dos impulsos lidibinosos e como
consequênciasurgem o medo, a ansiedade, os sintomas neuróticos e a
agressividade.
O sujeito social vive dois momentos de nascimento : biológico e o
social. O primeiro é o acesso à condição de adulto e o outro é a
participação cultural.
O desenvolvimento psico- sexual da criança, se conduz através das
fases oral, anal e fálica. A fase fálica,que corresponde apuberdade, é
quando vivencia intensamente a dialética edípica, para que se dê a
superação do complexo de Édipo. É esta superação que permite ao
indivíduo a entrada na cultura e até a formação de sociedades. Segundo
Freud é o romper dos vínculos familiares, sair de grupos fechados e entrar
em grupos maiores, o que permite ao sujeito ser social.
Texto recortado:
Mãe
Ultimamente, venho escrevendo meus sentimentos pela
família, e os escrevo nos dias em que comemoramos os
mais importantes de nossa vida, o nascimento.
Desta vez, faço diferente escrevo um dia após o seu
aniversário, pois queria primeiro vivenciá-lo para depois
5. redigir meus pensamentos. Vocênasceu num dia muito bonito que é o dia
de São Francisco de Assis.
E quem não gostou da homenagem que lhe fizeram?
Acho que os 15 anos ficaram na memória e acho que as
homenagens que foram feitas para você nos seus 35
anos ficarão na memória de todos que ali estavam
presentes. Tudo isso graças a Eduardo, pai adorado e
esposo dedicado, ele sempre surpreendendo a todos
nós! Tudo que foi feito foi para mostrar mais uma vez
que você é amada por todos nós. Você, também,
surpreendeu a todos, quando falou com palavras
emocionadas o que sentia de todo aquele esforço que foi
feito por você.
É isso, unamos a família e que a paz esteja conosco. Que
Deus a abençoe mais uma vez, que lhe dê saúde, paz
interior e felicidades, você merece!
Análise do texto em interação clínica:
No trabalho clínico procura-se propor um “fazer”que traga prazera “A”.
Percebe-se, como está dito no citado texto, o desejo de “escrever seus
sentimentos”, entãosugeriu-se trabalhar com produção escrita, o que foi
de pronto acolhido e assim foram escritas várias cartas, analisadas passo
a passo. Entre elas a ora apresentada.
O fato da escolha de um personagem (carta à mãe) a quem se dirige
é de primordial importância. A estrutura de personagem representa a
estrutura familiar e repete o conflito edipiano vivido por “A”.
“A” age com seuspersonagens, repetindo nomes que foram
“amados”, “gritados”, “sussurrados”, falados” e odiados”, antes de serem
colocados na escrita.
Através do ato de escrever, “A” vive os sentimentos dediscriminação
entre eu X mundo ( Mãe), desfazendo o sentimento de unidade familiar (
simbiose). Vivenciando esta individuação, sente-se só e entra em contato
com a “falta”.
Procurando fazer um rastreamento de sua história questiona sobre o
tempo em que ele não escrevia, mas que havia sentimento. “A” pode
relembrar que vivera por volta dos 6 ou 7 anos uma época de muitos
sentimentos ruins ( medos, angústias, tristeza), vivenciou estes
sentimentos ( em transferência) e pode assim buscar possibilidades de
reparação.
6. “A” demonstra que a dinâmica da transferência ocupa um lugar
significativo e que o processo foi bem vivenciado, quando escreveu (.....
primeiro vivenciá-lo para depois redigir....), endossando o sucesso do seu
trabalho, mantendo um nível de comunicação com a psicopedagoga.
Fala-se sobre o contraste entre “pai adorado” X “mãe amada por
nós”. “A” reconhece seu amor pelo pai e entra em contato com um
sofrimento enorme, amar a mãe ( como os outros familiares).
Quando fala que “os 15 anos ficaram na memória”, pontua que
existem fatos que não ficam na memória e que é preciso recordar.....
O que “A” conseguiu lembrar não era suficiente para esclarecer sobre
sua dor, marcou-se uma reunião com a mãe e pediu-se a ela que contasse
“o dia mais importante da vida de “A”: o nascimento”.
A mãe estava envolvida no tratamento, procurou facilitar ao máximo, e
contou a “A” que ele veio num momento não esperado e ao dar a luz ela
sofrera um derrame facial, o que impossibilitou sua relação com “a”, que
ficou sob os cuidados paternos, história até então ignorada por “A”.
Recuperada esta lembrança, “A” pode perceber a profundidade de
seu texto, tomando consciência que os fatos sempre estiveram ali, só que
eram desconhecidos. Gradativamente, pode minimizar sua angústia, o
medo que o invadia, ganhando uma identidade pessoal e realizando um
processo de separação.
Conclusões:
A adolescência com a natural sucessão de perdas fez emergir a pulsão
de morte. A noção de não viver a própria vida, vincula-se à falta de
identidade pessoal.
Para “A” foi, também, o momento de reviver o conflito edipiano, pai X
mãe X sujeito.
A adolescência revela a necessidade do sujeito discriminar-se,
delinear-se, buscar espaços, contornos, separações, entrar em contato
com a individualização e com a “falta” para só depois poder buscar a
completude que proporcionará ao sujeito a busca da realização através de
estudos, do trabalho e da vida social.
Produzir textos, criar personagens, num lugar detransferência torna-se
importante deflagrador do processo de auto-conhecimento,
desvelamentos e possíveis reparações.
Notas:
7. FREUD, S. Repressão. In Obras Completas. Ed Standard Brasileira. Rio
de Janeiro: Imago, 1980, Vol. XIV, p. 171.
Id. Ibid., pág.191.
Id. Dinâmica da Transferência. In Obras Completas. Vol.XI.
Fonte consultada: KUSNETZOFF, J. C. In Introdução à Psicopatologia
Psicanalítica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.