4. 1 - Purgatório Redux
Esta história é verdadeira e aconteceu
no dia 29/02/2003...
A última vez que havia olhado o relógio passava das dezesseis. Pontual e ansioso, compareci à
clínica situada num sobrado da rua do Ouvidor construído
em estilo neoclássico. Jamais esquecerei o aspecto do interior do prédio: lembrava a ostentação cafona de um bingo
de subúrbio. Não à toa, o especialista trouxe um envelope
lacrado onde se encerrava minha sorte e o meu azar. E deu
azar. Meio atônito, caminhei até uma importadora na esquina da Buenos Aires com a Rio Branco e fiz a única coisa que
me pareceu adequada: comprei uma garrafa pequena, dessas que cabem no bolso do paletó, de Chivas Regal. Tomei
um, dois, três goles. O bastante para me fazer lembrar que
em poucos meses esse prazer, assim como todos outros, me
seria arrancado junto com a vida.
Olhei em volta, o mundo seguia o seu normal. As
pessoas que atravessavam a rua não sabiam do meu drama. E se soubessem, cagariam. Meu celular começou a tocar. Não atendi a nenhuma das chamadas porque não havia
Micronovelas por Marcelo Barbosa
11
5. 12
mais sentido. Joguei o aparelho no chão e já me preparava
para pisoteá-lo quando um mendigo, deitado em frente ao
um tapume de obras, gritou:
–Não quebra não, doutor. Me dá para eu vender a
bateria.
Deixei com ele o que restou do telefone, o dinheiro
que eu tinha no bolso e as chaves do meu Audi. Antes de partir, dei uns goles de Chivas ao pedinte. Daí, segui andando, a
esmo, em direção à Marina da Glória.
Foi lá que encontrei com Deus.
Ao contrário do que muita gente poderia pensar, a
aparição do Todo-Poderoso não foi um efeito especial. O céu
não se abriu para Ele descer por entre as nuvens. Tampouco
as águas da enseada se ergueram do seu leito ante o efeito
da sua presença. Na realidade, Ele apareceu casualmente,
como se fosse assistir a uma exposição no MAM ou a uma
pelada no Aterro. Confesso que esperava uma figura poderosa, uma espécie de Paulo Autran com barbas. Mas quem
apareceu diante de mim foi um negro com a serena dignidade de um Pixinguinha.
Não perdi tempo com reverências:
– Que baita sacanagem que você aprontou para mim, hein?!
– Meu filho, posso entender sua revolta...
– Não pode! Ano que vem você vai continuar por aqui.
6. Já eu, nunca saberei se o meu filho passou no vestibular...
– Você deve se resignar...
– Por que eu deveria? Você me abandonou!
– Não é nada disso!
Nesse momento, Pixinguinha, isto é, Nosso Senhor,
respirou fundo. Pediu silêncio com um gesto amável mas
firme e seguiu falando:
– Meu filho, a tua sorte não me é indiferente embora
o que te aconteceu não seja culpa minha.
– Ah, já entendi, você está tirando o corpo fora!
– Não, o que quero dizer é que é do ciclo da vida nascer e crescer, assim como morrer.
Sob o ponto de vista lógico, aquilo fazia sentido. De
fato, Deus daria um bom teólogo. Porém suas respostas não
resolviam nenhum dos meus problemas.
Assim, resolvi dar as costas para Deus.
Prosseguindo em minha caminhada, sem direção, pela
cidade, começaram a brotar ideias homicidas contra mim mesmo. Pensei: para que ir definhando aos poucos, sentindo dores
inenarráveis, aporrinhando a minha família e os meus amigos
com a minha doença? Melhor seria acabar com tudo aquilo de
uma vez, escolhendo uma morte rápida, de preferência indolor.
Foi justamente quando avistei a estação do Metrô da Cinelândia.
Micronovelas por Marcelo Barbosa
13
7. 14
Com pouca prática de suicídio, não chegou a causar
surpresa a atrapalhação e a falta de planejamento de minha
tentativa. É que após comprar um bilhete e passar na roleta,
várias dúvidas apareceram na minha cabeça: deveria saltar nos
trilhos no sentido zona norte ou zona sul? Esperar um horário
mais vazio para causar menos transtorno? Quem sabe aguardar a saída das crianças que estavam na plataforma?
O alto-falante da estação tocava um dos Noturnos
de Chopin, numa gravação de Rubinstein talvez. Comecei
a ficar distraído e encantado com a possibilidade de encerrar a existência ao som de uma música tão bonita. Toda a
minha excitação desapareceu. Caminhava agora com a decisão tranquila de ultrapassar a faixa amarela do limite de
segurança. De tão relaxado quase flutuava sobre os próprios
sapatos, como se fosse possível ir ao encontro do desconhecido dançando os compassos daquele tema, melodia tão familiar que minha mãe cansou de tirar ao piano da casa onde
passei a infância. Meu enleio não deve ter durado muito.
Talvez alguns segundos. O suficiente para a segurança desconfiar do meu comportamento – afinal pessoas não dançam em estações do metrô. Assim, quando me joguei embaixo do primeiro vagão, a carga dos trilhos de alta tensão
já havia sido desligada.
O trem fez uma freada brusca por cima de mim.
Lembro-me de ouvir os gritos das senhoras. Num primeiro
momento, até achei que tinha sido bem-sucedido na minha
tentativa. Logo reparei, no entanto, que estava ileso, sem
8. nem um ferimento superficial que fosse. No máximo um
pouco amarrotado.
Fui retirado dos trilhos pelo pessoal da manutenção
e da segurança que me xingaram o tanto que puderam. Um
dos caras chegou a me perguntar por que eu resolvera me
matar logo no turno dele. Respondi que não havia nada de
pessoal naquilo. Um outro ainda insistiu:
– Quer se matar mesmo? Pula do vão central da Rio–
Niterói.
Fiquei indignado. O brasileiro consegue ser espírito
de porco até com a eutanásia alheia.
Antes que trouxessem a polícia, consegui fugir por
uma das galerias da estação Cinelândia e fui sair na Uruguaiana. Prossegui em direção a Santa Teresa até a atingir a encosta do Morro dos Prazeres. Não sentia nem fome e nem sede.
De vez em quando levava aos lábios mais uma dose do Chivas.
O tempo todo pensava no plano para pôr fim à minha vida. Algo me dizia que tentativas como a do metrô não
me levariam a nenhum resultado proveitoso. Precisava de
alguma coisa cem por cento garantida. Era por isso que continuava andando em direção ao topo do Morro dos Prazeres.
Lá encontraria a oportunidade que buscava.
Não segui a rota mais óbvia. Preferi subir por uma
picada em meio ao matagal. Era um caminho repleto de arbustos, cheio de espinhos e de muitas pedras, sem viv’alma
Micronovelas por Marcelo Barbosa
15