SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 11
Baixar para ler offline
Eu - cem anos de poesia
I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI
ISBN 978-85-7539-708-4
MORTE E LITERATURA: A POESIA DE SANDRA HERZER
Rodrigo Michell dos Santos Araujo
(PPGL/UFS/FAPITEC-SE)
Fernanda Bezerra de Aragão Correia
(PRODEMA/UFS/CAPES)
O que pode um texto? Um texto que chama, um texto que tudo diz, um texto louco, um
texto embriagado, um texto (in) consciente, indecidível, um texto-vida. E mais: um texto
agonizante, um texto insone, um texto em êxtase, melancólico, desesperado. Um banho de
chamas que destrói tudo por onde passa. Alerta de incêndio: apocalípticos, também podemos,
assim, o chamar: textos-morte, tanatotextos que são sublimes e, ao mesmo tempo, degradados,
enfermos, poeira. Como nunca dormem, cravadas nas potencialidades do vazio absoluto da
página em branco, as palavras, ébrias, correm como fluxos, um turbilhão sem começo nem fim.
Da magia à fatalidade, da solidão ao grito de desespero, a obra da paranaense Sandra Mara
Herzer assim sendo o nome de batismo do então Anderson Herzer, ou apenas Herzer é um
intenso córrego que vaza por todas as frestas até chegar às profundidades últimas da vida. De
idas e vindas, jogada no esquecimento e no silêncio da margem, Sandra deixou apenas uma obra:
A queda para o alto (1985). Convergência de dores e tormentos, de fugas e retornos da FEBEM do
Estado de São Paulo, uma obra que (de)cai para os cumes do desespero, ou para a morte; obra
que joga o leitor para baixo, para o alto, para os lados, para o infinito, para o não-lugar.
Fragmentos. Na obra, Herzer tudo diz, tudo aponta, tudo denuncia, tudo proclama, a ponto de
nos perguntarmos: para que direção aponta?1 Dizer tudo sobre si próprio, tentando esgotar o
2
(NASCIMENTO, 1999: 310). Divididas em duas
texto finito e
partes, a primeira parte da Queda contém um depoimento de Herzer sobre a agonia de uma vida
em chamas, um testemunho manchado de dor, e a segunda parte trazendo suas poesias.
Autobiografia para a morte.
teorizações de autobiografia propostas por Philippe Lejeune, em O pacto autobiográfico (2008).

pacto, partimos da literatura íntima de Herzer rumo à experiência da morte, fazendo de sua obra
uma tanatobiografia. Neste palco de paixões e crueldades, recorremos à construção de um espaço de
morte, fundamentando a partir de Maurice Blanchot, fundamentalmente em suas obras O espaço
literário (2011) e A parte do fogo (1997), um trânsito entre a experiência da morte e a literatura, ou
um trânsito entre morte e vida, onde uma figure na outra. Assim, far-se-á, neste espaço construído,
uma aproximação entre a obra e o pensamento do filósofo romeno Emil Cioran, a partir de sua
primeira obra em romeno, Sur les cimes du désespoir (1990). O que pode, então, um encontro entre
Herzer e o considerado, hoje, o mais pessimista dos filósofos, a hiena pessimista (PIVA, 2002)
Cioran (REDYSON, 2011) podem se estabelecer, tais como: vida agônica, sofrimento,
melancolia, morte, desespero e angústia.
1 A mesma mão que aponta, como no filme do cineasta Theo Angelopoulos, Paisagem na neblina (1988), onde uma mão de
concreto sem o dedo indicador emerge do mar, indicando para o acaso.
2 Grifos do autor.

1658
Eu - cem anos de poesia
I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI
ISBN 978-85-7539-708-4
Sendo este encontro da poetisa possível com qualquer outro filósofo pessimista,
justificamos o encontro com Emil Cioran justamente por ambos viverem uma vida inflamada de
agonia e fazerem desta um movimento de flatter la mort, de desejar a morte, como se a morte, ao
invadir a vida de tal modo, chegasse a assumir uma forma, corporificando-se, como a morte em
forma de mulher vestida de branco e com seios à mostra no visceral filme de Ingmar Bergman,
Na presença de um palhaço (1997). Estabelecidos os encontros, é a poesia de Herzer, então, um grito
agônico, de denúncia e desespero, uma poesia-grito, ou poesia-protesto, que quer ser ouvida, vista,
sentida, tocada. Uma poesia que fala com o coração, que canta como quem canta a última trova.
E é com a experiência da morte que é, pois, a sua lírica uma poesia-dor.
1. Do encontro com a morte
O que é a morte? Por que pensar (n)a morte? Partir da filosofia pode-se observar a gama
de filósofos que se debruçaram sobre o tema. Filosofar a morte, pensemos fundamentalmente na
filosofia antiga, é abrir-se para o pensar a existência. Desta base, e partindo da filosofia antiga, o
filosofar a morte, no curso da filosofia, se abre por dois caminhos: um, de filósofos que trataram
a morte como um nada; outros, que pensaram a morte como outra vida (cf. COMTESPONVILLE, 2002: 47). Assim sendo, vê-se que, em qualquer dos dois caminhos, filósofos
buscaram responder a o que, de fato, vem a ser a morte.
Problematizá-la, amá-la ou admirá-la. É possível tal olhar para a morte sem, antes, temê-la?
Temer a morte é sempre partir rumo a um conforto, a um porto seguro, a um consolo
sintomáticas são as primeiras linhas do Livro Tibetano dos Mortos
homem contemporâneo procura na ciência e na tecnologia a mesma segurança que o primitivo
tentou encontrar nos rituais, e que os nossos antepassados mais recentes buscaram na fé
ndezas da morte esta que, digamos,
atesta nossa finitude, existência do ser-para-a-morte (cf. HEIDEGGER, 2011) é um dar-se, um
entregar-se: um exercício de admiração. Ao menos, assim será para o filósofo romeno
contemporâneo que aqui escolhemos para estabelecer um trânsito com o corpus do artigo: Emil
Cioran. O primeiro grito agonizante de Cioran dá-se com sua obra Sur les cimes du désespoir (1990),
obra escrita aos vinte e dois anos. Acometido por insônia e ideia de suicídio, a primeira obra de
Emil Ci
2011: 59). Obra síntese do seu
mais pessimista e agonizant
pensamento (PECORARO, 2004), sua revolta contra o mundo.
A primeira tese da obra
1
(CIORAN, 1990: 28). Aqueles que gozam de boa saúde
2
são cap
(CIORAN, 1990: 30). Isto é, só na enfermidade,
existencialmente falando, para se compreender a morte; só descendo às profundezas da fatalidade
ência de saúde,
mas uma realidade tão positiva e tão durável quan
2011: 24).

1
2

1659
Eu - cem anos de poesia
I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI
ISBN 978-85-7539-708-4
Mas é pela enfermidade que tanto se pode compreendê-la como materializá-la.
Materialização que nos permite, pelo viés antropológico, compactuar com a tese de Louis
Vincent-Thomas (1983: 186), para o qual
-la em imagens,
em nossos sonhos, obsessões, impulsos, para desejá-la ou temê-la; é também materializá-la em
1
. Enfermidade e agonia. Mas a agonia desvenda o aspecto
2
(CIORAN,
1990: 20). É como um banho de chamas que queima por dentro: fogo purificador. Luta entre
vida e morte onde se vive a segunda de forma dolorosa, mas consciente.
Enfermidade e agonia: ambas desespero. Grito altissonante, pois um grito de desespero
3
(CIORAN, 1990: 27). Mas é o homem, descido na enfermidade, agônico, pois
sofre. Sofrimento existencial? Sem adentrar, deveras, nas profundidades das camadas da filosofia
da existência, é salutar pontuar que, entre agonia e sofrimento, infiltra4
(CIORAN, 1990: 19); isto porque o sofrimento é um estado de solidão.
As pesadas linhas do pensamento de Cioran mostram que o sofrimento é um dos pilares da
-se num mundo e
(REDYSON, 2011: 62). As portas do Éden parecem estar trancadas para o homem e, por não
5
conseguir achar a c
(CIORAN, 1990: 60). Não há como abrir as portas do paraíso, a não ser pela destruição. Deste
modo, sugere-se que a saída para Cioran é destruir o mundo, queimá-lo.
Vida enferma, pois miserável. Assim Cioran formula a tese de maior impacto de sua obra
6
Cimes du désespoir:
(CIORAN, 1990: 100). Com uma escritura
que flerta com o literário, na forma prosaica por excelência7, Cioran, além de pôr em confluência
filosofia e literatura, põe numa via de trânsito, ou melhor, põe numa mescla, morte e vida, onde a
morte deita-se sobre a vida, figurando-se nela. Logo, portanto, a morte, para Cioran, sempre
triunfa, vence. E mesmo que a morte triunfe o homem enfermo,
1989: 51). Conclui-se assim, em síntese, o que se
cada dia, ape
filosofia negativa de Emil Cioran, ou um pensamento em chamas.
Mas, na escrita, Cioran chama a morte, ou, se assim melhor cabe a compreensão, é na
escrita que a morte se espalha. Pensemos. Não foi o próprio filósofo estoico Lucio Anneo
Sêneca, ou simplesmente Sêneca, que, em seu pensamento epistolar endereçado à Lucílio,
de ânimo como se a morte fosse me chamar
8
. Na, e pela escrita perguntamos: posso morrer?
Escrever é trazer a morte para perto. Aqui trazemos o crítico e ensaísta Maurice Blanchot, para o
qual se tenta responder à questã
há a fazer [...]. O homem morre isso não é nada, mas o homem é

Representarse la muerte no es sólo vivirla en imagen, en nuestros sueños, obsesiones, impulsos, para desearla o temerla; és
rio
autor, não implicando uma tradução técnica.

1

2
3
4
5
6
7

Na obra Breviário da Decomposição (1989), Cioran apresenta a tese de que sua filosofia não possui sistemas

8

Grifo nosso.

não sendo ele próprio

1660
Eu - cem anos de poesia
I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI
ISBN 978-85-7539-708-4
(BLANCHOT, 2011: 100)1. Para Blanchot, o homem dissimula-se na morte. Dupla dissimulação:
na solidão essenci
2
. Dupla
é o que existe atrás do eu, o que o eu dissimula
simulação, na morte e na escrita, conclui-se a tese de Blanchot como literatura como um direito à

(BLANCHOT, 1997: 312). E, frente à morte, assim se sente o escritor, nesta longa citação
primordial:
A literatura aparece então ligada à estranheza da existência que o ser rejeitou e
que escapa a qualquer categoria. O escritor se sente preza de uma força
impessoal que não o deixa viver ou morrer: a irresponsabilidade que ele não
pode superar torna-se a tradução dessa morte sem morte que o espera à beira
do nada; a imortalidade literária é o movimento pelo qual, até no mundo, um
mundo minado pela existência bruta, se insinua a náusea de uma sobrevida que
não é uma, de uma morte que não põe fim a nada. O escritor que escreve uma
obra se suprime nessa obra e se afirma nela. Se a escreveu para se desfazer de si
acontece que essa obra o compromete e o chama, e, se escreveu para se
manifestar e viver nela, vê que o que fez não é nada [...]. Ou, ainda, ele escreveu
porque ouviu, no fundo da linguagem, esse trabalho de morte que prepara os
seres para a verdade de seus nomes: trabalhou para esse nada, e ele mesmo foi
um nada no trabalho (BLANCHOT, 1997: 326-327).

A partir desta citação extensa, porém visceral, de Blanchot, chegamos à tese de que é a
pois um phármakon
phármakon
(DERRIDA, 2005: 16). Em Jacques Derri
A Farmácia de Platão (2005), a escritura um
pharmakón, remédio e/ou veneno: o escritor um pharmakós? Nas trilhas do surrealismo, Blanchot
do que válido pa
1997: 93-94). Qual seria, então, a condição do escritor? Para quê escreve? Em um brilhante
-se em perigo sem se
arriscar, um modo de suicídio, de autodestruição, que deixa lugar comodamente à mais segura
autocomo um samurai nipônico a praticar o seppuko (cf. ARAUJO, 2012): meio Yukio Mishima, meio
Paulo Leminski, escrever para (não) morrer.
Tecidas considerações sobre a morte, e o encontro morte e literatura, podemos construir
um espaço de morte para trazermos a poesia de Herzer, e que esta, na dissolução que lhe é
proposta, possa bailar num movimento de puro êxtase um movimento que põe a dançar não
apenas a poesia de Herzer, mas os próprios campos filosofia e literatura. Tudo é posto em
movimento, dissolução, frenesi, gozo. Assim, neste espaço construído, podemos destacar a
poesia que encontrou (com) a morte, uma poesia-grito, poesia-dor: tanatoescrita.

2

1 Grifo do autor.
Grifo nosso.

1661
Eu - cem anos de poesia
I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI
ISBN 978-85-7539-708-4
2.

: uma poesia à espera.

A escrita autobiográfica da primeira parte da Queda para o Alto já revela, de início, a vida
como sofrimento cioraniano de uma pessoa que lutou o quanto pôde pelos marginalizados.
Somada à segunda parte, de poesias, a obra, no todo, nos revela uma poetiza que, na escrita, vai
de Eros a Tânatos, que fez de sua escrita um grito de dor e morte, mas sem deixar de crer no
amor. Em suas poesias mais expressivas, o amor é sempre fruto ou oriundo da dor. Em uma
volta aos mitos gregos, Caos, o vazio primordial, gera Gaia (a mãe, a terra), Tártaro (o abismo),
Eros (o amor), Érebo (escuridão) e Nix (a noite). De Gaia, gera Urano (céu), a quem Gaia se une,
gerando outros vários filhos, como os ciclopes, titãs e suas irmãs. Filhos que o pai, Urano, irá
odiar. Temendo o poder de Urano de gerar outros filhos, a mãe Gaia presenteia o filho mais
novo, Chronos, com uma foice, e este, segundo a mitologia, corta o órgão genital de Urano para
impossibilitá-lo de procriar. Da mutilação, o falo de Urano cai no mar, mas, na queda, o sêmen
do falo decepado mistura-se com as brumas do mar, dali nascendo, então, Afrodite, deusa do
amor e da beleza (cf. especialmente ROMILLY, 1998; ROBERT, 1987; VERNANT, 1999; 2001;
2002). Em uma leitura contemporânea da mitologia, seria, digamos, o amor nascente da dor.
Amor e dor na mesma moeda. Postos lado a lado, a poesia de Herzer traz essa marca de amor,
mas pelo viés da dor e do sofrimento. Se a vida lhe é angústia e agonia, sua poesia é uma foice,
como a de Chronos, para, depois do golpe, nascer o amor.
Herzer fixa paixões e sofrimento na escrita. E nada melhor que María Zambrano, em um
, da obra A Metáfora do Coração e Outros Escritos (2000), para
afirmaro poeta penetra-a, já que a poesia está agarrada à carne. Com este movimento, revela-nos
um ir e voltar, um chamar para afastar; uma angústia sem limites e um amor propag
(ZAMBRANO, 2000: 126). Como que se estivesse a ouvir as palavras de María Zambrano, a obra
de Herzer permite a abertura para dentro e para fora, permite a fuga e a busca, ou, como conclui
A poesia de Herzer põe o leitor em queda, em todas as direções, fá-lo perder o rumo.
Ousamos uma provocação: por que não uma poesia autobiográfica, pensando, e até, de certo

Queda para o
alto, assim revela a carga lírica de Herzer:
Eu decaí, eu persisti
Tentei por todos os meios ser forte.
Lutei contra o tempo,
Chorei em silêncio
Gritei seu nome ao vento.
Sou filho da gota
Fui templo de miséria
Meu pai, um perdido
Minha mãe, a megera.
Cresci vendo prantos,
Dormi em meio à mata

1662
Eu - cem anos de poesia
I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI
ISBN 978-85-7539-708-4
Chorei gotas sanguíneas
Sou o pecado, sou a traça.
Eu ouvi um grito de desespero,
Vi a lenta corrupção,
Vi o olhar do corruptor,
Vi uma vida na destruição
Eu vi o assassinato do amor.
Tentei, venci, a vitória conquistei
Porém um dia faleci.
Hoje estou em sua lembrança
Eu sou sua alma oculta
E serei sua esperança.
(HERZER, 1985: 19)1.

Neste poema inicial, há uma grande força lírica que joga o leitor para um profundo
todo manchado de sangue, manchado de dor, de tristeza, de melancolia. O eu lírico do poema,
que decaiu, mas persistiu, tentando ser forte, constantemente luta: com a vida, mas
principalmente consigo mesmo. Neste embate, é como se, digamos, o eu lírico estivesse frente a
frente com um espelho que lhe reflete um mau reflexo, imagem refletida de um eu ambíguo.
-se, pode constatar que sua imagem refletida
também é miséria. Não deviam os espelhos pensar antes de devolverem as imagens? 2 Cruéis
espelhos a revelarem um pai perdido, uma mãe miserável, dura realidade: não é mesmo a
literatura que permite o fugir
por todos os lados. Após o décimo terceiro verso, onde o eu lírico, mais uma vez, assume sua
condição de enfermo o enfermo cioraniano , os versos seguintes além de refletirem, pelo
duro espelho, imagens apocalípticas
funcionar como uma câmera que filma em câmera lenta as agruras do real: a lenta corrupção, o
corruptor, a vida em ruínas. O trágico. A tragicidade da vida exposta pelo assassinato do amor,
do Eros. Mas é no vigésimo verso que o eu lírico encontra, por fim, a morte. E se restou apenas a
lembrança, ou fragmentos de lembranças, é porque a morte é um lançar-se no nada. Nada
Os primeiros poemas da seção Poemas trazem a marca da lembrança, da partida, do adeus,
resultando, pois, a saudade, a solidão, o sofrimento, o choro, o vazio. Como se observa em

longos, enaltecendo o caráter de prosa poética, pois também são longas a saudade e a dor. Tanto
-se um eu lírico que, como se
ébrio por estar perdido, movimenta-se no nada, no vazio. Como nota-se no seguinte verso de
145). Um dos expressivos poemas intitula-

1

Vale observar que, no capítulo XXI do diário que compete à primeira parte da obra, há uma pequena alteração no tocante aos

. Aqui, os versos estão mais
longos. Pode-se observar, portanto, que, na versão do poema que abre a obra, os versos encontram-se mais lapidados e
arrumados.
2 Vale lembrar a antológica frase do filme de Jean Cocteau, O sangue de um poeta

1663
Eu - cem anos de poesia
I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI
ISBN 978-85-7539-708-4
Eu queria ser da noite o sereno
E umedecer o vale seco e pequeno.
Eu queria, no dia claro, luzir
Para ao amor todo o povo conduzir.
Eu queria que branca fosse a cor da terra
E não vermelha, para inspirar a guerra.
Eu queria que o fogo me cremasse
Para ser as cinzas de quem hoje nasce.
Eu queria que os mais belos poemas fossem de Deus
Para neles encontrar as virtudes dos irmãos meus.
Eu queria e muito queria saber ganhar
Para que as simples alegrias pudesse comigo guardar.
Eu queria, como queria, saber perder
Para agora tanta saudade de ti, não sentir doer.
Eu queria morrer agora, nesse instante, sozinho,
Para novamente ser embrião, e nascer;
Eu só queria nascer de novo, para me ensinar a viver!
(HERZER, 1985: 147)1.

Poema de grande conteúdo subjetivo-sentimental e de apenas uma única estrofe de
dezesseis versos, ou estrofe irregular, nota-se, quanto ao som do poema, a disposição de rimas
emparelhadas obedecendo ao esquema AABB. Ainda no tocante ao som, quanto à simetria do
poema, também pode-se observar a predominância do emprego de homeoptoto, isto é, repetição
de várias palavras na mesma função. Pelo pretérito imperfeito do verbo querer, o eu lírico
manifesta seus anseios, suas inquietações, suas ambiguidades: sereno/seco; noite/dia claro; saber
ganhar/saber perder; morrer/nascer; morrer/viver. Um eu lírico na tentativa de proteger o
próximo, o irmão indefeso, os marginalizados e os espaços secos, de opressão. Que o amor
conduza o povo, que branca seja a cor da terra: uma poesia em defesa da vida, do amor. Mas
como o sonho, o querer, de uma vida justa e sem guerra parece não se concretizar, forma-se o
desejo de nulidade, de apagamento, de morte. Mesmo que das cinzas, como uma fênix, venha o
renascer. Num movimento de queda, para o alto e para baixo, a poesia nos joga num labirinto de
incertezas, e neste ponto onde tudo se mexe no turbilhão, podemos nos encontrar com Emil
Cioran e suas proposições de que querer apagar-se, anular-se, diluir-se, nadificar-se. Querer
morrer. Querer esgotar-se no branco vazio. E não é, mesmo, a morte um branco? 2 . Nada
importa, êxtase da morte.
le bain de feu
desejado pelo eu lírico. A partir desse desejo, num movimento de êxtase, a poesia encontra a
morte. O encontro vem do alto, diz3
. Assim, perguntamos: a poesia encontrou o que queria? Encontrou a morte? A vida?
Se a poesia de Herzer pode ser encarada como autobiográfica, esta não limita sua escritura
ao campo autobiográfico. A poesia de Herzer ultrapassa o limite autobiográfico e alcança o
universal. Se as dores do poema de Herzer parecem ser as dores da poetiza, são, também, as dores
do mundo, de um mundo manchado de vermelho que inspira a guerra, a violência, a opressão, o
medo, a tirania, a dor, o choro, o ódio; e a poesia de Herzer pode ser tomada como um grito de
Observa-se que, na página 167 da obra, o mesmo poema encontra-se numa nova edição com o título modificado, constando
to verso editado, onde lêNão há registros da época em que a autora editou o poema.
2 A morte como um branco, além de poder ser visualizado através da mulher vestida de branco em Ingmar Bergman, vale citar o
branco da morte muito bem trabalhado no filme A Palavra (1955), do diretor dinamarquês Carl Theodor Dreyer, por meio de uma
película quase sempre branca, e a morte podendo figurar-se na névoa.
3
1

1664
Eu - cem anos de poesia
I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI
ISBN 978-85-7539-708-4
resposta a essa opressão. O poema mais expressivo e mais melancólico da obra, não eliminando o
fato de os outros também o serem, chamaE de chorar, já sou pranto;
De relembrar, esquecido,
Nas mãos, palmas calejadas
Cavando desejos, proibidos.
E de pensar, já sou louco,
Não há encontro para mim,
Não nome em tua lista,
Não iniciei, sou sem fim.
Com tantos erros passados,
Ganhei má fama sozinho,
Com tantos passos errados
Não encontrei meu caminho.
Tentei abrir as mãos e não vi nada,
Nem mesmo aquele beijo da mulher falada,
Nem aquele antigo abraço que ganhei,
Eu lutei... perdi! Porque contigo errei.
E de pecados, sou negro,
De relutar, sou sem forças,
De persistir, sou sem vista,
De agredir, comunista!
Não tenho eira nem beira,
Não tenho amor para amar,
Não posso amar quem não aceita
Lutar e ver fracassar.
E vou seguindo sem luzes,
Ninguém verá minha partida,
Não quero deixar saudades,
Nem prantos na despedida.
E se me quer na lembrança,
Guarde meu nome contigo
Meu nome é nome, só nome
É simples mas decisivo.
Na flor das noites de sangue
Eu parto sem chorar dor,
Eu parto, mas deixo contigo
O que fui aqui,
... deixo amor.
(HERZER, 1985: 158-159).

Relembrar, esquecer. Constantemente o eu lírico nega-se desejo da nulidade. Lançar-se
-se até que nada sobre, ou sobre apenas o nome, um nome
nos versos sétimo e trigésimo primeiro ficam claro essa nulidade. Mas se eu lírico, ao negar-se,
assume-se apenas como um nome, nome qualquer, abre-se também para o universal: quantos de
poesia de Herzer, a luta e a perda. As poesias lutam e, ao abrirem as mãos e nada verem, perdem,
decaem, fracassam. Resta-lhe, pois, partir. Partir sem rumo, partir por todos os lados, partir para a
morte. Partir para o branco vazio.
1665
Eu - cem anos de poesia
I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI
ISBN 978-85-7539-708-4
Poesia-dor, se fazendo de desabafo, de uma poetiza que não esperou para ver sua única
obra publicada. Intensa, Herzer morreu cedo. Cedo demais. Em um agosto de 1982 um corpo
estendido gravemente ferido no viaduto 23 de Maio, em São Paulo, fora encontrado e levado ao
Hospital Gastroclínica. Herzer, uma canção de amor em dias de frio, uma flor em noites de
sangue, que fez da vida um palco. Antes de sua morte, Herzer escreveu um singelo poema,
Fiz de minha vida um enorme palco
Sem atores, para a peça em cartaz
Sem ninguém para aplaudir este meu pranto
Que vai pingando e uma poça no palco se faz.
Palco triste é meu mundo desabitado
Solitário me apresenta como astro
Astro que chora, ri e se curva à derrota.
E derrotado muito mais astro me faço.
Todo mundo reparou no meu olhar triste
Mas todo mundo estava cansado de ver isso
E todo mundo se esqueceu de minha estreia
Pois todo mundo tinha um outro compromisso.
Mas um dia meu palco, escuro, continuou.
E muita gente curiosa veio me ver
Viram no palco um corpo já estendido
Eram meus fãs que vieram para me ver morrer.
Esta noite foi à noite em que virei astro
A multidão estava lá, atenta como eu queria.
Suspirei eterna e vitoriosamente
Pois ali o personagem nascia
E eu, ator do mundo, com minha solidão...
Morria!
(HERZER, 1985: 12).

Dois apontamentos: primeiro, o poema é, digamos como um hino à Cioran, pois um
personagem decaído e jogado em um mundo que lhe é puro sofrimento, isto é, viver, para este
personagem, é o que Cioran chama de vida como um mau gosto, um plágio (CIORAN, 2004: 34).
personagens, experimentaram a vida como um mau gosto e, assim como Herzer, lutaram
[Mishima e Herzer] com toda a força da brilhante espada samurai em defesa d

lírico para não se fazer ouvir, a encenação parece não se fazer ver. A saída? A morte. Tanto a
poesia de Herzer quanto os personagens dos romances de Yukio Mishima encontram na morte a
saída de um mundo que não se quer enxergar, de um mundo caduco que não saber ver. Assim,
no palco o corpo estendido pôde ser visto. Ali virou astro
ou estrela, para lembrar a
personagem Macabéa, de Clarice Lispector, em A hora da estrela (1998). Também teve o mesmo
destino Herzer, estendida sob o viaduto a virar astro no dia da estreia. Da vida, um aplauso.
Considerações finais
Morrer livremente. Experimentar a morte: desejá-la, encontrá-la, tocá-la, figurá-la. Uma
transa. Um gozo. Êxtase. Mas ainda voar nas asas da morte, romper-se no céu da morte, abrir-se
1666
Eu - cem anos de poesia
I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI
ISBN 978-85-7539-708-4
para o branco da morte. Assim, onde tudo pode estar em movimento, onde tudo pode dar-se ao
turbilhão da vida, construímos um espaço de morte. Com a poesia de Herzer e a filosofia
negativa de Cioran, via crítica de Maurice Blanchot, tudo se pôs em trânsito, diálogos,
confluências, intersecções. Neste frenético movimento onde todos se encontram, pudemos ver
uma poesia que é ponte de Eros a Tânatos. Uma poetiza que escreveu suas cicatrizes, suas dores,
suas paixões. Uma obra manchada de sofrimento.
A Queda para o Alto é uma obra que, caída no esquecimento da crítica literária, grita,
mesmo que sua voz seja rouca; que luta, mas lhe falta força; que crê na esperança do amor; que
crê na vida sem guerras. Como um samurai japonês que luta até o fim com honra e paixão, mas
se lhe é posta a derrota, morrer-se-á com a cabeça erguida, pois a morte lhe é um princípio ético.
Devir-morte: o que os japoneses chamam de seppuko. As páginas de Queda trazem, portanto, a
experiência da morte, e por esta experiência alcançam os cumes do desespero. Porque, deste
modo, morrendo nos convertemos em donos do mundo.
Referências
ARAUJO, Rodrigo Michell dos Santos. O espaço autobiográfico e a experiência da morte em
Yukio Mishima. Anais do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura. São Cristóvão, SE,
UFS, v. 4, p. 1-14, 2011.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. 2ª Ed. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro:
Rocco, 1989.
______. Sur le cimes du désespoir.
______. Silogismos da amargura. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
______. Desgarradura. Barcelona: Tusquets, 2004.
______. Exercícios de admiração: ensaios e perfis. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011.
COMTE-SPONVILLE, André. Apresentação da filosofia. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. Trad. Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 2 vols. 5ª Ed. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis:
Vozes, 2011.
HERZER, Sandra Mara. A queda para o alto. Petrópolis: Vozes, 1985.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. Jovita Noronha,
Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios
ão Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
NASCIMENTO, Evando. Derrida e a Literatura. Niterói: EdUFF, 1999.
PECORARO, Rossano. Cioran: a filosofia em chamas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
PIVA, Paulo Jonas de Lima. Odium Fati. Emil Cioran, a hiena pessimista. In: Cadernos
Nietzsche, nº 13, 2002, pp. 67-88.
1667
Eu - cem anos de poesia
I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI
ISBN 978-85-7539-708-4
REDYSON, Deyve (org.) Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de
nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011.
REDYSON, Deyve. O interesse pelo pior. O conceito de péssimo na metafísica de Cioran. In:
REDYSON, Deyve (org.) Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de
nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011.
ROBERT, Fernand. A literatura grega. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo:
Martins Fontes, 1987.
ROMILLY, Jacqueline de. A tragédia grega. Trad. Ivo Martinazzo. Brasília: Editora UNB, 1998.
SÊNECA, Lúcio Anneo. Aprendendo a viver. Trad. Lúcia Sá Rebello. Porto Alegre: L&PM,
2011.
THOMAS, Louis-Vincent. Antropologia de la muerte. México: Fondo de Cultura Econômica,
1983.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999.
______. Entre mito e política. Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Edusp, 2001.
______. As origens do pensamento grego. São Paulo: Edusp, 2002.
ZAMBRANO, María. A metáfora do coração e outros escritos. 2ª Ed. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2000.

1668

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Nicole loraux maneiras tragicas de matar uma mulher
Nicole loraux maneiras tragicas de matar uma mulherNicole loraux maneiras tragicas de matar uma mulher
Nicole loraux maneiras tragicas de matar uma mulherPatricia Horvat
 
André lepecki no metaplano, o encontro
André lepecki   no metaplano, o encontroAndré lepecki   no metaplano, o encontro
André lepecki no metaplano, o encontroDaniel Kairoz
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 8-9
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 8-9Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 8-9
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 8-9luisprista
 
linguagens para o enem n 3
   linguagens para o  enem n  3   linguagens para o  enem n  3
linguagens para o enem n 3PATRICIA VIANA
 
Caderno de ecercícios de redação
Caderno de ecercícios de redaçãoCaderno de ecercícios de redação
Caderno de ecercícios de redaçãoHomero Alves de Lima
 
Plano de aula aluno
Plano de aula   alunoPlano de aula   aluno
Plano de aula alunoAle Cantero
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2013 4, aula 60
Apresentação para décimo segundo ano de 2013 4, aula 60Apresentação para décimo segundo ano de 2013 4, aula 60
Apresentação para décimo segundo ano de 2013 4, aula 60luisprista
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 62-63
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 62-63Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 62-63
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 62-63luisprista
 

Mais procurados (19)

O Medo, Al Berto
O Medo, Al BertoO Medo, Al Berto
O Medo, Al Berto
 
Nicole loraux maneiras tragicas de matar uma mulher
Nicole loraux maneiras tragicas de matar uma mulherNicole loraux maneiras tragicas de matar uma mulher
Nicole loraux maneiras tragicas de matar uma mulher
 
André lepecki no metaplano, o encontro
André lepecki   no metaplano, o encontroAndré lepecki   no metaplano, o encontro
André lepecki no metaplano, o encontro
 
Gênero lírico no enem
Gênero lírico no enemGênero lírico no enem
Gênero lírico no enem
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 8-9
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 8-9Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 8-9
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 8-9
 
Augusto dos anjos aluno
Augusto dos anjos alunoAugusto dos anjos aluno
Augusto dos anjos aluno
 
linguagens para o enem n 3
   linguagens para o  enem n  3   linguagens para o  enem n  3
linguagens para o enem n 3
 
1 a visao_morte_longo_tempo
1 a visao_morte_longo_tempo1 a visao_morte_longo_tempo
1 a visao_morte_longo_tempo
 
Vivencia e convivencia
Vivencia e convivenciaVivencia e convivencia
Vivencia e convivencia
 
Caderno de ecercícios de redação
Caderno de ecercícios de redaçãoCaderno de ecercícios de redação
Caderno de ecercícios de redação
 
Antologia Prévia
Antologia PréviaAntologia Prévia
Antologia Prévia
 
Plano de aula aluno
Plano de aula   alunoPlano de aula   aluno
Plano de aula aluno
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2013 4, aula 60
Apresentação para décimo segundo ano de 2013 4, aula 60Apresentação para décimo segundo ano de 2013 4, aula 60
Apresentação para décimo segundo ano de 2013 4, aula 60
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 62-63
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 62-63Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 62-63
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, aula 62-63
 
Simbolismo no enem
Simbolismo no enemSimbolismo no enem
Simbolismo no enem
 
TI:Bocageapresentaçao
TI:BocageapresentaçaoTI:Bocageapresentaçao
TI:Bocageapresentaçao
 
O InefáVel Sentido Da Vida
O InefáVel Sentido Da VidaO InefáVel Sentido Da Vida
O InefáVel Sentido Da Vida
 
Jorge de sena
Jorge de senaJorge de sena
Jorge de sena
 
Augusto dos Anjos
Augusto dos AnjosAugusto dos Anjos
Augusto dos Anjos
 

Semelhante a Morte e Literatura: a poesia de Sandra Herzer

Miguel torga: Vida e Obra
Miguel torga: Vida e ObraMiguel torga: Vida e Obra
Miguel torga: Vida e ObraDina Baptista
 
trabalho de filosofia
trabalho de filosofiatrabalho de filosofia
trabalho de filosofiajoseapascoal
 
Religião e morte para entender os egipcios
Religião e morte para entender os egipciosReligião e morte para entender os egipcios
Religião e morte para entender os egipciosFabio Santos
 
Literatura e Movimentos Literários - uma introdução
Literatura e Movimentos Literários - uma introduçãoLiteratura e Movimentos Literários - uma introdução
Literatura e Movimentos Literários - uma introduçãoCarolina Matuck
 
Fernando pessoa
Fernando pessoaFernando pessoa
Fernando pessoaJosi Motta
 
Apresentação1 cic vinícius
Apresentação1 cic viníciusApresentação1 cic vinícius
Apresentação1 cic viníciusRonaldo Rom
 
Apresentação1 cic vinícius
Apresentação1 cic viníciusApresentação1 cic vinícius
Apresentação1 cic viníciusRonaldo Rom
 
Apresentação1 cic vinícius
Apresentação1 cic viníciusApresentação1 cic vinícius
Apresentação1 cic viníciusRonaldo Rom
 
Destino: A Casa de Hades - um estudo sobre a relação do homem ocidental com a...
Destino: A Casa de Hades - um estudo sobre a relação do homem ocidental com a...Destino: A Casa de Hades - um estudo sobre a relação do homem ocidental com a...
Destino: A Casa de Hades - um estudo sobre a relação do homem ocidental com a...Simone Elisa Heitor
 
Sentido da morte
Sentido da morteSentido da morte
Sentido da morteir_joice
 
Sentido da morte
Sentido da morteSentido da morte
Sentido da morteir_joice
 
Vida depois da vida!!!. .(a. .)--(((((som)))))
Vida depois da vida!!!. .(a. .)--(((((som)))))Vida depois da vida!!!. .(a. .)--(((((som)))))
Vida depois da vida!!!. .(a. .)--(((((som)))))Jose Pinto Cardoso
 

Semelhante a Morte e Literatura: a poesia de Sandra Herzer (20)

Miguel torga: Vida e Obra
Miguel torga: Vida e ObraMiguel torga: Vida e Obra
Miguel torga: Vida e Obra
 
trabalho de filosofia
trabalho de filosofiatrabalho de filosofia
trabalho de filosofia
 
Religião e morte para entender os egipcios
Religião e morte para entender os egipciosReligião e morte para entender os egipcios
Religião e morte para entender os egipcios
 
Antologia Poética - Vinícius de Moraes - 3ª A - 2011
Antologia Poética - Vinícius de Moraes - 3ª A - 2011Antologia Poética - Vinícius de Moraes - 3ª A - 2011
Antologia Poética - Vinícius de Moraes - 3ª A - 2011
 
Simbolismo
SimbolismoSimbolismo
Simbolismo
 
7756
77567756
7756
 
7756
77567756
7756
 
Literatura e Movimentos Literários - uma introdução
Literatura e Movimentos Literários - uma introduçãoLiteratura e Movimentos Literários - uma introdução
Literatura e Movimentos Literários - uma introdução
 
Fernando pessoa
Fernando pessoaFernando pessoa
Fernando pessoa
 
Apresentação1 cic vinícius
Apresentação1 cic viníciusApresentação1 cic vinícius
Apresentação1 cic vinícius
 
Apresentação1 cic vinícius
Apresentação1 cic viníciusApresentação1 cic vinícius
Apresentação1 cic vinícius
 
Apresentação1 cic vinícius
Apresentação1 cic viníciusApresentação1 cic vinícius
Apresentação1 cic vinícius
 
Em sentido contrário - 7º 5ª
Em sentido contrário - 7º 5ªEm sentido contrário - 7º 5ª
Em sentido contrário - 7º 5ª
 
Destino: A Casa de Hades - um estudo sobre a relação do homem ocidental com a...
Destino: A Casa de Hades - um estudo sobre a relação do homem ocidental com a...Destino: A Casa de Hades - um estudo sobre a relação do homem ocidental com a...
Destino: A Casa de Hades - um estudo sobre a relação do homem ocidental com a...
 
6e8 Alfredo BOSI.pdf
6e8 Alfredo BOSI.pdf6e8 Alfredo BOSI.pdf
6e8 Alfredo BOSI.pdf
 
Sentido da morte
Sentido da morteSentido da morte
Sentido da morte
 
Sentido da morte
Sentido da morteSentido da morte
Sentido da morte
 
Ap bandeira
Ap bandeiraAp bandeira
Ap bandeira
 
Vida depois da vida!!!. .(a. .)--(((((som)))))
Vida depois da vida!!!. .(a. .)--(((((som)))))Vida depois da vida!!!. .(a. .)--(((((som)))))
Vida depois da vida!!!. .(a. .)--(((((som)))))
 
Fp HeteróNimos
Fp HeteróNimosFp HeteróNimos
Fp HeteróNimos
 

Morte e Literatura: a poesia de Sandra Herzer

  • 1. Eu - cem anos de poesia I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI ISBN 978-85-7539-708-4 MORTE E LITERATURA: A POESIA DE SANDRA HERZER Rodrigo Michell dos Santos Araujo (PPGL/UFS/FAPITEC-SE) Fernanda Bezerra de Aragão Correia (PRODEMA/UFS/CAPES) O que pode um texto? Um texto que chama, um texto que tudo diz, um texto louco, um texto embriagado, um texto (in) consciente, indecidível, um texto-vida. E mais: um texto agonizante, um texto insone, um texto em êxtase, melancólico, desesperado. Um banho de chamas que destrói tudo por onde passa. Alerta de incêndio: apocalípticos, também podemos, assim, o chamar: textos-morte, tanatotextos que são sublimes e, ao mesmo tempo, degradados, enfermos, poeira. Como nunca dormem, cravadas nas potencialidades do vazio absoluto da página em branco, as palavras, ébrias, correm como fluxos, um turbilhão sem começo nem fim. Da magia à fatalidade, da solidão ao grito de desespero, a obra da paranaense Sandra Mara Herzer assim sendo o nome de batismo do então Anderson Herzer, ou apenas Herzer é um intenso córrego que vaza por todas as frestas até chegar às profundidades últimas da vida. De idas e vindas, jogada no esquecimento e no silêncio da margem, Sandra deixou apenas uma obra: A queda para o alto (1985). Convergência de dores e tormentos, de fugas e retornos da FEBEM do Estado de São Paulo, uma obra que (de)cai para os cumes do desespero, ou para a morte; obra que joga o leitor para baixo, para o alto, para os lados, para o infinito, para o não-lugar. Fragmentos. Na obra, Herzer tudo diz, tudo aponta, tudo denuncia, tudo proclama, a ponto de nos perguntarmos: para que direção aponta?1 Dizer tudo sobre si próprio, tentando esgotar o 2 (NASCIMENTO, 1999: 310). Divididas em duas texto finito e partes, a primeira parte da Queda contém um depoimento de Herzer sobre a agonia de uma vida em chamas, um testemunho manchado de dor, e a segunda parte trazendo suas poesias. Autobiografia para a morte. teorizações de autobiografia propostas por Philippe Lejeune, em O pacto autobiográfico (2008). pacto, partimos da literatura íntima de Herzer rumo à experiência da morte, fazendo de sua obra uma tanatobiografia. Neste palco de paixões e crueldades, recorremos à construção de um espaço de morte, fundamentando a partir de Maurice Blanchot, fundamentalmente em suas obras O espaço literário (2011) e A parte do fogo (1997), um trânsito entre a experiência da morte e a literatura, ou um trânsito entre morte e vida, onde uma figure na outra. Assim, far-se-á, neste espaço construído, uma aproximação entre a obra e o pensamento do filósofo romeno Emil Cioran, a partir de sua primeira obra em romeno, Sur les cimes du désespoir (1990). O que pode, então, um encontro entre Herzer e o considerado, hoje, o mais pessimista dos filósofos, a hiena pessimista (PIVA, 2002) Cioran (REDYSON, 2011) podem se estabelecer, tais como: vida agônica, sofrimento, melancolia, morte, desespero e angústia. 1 A mesma mão que aponta, como no filme do cineasta Theo Angelopoulos, Paisagem na neblina (1988), onde uma mão de concreto sem o dedo indicador emerge do mar, indicando para o acaso. 2 Grifos do autor. 1658
  • 2. Eu - cem anos de poesia I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI ISBN 978-85-7539-708-4 Sendo este encontro da poetisa possível com qualquer outro filósofo pessimista, justificamos o encontro com Emil Cioran justamente por ambos viverem uma vida inflamada de agonia e fazerem desta um movimento de flatter la mort, de desejar a morte, como se a morte, ao invadir a vida de tal modo, chegasse a assumir uma forma, corporificando-se, como a morte em forma de mulher vestida de branco e com seios à mostra no visceral filme de Ingmar Bergman, Na presença de um palhaço (1997). Estabelecidos os encontros, é a poesia de Herzer, então, um grito agônico, de denúncia e desespero, uma poesia-grito, ou poesia-protesto, que quer ser ouvida, vista, sentida, tocada. Uma poesia que fala com o coração, que canta como quem canta a última trova. E é com a experiência da morte que é, pois, a sua lírica uma poesia-dor. 1. Do encontro com a morte O que é a morte? Por que pensar (n)a morte? Partir da filosofia pode-se observar a gama de filósofos que se debruçaram sobre o tema. Filosofar a morte, pensemos fundamentalmente na filosofia antiga, é abrir-se para o pensar a existência. Desta base, e partindo da filosofia antiga, o filosofar a morte, no curso da filosofia, se abre por dois caminhos: um, de filósofos que trataram a morte como um nada; outros, que pensaram a morte como outra vida (cf. COMTESPONVILLE, 2002: 47). Assim sendo, vê-se que, em qualquer dos dois caminhos, filósofos buscaram responder a o que, de fato, vem a ser a morte. Problematizá-la, amá-la ou admirá-la. É possível tal olhar para a morte sem, antes, temê-la? Temer a morte é sempre partir rumo a um conforto, a um porto seguro, a um consolo sintomáticas são as primeiras linhas do Livro Tibetano dos Mortos homem contemporâneo procura na ciência e na tecnologia a mesma segurança que o primitivo tentou encontrar nos rituais, e que os nossos antepassados mais recentes buscaram na fé ndezas da morte esta que, digamos, atesta nossa finitude, existência do ser-para-a-morte (cf. HEIDEGGER, 2011) é um dar-se, um entregar-se: um exercício de admiração. Ao menos, assim será para o filósofo romeno contemporâneo que aqui escolhemos para estabelecer um trânsito com o corpus do artigo: Emil Cioran. O primeiro grito agonizante de Cioran dá-se com sua obra Sur les cimes du désespoir (1990), obra escrita aos vinte e dois anos. Acometido por insônia e ideia de suicídio, a primeira obra de Emil Ci 2011: 59). Obra síntese do seu mais pessimista e agonizant pensamento (PECORARO, 2004), sua revolta contra o mundo. A primeira tese da obra 1 (CIORAN, 1990: 28). Aqueles que gozam de boa saúde 2 são cap (CIORAN, 1990: 30). Isto é, só na enfermidade, existencialmente falando, para se compreender a morte; só descendo às profundezas da fatalidade ência de saúde, mas uma realidade tão positiva e tão durável quan 2011: 24). 1 2 1659
  • 3. Eu - cem anos de poesia I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI ISBN 978-85-7539-708-4 Mas é pela enfermidade que tanto se pode compreendê-la como materializá-la. Materialização que nos permite, pelo viés antropológico, compactuar com a tese de Louis Vincent-Thomas (1983: 186), para o qual -la em imagens, em nossos sonhos, obsessões, impulsos, para desejá-la ou temê-la; é também materializá-la em 1 . Enfermidade e agonia. Mas a agonia desvenda o aspecto 2 (CIORAN, 1990: 20). É como um banho de chamas que queima por dentro: fogo purificador. Luta entre vida e morte onde se vive a segunda de forma dolorosa, mas consciente. Enfermidade e agonia: ambas desespero. Grito altissonante, pois um grito de desespero 3 (CIORAN, 1990: 27). Mas é o homem, descido na enfermidade, agônico, pois sofre. Sofrimento existencial? Sem adentrar, deveras, nas profundidades das camadas da filosofia da existência, é salutar pontuar que, entre agonia e sofrimento, infiltra4 (CIORAN, 1990: 19); isto porque o sofrimento é um estado de solidão. As pesadas linhas do pensamento de Cioran mostram que o sofrimento é um dos pilares da -se num mundo e (REDYSON, 2011: 62). As portas do Éden parecem estar trancadas para o homem e, por não 5 conseguir achar a c (CIORAN, 1990: 60). Não há como abrir as portas do paraíso, a não ser pela destruição. Deste modo, sugere-se que a saída para Cioran é destruir o mundo, queimá-lo. Vida enferma, pois miserável. Assim Cioran formula a tese de maior impacto de sua obra 6 Cimes du désespoir: (CIORAN, 1990: 100). Com uma escritura que flerta com o literário, na forma prosaica por excelência7, Cioran, além de pôr em confluência filosofia e literatura, põe numa via de trânsito, ou melhor, põe numa mescla, morte e vida, onde a morte deita-se sobre a vida, figurando-se nela. Logo, portanto, a morte, para Cioran, sempre triunfa, vence. E mesmo que a morte triunfe o homem enfermo, 1989: 51). Conclui-se assim, em síntese, o que se cada dia, ape filosofia negativa de Emil Cioran, ou um pensamento em chamas. Mas, na escrita, Cioran chama a morte, ou, se assim melhor cabe a compreensão, é na escrita que a morte se espalha. Pensemos. Não foi o próprio filósofo estoico Lucio Anneo Sêneca, ou simplesmente Sêneca, que, em seu pensamento epistolar endereçado à Lucílio, de ânimo como se a morte fosse me chamar 8 . Na, e pela escrita perguntamos: posso morrer? Escrever é trazer a morte para perto. Aqui trazemos o crítico e ensaísta Maurice Blanchot, para o qual se tenta responder à questã há a fazer [...]. O homem morre isso não é nada, mas o homem é Representarse la muerte no es sólo vivirla en imagen, en nuestros sueños, obsesiones, impulsos, para desearla o temerla; és rio autor, não implicando uma tradução técnica. 1 2 3 4 5 6 7 Na obra Breviário da Decomposição (1989), Cioran apresenta a tese de que sua filosofia não possui sistemas 8 Grifo nosso. não sendo ele próprio 1660
  • 4. Eu - cem anos de poesia I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI ISBN 978-85-7539-708-4 (BLANCHOT, 2011: 100)1. Para Blanchot, o homem dissimula-se na morte. Dupla dissimulação: na solidão essenci 2 . Dupla é o que existe atrás do eu, o que o eu dissimula simulação, na morte e na escrita, conclui-se a tese de Blanchot como literatura como um direito à (BLANCHOT, 1997: 312). E, frente à morte, assim se sente o escritor, nesta longa citação primordial: A literatura aparece então ligada à estranheza da existência que o ser rejeitou e que escapa a qualquer categoria. O escritor se sente preza de uma força impessoal que não o deixa viver ou morrer: a irresponsabilidade que ele não pode superar torna-se a tradução dessa morte sem morte que o espera à beira do nada; a imortalidade literária é o movimento pelo qual, até no mundo, um mundo minado pela existência bruta, se insinua a náusea de uma sobrevida que não é uma, de uma morte que não põe fim a nada. O escritor que escreve uma obra se suprime nessa obra e se afirma nela. Se a escreveu para se desfazer de si acontece que essa obra o compromete e o chama, e, se escreveu para se manifestar e viver nela, vê que o que fez não é nada [...]. Ou, ainda, ele escreveu porque ouviu, no fundo da linguagem, esse trabalho de morte que prepara os seres para a verdade de seus nomes: trabalhou para esse nada, e ele mesmo foi um nada no trabalho (BLANCHOT, 1997: 326-327). A partir desta citação extensa, porém visceral, de Blanchot, chegamos à tese de que é a pois um phármakon phármakon (DERRIDA, 2005: 16). Em Jacques Derri A Farmácia de Platão (2005), a escritura um pharmakón, remédio e/ou veneno: o escritor um pharmakós? Nas trilhas do surrealismo, Blanchot do que válido pa 1997: 93-94). Qual seria, então, a condição do escritor? Para quê escreve? Em um brilhante -se em perigo sem se arriscar, um modo de suicídio, de autodestruição, que deixa lugar comodamente à mais segura autocomo um samurai nipônico a praticar o seppuko (cf. ARAUJO, 2012): meio Yukio Mishima, meio Paulo Leminski, escrever para (não) morrer. Tecidas considerações sobre a morte, e o encontro morte e literatura, podemos construir um espaço de morte para trazermos a poesia de Herzer, e que esta, na dissolução que lhe é proposta, possa bailar num movimento de puro êxtase um movimento que põe a dançar não apenas a poesia de Herzer, mas os próprios campos filosofia e literatura. Tudo é posto em movimento, dissolução, frenesi, gozo. Assim, neste espaço construído, podemos destacar a poesia que encontrou (com) a morte, uma poesia-grito, poesia-dor: tanatoescrita. 2 1 Grifo do autor. Grifo nosso. 1661
  • 5. Eu - cem anos de poesia I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI ISBN 978-85-7539-708-4 2. : uma poesia à espera. A escrita autobiográfica da primeira parte da Queda para o Alto já revela, de início, a vida como sofrimento cioraniano de uma pessoa que lutou o quanto pôde pelos marginalizados. Somada à segunda parte, de poesias, a obra, no todo, nos revela uma poetiza que, na escrita, vai de Eros a Tânatos, que fez de sua escrita um grito de dor e morte, mas sem deixar de crer no amor. Em suas poesias mais expressivas, o amor é sempre fruto ou oriundo da dor. Em uma volta aos mitos gregos, Caos, o vazio primordial, gera Gaia (a mãe, a terra), Tártaro (o abismo), Eros (o amor), Érebo (escuridão) e Nix (a noite). De Gaia, gera Urano (céu), a quem Gaia se une, gerando outros vários filhos, como os ciclopes, titãs e suas irmãs. Filhos que o pai, Urano, irá odiar. Temendo o poder de Urano de gerar outros filhos, a mãe Gaia presenteia o filho mais novo, Chronos, com uma foice, e este, segundo a mitologia, corta o órgão genital de Urano para impossibilitá-lo de procriar. Da mutilação, o falo de Urano cai no mar, mas, na queda, o sêmen do falo decepado mistura-se com as brumas do mar, dali nascendo, então, Afrodite, deusa do amor e da beleza (cf. especialmente ROMILLY, 1998; ROBERT, 1987; VERNANT, 1999; 2001; 2002). Em uma leitura contemporânea da mitologia, seria, digamos, o amor nascente da dor. Amor e dor na mesma moeda. Postos lado a lado, a poesia de Herzer traz essa marca de amor, mas pelo viés da dor e do sofrimento. Se a vida lhe é angústia e agonia, sua poesia é uma foice, como a de Chronos, para, depois do golpe, nascer o amor. Herzer fixa paixões e sofrimento na escrita. E nada melhor que María Zambrano, em um , da obra A Metáfora do Coração e Outros Escritos (2000), para afirmaro poeta penetra-a, já que a poesia está agarrada à carne. Com este movimento, revela-nos um ir e voltar, um chamar para afastar; uma angústia sem limites e um amor propag (ZAMBRANO, 2000: 126). Como que se estivesse a ouvir as palavras de María Zambrano, a obra de Herzer permite a abertura para dentro e para fora, permite a fuga e a busca, ou, como conclui A poesia de Herzer põe o leitor em queda, em todas as direções, fá-lo perder o rumo. Ousamos uma provocação: por que não uma poesia autobiográfica, pensando, e até, de certo Queda para o alto, assim revela a carga lírica de Herzer: Eu decaí, eu persisti Tentei por todos os meios ser forte. Lutei contra o tempo, Chorei em silêncio Gritei seu nome ao vento. Sou filho da gota Fui templo de miséria Meu pai, um perdido Minha mãe, a megera. Cresci vendo prantos, Dormi em meio à mata 1662
  • 6. Eu - cem anos de poesia I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI ISBN 978-85-7539-708-4 Chorei gotas sanguíneas Sou o pecado, sou a traça. Eu ouvi um grito de desespero, Vi a lenta corrupção, Vi o olhar do corruptor, Vi uma vida na destruição Eu vi o assassinato do amor. Tentei, venci, a vitória conquistei Porém um dia faleci. Hoje estou em sua lembrança Eu sou sua alma oculta E serei sua esperança. (HERZER, 1985: 19)1. Neste poema inicial, há uma grande força lírica que joga o leitor para um profundo todo manchado de sangue, manchado de dor, de tristeza, de melancolia. O eu lírico do poema, que decaiu, mas persistiu, tentando ser forte, constantemente luta: com a vida, mas principalmente consigo mesmo. Neste embate, é como se, digamos, o eu lírico estivesse frente a frente com um espelho que lhe reflete um mau reflexo, imagem refletida de um eu ambíguo. -se, pode constatar que sua imagem refletida também é miséria. Não deviam os espelhos pensar antes de devolverem as imagens? 2 Cruéis espelhos a revelarem um pai perdido, uma mãe miserável, dura realidade: não é mesmo a literatura que permite o fugir por todos os lados. Após o décimo terceiro verso, onde o eu lírico, mais uma vez, assume sua condição de enfermo o enfermo cioraniano , os versos seguintes além de refletirem, pelo duro espelho, imagens apocalípticas funcionar como uma câmera que filma em câmera lenta as agruras do real: a lenta corrupção, o corruptor, a vida em ruínas. O trágico. A tragicidade da vida exposta pelo assassinato do amor, do Eros. Mas é no vigésimo verso que o eu lírico encontra, por fim, a morte. E se restou apenas a lembrança, ou fragmentos de lembranças, é porque a morte é um lançar-se no nada. Nada Os primeiros poemas da seção Poemas trazem a marca da lembrança, da partida, do adeus, resultando, pois, a saudade, a solidão, o sofrimento, o choro, o vazio. Como se observa em longos, enaltecendo o caráter de prosa poética, pois também são longas a saudade e a dor. Tanto -se um eu lírico que, como se ébrio por estar perdido, movimenta-se no nada, no vazio. Como nota-se no seguinte verso de 145). Um dos expressivos poemas intitula- 1 Vale observar que, no capítulo XXI do diário que compete à primeira parte da obra, há uma pequena alteração no tocante aos . Aqui, os versos estão mais longos. Pode-se observar, portanto, que, na versão do poema que abre a obra, os versos encontram-se mais lapidados e arrumados. 2 Vale lembrar a antológica frase do filme de Jean Cocteau, O sangue de um poeta 1663
  • 7. Eu - cem anos de poesia I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI ISBN 978-85-7539-708-4 Eu queria ser da noite o sereno E umedecer o vale seco e pequeno. Eu queria, no dia claro, luzir Para ao amor todo o povo conduzir. Eu queria que branca fosse a cor da terra E não vermelha, para inspirar a guerra. Eu queria que o fogo me cremasse Para ser as cinzas de quem hoje nasce. Eu queria que os mais belos poemas fossem de Deus Para neles encontrar as virtudes dos irmãos meus. Eu queria e muito queria saber ganhar Para que as simples alegrias pudesse comigo guardar. Eu queria, como queria, saber perder Para agora tanta saudade de ti, não sentir doer. Eu queria morrer agora, nesse instante, sozinho, Para novamente ser embrião, e nascer; Eu só queria nascer de novo, para me ensinar a viver! (HERZER, 1985: 147)1. Poema de grande conteúdo subjetivo-sentimental e de apenas uma única estrofe de dezesseis versos, ou estrofe irregular, nota-se, quanto ao som do poema, a disposição de rimas emparelhadas obedecendo ao esquema AABB. Ainda no tocante ao som, quanto à simetria do poema, também pode-se observar a predominância do emprego de homeoptoto, isto é, repetição de várias palavras na mesma função. Pelo pretérito imperfeito do verbo querer, o eu lírico manifesta seus anseios, suas inquietações, suas ambiguidades: sereno/seco; noite/dia claro; saber ganhar/saber perder; morrer/nascer; morrer/viver. Um eu lírico na tentativa de proteger o próximo, o irmão indefeso, os marginalizados e os espaços secos, de opressão. Que o amor conduza o povo, que branca seja a cor da terra: uma poesia em defesa da vida, do amor. Mas como o sonho, o querer, de uma vida justa e sem guerra parece não se concretizar, forma-se o desejo de nulidade, de apagamento, de morte. Mesmo que das cinzas, como uma fênix, venha o renascer. Num movimento de queda, para o alto e para baixo, a poesia nos joga num labirinto de incertezas, e neste ponto onde tudo se mexe no turbilhão, podemos nos encontrar com Emil Cioran e suas proposições de que querer apagar-se, anular-se, diluir-se, nadificar-se. Querer morrer. Querer esgotar-se no branco vazio. E não é, mesmo, a morte um branco? 2 . Nada importa, êxtase da morte. le bain de feu desejado pelo eu lírico. A partir desse desejo, num movimento de êxtase, a poesia encontra a morte. O encontro vem do alto, diz3 . Assim, perguntamos: a poesia encontrou o que queria? Encontrou a morte? A vida? Se a poesia de Herzer pode ser encarada como autobiográfica, esta não limita sua escritura ao campo autobiográfico. A poesia de Herzer ultrapassa o limite autobiográfico e alcança o universal. Se as dores do poema de Herzer parecem ser as dores da poetiza, são, também, as dores do mundo, de um mundo manchado de vermelho que inspira a guerra, a violência, a opressão, o medo, a tirania, a dor, o choro, o ódio; e a poesia de Herzer pode ser tomada como um grito de Observa-se que, na página 167 da obra, o mesmo poema encontra-se numa nova edição com o título modificado, constando to verso editado, onde lêNão há registros da época em que a autora editou o poema. 2 A morte como um branco, além de poder ser visualizado através da mulher vestida de branco em Ingmar Bergman, vale citar o branco da morte muito bem trabalhado no filme A Palavra (1955), do diretor dinamarquês Carl Theodor Dreyer, por meio de uma película quase sempre branca, e a morte podendo figurar-se na névoa. 3 1 1664
  • 8. Eu - cem anos de poesia I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI ISBN 978-85-7539-708-4 resposta a essa opressão. O poema mais expressivo e mais melancólico da obra, não eliminando o fato de os outros também o serem, chamaE de chorar, já sou pranto; De relembrar, esquecido, Nas mãos, palmas calejadas Cavando desejos, proibidos. E de pensar, já sou louco, Não há encontro para mim, Não nome em tua lista, Não iniciei, sou sem fim. Com tantos erros passados, Ganhei má fama sozinho, Com tantos passos errados Não encontrei meu caminho. Tentei abrir as mãos e não vi nada, Nem mesmo aquele beijo da mulher falada, Nem aquele antigo abraço que ganhei, Eu lutei... perdi! Porque contigo errei. E de pecados, sou negro, De relutar, sou sem forças, De persistir, sou sem vista, De agredir, comunista! Não tenho eira nem beira, Não tenho amor para amar, Não posso amar quem não aceita Lutar e ver fracassar. E vou seguindo sem luzes, Ninguém verá minha partida, Não quero deixar saudades, Nem prantos na despedida. E se me quer na lembrança, Guarde meu nome contigo Meu nome é nome, só nome É simples mas decisivo. Na flor das noites de sangue Eu parto sem chorar dor, Eu parto, mas deixo contigo O que fui aqui, ... deixo amor. (HERZER, 1985: 158-159). Relembrar, esquecer. Constantemente o eu lírico nega-se desejo da nulidade. Lançar-se -se até que nada sobre, ou sobre apenas o nome, um nome nos versos sétimo e trigésimo primeiro ficam claro essa nulidade. Mas se eu lírico, ao negar-se, assume-se apenas como um nome, nome qualquer, abre-se também para o universal: quantos de poesia de Herzer, a luta e a perda. As poesias lutam e, ao abrirem as mãos e nada verem, perdem, decaem, fracassam. Resta-lhe, pois, partir. Partir sem rumo, partir por todos os lados, partir para a morte. Partir para o branco vazio. 1665
  • 9. Eu - cem anos de poesia I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI ISBN 978-85-7539-708-4 Poesia-dor, se fazendo de desabafo, de uma poetiza que não esperou para ver sua única obra publicada. Intensa, Herzer morreu cedo. Cedo demais. Em um agosto de 1982 um corpo estendido gravemente ferido no viaduto 23 de Maio, em São Paulo, fora encontrado e levado ao Hospital Gastroclínica. Herzer, uma canção de amor em dias de frio, uma flor em noites de sangue, que fez da vida um palco. Antes de sua morte, Herzer escreveu um singelo poema, Fiz de minha vida um enorme palco Sem atores, para a peça em cartaz Sem ninguém para aplaudir este meu pranto Que vai pingando e uma poça no palco se faz. Palco triste é meu mundo desabitado Solitário me apresenta como astro Astro que chora, ri e se curva à derrota. E derrotado muito mais astro me faço. Todo mundo reparou no meu olhar triste Mas todo mundo estava cansado de ver isso E todo mundo se esqueceu de minha estreia Pois todo mundo tinha um outro compromisso. Mas um dia meu palco, escuro, continuou. E muita gente curiosa veio me ver Viram no palco um corpo já estendido Eram meus fãs que vieram para me ver morrer. Esta noite foi à noite em que virei astro A multidão estava lá, atenta como eu queria. Suspirei eterna e vitoriosamente Pois ali o personagem nascia E eu, ator do mundo, com minha solidão... Morria! (HERZER, 1985: 12). Dois apontamentos: primeiro, o poema é, digamos como um hino à Cioran, pois um personagem decaído e jogado em um mundo que lhe é puro sofrimento, isto é, viver, para este personagem, é o que Cioran chama de vida como um mau gosto, um plágio (CIORAN, 2004: 34). personagens, experimentaram a vida como um mau gosto e, assim como Herzer, lutaram [Mishima e Herzer] com toda a força da brilhante espada samurai em defesa d lírico para não se fazer ouvir, a encenação parece não se fazer ver. A saída? A morte. Tanto a poesia de Herzer quanto os personagens dos romances de Yukio Mishima encontram na morte a saída de um mundo que não se quer enxergar, de um mundo caduco que não saber ver. Assim, no palco o corpo estendido pôde ser visto. Ali virou astro ou estrela, para lembrar a personagem Macabéa, de Clarice Lispector, em A hora da estrela (1998). Também teve o mesmo destino Herzer, estendida sob o viaduto a virar astro no dia da estreia. Da vida, um aplauso. Considerações finais Morrer livremente. Experimentar a morte: desejá-la, encontrá-la, tocá-la, figurá-la. Uma transa. Um gozo. Êxtase. Mas ainda voar nas asas da morte, romper-se no céu da morte, abrir-se 1666
  • 10. Eu - cem anos de poesia I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI ISBN 978-85-7539-708-4 para o branco da morte. Assim, onde tudo pode estar em movimento, onde tudo pode dar-se ao turbilhão da vida, construímos um espaço de morte. Com a poesia de Herzer e a filosofia negativa de Cioran, via crítica de Maurice Blanchot, tudo se pôs em trânsito, diálogos, confluências, intersecções. Neste frenético movimento onde todos se encontram, pudemos ver uma poesia que é ponte de Eros a Tânatos. Uma poetiza que escreveu suas cicatrizes, suas dores, suas paixões. Uma obra manchada de sofrimento. A Queda para o Alto é uma obra que, caída no esquecimento da crítica literária, grita, mesmo que sua voz seja rouca; que luta, mas lhe falta força; que crê na esperança do amor; que crê na vida sem guerras. Como um samurai japonês que luta até o fim com honra e paixão, mas se lhe é posta a derrota, morrer-se-á com a cabeça erguida, pois a morte lhe é um princípio ético. Devir-morte: o que os japoneses chamam de seppuko. As páginas de Queda trazem, portanto, a experiência da morte, e por esta experiência alcançam os cumes do desespero. Porque, deste modo, morrendo nos convertemos em donos do mundo. Referências ARAUJO, Rodrigo Michell dos Santos. O espaço autobiográfico e a experiência da morte em Yukio Mishima. Anais do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura. São Cristóvão, SE, UFS, v. 4, p. 1-14, 2011. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. 2ª Ed. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. ______. Sur le cimes du désespoir. ______. Silogismos da amargura. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. ______. Desgarradura. Barcelona: Tusquets, 2004. ______. Exercícios de admiração: ensaios e perfis. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. COMTE-SPONVILLE, André. Apresentação da filosofia. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. Trad. Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 2 vols. 5ª Ed. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 2011. HERZER, Sandra Mara. A queda para o alto. Petrópolis: Vozes, 1985. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. Jovita Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios ão Paulo: Companhia das Letras, 2010. NASCIMENTO, Evando. Derrida e a Literatura. Niterói: EdUFF, 1999. PECORARO, Rossano. Cioran: a filosofia em chamas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. PIVA, Paulo Jonas de Lima. Odium Fati. Emil Cioran, a hiena pessimista. In: Cadernos Nietzsche, nº 13, 2002, pp. 67-88. 1667
  • 11. Eu - cem anos de poesia I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI ISBN 978-85-7539-708-4 REDYSON, Deyve (org.) Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. REDYSON, Deyve. O interesse pelo pior. O conceito de péssimo na metafísica de Cioran. In: REDYSON, Deyve (org.) Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. ROBERT, Fernand. A literatura grega. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 1987. ROMILLY, Jacqueline de. A tragédia grega. Trad. Ivo Martinazzo. Brasília: Editora UNB, 1998. SÊNECA, Lúcio Anneo. Aprendendo a viver. Trad. Lúcia Sá Rebello. Porto Alegre: L&PM, 2011. THOMAS, Louis-Vincent. Antropologia de la muerte. México: Fondo de Cultura Econômica, 1983. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999. ______. Entre mito e política. Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Edusp, 2001. ______. As origens do pensamento grego. São Paulo: Edusp, 2002. ZAMBRANO, María. A metáfora do coração e outros escritos. 2ª Ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000. 1668