Implementação da Lei 10.639/03 sobre História e Cultura Afro-Brasileira
1. A Lei 10.639/03: Implementação do estudo da História da África e da
Cultura Afro-Brasileira
A Legislação :
No Brasil a legislação relativa a educação do ensino fundamental e
médio é nacional e obedece a uma hierarquia rígida que segue as disposições
constitucionais.
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, determina no
seu artigo 242, § 1°, que o ensino da História do Brasil levará em conta as
diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro.
Isto significa que em um país continental, como o nosso, todos os povos que
deram sua contribuição na formação do país devem estar representados.
Dando continuidade a este processo legislativo citamos a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação – LDB – Lei 9394 de 20 de dezembro. Ela
estabelece que base comum na educação básica, também chamado ensino
fundamental e médio, que abarca crianças e jovens dos 6 aos 14.
Isto significa que os currículos das escolas da rede privada e particular
devem compreender as seguintes disciplinas: Língua Portuguesa, Matemática,
Física, Biologia, Educação Física, Geografia, Realidade social e política e
História do Brasil, Art. 26 §1°. Porém a própria LDB disciplina que a base
comum deverá ser complementada aproximando-a da cultura, população e
sociedade local, Art. 26 § 4°.
Desta forma o Art.26, §4° da LDB e a segunda parte praticamente
repetem os dispositivos constitucionais.
Apesar de tais dispositivos as entidades negras observaram que o ensino
da História do Brasil continuava a ser lecionada como há gerações: o povo
negro “foi trazido” oi “veio” da África; após séculos de trabalho árduo foi
paulatinamente liberto através das leis abolicionistas e seu legado para a
cultura brasileira dá-se através da música, dança e culinária.
De que parte da África e em que condições chegaram ao Brasil? O que
realmente significou as leis abolicionistas? Como se deu as lutas de resistência
do povo negro? Em que condições vivem a maioria da população negra em
nosso país?
Os livros didáticos omitiam tais informações ou as tratavam de modo
superficial.
Foi desde a constatação mais que óbvia que surgiu a necessidade de
uma legislação que de fato obrigasse tal abordagem em sala de aula, e tão ou
mais importante que isto, que discutisse as relações raciais no Brasil, relações
estas que são também construídas no ambiente escolar.
2. Após várias reuniões o movimento negro elaborou uma proposta de
legislação, levada ao Congresso Nacional pelo Deputado Federal Paulo Paim.
O resultado de toda aquela mobilização foi concretizado na Lei Federal
10.639/03 de 9 de janeiro de 2003.
É um dispositivo legal com apenas dois artigos: o primeiro acrescenta ao
artigo 26 da LDB o artigo 26, A: tornando obrigatório no ensino fundamental e
médio sobre o ensino sobre a História e Cultura Afro-Brasileirada África.
Aparentemente, poder-se-ia alegar que tal declaração já estaria implícita
tanto na Constituição Federal, artigo 242, § 1°, quanto no artigo 26 da LDB.
Mas ao observarmos o §1° do artigo 1° da Lei 10.639/03 poderemos
observar que o conteúdo sobre tal ensino está explicitado: “História da África e
dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro
na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro
nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”.
É aqui que aparece a grande novidade. O negro deixa de ser visto como
uma mera figura passiva e alegórica na formação da sociedade nacional,
passando a ser representar como sujeito de sua própria história.
No parágrafo 2° do artigo 1° a lei dispõe que tais conteúdos programáticos
deverão ser ministrados em todo o currículo escolar, muito embora cite as
disciplinas de História, Literatura e Educação. Isto significa que qualquer
disciplina (Matemática, Física, Biologia, etc.) poderá ministrar tais temas via
interdisciplinariedade.
Por fim em seu segundo e último artigo a Lei 10.639/03 inclui no
calendário escolar o dia 20 de Novembro como o dia da Consciência Negra.
São inegáveis os avanços conseguidos pela lei 10.639/03. Primeiro
porque é uma legislação que vem do próprio povo negro organizado em várias
instituições de combate ao racismo.
Em segundo lugar porque a Lei ambiciona muito mais. Ela visa no âmbito
não apenas escolar, mas da sociedade como um todo, a repensar as relações
étnico-raciais, as relações sociais, as relações pedagógicas e procedimentos
de ensino e as próprias condições de ensino.
É na verdade um projeto político-ideológico baseado nas ações
afirmativas, que são ações implementadas pelos governos com o objetivo de
reconhecer, corrigir e anular desigualdades históricas da população, que na
pŕatica não possui os mesmos direitos e garantias sociais de que gozam os
demais cidadãos.
Dificuldade na Implementação da Lei 10.639/03
3. Apesar de já existir a quase 8 anos os novos artigos incorporados à LDB
ainda não foram integralmente assimilados no nosso sistema educacional.
Muitos são os empecilhos ainda enfrentados:
Falta de conhecimento da nova legislação: muitos estabelecimentos de
ensino alegam que desconhecem a existência da Lei 10.639, muito
embora ela faça parte do texto da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação desde o ano de 2003;
Desvalorização de sua importância: Mesmo conhecendo sua existência,
municípios, estados da federação e escolas a ignoram. Não percebem
sua importância alegando que coisas mais importantes teriam
prioridades;
Falta de qualificação profissional por parte dos professores do ensino
fundamental e médio: Na grande maioria dos cursos universitários, que
formam os professores/as do ensino fundamental e médio, a temática
África é inexistente. Priorizando a história do continente europeu e
americano como um todo.
Muitas universidades alegam que a Lei é muito recente e por isso ainda
não foi possível adequar as grades curriculares à nova realidade.
Este é um discurso muito questionável porque a África e a população
negra fazem parte de nossa história desde o início do século XVI e até
agora este fato foi praticamente ignorado pela academia.
No que concerne às relações raciais e sociais, estas não são objeto de
estudos nos cursos de Pedagogia muito embora o ambiente escolar seja
palco diário de tais conflitos, envolvendo professores/as, alunos/as,
direção da escolar.
Material didático e para-didático não condizente com a nova legislação:
Alega-se com freqüência a inexistência de material pedagógico
adequado a nova legislação. Este argumento também é falso temos
registro de várias e excelentes publicações nacionais e internacionais
que poderiam ser utilizadas tanto nos cursos universitários ou no ensino
fundamental e médio. O que constatamos é a preferência por
determinados/as autores, instituições e editoras, que continuam
influenciando a escolha de livros didáticos pelo MEC e,
conseqüentemente, pela rede pública de ensino.
Um caso exemplar foi a utilização do livro “Casa Grande e Senzala em
Quadrinhos”, da Fundação Gilberto Freyre, nas escolas do Município de Recife
e a assinatura de um acordo entre o Ministério da Cultura, Fundação Gilberto
Freyre e Governo do estado de Pernambuco para sua utilização nas escolas
do estado.
A utilização de tal obra, que veicula estereótipos de inferioridade
relacionados à população negra e indígena foi motivo de uma denúncia levada
ao Ministério Público Estadual contra a Prefeitura da Cidade do Recife e ao
4. Governo do Estado de Pernambuco pelas entidades de defesa dos direitos
Humanos e entidades negras.
Experiências exitosas na implementação da Lei 10.639
A Prefeitura do Recife em 2005/2006 realizou um curso sobre História e
Cultura Afro-Brasileira em parceria com o Programa de Combate ao Racismo
Institucional que capacitou cerca de 300 professores. Recife tem hoje cerca de
5.000 professores.
Em Novembro de 2006 realizou o 1º Seminário de Educação das
Relações Étnicos Raciais da Rede Municipal de Ensino e o segundo foi
realizado em 2007.
Ainda em 2006, com a criação do GT Êre, a prefeitura passou a
desenvolver outras ações realizadas como:
Formação Continuada para os diversos níveis de ensino: educação
infantil, fundamental, educação de jovens e adultos;
As ações compreendem as escolas municipais e as conveniadas;
Encontros quinzenais do GT Erê com 20 representantes de gerências e
diretorias com o objetivo de trocar informações e planejar ações.
As Gerências passaram a formular um plano de trabalho para
construção de proposições de ações para cada gerência.
Ações de abrangência: artes; atividades com alimentação e bonecas
negras para crianças da educação infantil; abordagem da questão racial
não apenas na semana da consciência negra; animação cultural; novas
tecnologias com recorte racial; música , poesia, contador de histórias,
caminhadas, trabalhando a identidade ( descobrindo-se negra ) etc.
Concurso de relatos de experiências exitosas na rede – premio para o
primeiro ganhadores e mais a publicação da experiência em texto e em
banners para as atividades itinerantes.
A Prefeitura de Olinda vem realizando ações pontuais através da
Secretaria da Educação - SEDO. Em 2006 realizou uma capacitação com base
na Lei 10.639 para professores da rede. Contudo, a maioria destes professores
foi contratada e após o concurso público, novos professores foram admitidos
passando a fazer parte do quadro permanente. Por isso, as informações que
foram apreendidas na capacitação não foram implementadas.
A rede municipal de ensino conta com 1.175 professores concursados.
Em 2006 a Secretaria de Educação de Olinda, busca financiamento para o
projeto Cultura Afro Brasileira com o objetivo de capacitar professores que
sirvam de agentes multiplicadores nas 45 escolas municipais com 4.597 alunos
na Educação infantil, 20729 no Ensino fundamental, 4.432 na Educação de
Jovens e Adultos e 33 alunos, totalizando 29.791 alunos.
Neste cenário e compreendendo que a maioria destes alunos são negros,
a SEDO realizou uma capacitação sobre a Lei 10.639 entre outubro e
dezembro de 2007 tinha como objetivo capacitar 256 (professores, diretores,
coordenadores e supervisores), mas foi realizada pra duzentos e 05 inscritos.
Esta capacitação objetivou o acesso à lei através de três grandes eixos de
discussão: Políticas Afirmativas; A escola como espaço de garantia e acesso
aos direitos e experiências exitosas e perspectivas para implantação.
5. Outra experiência de sucesso é a realização de um curso de pós-
graduação com base na Lei 10.639/03 na cidade de Goiana, Mata Norte do
estado.
A DJUMBAY, entidade de defesa da população negra, juntamente com a
Faculdade de Formação de Professores de Goiana, implementou o curso:
Pedagogia Afirmativa: Educação, Cultura e História na Perspectiva Afro-
Brasileira.
A primeira turma de Especialistas, formadas por professores graduados
em História, Geografia, Pedagogia e Teologia, concluiu seus estudos em 2006.
A Prefeitura de Goiana criou na Secretaria de Educação o Núcleo Afro,
formado por especialista do curso de pós-graduação, que produz material para
os/as professores/as e presta assessoria pedagógica às escolas do município.
Aquele município é o primeiro em Pernambuco a implementar a Lei
10.639/03.
Conclusão
Apesar de todas essas conquistas ainda permanece na academia e nas
políticas governamentais brasileiras a ideologia e o discurso culturalista e
lusotropicalista, que tem suas bases na década de 30 e conseguiu chegar ao
século XXI, de um Brasil representante de uma sociedade onde ainda se
propaga o mito da democracia racial.
Nesta conjuntura cabe às entidades de defesa dos Direitos Humanos e
Entidades Negras continuarem questionando e apresentando provas contra
esta falácia; apresentar propostas de capacitação para professores e gestores
sobre a História da África e da resistência do povo negro no Brasil e também
ocupar espaços na academia, que por ser um espaço de excelência intelectual
é também construtora de idéias e de políticas educacionais.