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Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45.
A morte cerebral como presente para a vida...
A MORTE CEREBRAL COMO O PRESENTE PARA A VIDA: EXPLORANDO
PRÁTICAS CULTURAIS CONTEMPORÂNEAS
BRAIN DEATH AS A PRESENT FOR LIFE: EXPLORING CONTEMPORARY CULTURAL
PRACTICES
LA MUERTE CEREBRAL COMO UN REGALO PARA LA VIDA: EXPLORANDO LAS PRÁCTICAS
CULTURALES CONTEMPORÁNEAS
Mara Ambrosina Vargas1
, Flávia Regina Souza Ramos2
1
Enfermeira. Doutoranda em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Educação pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora Adjunto da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Atua no Centro
de Terapia Intensiva Adulto do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). Membro do Grupo Práxis na UFSC.
2
Enfermeira. Doutora em Filosofia em Enfermagem pela UFSC. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem e do Programa
de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSC. Pesquisadora do Grupo Práxis na UFSC.
Endereço: Mara Ambrosina Vargas.
R. dos Pessegueiros, 155
92.320-360 - Harmonia, Canoas, RS
E-mail: maraav@terra.com.br
RESUMO: O ensaio reflexivo aborda a morte cerebral e a doação de órgãos situando-as como práticas
culturais contemporâneas e tendo como suporte teorizações que problematizam o corpo e o sujeito na
pós-modernidade, especialmente estudos pós-estruturalistas. São destacadas as relações entre as di-
mensões culturais, científicas, filosóficas e jurídicas que constituem um campo de contestações e nego-
ciações, onde se dão as decisões, normas e aparatos tecnológicos em torno da morte, doação e trans-
plante de órgãos.
ABSTRACT: This reflexive essay approaches brain death and organ donation, establishing both as an
contemporary cultural practice. It is based on the theorization that argues for the body and the subject
in the postmodernism, especially in post structural studies. This study also highlights the relationships
between cultural, scientific, philosophical and legal dimensions that constitute a field of contestation
and negotiation in which the decisions are made towards norms and technological devices concerning
death, organ donation and organ transplantation.
RESUMEN: El ensayo reflexivo trata sobre la muerte cerebral y la donación de órganos situándolas
como prácticas culturales contemporáneas, cuyo soporte está en las teorizaciones que problematizan el
cuerpo y el sujeto en la post-modernidad, en especial los estudios post-estructuralistas. Se destacan las
relaciones entre las dimensiones culturales, científicas, filosóficas y jurídicas, quienes constituyen un
campo de contestaciones y negociaciones, en donde ocurren las decisiones, las normas y los aparatos
tecnológicos respecto a la muerte, donación y el trasplante de órganos.
PALAVRAS-CHAVE: Morte
cerebral. Cultura. Bioética. En-
fermagem.
KEYWORDS: Brain death.
Culture. Bioethics. Nursing.
PALABRAS CLAVE: Muerte
cerebral. Cultura. Bioética.
Enfermería.
Artigo original: Reflexão teórica
Recebido em: 08 de agosto de 2005
Aprovação final: 17 de fevereiro de 2006
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Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45.
Vargas MA, Ramos FRS
ACESSO AO TEMA
A aproximação a este tema pode ser considera-
da de duas perspectivas. A primeira, reporta a uma
inserção em estudos acadêmicos sobre a intensifica-
ção da tecnologia e à influência desta sobre o sujeito
trabalhador da enfermagem e sobre a qualidade de vida
dos sujeitos pacientes; os direcionamentos possíveis
na problemática da doação e dos transplantes de ór-
gãos dados pela bioética e pelas re-significações do
viver e morrer, da saúde e doença em tempos denomi-
nados pós-modernos. Já a segunda, relaciona-se, justa-
mente, ao aporte teórico utilizado para refletir sobre
estas temáticas. Ou seja, para o desenvolvimento des-
ta reflexão, buscou-se apoio na teorização cultural e
no trabalho de autores e autoras, entre outros Michel
Foucault, que têm problematizado a noção de corpo e
de sujeito, na pós-modernidade, a partir de pressupos-
tos teóricos do pós-estruturalismo. Tais pressupostos
são assumidos por se entender que noções como hu-
mano, tecnologia, vida, morte, saúde e doença só po-
dem ser significadas culturalmente, já que são produ-
zidas no âmbito de práticas discursivas específicas. Dito
de outro modo, apreende-se que tais práticas
discursivas, instituídas por e instituíntes de relações
de poder, fazem mais do que simplesmente designar e
transcrever o real; elas criam e legitimam aquilo que
passa a ser reconhecido como sendo a realidade.1
Convém, ainda enfatizar, a assertiva de que atu-
almente é quase impossível escaparmos da cultura.
Nesta perspectiva, tal explosão da cultura explica-se
na medida em que a mesma está atrelada a assuntos de
importância empírica. Isto é, entende-se que as práti-
cas culturais e institucionais estão intrinsecamente pre-
sentes em todos os campos da vida social. Na área da
tecnobiomedicina, por exemplo, o crescimento dos
meios de comunicação, as novas tecnologias de ima-
gem e de intervenção sobre o corpo humano, mesmo
que possam traduzir avanços tecnológicos científicos,
têm um profundo impacto nas maneiras como se or-
ganiza a própria vida e nas formas como as pessoas se
relacionam umas com as outras. Logo, de um papel
secundário em relação à ciência, a cultura veio ocupar
um papel constituinte nas ciências sociais. Em vez de
ser vista como uma mera leitura sobre os processos
econômicos ou políticos, colocada no lugar de “outro
interveniente” sobre o que era realmente fundante, a
cultura é agora considerada como sendo constitutiva
do mundo social, tanto quanto tais processos econô-
micos e políticos. Não apenas isto; na perspectiva teó-
rica, ora operada, a cultura assume uma centralidade,
já que se parte-se do argumento de que todas as práti-
cas sociais são práticas de significação, fundamental-
mente culturais. Entende-se, pois, que toda condução
da prática social remete a certos significados, ou a con-
dições de pensar significativamente sobre ela. A pro-
dução de significados sociais é, portanto, um requisito
necessário ao funcionamento de qualquer prática so-
cial e uma explanação das condições culturais das prá-
ticas sociais precisa tomar parte da explanação socio-
lógica de como elas funcionam.2
Isto posto, o propósito deste ensaio reflexivo é
o de a partir do tema contemporâneo da morte cere-
bral e da doação de órgãos, demonstrar não apenas
como e por quê práticas culturais e institucionais vie-
ram desempenhar um papel tão crucial na vida no pre-
sente, mas também introduzir alguns dos conceitos
centrais de análise envolvidos na realização de um es-
tudo cultural. Assim, busca-se sinalizar que as frontei-
ras onde as diferenças entre vida e morte, corpo e
mente, humano e tecnologia, natural e artificial, orgâ-
nico e inorgânico são definidas, tornaram-se ambíguas.
Cientes de que tal ambigüidade não é explícita, o exer-
cício que se faz é o de, justamente, pretender dar-lhe
visibilidade. Considera-se, também, a pertinência de
pensar as novas tecnologias, as que possibilitam defi-
nir a morte cerebral para uma efetivação da doação de
órgãos na sociedade ocidental, como expressas atra-
vés de pontos de vista multifacetados. Isto é, que tais
tecnologias têm sido abordadas por diferentes, contra-
ditórias e complementares perspectivas, entre estas: a
cultural, a científica, a filosófica, a social, a jurídica, a
econômica e a política, cada qual, inserindo a seu modo,
também, um viés bioético. Infere-se que tais perspec-
tivas tornaram-se participantes ativas no processo de
naturalização de um conjunto de elementos que atual-
mente compõem as decisões, as normas e as rotinas
de programas e políticas que tratam da morte, da doa-
ção e do transplante de órgãos. Esse é o elemento que
se quer destacar: tal processo de naturalização, por si,
não é bom ou ruim, intencional ou espontâneo, certo
ou errado, justo ou injusto. É, pois, reflexo da comple-
xidade, determinações e contingências das práticas de
saúde na contemporaneidade.
O QUE TORNA A MORTE CEREBRAL E
A DOAÇÃO DE ÓRGÃOS PARTE DE NOS-
SA CULTURA?
Pode-se dizer que a vida e a morte foram ques-
tionadas e pensadas nas mais diversas culturas e pers-
pectivas filosóficas e religiosas, através dos tempos.
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Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45.
A morte cerebral como presente para a vida...
Além disso, nunca antes podem ser encontradas tantas
maneiras de significar tais noções dentro de uma mes-
ma racionalidade, a científica. Talvez isso expresse a
especificidade desta época, na medida que a medicina
avançada, a que inova em transplantes de órgãos e uti-
liza procedimentos de reanimação, se vê confrontada
a uma relativização da definição de morte.
Viver e morrer, fronteiras radicalmente rompi-
das com a intensificação da tecnobiomedicina? Vida e
morte, pensados e vividos em suas conexões com as
máquinas do início século XXI, tornam ambíguas as
diferenças entre aquilo que se autocria (por exemplo,
o humano) e aquilo que é externamente criado (por
exemplo, esse mesmo humano com um coração doa-
do por outro humano). Em tempos atuais, parece que
“pesa” mais ainda o que pode, afinal, significar a mor-
te quando se trata de produzir sentidos sobre o que,
afinal, é viver. Paradoxalmente, quanto mais se envol-
ve nesse empreendimento, mais a definição do que é
morrer, afinal, escapa.1
Concomitante ao exposto, explorar o advento das
novas tecnologias na constituição de subjetividades pode
fazer pensar ontologicamente, uma vez que aquilo que
caracteriza a vida, o ser vivo, faz problematizar aquilo
que caracteriza a morte. Por exemplo, diante de um/a
paciente com diagnóstico de morte cerebral, mediante
essa concepção de morte-morrer, este/a ainda teria seus
órgãos vivos; ele/ela seria, portanto, um ser que con-
tém, em si, elementos próprios de quem está vivo e, ao
mesmo tempo, elementos que sustentam a sua morte.1
Como já referido, a morte foi pensada de muitas
formas, nas diferentes sociedades e culturas. Nessa
direção, estudiosos fazem uma abrangente
contextualização histórica de como a morte tem sido
pensada e vivida pelo homem, ocidental, desde a anti-
güidade até a contemporaneidade.3,4
Segundo tais es-
tudos, na antigüidade, a morte era experimentada no
coletivo e na vida cotidiana como fato previsível mas,
também, misterioso. A morte, ao ser vivida como um
acontecimento menos privado, acarretava um contato
mais estreito com moribundos e, por isso, imputava
aos indivíduos a crença da própria morte.4
Para além
disso, a proximidade da morte manifestava-se através
de pestes, guerras e de uma medicina ainda incipiente,
quando comparada à do século XXI. O paciente ter-
minal da sociedade medieval, seja por qual fosse a causa
ou patologia, tinha uma morte considerada natural e,
muitas vezes, não diagnosticada.5
Outro aspecto importante desse período era o fato
de que a morte muitas vezes se fazia anunciar: ora com
sinais ou premonições sobrenaturais, ora com sinais
naturais. Assim, frente a essas premonições e à naturali-
dade da morte, as pessoas preparavam-se para morrer.
“Em seu leito de morte, eram assistidas e acalentadas,
sem que nenhum interdito interrompesse esse processo
de morrer. Como resultado, nessas sociedades tradicio-
nais, terminado o funeral, terminava a desolação”.3:16
De Homero a Tolstoi, a expressão constante de
uma mesma atitude global perante a morte permitiria a
tentação de pensar em uma continuidade nos modos de
concebê-la e vivê-la nesse período de quase dois milêni-
os. Em contrapartida, a morte estaria agora tão apagada
dos costumes das sociedades civilizadas que tornar-se-
ia difícil imaginá-la e compreendê-la. A atitude antiga,
em que a morte era ao mesmo tempo próxima, familiar
e menos temida opõe-se, demasiadamente, à atual, em
que ela parece causar tanto medo que já não se ousaria
pronunciar o seu nome: “É por isso que, quando cha-
mamos a esta morte familiar a morte domada, não en-
tendemos por isso que antigamente era selvagem e que
foi em seguida domesticada. Queremos dizer, pelo con-
trário, que hoje se tornou selvagem quando outrora não
o era. A morte mais antiga era domada”.3:40
Num contraponto à posição deste autor, susten-
tada por sua análise da narrativa de Tolstoi sobre o pro-
cesso de morrer do servo e do senhor,3
aponta-se o ar-
gumento que não se pode negligenciar a conexão entre
o modo de viver e o modo de morrer de um e de outro,
equetalvez Tolstoiissoquisessedemonstrar,aoenfatizar
essa diferença de conduta perante a morte do servo e
do senhor.4
Assim, é defendido que “seria interessante
fazer um levantamento de todas as crenças que as pes-
soas mantiveram ao longo dos séculos para habituar-se
ao problema da morte e sua ameaça incessante a suas
vidas; e ao mesmo tempo mostrar tudo o que fizeram
umas às outras em nome de uma crença que prometia
que a morte não era um fim e que os rituais adequados
poderiam assegurar-lhes a vida eterna”.4:12
Pode-se apreender dessa argumentação que, mais
do que caracterizar o processo de morte-morrer como
sendo “mais natural” até meados do século XX, é im-
portante relativizar a idéia de que, necessariamente,
todos os indivíduos e, em especial as culturas de que
esses faziam parte, aceitassem a morte passivamente.
O que se pode dizer é que as formas de morrer e de
definir a morte estão limitadas às possibilidades de cada
época. Então, desde o final do século XX, diante de
iniciativas como as desenvolvidas pela tecnociência
contemporânea, a morte evidencia mudanças em suas
configurações. Isto é, essa passou a ser encarada como
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Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45.
Vargas MA, Ramos FRS
“uma disfunção passível de ser evitada ou, pelo me-
nos, postergada, ampliando o sentido de poderio téc-
nico, tão forte na modernidade”.6:86
E é nessa possibi-
lidade de intervir, mais ativamente, sobre o processo
de morrer que se pode localizar uma descontinuidade
no processo de morte-morrer. Ou seja, o aprimora-
mento da tecnobiomedicina estabeleceu condições que
permitem intervir sobre a morte das mais variadas
maneiras. O indivíduo hospitalizado, diferente das so-
ciedades antigas, não tem mais a certeza de que vão
deixá-lo morrer. Na dúvida, médicos e enfermeiras se
precipitam sobre o morrer dos moribundos, impedin-
do-o, prorrogando-o, desfigurando-o.1
O objetivo primeiro do atendimento a um/a pa-
ciente é a manutenção da vida. “Os profissionais de
saúde são preparados para a manutenção da vida, tendo
dificuldades para lidar com situações de morte-mor-
rer”.5:14
Ou seja, o/a paciente de hoje, com diagnósticos
ehipótesesprognósticasdefinidas, dificilmenteterá‘mor-
te natural’. Ele/ela tem grandes possibilidades de pas-
sar por respiração artificial, filtração renal, quimioterapia,
drogas vasoativas, reanimação cardiorrespiratória, den-
tre os inúmeros recursos existentes.5:14
A imortalidade está baseada menos na aprecia-
ção do que seja vida e mais no medo da morte. Seria
um temor que, nesse caso, estaria centrado na imagem
antecipada da morte. Estaríamos diante de uma socie-
dade que busca incessantemente a imortalidade. Nes-
sa perspectiva, a mortalidade é tornada anônima, es-
condida, e a imortalidade é que é visibilizada,7
já que
“considera-se cada vez mais normal substituir o direi-
to à saúde pelo direito de não mais morrer”.8:23
A ciên-
cia criou a vida crônica, e a ambição de limitar a morte
é o outro lado da moeda da vontade de tornar a vida
ilimitada e infinda.
Analisando a relação do viver e do morrer com
o poder, enfatiza-se na literatura que, de maneira ex-
trema, se poderia crer que hoje a morte é mais objeto
de tabu do que o sexo.9
Com esse entendimento, é
relacionado o ocultamento da morte a uma transfor-
mação das tecnologias de poder. Até o século XVIII, a
morte era demasiadamente valorizada e ritualizada
porque se tratava da manifestação de uma passagem
de um poder ao outro: do poder do soberano terrestre
ao poder do soberano celeste. De um direito civil e
público, de vida e morte, a um direito que era de vida
eterna ou de eterna condenação. Prosseguindo nessa
argumentação, refere-se que as atuais tecnologias de
poder biopolítico tomam como alvo a vida, na medida
em que “a velha potência da morte que simbolizava o
poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela
administração dos corpos e pela gestão calculista da
vida”.10:131
Nesta direção, o biológico reflete-se no po-
lítico, pois o fato de viver cai, em parte, no campo de
controle do saber e da intervenção do poder. “A morte
é o limite, o momento que lhe escapa”.10:130
Terminada
a vida, termina o poder, pois a morte encontra-se fora
da capacidade de ação do poder. O poder, incapaz de
dominar a morte, dominará a mortalidade. Há, por-
tanto, um processo de exclusão da morte com uma
concomitante valorização da imortalidade, como pos-
sibilidade de uma permanência da ação do poder. Tal-
vez tal análise de estudo9
ajude a explicar a atual
desqualificação da morte, marcada pelo desuso dos
rituais que a acompanhavam.
Desta análise pode-se lançar o pressuposto de
que a tecnobiomedicina só exerce seu poder sobre a
morte, como diria, exercendo seu direito de prolongar
a vida, otimizando ou definindo regularidades e
regulações para o que se pode caracterizar como o es-
tado de vida.9
Nessa perspectiva de valorização da vida,
a medicina fracassa se, e quando, a morte ocorre. Ela
parece exercer cada vez menos o direito de deixar
morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer
viver. A ritualização recai, agora, sobre a capacidade
de promover novos arranjos que, interminavelmente,
sustentem a vida e, assim, o poder. Controlar a vida
implica constantemente ressignificar a morte e, nessa
direção, o discurso científico sobre a morte tem sido
articulado na confluência dos discursos médico (com
seus desdobramentos na tecnobiomedicina), jurídico
e ético. E assim, chega-se a morte na terceira pessoa, a
morte em geral, a morte abstrata e anônima, um obje-
to como outro qualquer, um objeto que pode ser des-
crito e analisado. Para além disso, chega-se também a
um processo permanente de aprendizado, ora sobre as
reconceitualizações de morte-morrer, ora acerca das
maneiras de interrompê-la ou, se for o caso, decretá-
la. A esse respeito, alguns especialistas têm sido con-
vocados para legitimar esse discurso científico sobre a
morte, por exemplo, o médico neurologista, para diag-
nosticar uma morte encefálica.1
Estudos que utilizam documentos da história
recente e materiais publicados na mídia contemporâ-
nea, demostram o esforço para tornar inquestionáveis,
dentro do círculo profissional médico, os argumentos
utilizados para a institucionalização e legitimação da
morte cerebral como sinal inequívoco de cessação da
vida no corpo humano (assim como os conceitos de
morte vegetativa e de parada do coração e dos pul-
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Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45.
A morte cerebral como presente para a vida...
mões, seguidos por sua rotinização). Tal desejo de de-
finir a vida e a morte como conceitos cientificamente
comprováveis e como categorias verificáveis, têm fo-
mentado discussões e esforços em todo o mundo.11,12
Como as/os profissionais enfermeiras/os se re-
lacionam com o processo de morte e morrer e de do-
ação de órgãos? É pertinente lembrar que tais profissi-
onais estão diretamente implicados nestes processos,
ao menos pelas seguintes evidências: conectam paci-
entes a diferentes equipamentos para mantê-los/las
vivos/as; detectam limiares tênues e deslizantes entre
o viver o e morrer quando estão conectadas a diferen-
tes máquinas; cuidam dos/das receptores/as de ór-
gãos de outro ser humano com o objetivo de que ob-
tenham uma sobrevida; conservam pacientes doado-
res/as de órgãos conectados/as a várias máquinas para
a manutenção das condições ‘ideais’ para doar seus
órgãos a outro(s) ser(es) humano(s); participam ativa-
mente do processo de definição do tipo e do momen-
to da morte, justamente porque estão amparadas por
uma infinidade de protocolos assistenciais que os au-
xiliam, ou melhor, os conduzem, indicando qual é o
manejo destas situações. E, mais recentemente, inte-
gram a equipe de captação de órgãos.
Nessa perspectiva, a discussão da morte permi-
te assinalar e, através desse procedimento, questionar
e problematizar algumas polaridades, tais como: as
relações entre a mente e o corpo; a morte cerebral e a
morte orgânica; o reverssível e o irreverssível; os/as
pacientes vivos/as e os corpos mortos; o/a receptor/
a vivo/a e o/a doador/a cadáver; a avaliação clínica
da morte e a avaliação tecnológica da morte; as deci-
sões médicas e as opiniões e valores; e o/a especialista
científico/a e os/as outros/as especialistas. Permite,
também, operar com essas dicotomias para colocá-las
sob tensão e, assim, demonstrar a inexistência da pos-
sibilidade de uma delimitação entre suas fronteiras,
obrigando à convivência com tais relações de forma
ambivalente, polissêmica e polêmica.1
Um tema já tocado, e que agora pode ser reto-
mado, é o da íntima relação entre as políticas de morte
e as políticas de transplante. De certa maneira, é possí-
vel afirmar que a morte cerebral está sendo estabelecida
a partir de, e em função de critérios e convicções deri-
vados da necessidade de conseguir mais órgãos e, por
extensão, mais vida.
Morte cerebral ou morte encefálica é uma defini-
ção que começou a ser utilizada, na década de 60, nos
Estados Unidos e na maior parte da Europa, para faci-
litar a doação de órgãos e justificar o desligamento dos
ventiladores mecânicos. O mais importante é que tem
sido possível sustentar uma pessoa com diagnóstico de
morte-cerebral por algumas horas, semanas e, mais re-
centemente, por períodos mais longos de tempo. Medi-
ante esses avanços tecnológicos, muitas pessoas com
morte cerebral mantêm seus corações batendo “natu-
ralmente”. Algumas vezes, quando um coração pára,
ele pode ser reanimado, ou máquinas podem fazer esse
papel e, nesse caso, esses corpos são chamados por al-
guns médicos de cadáveres sem batimentos.
Na citação, “Morte encefálica é MORTE! [...]
declarar o paciente CADÁVER, corpo, afastar as fal-
sas esperanças!”13:216
evidencia-se um esforço em es-
tabelecer uma uniformidade em relação a como tra-
tar o momento em que é diagnosticada uma morte
encefálica ao mesmo tempo em que se busca, tam-
bém, dirimir qualquer dúvida sobre como proceder,
nesse caso. No entanto, as palavras destacadas pelo
autor não conseguem escamotear toda a tensão que
atravessa os significados que a morte assume em
nosso contexto cultural. A citação também parece
endossar o pressuposto de que determinados tipos
de morte recebem uma abordagem mais
intervencionista, no sentido de estabelecer, de ma-
neira mais imediata, o momento em que a vida cessa
e se instala a morte. No caso em questão, a morte
encefálica é tratada com um tipo de morte que ‘ne-
cessita’ dessa imediatez e exatidão.
Uma investigação etnográfica12
comparou a re-
percussão da definição científica de morte cerebral
em um país ocidental e no Japão e concluiu que os
norte-americanos adotam a definição científica de
morte, que é discutida pelos e entre os/as cientistas,
na perspectiva da valorização do transplante e apro-
veitamento de órgãos e com ênfase no/a receptor/a,
idéia prática de chances de vida. Já os japoneses teri-
am uma visão mais holista da morte e não incorpo-
ram tanto o dualismo mente/corpo. As maneiras de
lidar com a morte são discutidas publicamente, e os
japoneses não aceitam como natural a violação do
corpo de um/a possível doador/a, preocupando-se,
inclusive, mais com o/a doador/a do que com o/a
receptor/a. No entanto, destaca-se o fato de que tan-
to os japoneses quanto os norte-americanos, com suas
perspectivas aparentemente divergentes, não fogem
aos critérios científicos, já que os especialistas japo-
neses da terapia intensiva também não problematizam
os critérios que permitem estabelecer a morte cere-
bral como indicativo irreversível de que a morte se
aproxima ou, inclusive, já chegou. Além disso, eles
também analisam a morte cerebral como sendo algo
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Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45.
Vargas MA, Ramos FRS
distinto de outras situações em que o cérebro é seve-
ramente afetado, incluindo um estado vegetativo per-
sistente. Mas eles foram além, pois (os japoneses) as-
sumem estabelecer o diagnóstico de morte cerebral
sustentados nas evidências criadas tecnologicamente,
secundarizando um julgamento clínico de morte. En-
tretanto, na situação do Japão, o que muda é a manei-
ra de lidar com o corpo após a morte, e a determina-
ção de quem está autorizado a dizer o que fazer com
esse corpo após a morte. Ou seja, há outros/as espe-
cialistas, além dos/as que seguem os princípios cien-
tíficos e racionais a quem se atribui uma legitimidade
capaz de fazer com que sejam ouvidos nesse campo
de disputas. Em suma, foi demonstrado como sabe-
res e valores culturais e sociais, acerca do mesmo even-
to, podem ser normalmente reconhecidos e partilha-
dos em um contexto (Japão) e não serem aceitas e
compartilhadas em outro (o círculo em que são toma-
das decisões médicas norte-americanas).12
Sobre os conflitos perante a decisão de ampliar
ou limitar o uso de tecnologias médicas em casos es-
pecíficos de pacientes legalmente mortos, são levanta-
das pertinentes questões sobre a “nova” morte. O
exemplo do caso de Janet, gestante declarada em mor-
te cerebral, mantendo seu feto vivo, incita a questio-
nar: o que é morte, se nesse caso, vida saudável pode
sair daí?.*
É apontado o fato de que alguns profissio-
nais da saúde não gostam do termo “morte cerebral”,
porque esse marca uma diferenciação entre morte e
morte cerebral. Em função disso, indaga-se: “mas esse
não é o caso? Seguindo um protocolo, o corpo de Janet
não estava morto? [...] Parabéns às máquinas que sus-
tentaram esse estado. Sua inteligência se foi, mas tal-
vez não sua alma [...] ela foi menos do que um huma-
no, mas mais do que um morto”.7:108
No entanto, a morte encefálica não é uma novi-
dade criada pela lei de doação de órgãos, em seu artigo
3°, mas é interessante destacar a ambigüidade gerada
por ele: “Aliás, somente este artigo mereceria um de-
bate especial, pois, para o imaginário de muitos,
doravante, morrer e viver mudaram de sentido: a vida
do coração, outrora órgão rei ou a vida do pulmão,
que no apogeu da termodinâmica foi considerado o
centro do calor vital, o órgão do espírito, devem ser
mantidos após a morte encefálica para possibilitar o
transplante. Aqui a morte ideal não é aquela em que o
‘descanse em paz’ pode ser dito a todos os órgãos.
Bichat havia afirmado que a vida era ‘um conjunto de
forças que resiste à morte’. Hoje, paradoxalmente, a
morte encefálica, a morte ideal para possibilitar o trans-
plante, também possui esse significado”.8:73
Antes da intensificação dos procedimentos de
transplante de órgãos, as mortes cerebrais não se cons-
tituíam em problema e, por isso, os pacientes poderiam
permanecer longos períodos mantidos em morte cere-
bral. Foi justamente após a implementação dos trans-
plantes de órgãos que se instituiu a necessidade da dis-
cussão e legitimação da definição de morte cerebral. É
interessante lembrar que o primeiro transplante cardía-
co foi realizado por Barnard em 1968, na África do Sul.
O doador, do coração, era negro e o receptor era bran-
co. Depois das experiências dos primeiros transplantes
é que a Organização Mundial da Saúde e a Organização
Mundial dos Médicos, a Harvard Medical Scholl e ou-
tras instituições deram uma nova definição de morte: a
de morte cerebral, legitimado no ano de 1969.
É, ainda, pertinente lembrar que, já em 1975, o
bioeticista Tristram Engelhardt levantou que a defini-
ção de irreversibilidade da morte seria uma definição
conservadora. Apoiado firmemente na dicotomia de
corpo/mente, ele acreditava que uma decisão inteli-
gente seria definir a morte no instante da morte cere-
bral, dizendo que a vida biológica humana não é a
mesma que a vida pessoal humana. Mesmo estando
vivo e intacto, ele não seria mais uma pessoa singular e
única. O bioeticista ainda apontava as mudanças
advindas desde o desenvolvimento da neurologia mo-
derna, e de como a neurofisiologia toma como base o
conceito de que ser uma mente, neste mundo, é ter um
cérebro funcionando de forma intacta. Para ele era uma
conclusão lógica que pacientes, com falta de função
cerebral e em persistente estado vegetativo, não vivem
por muito tempo. O conceito de desumanidade, apoi-
ado na definição de morte cerebral, oferece à medici-
na um caminho para distinguir os pacientes para com
os/as quais ela tem obrigações, e é essa distinção que
torna possível que os órgãos das pessoas com morte
cerebral possam ser usados para ajudar pessoas ainda
vivas. Deste modo, não existiria obrigações para com
os órgãos, e nenhuma ética perduraria sobre a remo-
ção de órgãos daqueles/as definidos/as como não-
pessoas.12
*
Caso descrito em artigo, tratando de paciente grávida de 22 semanas que apresentou um aneurisma cerebral e, em 24 horas, teve declarada sua morte cerebral, mas
seu feto ainda vivia.7
O hospital colocou uma equipe de enfermeiras especializadas para tratar de Janet e seu bebê antes que ocorresse o parto. Apesar de Janet estar
legalmente morta e as enfermeiras saberem disso, sentiam que ela estava viva. Seu cabelo e unhas cresciam, seu bebê também. Em referência a um caso semelhante,
Grmek afirma que uma grávida de um feto ainda vivo, suscita nas pessoas a idéia de que não se pode falar que a mesma esteja morta – mesmo que a noção de
morte cerebral já esteja bem divulgada entre os indivíduos. Como uma criança nasceria de uma mãe morta? O tratamento é dado como para um caso de coma.
- 143 -
Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45.
A morte cerebral como presente para a vida...
Se a distinção entre vida e morte, entre ser vivo
ou ser cadáver, está hoje condicionada a padrões mais
ou menos consensuados, cientificamente balizados e,
portanto, sob o domínio de uma comunidade de
profissionais, isto não quer dizer que comunicações
não se estabeleçam entre diferentes círculos ou comu-
nidades e que a cultura esteja excluída destes ou das
comunicações possíveis entres os mesmos. A dimen-
são jurídica é exemplar desta relação entre ciência e
cultura. Sob a análise jurídica, cadáver é “coisa” (não
mais pessoa ou ser de direito), mas “coisa” sui generis,
que por preservar a imagem de uma pessoa, deve ser
respeitada em condições especiais e diferenciados em
relação a qualquer outra “coisa”.
Assim, é possível destacar mais algumas das
conflitualidades presentes nessa discussão sobre mor-
te cerebral. No caso brasileiro, atualmente a “legisla-
ção tem orientação organicista: a morte só é reconhe-
cida pela Justiça quando há parada cardíaca”.13:216
Como
se vê, mesmo com a realização intensificada dos trans-
plantes de órgãos e com a divulgação ampla da neces-
sidade de aprimoramento do diagnóstico de morte ce-
rebral, não se estabelece uma sincronia entre o consi-
derado avanço científico e sua legislação. Pode-se deli-
near, também, nessa argumentação, a polarização en-
tre o orgânico e a mente. Coração e pulmão estão rela-
cionados com a ordem da morte orgânica. O sistema
nervoso está relacionado com a ordem da morte men-
tal. Mas, desde quando o sistema nervoso deixou de
ser órgão dentro do paradigma científico? Desde quan-
do a tecnologia é naturalizada e, deste modo, encobre
os inevitáveis conflitos que resultam da mistura entre
o eu e o outro? Partindo do pressuposto de que no
mundo ocidental a ciência impera como forma
hegemônica de construir a realidade,14
torna-se impor-
tante resgatar certa inconformidade ao papel exclusi-
vo de porta-voz da discursividade tecnocientífica.
Cabe ainda refletir que, de maneira geral, os dis-
cursos que permeiam o contexto social dos transplan-
tes de órgãos o legitimam como um “presente da vida”.
Também cabe lembrar que, nesse contexto social, hou-
ve necessidade de reconceitualizar a morte como uma
forma de obter órgãos vitais, adequados para a reali-
zação desses transplantes. Em suma, mais do que os
transplantes de órgãos, paradoxalmente, a morte ce-
rebral é o presente para a vida.
Mas como a construção de significados é um pro-
cesso progressivo, é estendido, de algo que já se conhe-
ce para algo novo, através da chamada ‘cadeia de signi-
ficado’, um outro aspecto de discussão se apresenta,
sobre a doação de órgãos. E aí, talvez, mais do que a
questão da morte cerebral, a questão da doação de ór-
gãos informa sobre o que determinada prática de saúde
pode vir a significar para aqueles que a usam. Ou seja,
na medida em que se acredita que os sujeitos, pacientes
e profissionais, não são ingênuos e/ou indiferentes, há
sempre uma determinada persuasão para estabelecer o
que se passa a considerar como necessidade. As neces-
sidades são, portanto, mais culturais do que naturais.
Isto quer dizer que as necessidades tanto são definidas
como produzidas pelos sistemas de significação através
dos quais se atribuí sentido ao mundo e, assim, elas
estão abertas para serem trabalhadas e transformadas.2
Isto é o que vem acontecendo com a necessidade de
doação de órgãos, inserida em um campo amplamente
contestado, de lutas, de relações de poder, exatamente
porque de liberdades: o do direito a ter direito.†
Com o advento da Carta Magna de 1988 ficou
garantida, em seu artigo 5° e incisos, a tutela do direito
à vida a qualquer indivíduo. Deste direito, há o de exis-
tência, que se caracteriza no direito de estar vivo, de
lutar pelo viver, de defender a própria vida, de perma-
necer vivo. Neste campo, em princípio, é que incide,
novamente, uma das propostas de análise deste ensaio
reflexivo, a polissemia e o caráter ambíguo, agora, do
termo direito à ter direito. Vale dizer, a possibilidade de
manutenção da vida por um indivíduo que, procurando
exercer este direito, acaba por procurar um profissional
da saúde, o qual, empregando as técnicas e os conheci-
mentos existentes na área do transplante de órgãos, tor-
na possível o prolongamento da vida daquele que se
encontra em situação de grave enfermidade.15
No caso específico dos transplantes de órgãos,
este direito à vida se entrecruza com o direito de deci-
dir e o direito à integridade física do doador de órgãos.
Ou seja, quando se cuida de alguém com diagnóstico
de morte cerebral e este alguém não só preenche os
critérios de inclusão para doação de órgãos, como está
internado em um local articulado à base organizacional
de captação de órgãos para transplante, automatica-
mente este alguém passa a ser um provável doador
cadáver. Na verdade, há duas maneiras de obtenção de
órgãos: através do doador cadáver e do doador vivo.
“Após a tramitação de vários projetos de lei no
Congresso Nacional, foi sancionada a Lei n. 9.434,
de 4 de fevereiro de 1997, disciplinando que todos
os brasileiros são doadores, salvo manifestação de
vontade em contrário”.15:161
Para manifestar-se em
†
Foucault argumentaria que o poder só pode ser exercido onde existe liberdade e portanto, um grau de incerteza em qualquer relação.
- 144 -
Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45.
Vargas MA, Ramos FRS
contrário, todo indivíduo deveria enfrentar a buro-
cracia do sistema para alterar a Carteira de Identida-
de ou a Carteira Nacional de Habilitação, visando
colocar, ali, a expressão “não-doador”. Em 1998, a
Medida Provisória 1.718 disciplinou, que “na ausên-
cia de manifestação de vontade do potencial doador,
o pai, a mãe, o filho ou o conjugue poderá manifes-
tar-se contrariamente à doação, o que será obrigato-
riamente acatado pelas equipes de transplante e re-
moção.”15:162
A citada Medida Provisória (de 1998)
sofreu 32 revisões, até chegar a versão MP 2.083-32
de 22/02/2001 e converter-se na Lei 10.211 de 23/
03/2001. Desta forma, atualmente, a autorização da
doação de órgãos depende da autorização do cônju-
ge ou parente, maior de idade, obedecida a linha
sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau, fir-
mada em documento subscrito por duas testemunhas
presentes à verificação da morte.15
O que se observou, neste rápido, mas intenso
processo de elaboração legislativa, foi um entorno
conflituoso, tanto do ponto de vista de algumas polê-
micas envolvendo a opinião pública e a pressão dos
profissionais médicos, em franco processo de desobe-
diência civil à doação presumida. Assim, antes de uma
proposta de efetiva adaptação cultural, ou mesmo ba-
ses concretas para a análise das representações e ma-
nifestações sociais em relação à lei, a autoridade
governante sucumbiu às pressões e acabou com a do-
ação presumida no país.
Na experiência internacional há, além da doação
voluntária, o consentimento presumido, o qual parte da
premissa de que todo cidadão é doador de órgão, por
definição. Este consentimento presumido é dividido em
dois tipos: o forte e o fraco. O forte, adotado em alguns
países da Europa, possibilita que o médico remova ór-
gãos de todo e qualquer cadáver, enquanto que o fraco
apenas do que não declararam objeção a este procedi-
mento.16
Mas, a prática tem mostrado que, mesmo com
a possibilidade do consentimento presumido forte, os
familiares têm sido consultados.
Em suma, poder-se-ia dizer que a abordagem
jurídica, ora procurando preservar o desejo do possí-
vel doador, ora transferindo a escolha para os familia-
res, tem sustentado, sempre, algum tipo de transgres-
são ao direito a ter direito. No entanto, sabe-se que tais
aspectos legais refletem todo um contexto de discus-
são para muito além do jurídico. Ou seja, a relação
morte cerebral e doação de órgãos não é mais apenas
parte de nossa cultura. Ela, a relação, possui uma cul-
tura própria em torno de si, desenvolveu-se um con-
junto de significados e práticas; ela é um significado
com alto grau de consenso em nossa época.
ENFIM...
É possível se dizer que algo é bom porque foi
provado? Do ponto de vista científico: sim. E mais, do
ponto de vista científico conseguir provar algo é tornar
este algo verdadeiro, idéia que em nossa sociedade, quase
sempre vem acompanhada de outros tantos atributos,
muitos deles mistificados. Assim, verdade científica é
verdade neutra, boa, única, universal e igual para todo
mundo. No entanto, em tempos atuais, é insustentável a
noção de um essencialismo científico, em que a ciência
e seus cientistas operariam a partir de um grande
paradigma universal. Em vez disso, cada peça do co-
nhecimento científico, na perspectiva aqui adotada, é
considerada como produto de determinado lugar e tem-
po, faz sentido neste tempo e lugar, mas em outro tem-
po e/ou lugar pode não fazer sentido, pode até ser com-
pletamenteignoradoe/ouesquecido.Abandona-se, pois,
a idéia de que a ciência é superior, mesmo que distinta,
de todas as demais formas de atividade sociocultural.
Na verdade, tudo o que é considerado como bom expe-
rimento é socialmente negociado. A ciência é, também,
um amplo campo de negociações e, como tal, nunca
esteve alheia aos complexos fenômenos sociais com que
interage e das quais é produto, tanto quanto a moral.14
“Se a ciência como tal não pode ser ética ou moralmen-
te qualificada, pode sê-la, no entanto a utilização que
dela se faça, os interesses a que serve e as conseqüênci-
as sociais de sua aplicação”.17:221
De tudo isto, o que ainda se pode destacar, es-
pecialmente ao se olhar para o lugar ocupado pelas/os
enfermeiras/os nas instituições que hoje tomam para
si a morte como objeto, talvez seja exatamente isto
que caracteriza, de modo tão peculiar, o desafio de
trabalhar com a morte: o fato da morte experiência
(tão íntima e tão estranha a todos) se mostrar, muitas
vezes e cada vez mais, distanciada da morte objeto,
rigorosamente definida, monitorada, prolongada. A
morte tomada pelos profissionais, transformada, ela-
borada e detida pelo hospital e pelas máquinas conse-
gue ser uma abstração da morte real e, ao mesmo tem-
po, a objetivação concreta da morte subjetiva. Encarar
a fragilidade de qualquer noção que se pretenda exata
ou perfeita, para o encontro com a mera utilidade que
elas possam nos assegurar é o conforto possível e, tal-
vez, a responsabilidade necessária.
Se tal conforto é ainda pequeno face ao tamanho
da precariedade, aí reside algo interessante, a atitude éti-
- 145 -
Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45.
A morte cerebral como presente para a vida...
ca fundamental que viria, exatamente, do desconforto.
Atitude que pode significar assumir a si próprios como
sujeitos do desconforto e, portanto, sujeitos capazes de
colocar sob questão as próprias referências, as verdades
úteis, as instituições e os longos aprendizados que cons-
tituem as próprias identidades culturais, políticas e mo-
rais, enfim, o desconforto que pergunta como existir.
“E, afinal, é esta a tarefa de uma história do pen-
samento por oposição à história dos comportamentos
ou das representações: definir as condições nas quais o
ser humano “problematiza” o que ele é, e o mundo no
qual ele vive [...] analisar não os comportamentos, nem
as idéias, não as sociedades, nem suas ideologias, mas
as problematizações através das quais o ser se dá como
podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir
das quais essas problematizações se formam”.18:14-5
REFERÊNCIAS
1 Vargas MAO, Meyer DEE. Re-significações de vida e de
morte: delimitando modos de educar. Rev. Educação
Realidade. 2003 Jan-Jun; 28(1): 65-86.
2 Dugay P. Introduction. In: Dugay P, Hall S, Mackay H,
Janes L, Negus K, editores. Doing cultural studies: the
story of the sony walkman. London: Sage/Open
Univesity; 1997.
3 Ariès P. A morte domada. In: Ariès P. O homem perante
a morte. Lisboa: s.n., 1975. p.13-40.
4 Elias N. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.
5 Baraldi S, Silva MJP. Reflexões sobre a influência da
estrutura social no processo da morte-morrer. Rev.
Nursing. 2000 Maio; 3(24): 14-7.
6 Vaz AF, Silva AM, Assmann JS. O corpo como limite. In:
Carvalho IM, Rúbia K. Educação física e ciências
humanas. São Paulo: HUCITEC; 2001. p.77-88.
7 Gray CH. Cyborg citizen: politics in the posthuman age.
Routledge: New York; 2001.
8 Sant’anna DB. Corpos de passagem. São Paulo: Estação
Liberdade; 2001.
9 Foucault M. Genealogia del racismo. Buenos Aires:
Altamira/Nordan; 1992.
10 Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber.
Rio de Janeiro: Graal; 1988.
11LockM.Transcendingmortality:organtransplantsandprac-
ticeof contradictions. Medical Anthropology Quarterly.
1995 Jul-Sep; 9(3): 390-3.
12 Lock M. Deat in technological time: locating the end of
meaningful life. Medical Anthropology Quaterly.1996
Oct-Dec; 10(4): 575-600.
13 Orlando JMC. Morte encefálica: um conceito a ser difun-
dido. In: Orlando JMC. UTI: muito além da técnica...: a
humanização e a arte do intensivismo. São Paulo:
Atheneu; 2001. p.215-8.
14CostaALRC.Umdiálogocomaciênciaecomaética: requisito
necessário ao pesquisador da área de saúde. Texto
Contexto Enferm. 2003 Jul-Set; 12(3): 370-6.
15 Vita WLS, Boemer T, Boemer MR. A questão dos trans-
plantes e suas interfaces. Rev. O Mundo da Saúde. 2002
Jan-Mar; 26(1): 158-66.
16GoldimJR.Consentimentopresumidoparadoaçãodeórgãos:
a situação brasileira atual [citado em 2004 maio 11].
Disponível em: http://www.bioética.ufrgs.br
17 Garrafa V. Bioética e manipulação da vida. In: Novaes A,
organizador. O homem máquina: a ciência manipula o
corpo. São Paulo: Companhia da Letras: 2003. p.213-25.
18 Foucault M. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres.
7a ed. Rio de Janeiro: Graal; 1994.

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2006 a morte cerebral como o presente para vida explorando praticas culturais contemporâneas-mara ambrosina vargas e flávia regina souza ramos

  • 1. - 137 - Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45. A morte cerebral como presente para a vida... A MORTE CEREBRAL COMO O PRESENTE PARA A VIDA: EXPLORANDO PRÁTICAS CULTURAIS CONTEMPORÂNEAS BRAIN DEATH AS A PRESENT FOR LIFE: EXPLORING CONTEMPORARY CULTURAL PRACTICES LA MUERTE CEREBRAL COMO UN REGALO PARA LA VIDA: EXPLORANDO LAS PRÁCTICAS CULTURALES CONTEMPORÁNEAS Mara Ambrosina Vargas1 , Flávia Regina Souza Ramos2 1 Enfermeira. Doutoranda em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora Adjunto da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Atua no Centro de Terapia Intensiva Adulto do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Membro do Grupo Práxis na UFSC. 2 Enfermeira. Doutora em Filosofia em Enfermagem pela UFSC. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSC. Pesquisadora do Grupo Práxis na UFSC. Endereço: Mara Ambrosina Vargas. R. dos Pessegueiros, 155 92.320-360 - Harmonia, Canoas, RS E-mail: maraav@terra.com.br RESUMO: O ensaio reflexivo aborda a morte cerebral e a doação de órgãos situando-as como práticas culturais contemporâneas e tendo como suporte teorizações que problematizam o corpo e o sujeito na pós-modernidade, especialmente estudos pós-estruturalistas. São destacadas as relações entre as di- mensões culturais, científicas, filosóficas e jurídicas que constituem um campo de contestações e nego- ciações, onde se dão as decisões, normas e aparatos tecnológicos em torno da morte, doação e trans- plante de órgãos. ABSTRACT: This reflexive essay approaches brain death and organ donation, establishing both as an contemporary cultural practice. It is based on the theorization that argues for the body and the subject in the postmodernism, especially in post structural studies. This study also highlights the relationships between cultural, scientific, philosophical and legal dimensions that constitute a field of contestation and negotiation in which the decisions are made towards norms and technological devices concerning death, organ donation and organ transplantation. RESUMEN: El ensayo reflexivo trata sobre la muerte cerebral y la donación de órganos situándolas como prácticas culturales contemporáneas, cuyo soporte está en las teorizaciones que problematizan el cuerpo y el sujeto en la post-modernidad, en especial los estudios post-estructuralistas. Se destacan las relaciones entre las dimensiones culturales, científicas, filosóficas y jurídicas, quienes constituyen un campo de contestaciones y negociaciones, en donde ocurren las decisiones, las normas y los aparatos tecnológicos respecto a la muerte, donación y el trasplante de órganos. PALAVRAS-CHAVE: Morte cerebral. Cultura. Bioética. En- fermagem. KEYWORDS: Brain death. Culture. Bioethics. Nursing. PALABRAS CLAVE: Muerte cerebral. Cultura. Bioética. Enfermería. Artigo original: Reflexão teórica Recebido em: 08 de agosto de 2005 Aprovação final: 17 de fevereiro de 2006
  • 2. - 138 - Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45. Vargas MA, Ramos FRS ACESSO AO TEMA A aproximação a este tema pode ser considera- da de duas perspectivas. A primeira, reporta a uma inserção em estudos acadêmicos sobre a intensifica- ção da tecnologia e à influência desta sobre o sujeito trabalhador da enfermagem e sobre a qualidade de vida dos sujeitos pacientes; os direcionamentos possíveis na problemática da doação e dos transplantes de ór- gãos dados pela bioética e pelas re-significações do viver e morrer, da saúde e doença em tempos denomi- nados pós-modernos. Já a segunda, relaciona-se, justa- mente, ao aporte teórico utilizado para refletir sobre estas temáticas. Ou seja, para o desenvolvimento des- ta reflexão, buscou-se apoio na teorização cultural e no trabalho de autores e autoras, entre outros Michel Foucault, que têm problematizado a noção de corpo e de sujeito, na pós-modernidade, a partir de pressupos- tos teóricos do pós-estruturalismo. Tais pressupostos são assumidos por se entender que noções como hu- mano, tecnologia, vida, morte, saúde e doença só po- dem ser significadas culturalmente, já que são produ- zidas no âmbito de práticas discursivas específicas. Dito de outro modo, apreende-se que tais práticas discursivas, instituídas por e instituíntes de relações de poder, fazem mais do que simplesmente designar e transcrever o real; elas criam e legitimam aquilo que passa a ser reconhecido como sendo a realidade.1 Convém, ainda enfatizar, a assertiva de que atu- almente é quase impossível escaparmos da cultura. Nesta perspectiva, tal explosão da cultura explica-se na medida em que a mesma está atrelada a assuntos de importância empírica. Isto é, entende-se que as práti- cas culturais e institucionais estão intrinsecamente pre- sentes em todos os campos da vida social. Na área da tecnobiomedicina, por exemplo, o crescimento dos meios de comunicação, as novas tecnologias de ima- gem e de intervenção sobre o corpo humano, mesmo que possam traduzir avanços tecnológicos científicos, têm um profundo impacto nas maneiras como se or- ganiza a própria vida e nas formas como as pessoas se relacionam umas com as outras. Logo, de um papel secundário em relação à ciência, a cultura veio ocupar um papel constituinte nas ciências sociais. Em vez de ser vista como uma mera leitura sobre os processos econômicos ou políticos, colocada no lugar de “outro interveniente” sobre o que era realmente fundante, a cultura é agora considerada como sendo constitutiva do mundo social, tanto quanto tais processos econô- micos e políticos. Não apenas isto; na perspectiva teó- rica, ora operada, a cultura assume uma centralidade, já que se parte-se do argumento de que todas as práti- cas sociais são práticas de significação, fundamental- mente culturais. Entende-se, pois, que toda condução da prática social remete a certos significados, ou a con- dições de pensar significativamente sobre ela. A pro- dução de significados sociais é, portanto, um requisito necessário ao funcionamento de qualquer prática so- cial e uma explanação das condições culturais das prá- ticas sociais precisa tomar parte da explanação socio- lógica de como elas funcionam.2 Isto posto, o propósito deste ensaio reflexivo é o de a partir do tema contemporâneo da morte cere- bral e da doação de órgãos, demonstrar não apenas como e por quê práticas culturais e institucionais vie- ram desempenhar um papel tão crucial na vida no pre- sente, mas também introduzir alguns dos conceitos centrais de análise envolvidos na realização de um es- tudo cultural. Assim, busca-se sinalizar que as frontei- ras onde as diferenças entre vida e morte, corpo e mente, humano e tecnologia, natural e artificial, orgâ- nico e inorgânico são definidas, tornaram-se ambíguas. Cientes de que tal ambigüidade não é explícita, o exer- cício que se faz é o de, justamente, pretender dar-lhe visibilidade. Considera-se, também, a pertinência de pensar as novas tecnologias, as que possibilitam defi- nir a morte cerebral para uma efetivação da doação de órgãos na sociedade ocidental, como expressas atra- vés de pontos de vista multifacetados. Isto é, que tais tecnologias têm sido abordadas por diferentes, contra- ditórias e complementares perspectivas, entre estas: a cultural, a científica, a filosófica, a social, a jurídica, a econômica e a política, cada qual, inserindo a seu modo, também, um viés bioético. Infere-se que tais perspec- tivas tornaram-se participantes ativas no processo de naturalização de um conjunto de elementos que atual- mente compõem as decisões, as normas e as rotinas de programas e políticas que tratam da morte, da doa- ção e do transplante de órgãos. Esse é o elemento que se quer destacar: tal processo de naturalização, por si, não é bom ou ruim, intencional ou espontâneo, certo ou errado, justo ou injusto. É, pois, reflexo da comple- xidade, determinações e contingências das práticas de saúde na contemporaneidade. O QUE TORNA A MORTE CEREBRAL E A DOAÇÃO DE ÓRGÃOS PARTE DE NOS- SA CULTURA? Pode-se dizer que a vida e a morte foram ques- tionadas e pensadas nas mais diversas culturas e pers- pectivas filosóficas e religiosas, através dos tempos.
  • 3. - 139 - Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45. A morte cerebral como presente para a vida... Além disso, nunca antes podem ser encontradas tantas maneiras de significar tais noções dentro de uma mes- ma racionalidade, a científica. Talvez isso expresse a especificidade desta época, na medida que a medicina avançada, a que inova em transplantes de órgãos e uti- liza procedimentos de reanimação, se vê confrontada a uma relativização da definição de morte. Viver e morrer, fronteiras radicalmente rompi- das com a intensificação da tecnobiomedicina? Vida e morte, pensados e vividos em suas conexões com as máquinas do início século XXI, tornam ambíguas as diferenças entre aquilo que se autocria (por exemplo, o humano) e aquilo que é externamente criado (por exemplo, esse mesmo humano com um coração doa- do por outro humano). Em tempos atuais, parece que “pesa” mais ainda o que pode, afinal, significar a mor- te quando se trata de produzir sentidos sobre o que, afinal, é viver. Paradoxalmente, quanto mais se envol- ve nesse empreendimento, mais a definição do que é morrer, afinal, escapa.1 Concomitante ao exposto, explorar o advento das novas tecnologias na constituição de subjetividades pode fazer pensar ontologicamente, uma vez que aquilo que caracteriza a vida, o ser vivo, faz problematizar aquilo que caracteriza a morte. Por exemplo, diante de um/a paciente com diagnóstico de morte cerebral, mediante essa concepção de morte-morrer, este/a ainda teria seus órgãos vivos; ele/ela seria, portanto, um ser que con- tém, em si, elementos próprios de quem está vivo e, ao mesmo tempo, elementos que sustentam a sua morte.1 Como já referido, a morte foi pensada de muitas formas, nas diferentes sociedades e culturas. Nessa direção, estudiosos fazem uma abrangente contextualização histórica de como a morte tem sido pensada e vivida pelo homem, ocidental, desde a anti- güidade até a contemporaneidade.3,4 Segundo tais es- tudos, na antigüidade, a morte era experimentada no coletivo e na vida cotidiana como fato previsível mas, também, misterioso. A morte, ao ser vivida como um acontecimento menos privado, acarretava um contato mais estreito com moribundos e, por isso, imputava aos indivíduos a crença da própria morte.4 Para além disso, a proximidade da morte manifestava-se através de pestes, guerras e de uma medicina ainda incipiente, quando comparada à do século XXI. O paciente ter- minal da sociedade medieval, seja por qual fosse a causa ou patologia, tinha uma morte considerada natural e, muitas vezes, não diagnosticada.5 Outro aspecto importante desse período era o fato de que a morte muitas vezes se fazia anunciar: ora com sinais ou premonições sobrenaturais, ora com sinais naturais. Assim, frente a essas premonições e à naturali- dade da morte, as pessoas preparavam-se para morrer. “Em seu leito de morte, eram assistidas e acalentadas, sem que nenhum interdito interrompesse esse processo de morrer. Como resultado, nessas sociedades tradicio- nais, terminado o funeral, terminava a desolação”.3:16 De Homero a Tolstoi, a expressão constante de uma mesma atitude global perante a morte permitiria a tentação de pensar em uma continuidade nos modos de concebê-la e vivê-la nesse período de quase dois milêni- os. Em contrapartida, a morte estaria agora tão apagada dos costumes das sociedades civilizadas que tornar-se- ia difícil imaginá-la e compreendê-la. A atitude antiga, em que a morte era ao mesmo tempo próxima, familiar e menos temida opõe-se, demasiadamente, à atual, em que ela parece causar tanto medo que já não se ousaria pronunciar o seu nome: “É por isso que, quando cha- mamos a esta morte familiar a morte domada, não en- tendemos por isso que antigamente era selvagem e que foi em seguida domesticada. Queremos dizer, pelo con- trário, que hoje se tornou selvagem quando outrora não o era. A morte mais antiga era domada”.3:40 Num contraponto à posição deste autor, susten- tada por sua análise da narrativa de Tolstoi sobre o pro- cesso de morrer do servo e do senhor,3 aponta-se o ar- gumento que não se pode negligenciar a conexão entre o modo de viver e o modo de morrer de um e de outro, equetalvez Tolstoiissoquisessedemonstrar,aoenfatizar essa diferença de conduta perante a morte do servo e do senhor.4 Assim, é defendido que “seria interessante fazer um levantamento de todas as crenças que as pes- soas mantiveram ao longo dos séculos para habituar-se ao problema da morte e sua ameaça incessante a suas vidas; e ao mesmo tempo mostrar tudo o que fizeram umas às outras em nome de uma crença que prometia que a morte não era um fim e que os rituais adequados poderiam assegurar-lhes a vida eterna”.4:12 Pode-se apreender dessa argumentação que, mais do que caracterizar o processo de morte-morrer como sendo “mais natural” até meados do século XX, é im- portante relativizar a idéia de que, necessariamente, todos os indivíduos e, em especial as culturas de que esses faziam parte, aceitassem a morte passivamente. O que se pode dizer é que as formas de morrer e de definir a morte estão limitadas às possibilidades de cada época. Então, desde o final do século XX, diante de iniciativas como as desenvolvidas pela tecnociência contemporânea, a morte evidencia mudanças em suas configurações. Isto é, essa passou a ser encarada como
  • 4. - 140 - Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45. Vargas MA, Ramos FRS “uma disfunção passível de ser evitada ou, pelo me- nos, postergada, ampliando o sentido de poderio téc- nico, tão forte na modernidade”.6:86 E é nessa possibi- lidade de intervir, mais ativamente, sobre o processo de morrer que se pode localizar uma descontinuidade no processo de morte-morrer. Ou seja, o aprimora- mento da tecnobiomedicina estabeleceu condições que permitem intervir sobre a morte das mais variadas maneiras. O indivíduo hospitalizado, diferente das so- ciedades antigas, não tem mais a certeza de que vão deixá-lo morrer. Na dúvida, médicos e enfermeiras se precipitam sobre o morrer dos moribundos, impedin- do-o, prorrogando-o, desfigurando-o.1 O objetivo primeiro do atendimento a um/a pa- ciente é a manutenção da vida. “Os profissionais de saúde são preparados para a manutenção da vida, tendo dificuldades para lidar com situações de morte-mor- rer”.5:14 Ou seja, o/a paciente de hoje, com diagnósticos ehipótesesprognósticasdefinidas, dificilmenteterá‘mor- te natural’. Ele/ela tem grandes possibilidades de pas- sar por respiração artificial, filtração renal, quimioterapia, drogas vasoativas, reanimação cardiorrespiratória, den- tre os inúmeros recursos existentes.5:14 A imortalidade está baseada menos na aprecia- ção do que seja vida e mais no medo da morte. Seria um temor que, nesse caso, estaria centrado na imagem antecipada da morte. Estaríamos diante de uma socie- dade que busca incessantemente a imortalidade. Nes- sa perspectiva, a mortalidade é tornada anônima, es- condida, e a imortalidade é que é visibilizada,7 já que “considera-se cada vez mais normal substituir o direi- to à saúde pelo direito de não mais morrer”.8:23 A ciên- cia criou a vida crônica, e a ambição de limitar a morte é o outro lado da moeda da vontade de tornar a vida ilimitada e infinda. Analisando a relação do viver e do morrer com o poder, enfatiza-se na literatura que, de maneira ex- trema, se poderia crer que hoje a morte é mais objeto de tabu do que o sexo.9 Com esse entendimento, é relacionado o ocultamento da morte a uma transfor- mação das tecnologias de poder. Até o século XVIII, a morte era demasiadamente valorizada e ritualizada porque se tratava da manifestação de uma passagem de um poder ao outro: do poder do soberano terrestre ao poder do soberano celeste. De um direito civil e público, de vida e morte, a um direito que era de vida eterna ou de eterna condenação. Prosseguindo nessa argumentação, refere-se que as atuais tecnologias de poder biopolítico tomam como alvo a vida, na medida em que “a velha potência da morte que simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida”.10:131 Nesta direção, o biológico reflete-se no po- lítico, pois o fato de viver cai, em parte, no campo de controle do saber e da intervenção do poder. “A morte é o limite, o momento que lhe escapa”.10:130 Terminada a vida, termina o poder, pois a morte encontra-se fora da capacidade de ação do poder. O poder, incapaz de dominar a morte, dominará a mortalidade. Há, por- tanto, um processo de exclusão da morte com uma concomitante valorização da imortalidade, como pos- sibilidade de uma permanência da ação do poder. Tal- vez tal análise de estudo9 ajude a explicar a atual desqualificação da morte, marcada pelo desuso dos rituais que a acompanhavam. Desta análise pode-se lançar o pressuposto de que a tecnobiomedicina só exerce seu poder sobre a morte, como diria, exercendo seu direito de prolongar a vida, otimizando ou definindo regularidades e regulações para o que se pode caracterizar como o es- tado de vida.9 Nessa perspectiva de valorização da vida, a medicina fracassa se, e quando, a morte ocorre. Ela parece exercer cada vez menos o direito de deixar morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver. A ritualização recai, agora, sobre a capacidade de promover novos arranjos que, interminavelmente, sustentem a vida e, assim, o poder. Controlar a vida implica constantemente ressignificar a morte e, nessa direção, o discurso científico sobre a morte tem sido articulado na confluência dos discursos médico (com seus desdobramentos na tecnobiomedicina), jurídico e ético. E assim, chega-se a morte na terceira pessoa, a morte em geral, a morte abstrata e anônima, um obje- to como outro qualquer, um objeto que pode ser des- crito e analisado. Para além disso, chega-se também a um processo permanente de aprendizado, ora sobre as reconceitualizações de morte-morrer, ora acerca das maneiras de interrompê-la ou, se for o caso, decretá- la. A esse respeito, alguns especialistas têm sido con- vocados para legitimar esse discurso científico sobre a morte, por exemplo, o médico neurologista, para diag- nosticar uma morte encefálica.1 Estudos que utilizam documentos da história recente e materiais publicados na mídia contemporâ- nea, demostram o esforço para tornar inquestionáveis, dentro do círculo profissional médico, os argumentos utilizados para a institucionalização e legitimação da morte cerebral como sinal inequívoco de cessação da vida no corpo humano (assim como os conceitos de morte vegetativa e de parada do coração e dos pul-
  • 5. - 141 - Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45. A morte cerebral como presente para a vida... mões, seguidos por sua rotinização). Tal desejo de de- finir a vida e a morte como conceitos cientificamente comprováveis e como categorias verificáveis, têm fo- mentado discussões e esforços em todo o mundo.11,12 Como as/os profissionais enfermeiras/os se re- lacionam com o processo de morte e morrer e de do- ação de órgãos? É pertinente lembrar que tais profissi- onais estão diretamente implicados nestes processos, ao menos pelas seguintes evidências: conectam paci- entes a diferentes equipamentos para mantê-los/las vivos/as; detectam limiares tênues e deslizantes entre o viver o e morrer quando estão conectadas a diferen- tes máquinas; cuidam dos/das receptores/as de ór- gãos de outro ser humano com o objetivo de que ob- tenham uma sobrevida; conservam pacientes doado- res/as de órgãos conectados/as a várias máquinas para a manutenção das condições ‘ideais’ para doar seus órgãos a outro(s) ser(es) humano(s); participam ativa- mente do processo de definição do tipo e do momen- to da morte, justamente porque estão amparadas por uma infinidade de protocolos assistenciais que os au- xiliam, ou melhor, os conduzem, indicando qual é o manejo destas situações. E, mais recentemente, inte- gram a equipe de captação de órgãos. Nessa perspectiva, a discussão da morte permi- te assinalar e, através desse procedimento, questionar e problematizar algumas polaridades, tais como: as relações entre a mente e o corpo; a morte cerebral e a morte orgânica; o reverssível e o irreverssível; os/as pacientes vivos/as e os corpos mortos; o/a receptor/ a vivo/a e o/a doador/a cadáver; a avaliação clínica da morte e a avaliação tecnológica da morte; as deci- sões médicas e as opiniões e valores; e o/a especialista científico/a e os/as outros/as especialistas. Permite, também, operar com essas dicotomias para colocá-las sob tensão e, assim, demonstrar a inexistência da pos- sibilidade de uma delimitação entre suas fronteiras, obrigando à convivência com tais relações de forma ambivalente, polissêmica e polêmica.1 Um tema já tocado, e que agora pode ser reto- mado, é o da íntima relação entre as políticas de morte e as políticas de transplante. De certa maneira, é possí- vel afirmar que a morte cerebral está sendo estabelecida a partir de, e em função de critérios e convicções deri- vados da necessidade de conseguir mais órgãos e, por extensão, mais vida. Morte cerebral ou morte encefálica é uma defini- ção que começou a ser utilizada, na década de 60, nos Estados Unidos e na maior parte da Europa, para faci- litar a doação de órgãos e justificar o desligamento dos ventiladores mecânicos. O mais importante é que tem sido possível sustentar uma pessoa com diagnóstico de morte-cerebral por algumas horas, semanas e, mais re- centemente, por períodos mais longos de tempo. Medi- ante esses avanços tecnológicos, muitas pessoas com morte cerebral mantêm seus corações batendo “natu- ralmente”. Algumas vezes, quando um coração pára, ele pode ser reanimado, ou máquinas podem fazer esse papel e, nesse caso, esses corpos são chamados por al- guns médicos de cadáveres sem batimentos. Na citação, “Morte encefálica é MORTE! [...] declarar o paciente CADÁVER, corpo, afastar as fal- sas esperanças!”13:216 evidencia-se um esforço em es- tabelecer uma uniformidade em relação a como tra- tar o momento em que é diagnosticada uma morte encefálica ao mesmo tempo em que se busca, tam- bém, dirimir qualquer dúvida sobre como proceder, nesse caso. No entanto, as palavras destacadas pelo autor não conseguem escamotear toda a tensão que atravessa os significados que a morte assume em nosso contexto cultural. A citação também parece endossar o pressuposto de que determinados tipos de morte recebem uma abordagem mais intervencionista, no sentido de estabelecer, de ma- neira mais imediata, o momento em que a vida cessa e se instala a morte. No caso em questão, a morte encefálica é tratada com um tipo de morte que ‘ne- cessita’ dessa imediatez e exatidão. Uma investigação etnográfica12 comparou a re- percussão da definição científica de morte cerebral em um país ocidental e no Japão e concluiu que os norte-americanos adotam a definição científica de morte, que é discutida pelos e entre os/as cientistas, na perspectiva da valorização do transplante e apro- veitamento de órgãos e com ênfase no/a receptor/a, idéia prática de chances de vida. Já os japoneses teri- am uma visão mais holista da morte e não incorpo- ram tanto o dualismo mente/corpo. As maneiras de lidar com a morte são discutidas publicamente, e os japoneses não aceitam como natural a violação do corpo de um/a possível doador/a, preocupando-se, inclusive, mais com o/a doador/a do que com o/a receptor/a. No entanto, destaca-se o fato de que tan- to os japoneses quanto os norte-americanos, com suas perspectivas aparentemente divergentes, não fogem aos critérios científicos, já que os especialistas japo- neses da terapia intensiva também não problematizam os critérios que permitem estabelecer a morte cere- bral como indicativo irreversível de que a morte se aproxima ou, inclusive, já chegou. Além disso, eles também analisam a morte cerebral como sendo algo
  • 6. - 142 - Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45. Vargas MA, Ramos FRS distinto de outras situações em que o cérebro é seve- ramente afetado, incluindo um estado vegetativo per- sistente. Mas eles foram além, pois (os japoneses) as- sumem estabelecer o diagnóstico de morte cerebral sustentados nas evidências criadas tecnologicamente, secundarizando um julgamento clínico de morte. En- tretanto, na situação do Japão, o que muda é a manei- ra de lidar com o corpo após a morte, e a determina- ção de quem está autorizado a dizer o que fazer com esse corpo após a morte. Ou seja, há outros/as espe- cialistas, além dos/as que seguem os princípios cien- tíficos e racionais a quem se atribui uma legitimidade capaz de fazer com que sejam ouvidos nesse campo de disputas. Em suma, foi demonstrado como sabe- res e valores culturais e sociais, acerca do mesmo even- to, podem ser normalmente reconhecidos e partilha- dos em um contexto (Japão) e não serem aceitas e compartilhadas em outro (o círculo em que são toma- das decisões médicas norte-americanas).12 Sobre os conflitos perante a decisão de ampliar ou limitar o uso de tecnologias médicas em casos es- pecíficos de pacientes legalmente mortos, são levanta- das pertinentes questões sobre a “nova” morte. O exemplo do caso de Janet, gestante declarada em mor- te cerebral, mantendo seu feto vivo, incita a questio- nar: o que é morte, se nesse caso, vida saudável pode sair daí?.* É apontado o fato de que alguns profissio- nais da saúde não gostam do termo “morte cerebral”, porque esse marca uma diferenciação entre morte e morte cerebral. Em função disso, indaga-se: “mas esse não é o caso? Seguindo um protocolo, o corpo de Janet não estava morto? [...] Parabéns às máquinas que sus- tentaram esse estado. Sua inteligência se foi, mas tal- vez não sua alma [...] ela foi menos do que um huma- no, mas mais do que um morto”.7:108 No entanto, a morte encefálica não é uma novi- dade criada pela lei de doação de órgãos, em seu artigo 3°, mas é interessante destacar a ambigüidade gerada por ele: “Aliás, somente este artigo mereceria um de- bate especial, pois, para o imaginário de muitos, doravante, morrer e viver mudaram de sentido: a vida do coração, outrora órgão rei ou a vida do pulmão, que no apogeu da termodinâmica foi considerado o centro do calor vital, o órgão do espírito, devem ser mantidos após a morte encefálica para possibilitar o transplante. Aqui a morte ideal não é aquela em que o ‘descanse em paz’ pode ser dito a todos os órgãos. Bichat havia afirmado que a vida era ‘um conjunto de forças que resiste à morte’. Hoje, paradoxalmente, a morte encefálica, a morte ideal para possibilitar o trans- plante, também possui esse significado”.8:73 Antes da intensificação dos procedimentos de transplante de órgãos, as mortes cerebrais não se cons- tituíam em problema e, por isso, os pacientes poderiam permanecer longos períodos mantidos em morte cere- bral. Foi justamente após a implementação dos trans- plantes de órgãos que se instituiu a necessidade da dis- cussão e legitimação da definição de morte cerebral. É interessante lembrar que o primeiro transplante cardía- co foi realizado por Barnard em 1968, na África do Sul. O doador, do coração, era negro e o receptor era bran- co. Depois das experiências dos primeiros transplantes é que a Organização Mundial da Saúde e a Organização Mundial dos Médicos, a Harvard Medical Scholl e ou- tras instituições deram uma nova definição de morte: a de morte cerebral, legitimado no ano de 1969. É, ainda, pertinente lembrar que, já em 1975, o bioeticista Tristram Engelhardt levantou que a defini- ção de irreversibilidade da morte seria uma definição conservadora. Apoiado firmemente na dicotomia de corpo/mente, ele acreditava que uma decisão inteli- gente seria definir a morte no instante da morte cere- bral, dizendo que a vida biológica humana não é a mesma que a vida pessoal humana. Mesmo estando vivo e intacto, ele não seria mais uma pessoa singular e única. O bioeticista ainda apontava as mudanças advindas desde o desenvolvimento da neurologia mo- derna, e de como a neurofisiologia toma como base o conceito de que ser uma mente, neste mundo, é ter um cérebro funcionando de forma intacta. Para ele era uma conclusão lógica que pacientes, com falta de função cerebral e em persistente estado vegetativo, não vivem por muito tempo. O conceito de desumanidade, apoi- ado na definição de morte cerebral, oferece à medici- na um caminho para distinguir os pacientes para com os/as quais ela tem obrigações, e é essa distinção que torna possível que os órgãos das pessoas com morte cerebral possam ser usados para ajudar pessoas ainda vivas. Deste modo, não existiria obrigações para com os órgãos, e nenhuma ética perduraria sobre a remo- ção de órgãos daqueles/as definidos/as como não- pessoas.12 * Caso descrito em artigo, tratando de paciente grávida de 22 semanas que apresentou um aneurisma cerebral e, em 24 horas, teve declarada sua morte cerebral, mas seu feto ainda vivia.7 O hospital colocou uma equipe de enfermeiras especializadas para tratar de Janet e seu bebê antes que ocorresse o parto. Apesar de Janet estar legalmente morta e as enfermeiras saberem disso, sentiam que ela estava viva. Seu cabelo e unhas cresciam, seu bebê também. Em referência a um caso semelhante, Grmek afirma que uma grávida de um feto ainda vivo, suscita nas pessoas a idéia de que não se pode falar que a mesma esteja morta – mesmo que a noção de morte cerebral já esteja bem divulgada entre os indivíduos. Como uma criança nasceria de uma mãe morta? O tratamento é dado como para um caso de coma.
  • 7. - 143 - Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45. A morte cerebral como presente para a vida... Se a distinção entre vida e morte, entre ser vivo ou ser cadáver, está hoje condicionada a padrões mais ou menos consensuados, cientificamente balizados e, portanto, sob o domínio de uma comunidade de profissionais, isto não quer dizer que comunicações não se estabeleçam entre diferentes círculos ou comu- nidades e que a cultura esteja excluída destes ou das comunicações possíveis entres os mesmos. A dimen- são jurídica é exemplar desta relação entre ciência e cultura. Sob a análise jurídica, cadáver é “coisa” (não mais pessoa ou ser de direito), mas “coisa” sui generis, que por preservar a imagem de uma pessoa, deve ser respeitada em condições especiais e diferenciados em relação a qualquer outra “coisa”. Assim, é possível destacar mais algumas das conflitualidades presentes nessa discussão sobre mor- te cerebral. No caso brasileiro, atualmente a “legisla- ção tem orientação organicista: a morte só é reconhe- cida pela Justiça quando há parada cardíaca”.13:216 Como se vê, mesmo com a realização intensificada dos trans- plantes de órgãos e com a divulgação ampla da neces- sidade de aprimoramento do diagnóstico de morte ce- rebral, não se estabelece uma sincronia entre o consi- derado avanço científico e sua legislação. Pode-se deli- near, também, nessa argumentação, a polarização en- tre o orgânico e a mente. Coração e pulmão estão rela- cionados com a ordem da morte orgânica. O sistema nervoso está relacionado com a ordem da morte men- tal. Mas, desde quando o sistema nervoso deixou de ser órgão dentro do paradigma científico? Desde quan- do a tecnologia é naturalizada e, deste modo, encobre os inevitáveis conflitos que resultam da mistura entre o eu e o outro? Partindo do pressuposto de que no mundo ocidental a ciência impera como forma hegemônica de construir a realidade,14 torna-se impor- tante resgatar certa inconformidade ao papel exclusi- vo de porta-voz da discursividade tecnocientífica. Cabe ainda refletir que, de maneira geral, os dis- cursos que permeiam o contexto social dos transplan- tes de órgãos o legitimam como um “presente da vida”. Também cabe lembrar que, nesse contexto social, hou- ve necessidade de reconceitualizar a morte como uma forma de obter órgãos vitais, adequados para a reali- zação desses transplantes. Em suma, mais do que os transplantes de órgãos, paradoxalmente, a morte ce- rebral é o presente para a vida. Mas como a construção de significados é um pro- cesso progressivo, é estendido, de algo que já se conhe- ce para algo novo, através da chamada ‘cadeia de signi- ficado’, um outro aspecto de discussão se apresenta, sobre a doação de órgãos. E aí, talvez, mais do que a questão da morte cerebral, a questão da doação de ór- gãos informa sobre o que determinada prática de saúde pode vir a significar para aqueles que a usam. Ou seja, na medida em que se acredita que os sujeitos, pacientes e profissionais, não são ingênuos e/ou indiferentes, há sempre uma determinada persuasão para estabelecer o que se passa a considerar como necessidade. As neces- sidades são, portanto, mais culturais do que naturais. Isto quer dizer que as necessidades tanto são definidas como produzidas pelos sistemas de significação através dos quais se atribuí sentido ao mundo e, assim, elas estão abertas para serem trabalhadas e transformadas.2 Isto é o que vem acontecendo com a necessidade de doação de órgãos, inserida em um campo amplamente contestado, de lutas, de relações de poder, exatamente porque de liberdades: o do direito a ter direito.† Com o advento da Carta Magna de 1988 ficou garantida, em seu artigo 5° e incisos, a tutela do direito à vida a qualquer indivíduo. Deste direito, há o de exis- tência, que se caracteriza no direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de perma- necer vivo. Neste campo, em princípio, é que incide, novamente, uma das propostas de análise deste ensaio reflexivo, a polissemia e o caráter ambíguo, agora, do termo direito à ter direito. Vale dizer, a possibilidade de manutenção da vida por um indivíduo que, procurando exercer este direito, acaba por procurar um profissional da saúde, o qual, empregando as técnicas e os conheci- mentos existentes na área do transplante de órgãos, tor- na possível o prolongamento da vida daquele que se encontra em situação de grave enfermidade.15 No caso específico dos transplantes de órgãos, este direito à vida se entrecruza com o direito de deci- dir e o direito à integridade física do doador de órgãos. Ou seja, quando se cuida de alguém com diagnóstico de morte cerebral e este alguém não só preenche os critérios de inclusão para doação de órgãos, como está internado em um local articulado à base organizacional de captação de órgãos para transplante, automatica- mente este alguém passa a ser um provável doador cadáver. Na verdade, há duas maneiras de obtenção de órgãos: através do doador cadáver e do doador vivo. “Após a tramitação de vários projetos de lei no Congresso Nacional, foi sancionada a Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, disciplinando que todos os brasileiros são doadores, salvo manifestação de vontade em contrário”.15:161 Para manifestar-se em † Foucault argumentaria que o poder só pode ser exercido onde existe liberdade e portanto, um grau de incerteza em qualquer relação.
  • 8. - 144 - Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45. Vargas MA, Ramos FRS contrário, todo indivíduo deveria enfrentar a buro- cracia do sistema para alterar a Carteira de Identida- de ou a Carteira Nacional de Habilitação, visando colocar, ali, a expressão “não-doador”. Em 1998, a Medida Provisória 1.718 disciplinou, que “na ausên- cia de manifestação de vontade do potencial doador, o pai, a mãe, o filho ou o conjugue poderá manifes- tar-se contrariamente à doação, o que será obrigato- riamente acatado pelas equipes de transplante e re- moção.”15:162 A citada Medida Provisória (de 1998) sofreu 32 revisões, até chegar a versão MP 2.083-32 de 22/02/2001 e converter-se na Lei 10.211 de 23/ 03/2001. Desta forma, atualmente, a autorização da doação de órgãos depende da autorização do cônju- ge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau, fir- mada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.15 O que se observou, neste rápido, mas intenso processo de elaboração legislativa, foi um entorno conflituoso, tanto do ponto de vista de algumas polê- micas envolvendo a opinião pública e a pressão dos profissionais médicos, em franco processo de desobe- diência civil à doação presumida. Assim, antes de uma proposta de efetiva adaptação cultural, ou mesmo ba- ses concretas para a análise das representações e ma- nifestações sociais em relação à lei, a autoridade governante sucumbiu às pressões e acabou com a do- ação presumida no país. Na experiência internacional há, além da doação voluntária, o consentimento presumido, o qual parte da premissa de que todo cidadão é doador de órgão, por definição. Este consentimento presumido é dividido em dois tipos: o forte e o fraco. O forte, adotado em alguns países da Europa, possibilita que o médico remova ór- gãos de todo e qualquer cadáver, enquanto que o fraco apenas do que não declararam objeção a este procedi- mento.16 Mas, a prática tem mostrado que, mesmo com a possibilidade do consentimento presumido forte, os familiares têm sido consultados. Em suma, poder-se-ia dizer que a abordagem jurídica, ora procurando preservar o desejo do possí- vel doador, ora transferindo a escolha para os familia- res, tem sustentado, sempre, algum tipo de transgres- são ao direito a ter direito. No entanto, sabe-se que tais aspectos legais refletem todo um contexto de discus- são para muito além do jurídico. Ou seja, a relação morte cerebral e doação de órgãos não é mais apenas parte de nossa cultura. Ela, a relação, possui uma cul- tura própria em torno de si, desenvolveu-se um con- junto de significados e práticas; ela é um significado com alto grau de consenso em nossa época. ENFIM... É possível se dizer que algo é bom porque foi provado? Do ponto de vista científico: sim. E mais, do ponto de vista científico conseguir provar algo é tornar este algo verdadeiro, idéia que em nossa sociedade, quase sempre vem acompanhada de outros tantos atributos, muitos deles mistificados. Assim, verdade científica é verdade neutra, boa, única, universal e igual para todo mundo. No entanto, em tempos atuais, é insustentável a noção de um essencialismo científico, em que a ciência e seus cientistas operariam a partir de um grande paradigma universal. Em vez disso, cada peça do co- nhecimento científico, na perspectiva aqui adotada, é considerada como produto de determinado lugar e tem- po, faz sentido neste tempo e lugar, mas em outro tem- po e/ou lugar pode não fazer sentido, pode até ser com- pletamenteignoradoe/ouesquecido.Abandona-se, pois, a idéia de que a ciência é superior, mesmo que distinta, de todas as demais formas de atividade sociocultural. Na verdade, tudo o que é considerado como bom expe- rimento é socialmente negociado. A ciência é, também, um amplo campo de negociações e, como tal, nunca esteve alheia aos complexos fenômenos sociais com que interage e das quais é produto, tanto quanto a moral.14 “Se a ciência como tal não pode ser ética ou moralmen- te qualificada, pode sê-la, no entanto a utilização que dela se faça, os interesses a que serve e as conseqüênci- as sociais de sua aplicação”.17:221 De tudo isto, o que ainda se pode destacar, es- pecialmente ao se olhar para o lugar ocupado pelas/os enfermeiras/os nas instituições que hoje tomam para si a morte como objeto, talvez seja exatamente isto que caracteriza, de modo tão peculiar, o desafio de trabalhar com a morte: o fato da morte experiência (tão íntima e tão estranha a todos) se mostrar, muitas vezes e cada vez mais, distanciada da morte objeto, rigorosamente definida, monitorada, prolongada. A morte tomada pelos profissionais, transformada, ela- borada e detida pelo hospital e pelas máquinas conse- gue ser uma abstração da morte real e, ao mesmo tem- po, a objetivação concreta da morte subjetiva. Encarar a fragilidade de qualquer noção que se pretenda exata ou perfeita, para o encontro com a mera utilidade que elas possam nos assegurar é o conforto possível e, tal- vez, a responsabilidade necessária. Se tal conforto é ainda pequeno face ao tamanho da precariedade, aí reside algo interessante, a atitude éti-
  • 9. - 145 - Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006; 15(1): 137-45. A morte cerebral como presente para a vida... ca fundamental que viria, exatamente, do desconforto. Atitude que pode significar assumir a si próprios como sujeitos do desconforto e, portanto, sujeitos capazes de colocar sob questão as próprias referências, as verdades úteis, as instituições e os longos aprendizados que cons- tituem as próprias identidades culturais, políticas e mo- rais, enfim, o desconforto que pergunta como existir. “E, afinal, é esta a tarefa de uma história do pen- samento por oposição à história dos comportamentos ou das representações: definir as condições nas quais o ser humano “problematiza” o que ele é, e o mundo no qual ele vive [...] analisar não os comportamentos, nem as idéias, não as sociedades, nem suas ideologias, mas as problematizações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam”.18:14-5 REFERÊNCIAS 1 Vargas MAO, Meyer DEE. Re-significações de vida e de morte: delimitando modos de educar. Rev. Educação Realidade. 2003 Jan-Jun; 28(1): 65-86. 2 Dugay P. Introduction. In: Dugay P, Hall S, Mackay H, Janes L, Negus K, editores. Doing cultural studies: the story of the sony walkman. London: Sage/Open Univesity; 1997. 3 Ariès P. A morte domada. In: Ariès P. O homem perante a morte. Lisboa: s.n., 1975. p.13-40. 4 Elias N. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 5 Baraldi S, Silva MJP. Reflexões sobre a influência da estrutura social no processo da morte-morrer. Rev. Nursing. 2000 Maio; 3(24): 14-7. 6 Vaz AF, Silva AM, Assmann JS. O corpo como limite. In: Carvalho IM, Rúbia K. Educação física e ciências humanas. São Paulo: HUCITEC; 2001. p.77-88. 7 Gray CH. Cyborg citizen: politics in the posthuman age. Routledge: New York; 2001. 8 Sant’anna DB. Corpos de passagem. São Paulo: Estação Liberdade; 2001. 9 Foucault M. Genealogia del racismo. Buenos Aires: Altamira/Nordan; 1992. 10 Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal; 1988. 11LockM.Transcendingmortality:organtransplantsandprac- ticeof contradictions. Medical Anthropology Quarterly. 1995 Jul-Sep; 9(3): 390-3. 12 Lock M. Deat in technological time: locating the end of meaningful life. Medical Anthropology Quaterly.1996 Oct-Dec; 10(4): 575-600. 13 Orlando JMC. Morte encefálica: um conceito a ser difun- dido. In: Orlando JMC. UTI: muito além da técnica...: a humanização e a arte do intensivismo. São Paulo: Atheneu; 2001. p.215-8. 14CostaALRC.Umdiálogocomaciênciaecomaética: requisito necessário ao pesquisador da área de saúde. Texto Contexto Enferm. 2003 Jul-Set; 12(3): 370-6. 15 Vita WLS, Boemer T, Boemer MR. A questão dos trans- plantes e suas interfaces. Rev. O Mundo da Saúde. 2002 Jan-Mar; 26(1): 158-66. 16GoldimJR.Consentimentopresumidoparadoaçãodeórgãos: a situação brasileira atual [citado em 2004 maio 11]. Disponível em: http://www.bioética.ufrgs.br 17 Garrafa V. Bioética e manipulação da vida. In: Novaes A, organizador. O homem máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia da Letras: 2003. p.213-25. 18 Foucault M. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. 7a ed. Rio de Janeiro: Graal; 1994.