O documento discute a necessidade de uma nova abordagem interdisciplinar para estudar as relações entre natureza e sociedade de forma complexa. Ele destaca pré-condições para o desenvolvimento de uma ciência da complexidade, como a contextualização do conhecimento e a articulação de diferentes saberes, e os desafios da pesquisa interdisciplinar, como a coordenação de diversas disciplinas e a superação de limitações disciplinares fragmentadas.
1. RESUMO
Natureza e sociedade: passagem para uma nova ciência
Existe uma grande dificuldade em tratar as concepções sobre ambos os sistemas
(natural e social), já que anteriormente as concepções sobre ambos são separadas.
As interações entre os indivíduos produzem a sociedade, que não existe sem eles. A
sociedade produz indivíduos que produzem linguagem, conceitos, educação e
segurança. Não se pode considerar o conhecimento como um objeto igual aos demais,
já que serve para conhecer outros objetos ou a si mesmo. O fato é que quando se fala
de ciência, fala-se a partir de uma perspectiva identificadora de um campo simbólico,
cujos mecanismos são constitutivos de uma cultura científica moderna e tecnológica,
com um ethoscientífico-corporativo já constituído. Desde que descubram novas
possibilidades para pensar outras possibilidades de pensar, os aparelhos lógicometodológicos dos sistemas científicos se tornam frágeis ao incorporar reflexivamente
um alto grau de incerteza. A ciência normal pode, assim, transitar para outras
epistemese novidades lógico-conceituais. O que era certeza para os saberes
organizados se torna incerteza organizada. Mesmo as ciências mais consagradas,
como a Física, se abrem para outras ciências e internalizam o risco da dúvida
metódica. Na ciência, bem como em outras esferas da história social, a verdade é
humana; e, portanto, é uma invenção humana; ao pretender ser permanente, porém
ao colocar-se além ou acima da transitoriedade das coisas, tornou-se religiosa e de
difícil contestação. No âmbito do meio ambiente, essa contradição se exterioriza pela
apropriação técnica da natureza (enquanto matéria socializada pelo modelo de
produção capitalista) e pelo risco crescente para os seres humanos e para a vida no
planeta, decorrente do modelo de desenvolvimento dominante e de seus impactos
sobre os estilos de vida (consumo) e da consequente degradação socioambiental. É
muito difícil determinar com exatidão o que faz mudar as bases epistemológicas do
saber científico (causas puramente materiais ou formais): ou a incorporação/rejeição
que é feita da ciência pela sociedade ou as mudanças nas lógicas discursivas e
metodológicas dos sistemas de ciência ou, ainda, a combinação de ambos os fatores,
ao convergirem e divergirem ao longo da história do conhecimento. Idênticos
questionamentos podem ser feitos a respeito das influências da tecnologia sobre a
sociedade e vice versa, bem como da sociedade sobre a natureza e desta sobre
aquela.A famosa crise de paradigmas já se tornou moda de forma quase
inevitável;referir-se a ela é uma questão quase que por obrigação de ofício, sem tirar
necessariamente todas as conseqüências de seu significado. A característica da
modaé tornar dominante um gosto. Não seria diferente a moda acadêmica, cuja
escolhatemática de pesquisa pode ser considerada objetiva, apenas pelo fato de
correspondera interesses dos pesquisadores e de sua comunidade. Este fato, porém,
não desmereceo contexto sociocultural no qual ocorrem tais preferências e escolhas.
Pré-condições para uma ciência da complexidade(natureza-sociedade)
O atual desafio do cientista é ousar transpor a repetição, alterando os procedimentos
convencionais na (re) produção do conhecimento, buscando a fonte de sua
imaginação em diversos referenciais cognitivos; não apenas naqueles de sua
disciplina científica, mas também nos de natureza estética (artes, literatura, música),
na ética, nos conhecimentos espontâneos, especialmente naqueles profundamente
arraigados na cultura dos povos (do presente e do passado), recriando e
restabelecendo o que foi esquecido ou obscurecido pelos procedimentos da
racionalidade instrumental da modernidade.A revalorização dos saberes cultural é uma
forma interessantede recuperara memória das sociedades humanas, sem fazer
2. concessão à nostalgia do eloperdido ou a um retorno impossível. Ao restituir às
culturas o reconhecimentode sua sabedoria, está-se fazendo autocrítica dos erros
cometidos,restabelecendo a assimilação de práticas sadias no domínio do meio
ambientee da saúde das pessoas (como, por exemplo, a utilização de alimentos
emedicamentos naturais), além do reconhecimento do direito à diferença.
Amodernidade deverá saber combinar a razão com a emoção, a razão do
direitouniversal, para todos, com a liberdade de ser de cada um e de cada
culturadiferente. A ciência moderna não pode, pois, deixar de fazer um balanço dos
seus próprios fundamentos e dos seus resultados, à luz de juízos éticos: para que e
para quem serve a ciência? Que resultados visam e quais os resultados alcançados?
Disso decorrem três questões: 1) as especificidades do processo cognitivo (o que
constitui a ciência); 2) a função social da ciência (para que e para quem?); 3) o papel
tradicional ou inovador do cientista (repetir ou criar em novas bases o conhecimento).
Para MORIN e KERN8 (1995), a abstração e a contextualização sãodois mecanismos
básicos do conhecimento atual sobre o mundo; ter acessoàs informações é próprio do
direito cidadão que, além disso, tem que saberarticulá-las e organizá-las. Porém, para
conhecer e reconhecer os problemasdo mundo é necessário uma reforma do
pensamento; essa reforma precisado desenvolvimento da contextualização do
conhecimento.A relação do homem com a natureza não pode ser nem simples
nemfragmentada. O ser humano é, ao mesmo tempo, natural e
sobrenatural:pensamento, consciência e cultura se diferenciam e se confundem
aomesmo tempo, com a natureza viva e física. Para MORIN e KERN(1995) ainda, a
construção do pensamento complexo depende de algumaspré-condições, tais como:1o vínculo entre relações da parte com o todo, que restabeleça o que
estácompartimentado;2- um pensamento radical, que vá à raiz dos problemas e um
pensamentomultidimensional capaz de levar em conta a multiplicidade do real;3- um
pensamento organizador e sistêmico (todo-parte-todo), a exemplodas ciências
ecológicas e da Terra;4- um pensamento “ecologizado”, que coloque o objeto no
interior de, pelasua relação auto-eco-organizadora com seu ambiente – cultural,
social,econômico, político, natural;5- um pensamento que leve em conta a ecologia da
ação e a dialética daação, capazes de modificar ou suprimir a ação empreendida;6um pensamento que seja inconcluso e que negocie com a incerteza naação, porque é
próprio da ação operar com o incerto.Deve-se, portanto, envolver ao mesmo tempo o
observador e o sujeito aoolhar – ação para – o real. Na esfera social, o observador é,
ao mesmo tempo,perturbado e perturbador. O observador da sociedade é alguém
investido de um desejo de olhar ede uma censura de olhar; é um elemento da
realidade, compreendido nela,cujo ato de conhecimento perturba e modifica o
fenômeno observado. Por essa razão, nas Ciências Sociais, o observador/conceptor é
um sujeito entre sujeitos. Ao excluir o sujeito da observação/concepção, constrói-se
uma história sem sujeitos (MORIN, 1994).
Interdisciplinaridade e pesquisana relação sociedade-natureza
No âmbito da problemática ambiental, os fundamentos teóricos sobre uma nova forma
de produção do conhecimento não podem ser dissociados da prática interdisciplinar,
entendida como a articulação de diversas disciplinas para melhor compreender e gerir
situações de acomodação, tensão ou conflitoexplícito entre as necessidades, as
práticas humanas e as dinâmicas naturais.
Tal estratégia epistemológica deve buscar combater os efeitos ideológicos
doreducionismo ecologista e do funcionalismo sistêmico que pensam o homeme as
formações sociais como populações biológicas inseridas no processo evolutivo dos
ecossistemas e acreditam ser a ecologia a disciplina mais importante das inter-
3. relações homem-natureza, elegendo-a a ciência dasciênciase a verdadeira teoria geral
dos sistemas. A necessária colaboração entre as disciplinas só terá sentido com a
prática social e a consequente intervenção no real. As temáticas do meio ambiente e
do desenvolvimento têm uma dimensão social que transcendem a ciência e as
atividades acadêmicas. O campo interdisciplinar em meio ambiente e desenvolvimento
pertence à construção do conhecimento sistematizado que se remete à história dos
conhecimentos disciplinares e a suas práticas metodológicas. Não basta juntar várias
disciplinas para o exercício da interdisciplinaridade; assim como um sujeito solitário,
mesmo um super-sintetizador de diversos conhecimentos, carece de condições para
realizar uma pesquisa interdisciplinar, da mesma maneira o simples encontro entre
diferentes saberes disciplinares não constitui uma pesquisa interdisciplinar. Pode-se
definir, genericamente, a experiência interdisciplinar como o confronto de diversos
saberes organizados ou disciplinares que, no âmbito do meio ambiente e do
desenvolvimento, desenham estratégias de pesquisa, diferentemente do que faria
cada disciplina, por seu lado, fora dessa interação. A prática da pesquisa
interdisciplinar coloca duas questões fundamentais: 1- Como articular a participação
de pesquisadores de diferentes disciplinas, no interior de uma prática de pesquisa
interdisciplinar? 2- Como articular esses diferentes saberes disciplinares em uma ação
negociada e coordenada, garantindo o espaço de contribuição para cada um deles?
Trata-se, portanto, de uma obra coletiva de conhecimento e de esforços pessoais e
institucionais. Tensões de diferentes níveis se apresentam nesse contexto
interdisciplinar: a) pessoais: próprias às idiossincrasias individuais, seus interesses e
capacidades, estratégias de poder (liderança), consciência do trabalho interdisciplinar,
espírito democrático e de cooperação, etc.; b) institucionais: 1) nível macro:
resistências/facilidades de incorporar novas práticas acadêmicas, atitudes e
mentalidades de grupos e corporações, novas interações, sistema de financiamento e
legislação em relação à estrutura administrativa da instituição (departamentos,
setores), distribuição do orçamento para a pesquisa, etc.; 2) nivel micro (da unidade
interdisciplinar): número de disciplinas reunidas na experiência interdisciplinar,
equilíbrio ou não entre ciências da vida, da natureza e da sociedade, estratégias de
condução (coordenação) da pesquisa (consciência da direção do processo e
legitimação da direção), sistema individualizado ou repartição de responsabilidades,
liderança carismática ou de competência reconhecida, se a experiência combina
formação acadêmica com pesquisa (pós-graduação). Em uma construção disciplinar
sobre a questão socioambiental, são limitadas as possibilidades de novas percepções,
em geral circunscritas aos limites de suaprópria construção. Por sua vez, a prática
interdisciplinar, no âmbito do meioambiente e do desenvolvimento, transcorre no
espaço das interações das dinâmicasdo sistema-sociedade e do sistema-natureza.
Não se trata apenas de um espaçoempírico, que aparece, mas de um espaço
intelectualmente construído. Para finalizar, pode-se dizer que a interdisciplinaridade,
no âmbito domeio ambiente e do desenvolvimento, é uma ação do conhecimento que
consiste em confrontar saberes, cuja finalidade é alcançar outro saber, mais complexo
e integral, diferente daquele que seria efetuada, caso não exista o encontro entre
diferentes disciplinas. Quer dizer, necessita-se de um novo saber, pois os existentes
são limitados e fragmentados, incapazes de traduzir a complexidade das interações
entre sociedades humanas e o meio natural.