Calane da Silva será homenageado em Maputo com a entrega do Prémio José Craveirinha de 2011, do qual é o atual detentor. O prémio, que agora se chama Prémio Carreira, será entregue durante uma cerimónia para homenagear o escritor.
1. Calane da Silva homenageado em Maputo, numa cerimónia
que servirá para a entrega do “Prémio José Craveirinha –
2011”, em que o escritor é o actual detentor.
Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 16 de Março de 2012 | Ano II | N°21 | E-mail: r.literatas@gmail.com
Palavras Escritas em Folhas de Mel
“Produzem-se
mais livros
do que
leitores, em
proporções
abismais”
Abreu Paxe em
entrevista: Pag. 8 & 9
Poetas por ser
na Bienal da Angola
2. SEXTA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 2
Editori@l
Como é feita esta poesia?
T
odas as manifestações artísticas têm fóruns próprios onde os seus fazedores, apreciadores
se encontram para um dedo de conversa, partilha de sorrisos, revivências de memórias e
recordações
Por exemplo num festival de jazz, o som do saxofone, da guitarra, do piano construem o oceano que
alberga os sonhos dos tímpanos, dos olhos que escutam o erudismo da música que acalenta as ondas.
E na literatura? Concretamente numa bienal internacional de poesia, que pela primeira vez um país
africano acolhe versus realiza, contrariando a realidade em que só terras portuguesas e brasileiras são protagonistas.
Estes tipos de evento de cariz internacional que enaltecem o intercâmbio cultural, a aproximação das esferas intelectuais
versus criativas, andam meramte escassos neste Áfrico continente. Dada à falta de vontade política em investir na cultura,
mas uma vez vimos aqui a força de uma União dos Escritores, que não se deixa levar pela letargia dos nossos políticos.
Rebuscando a memoria das décadas 80 e 90 onde estes encontros eram frequentes aqui em África,
Quero crer que com este encontro Angola (que será de 21 de Março a 21 de Abril) dá o primeiro passo para muitas caminha-
das rumo a universalização da literatura de expressão portuguesa ou por outra da literatura escrita na língua portuguesa
A palavra será o pão de cada dia durante estes dias que a bienal decorrerá no CEFOJOR – Centro de Formação de Jornalistas
em Luanda.
Esta bienal ao nosso ver (Kuphaluxa) tem um carácter dualista, pois e uma oportunidade impar de aprendizagem, realização
de voos que há muito vem sobrevoando nos nossos sonhos, de algum dia ser poeta, escritor.
Estar em Luanda numa bienal Internacional de Poesia ao lado de incontestáveis nomes da literatura do mundo lusófono
como Corsino Fortes, Manuel Rui, Luís Serguilha, Odete Semedo, Cláudio Daniel amigo virtual de outros carnavais, Lopito
Feijóo nosso mestre, amigo, que acreditou no nosso verde potencial ao escalar Maputo para mais um parto a cesariana de
um livro.
O que é que um colectivo de leitores, agitadores e activistas culturais, pode oferecer há um majestoso público de poetas
experimentado de dimensões internacionais e de leitores atentos? -surpresas,
Contudo, uma milha é caminhada mediante o primeiro passo e lá estaremos nós a ser representados por Moçambique (pois
representantes temos somente três que vão levar a bandeira deste País o Filimone Meigos, Luis Cezerilo e Dinis Muhai).
E cá em Maputo na mesma semana concretamente no dia 23,o nosso Madala, Professor, um dos muitos dos poucos que acre-
ditam nos nossos devaneios, vai receber o Prémio José Craveirinha, que subiu de valor (USD 25.000) e mudou de cara, se
outrora premiava-se as obras onde escritores como Paulina Chiziane, Eduardo White, Aldino Muainga, e outros cuja lista é
enorme, do ano passado para o infinito prémio deixa de premiar a obra, passa a ser Prémio Careira. E o nosso Madala Calane
é o capitão desta Vi(r)agem.
E continuando no percurso poético, desde já aproveitar este momento para vender os bilhetes para esta “viagem expansiva
para o lugar inabitado” conduzida por Cláudio Daniel, tendo como bilheteiro o Abreu Paxe sob a alçada da transportadora
Zunai.
Amosse Mucavele
amossinho@hotmail.com
3. SEXTA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 3
Destaque
Bienal Internacional de Poesia
Angola capital da poesia africana
E
stá na mira da lusofonia a Bienal Interna- Os angolanos, em
Redacção cional de Poesia, a acontecer em Luan- peso, marcarão a sua
da, capital da Angola. O evento que vai presença através dos
decorrer de 21 de Março a 21 de Abril vai juntar poetas dos países escritores Manuel Rui,
da CPLP, nomeadamente, Moçambique, Cabo Verde, Guiné- Roderick Nehone,
bissau, Timor Leste, Portugal, Brasil e poetas do país anfitrião. João Melo, John Bella,
Com este evento, a Angola estará na rota do turismo literário Kudijimbe entre outros
durante 30 dias em poetas.
que a poesia vai De Portugal participam os
alçar veias eruditas escritores Ernesto
entre os painelistas Melo e Castro, Fernan-
em que se espera do Aguiar, Jorge Melí-
autênticas aprendi- cias e Luís Serguilha e
zagens. do Brasil,
Por outro lado, já
Admir Assunção, Gui- Odete Semedo,, Poetisa Guineense
navegando pelo
do Bilharinho, Micheline
lema da própria bie-
Verusck, Nina Rizzi e Camila
nal, “Palavras Escri-
Vardalac.
tas em Folhas de
Entretanto, Moçambique será
Mel”, deve-se espe- representado pelos poetas
rar dessa tertúlia a Filimone Meigos, Luís Cezeri-
lo, Dinis Muhai, Eduardo Qui-
descoberta dos ver- ve e Amosse Mucavel, estes
Manuel Rui, escritor angolano
dadeiros caminhos da dois últimos, editor e chefe da
poesia africana, numa reflexão semiótica entre
escribas de tempos indefinidos.
De acordo com o programa, painéis de luxo vão
mover essa
Foto: Expresso das Ilhas
locomotiva da
poesia. São
eles, por exem- Fernado Aguiar, escritor português
plo, Conceição
redacção da revista Literatas, res-
Lima e Jeróni- pectivamente.
mo Salvaterra E é mesmo assim. África através
da Angola quer gritar a sua voz
Manuel de São poética. E o papel não se cala,
Tomé e Prínci- porque em si, vivem “Palavras
Escritas em Folhas de Mel”.
pe, António No entender do Movimento Literá-
José Borges, rio Kuphaluxa, a participação
jovens que dedicam-se à arte de
Corsino Fortes, poeta Cabo-verdiano Luís Costa, escrita e ao activismo literário,
Maria Ângela Carrascalão, de Timor Leste, Cor- constitui uma oportunidade para o
engrandecimento da jovem litera-
sino Fortes, Elísio Filinto, José Luís Tavares, tura moçambicana, principalmen-
Vera Duarte de Cabo Verde, Tony Tcheka e te, por se priorizar escritores
Cláudio Daniel, poeta brasileiro emergentes.
Odete Semedo, de Guiné-Bissau.
4. SEXTA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 4
Destaque Notícias
Escrita até
às veias Eduardo Quive
É de facto, o premiado, homem de longa carreira nas artes literárias cujo percur-
so é recheado de reconhecimentos, premiações e prestígio. É considerado um
dos mais influentes escritores moçambicanos e com conhecimento vivido sobre
a sua história.
Viveu os tempos da chamada “literatura de Combate”, conviveu com o homem
em que se inspira o prémio (José Craveirinha) aliás, no evento, como prova dessa
lealdade com o poeta-mor, da propôs ao Movimento Literário Kuphaluxa que
recitasse em jogral, o poema “Canção para o meu Povo” dedicado ao José Cravei-
rinha. Viveu os tempos do “Charrua” quando os Ungulani Ba Ka Khosa apare-
ciam. Agora vive os tempos indecisos da “jovem” literatura moçambicana. É um
escritor que não se deixa prender na escrita. Sai dos livros e vai ao leitor. Conta
as estórias com as próprias veias. Um erudito, menino suburbano.
Na voz de Calane, cospem-se versos que inspiram velhos, jovens e crianças. Um
exímio declamador, por isso, embora autor de uma importante obra poética
“Dos Meninos da Malanga”, não se afirma poeta. “Eu não sou poeta. Digo poesia.
Escrevo alguma poesia, mas poeta não.” Reitera. No entanto, é um autor se
impõe no que escreve, seja prosa seja verso, seja o palco seja na rua. Um artista
que se rejuvenesce pelo activismo literário.
É quanto, um prémio merecido. Um herói que se reconhece enquanto vivo. Dois
amigos que premeia-se entre si. José Craveirinha e Calane da Silva.
A cerimónia vai decorrer na próxima sexta-feira, dia 23 de Março no Paços do
Conselho Municipal da Cidade de Maputo (CMCM), as 18 horas.
C
alane da Silva, actual detentor do maior prémio literário de
Moçambique, “Prémio José Craveirinha” será homenageado Raul Alves Calane da Silva ou simplesmente Calane da Silva, nasceu a 20 de Outubro
em Maputo, numa gala que servirá igualmente para entre- de 1945 em Maputo. É docente de Literatura na Universidade Pedagógica (UP), direc-
gar o galardão referente a edição 2011, nas mãos do escritor. tor do Centro Cultural Brasil – Moçambique, membro fundador da AMOLP – Asso-
Autor duma das mais conhecidas obras moçambicanas ciação Moçambicana de Língua Portuguesa dentre outras instituições ligadas a litera-
“Xicandarinha na Lenha do Mundo”, Calane da Silva recebe este tura e língua portuguesa. Jornalista de longo percurso e autêntico precursor das artes
prémio que a partir de 2011, passou a aglutinar o nome de Prémio em Moçambique.
Carreira.
O
livro "O
A l f a b e t o
Trapalhão", da
escritora portuguesa
Lurdes Breda, com
ilustrações da Rute
Reimão, é um dos
selecionados para estar
no Pavilhão de Portugal,
na Feira do Livro
Infantil de Bolonha, em
Itália! A obra editada
pela GATAfunho, está
inclusa na lista dos cerca
de 100 livros que farão
parte do evento a
decorrer dentro de dias.
5. SEXTA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 5
Livros & Leitores
«O Teu Rosto Será o Último» Dom Quixote edita em Março
sai a 31 de Março «A Zona de Desconforto»
C A
Zona de Desconforto, do norte-americano Jonathan Frenzen, é
hega a 31 de Março às livrarias a obra lançado a 10 de Março pela Dom Quixote, editora que uma semana
que venceu o Prémio Leya 2011, O Teu mais tarde (dia 17) faz chegar às nossas livrarias a obra vencedora
Rosto Será o Último, de João Ricardo do Prémio Jabuti 2011, Ribamar, de José Castello. Por fim, a 24 de Março
Pedro. O livro sairá com a chancela da própria sai O Imperador Das Mentiras, de Steve Sem-Sandberg.
Leya. A Zona de Desconforto - Jonathan Fran-
Sinopse: «Tudo começa com um homem zen
saindo de casa, armado, numa madrugada fria. «A Zona de Desconforto é a memória
íntima que Franzen guarda do seu cresci-
Mas do que o move só saberemos quase no
mento dentro de uma pele hipersensível,
fim, por uma carta escrita de outro continente.
de ―uma pessoa pequena e fundamental-
Ou talvez nem aí. Parece, afinal, mais impor- mente ridícula‖, passando por uma ado-
tante a história do doutor Augusto Mendes, o lescência estranhamente feliz, até um
médico que o tratou quarenta anos antes, adulto de paixões fortes e inconven-
quando lho levaram ao consultório muito fer- ientes. Nas suas próprias palavras, Jona-
ido. Ou do seu filho António, que fez duas co- than Franzen era o tipo de rapaz que
missões em África e conheceu a madrinha de tinha medo de aranhas, bailes de liceu,
guerra numa livraria. Ou mesmo do neto, Duarte, que um dia andou de bici- urinóis, professores de música, bumer-
cleta todo nu. Através de episódios aparentemente autónomos – e tendo como angues, de raparigas populares – e dos
ponto de partida a Revolução de 1974 –, este romance constrói a história de pais. Não tinha nada contra os miúdos
uma família marcada pelos longos anos de ditadura, pela repressão política, totós, a não ser o pânico de que o tomas-
sem por um deles, destino que resultaria
pela guerra colonial. Duarte, cuja infância se desenrola já sob os auspícios de para ele na imediata morte social.»
Abril, cresce envolto nessas memórias alheias que formam uma espécie de Porta Livros
trama onde um qualquer segredo se esconde.» Porta Livros
Bandido também tem santo Fala! Onde é que você escondeu o dinheiro? Fala, vagabundo, fala‖.
Cidinha da Silva* - Brasil
E dá-lhe porrada. O rapaz calado. Eu queria interferir, pedir para eles
E
ra terça-feira e eu ia para mais uma entrevista de emprego. Estava marcada pararem de bater no menino, mas aí pensariam mesmo que eu era namora-
às 9, por segurança resolvi sair de casa às 6. Tinha lotação, trem e metrô da dele.
pela frente. O relógio tocaria às 5 horas, mas às 4 eu estava desperta. Me
banhei. Fiz as orações do dia. Pedi o emprego com fé. Senti aquela brisa quente Paramos num sinal. Tinha um carro da polícia estacionado, vazio. Os
atrás da cabeça de quando a resposta de Ogum está a caminho. Resolvi me vestir policiais deviam estar na padaria comendo coxinha. Por via das dúvidas,
de branco. Saí. afundaram o rapaz no vão entre os dois bancos. Nossos sequestradores
ficaram tensos. Engatilharam as armas. Eu, uma filha de Ogum, entro em
Fechei o portão. Caminhei em direção ao ponto de parada da Van. Um sentimento pânico quando vejo arma de fogo e comecei a tremer e a chorar. Um dos
de que faltava alguma coisa tomou conta de mim. Abri a bolsa, tudo o que eu pre- caras passou o braço pelas minhas costas, tapou minha boca com uma
cisava estava lá: carteiras de trabalho e de identidade, conta de luz paga, cópias mão e com a outra encostou o cano do revólver no meu fígado. Disse que
impressas do currículo, endereço dos três lugares onde buscaria emprego naquele se eu não calasse a boca naquele instante, ele apertaria o gatilho, sem dó.
dia, sanduíche de pão com goiabada, garrafa de água e um livro para ganhar o Calei. O sinal abriu. O motorista arrancou devagar.
tempo no transporte público. Não faltava nada, mas a sensação permanecia. A bri-
sa na cabeça voltou e me impeliu de volta para dentro de casa. Fui direto até a Os donos do carro deram mais umas voltas com a gente. O rapaz espan-
gaveta da cômoda, peguei um fio de contas. Coloquei no pescoço, ajeitei dentro da cado não dizia palavra. Eu também não. Um dos rapazes que batia pegou
blusa. meu pescoço, apertou meus seios com violência, disse ao suposto namora-
do que ele veria o que fariam comigo, na frente dele, caso não contasse
O retorno à casa me fez perder a condução. Fiquei sozinha no ponto, mas logo,
logo, encheria de gente. Veio vindo um rapaz de tênis de cano longo, bermudão,
onde estava o dinheiro. O menino nem abria os olhos, tinha apanhado
camiseta larga, boné e, lógico, headfone no último volume. Óculos escuros tam- muito, estava quase desacordado.
bém. Ele se sentou na murada ao meu lado e tirou um cigarro. Antes de acender, Chamei por Ogum e a massa de calor em movimento atrás da cabeça me
parou uma Blazer de vidro fumê na nossa frente, saltaram dois caras e cada um
pegou num braço dele. Mandaram ficar calado e o jogaram dentro do carro. levou a colocar a mão no ombro do caladão sentado à frente. Disparei a
Alguém gritou lá de dentro: ―Pega a mina dele também, vacilão! Vai deixar aí?‖ A falar, era a chance única de salvar minha vida. Repeti a história da entre-
nuvem do desespero turvou meus olhos. Não havia outra mulher por ali. A mina vista para o emprego, puxei minha carteira de trabalho, o sanduíche de
do desconhecido era eu. goiabada. Disse que não conhecia o desafeto deles, que simplesmente eu
estava no lugar errado, na hora errada. E o outro, louco, noiado, apertando
Me empurraram para o banco de trás junto com meu companheiro de espera da meu pescoço com uma mão e esticando a outra para rasgar minha blusa.
Van. Eu tentei dizer que era engano. Eu nunca o tinha visto antes, só estava ali Ele arrancou dois botões e enroscou a mão na conta, puxou, cortou o dedo
esperando o transporte. Ia fazer entrevista de emprego. Tinha a carta de convoca- no fio de nylon. Arrebentou tudo. As pedras brancas, como pombas, voa-
ção na bolsa, podia mostrar... ram pelo carro. Bateram no vidro fumê, no teto da Blazer, caíram no colo
do moço da frente. Ele abriu as mãos para as miçangas e sorriu. Mandou
O motorista mandou que eu calasse a boca, não estava interessado. Ao meu lado, parar o carro. Desceu, abriu a porta, estendeu a mão para mim e disse:
os grandões espancavam o rapaz e gritavam: ―Você vai me dar meu dinheiro, ―Pode ir embora‖. (Extraido do livro, "Oh, margem! Reinventa os
vagabundo. Se não der, vai morrer. Tá ligado? rios!" )
Cidinha da Silva é prosadora e gosta muito de poesia. Mineira, de Belo Horizonte, Cidinha começou a publicar literatura em 2006
com Cada tridente em seu lugar(crônicas, 3a edição); a seguir, publicou Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor! (crônicas, 2008).
Em 2009, foi a vez de Os nove pentes d’África (novela, 1a reimpressão), primeira obra juvenil de uma carreira promissora. Em 2010, parti-
cipou como co-autora deColonos e quilombolas (fotografia e textos). Em 2011, publicou Kuami (romance infantil / juvenil), além des-
te Margem, marca de seu reencontro com a crônica. O mar de Manu é um conto para crianças, publicado também em 2011.
6. SEXTA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 6
Cartas
Espaço aberto para debate e comentários sobre assun-
tos literários. Mande-nos uma carta pelo e-mail:
r.literatas@gmail.com
FICHA TÉCNICA
Propriedade do Movimento Literário Kuphaluxa
―
Croniconto A vítima do feitiço
Ele foi vítima de feitiço!
de cor rubra, tremeluzente, num
Dany Wambire
Assim estava escrito com tinta danitoavelino@gmail.com
papel de formato A4, que mais tarde soube-se ser certi- se empreendia esforço para
dão de óbito, esse comprovativo que os incrédulos de desacreditar os curandeiros.
morte o exigem para fins diversos. Tratou-se de adaptação da profis-
Nessa manhã, antes da secretária Analinda Basto passar são para sobrevivência.
Direcção e Redacção a certidão deste morto, esgaravatou tudo que a permitiria Mesmo o próprio doutor Senfim
Centro Cultural Brasil - Mocambique
apurar as reais e leais causas da morte de Tereso Vai- descria a doença do paciente, ora
vém: as receitas, os frascos de fármacos e inúmeras morto, ser objecto da ciência Ocidental. Médico generalista que
Av. 25 de Setembro, N°1728,
fichas clínicas. Em vão. Tudo vasculhado apenas expli- ele era, efectuara todas as análises possíveis, conforme a
C. Postal: 1167, Maputo cava sintomas e sinais de nenhuma doença cientifica- evolução dos sintomas e sinais, mas o resultado das análises
eram nenhumas doenças. Admoestado pela secretária Analinda
mente conhecida. Feitiço era a causa mais provável: a facilitar a saída do doente a uma consulta de nyanga, o doutor
entendia, assim, Analinda Basto. senfim declinou, dizendo que aquilo não existia.
Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 07 46
Mas o doutor Arduardo Senfim mandou vir com ela, ― Isso não existe na ciência.
603 dizendo que aquilo era hipocrisia de uma enfermeira ― Mas na ciência de Fim-de-Mundo existe, perseverou
Fax: +258 21 02 05 84 atrasada, um atentado à ciência medicinal. Como é que Analinda.
E-mail: kuphaluxa@sapo.mz um paciente podia, em plena vitalidade da ciência, mor- ― Não falo dessa ciência, falo da ciência científica.
rer à conta de um feitiço, uma coisa mal explicada, e se Não fosse, enfim, a certidão de óbito ser necessitado por um
Blogue: literatas.blogs.sapo.mz exímio dirigente político do país e talvez o doutor Arduardo
explicada, sem cabimento.
Disso, todavia, a Analinda Basto encontrava plena Senfim condescenderia a causa de morte defendida pela se-
explicação. Pois ela votara maior parte da sua vida ao cretária. O pedido da certidão de óbito, decerto, era feito por um
DIRECTOR GERAL tal de doutor Jesustôvão Edmundo, grande ministro da época.
tratamento de moléstias, simples e complexas, vulgares Era necessário aplicar toda perícia científica para apurar a causa
Nelson Lineu e invulgares. Até feitiços ela lhes dedicou tempo. Afi- da morte. Mas, mesmo depois de inúmeras necropsias em hos-
(nelsonlineu@gmail.com) nal, ela antes de vestir saia, blusa e sapatos brancos já se pitais vários, se conseguiu apurar a causa da morte. Foi então
Cel: +258 82 27 61 184
vestira de gite, essas coloridas roupas de nyangas, para que o doutor Arduardo Senfim assinou a certidão já aprontada
DIRECTOR COMERCIAL
enxotar mais terríveis obras de feitiçaria em molestados. pela secretária Analinda. E antes voltou a escrever por cima da
Japone Arijuane Ademais, ela se formara em enfermagem não foi senão causa da morte, carregando com tinta vermelha: ele foi vítima
(jarijuane@gmail.com) para convencionar a sua actividade, numa altura em que de feitiço.
Cel: +258 82 35 63 201
EDITOR
Eduardo Quive
(eduardoquive@gmail.com)
É, ou não é?
Cel: +258 82 27 17 645 Força fere feridas na alma, nauseabundos excrementos na bunda da cidade fede
excitante
CHEFE DA REDACÇÃO
Amosse Mucavele
Vagina em líquidos d’agua jejuada
(amosse1987@yahoo.com.br) Desafectação vil inspira e respira ar condiciona-se!
Cel: +258 82 57 03 750 Conjunturas só para a minoria avermelhada.
REPRESENTANTES PROVINCIAIS
Dany Wambire—Sofala O vai e vem dos Xapas antes cheios hoje enchidos: carnes vivas de bafo fúnebre há divisão dos per-
Lino Sousa Mucuruza—Niassa fumes, corpo sob corpo racismo sem problemas?
Leva frasco quando chegar abra o racismo, alias, perfuma-se
COLABORADORES FIXOS Culatra opaca a tirar a vida bala Marrabenta na dança da morte
Izidine Jaime, Pedro Do Bois (Saranta Cata- TV sapataria vai escovando os mais sujos, vê! É o que não é, pensa pança cheia de fome.
rina-Brasil) , Victor Eustáquio (Lisboa —
Portugal), Mauro Brito.
Amanha nunca será novo dia,
COLUNISTA Se continuas o mesmo: seiva da nação!
Marcelo Soriano (Brasil) Antes flor que sempre murchou, regada de esperma, poder hipnotiza cifrão: vai indo histérico não
gera acções enquadra-se numa das gerações….
FOTOGRAFIA É, ou não é?
Arquivo — Kuphaluxa
Responde, sempre é!
PARCEIROS O que não é, você não vê, é, ou não é?
Muda plante tantas mudas, se urinol serve rega… reza dê a dízimos universais, mas nada muda,
Centro Cultural Brasil—Mocambique
mas, vai! Muda! Talvez assim ninguém e nada muda-te.
Portal Cronopios Outro canal vê: ordem e progresso: sexo e violência: excremento tropical e a sua martirizada cultu-
www.cronopios.com.br ra? O ministério cuida! Cuida você de ti.
Sétima classe.
Revista Blecaute
Sétima ignorância.
Revista Culturas & Afectos Lusofonos
culturaseafectoslusofonos.blogspot.com Isca no coração da modernidade: cidade peixe bem no fundo do mar desértico, fedendo em fede-
lhos a fidelidade corrupta, aversão digna de indignidades soberanas fezes quantas vezes suportare-
mos as politicarias? Fôlego as acácias, folga as carícias a venda na avenida, matem a pobreza com a
mesma fome, vem Machimbombo bomba na hora de ponta vermelha de sangue, rostos militares
com fome na guerrilha dos transportamentos, pó cores de urnas dejectos falaciosos, já agora mudos
sem olfacto, como ser alguém, num país de donos?
Japone arijuane
jarijuane@gmail.com
7. SEXTA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 7
VIAGEM
Poesia FILINTO ELÍSIO — Cabo Verde
Em torno da odisseia das ilhas, creio levar
Neste puro desejo que me transcende, a senha
E a palavra-chave de os labirintos serem aqui
Simples lugares de passagem, apenas paisagem...
O andarilho palmilha as dunas, as areias
De intermináveis desertos e todas as ondas
Que os oceanos concedem, quando furibundas
Ou, mesmo, serenadas e das praias acariciadas...
Sem culpa, nem sina – ou de Job puro devedor –,
Percorro de lés a lés o mapa que é de ti e do mundo
Como quem responde à morte o saldo estival...
Como quem salta para a eterna idade da vida
Alguém te seguiu? E fica suspenso entre a estrela e sua cadência
A riscar, de viajar tão-somente, o céu da noite...
Rita Dahl - Finlândia
Flores que nunca
murcham SONHO DE CONSUMO
Alguém te seguiu até casa, ou Cristiane Sobral
conseguiste ir em paz? Francisco Júnior - Maputo
Por sorte ele não te atingiu
Se você me quiser vai ser com o cabelo
no cérebro de modo a que os cheirasses?
trançado
Talvez apenas passes o tempo a imaginar coisas? No jardim da Coop Resposta na ponta da língua
As chamadas de telefone que nunca Uma flor sorri todas as Teste de HIV na mão
aconteceram, quem sabe também as tivesses manhãs
imaginado? Se você me quiser desligue a televisão
Quando recebe seu divino alimento, Leia filosofia e decore o Kama-Sutra.
Soubeste o que perdeste?
Numa quantidade laboratorialmente calculada Muito bem!
Quem quer que seja aquele que se segue, mão
De um litro e alguns gramas de água potável.
quente Se você me quiser esteja em casa
ou severa? Alguém que Retorne as ligações e traga flores.
caminhasse a teu lado como um cão E lá no Mutarara… Não venha com teorias sobre ereção ou
fiel e ladrasse quando centímetros a mais.
A Joana desperta ainda na madrugada, Nem sempre vou querer sexo
quisesse, de modo a que lhe desses alimento
Antes do despontar do sol Nem sempre vou dizer tudo, ou acender
ou o afagasses? Perdeste isso? a luz.
Para caminhar dementes quilómetros
Mantiveste os teus sonhos, ainda assim?
Para obter 25 litros de água imprópria para o
Posso usar ternos ou aventais.
consumo.
Qual a diferença?
As noites serão sempre intensas à luz de
Enquanto vai desabrolhando a flor na Coop velas.
Vai murchando a Joana, a Antónia, a Rosa, a
Se você realmente me quiser
Virgínia, a Cacilda…
Ouse digerir a contradição
Pondo a prova a teoria de Samora. Ajude-me a ser uma mulher
Diante de um homem.
GOSTO Quem disse que seria fácil?
Margarida Fontes - Cabo Verde
_______________________
Gente que gosta de gestos meus Sobral, Cristiane. Não vou mais
… olha-os, imperceptíveis. lavar os pratos. Poesia. Dulcina
Gosto de gente que ouve pequenos Editora. 2º Edição. 2011. Brasília.
sinais Http://cristianesobral.blogspot.com
Gente farol dos instantes Twitter: Cristisobral
Gente que aprecia o mar, Facebook: Cristiane Sobral
… as ruas escuras,
… e o silêncio.
8. SEXTA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 8
Entrevista por Revista Zunai
Viagem
expansiva
para o lugar
inabitado
“A poesia angolana contemporânea, penso, está à procura de seu rosto. Precisa de o ajustar,
com certeza. Depois da década de setenta, as que se seguiram tornaram-se mais dinâmicas e
reagem às transformações socioculturais. Ela constrói-se e vai ajustando-se na investigação
antropológica (autóctone) - com sentidos estéticos virados para a inteligência, para a vonta-
de e para a razão africana - e na experiência alienígena, propondo-nos formas novas mais
adequadas ao conteúdo da nova linguagem poética, no qual a transgressão, eroticidade, a
errância, os desafios, a metalinguagem, a desconstrução (Secco) constituem-se em alguns
dos seus mais importantes vectores.”
Zunái: Você cresceu num país que viveu intensos conflitos nas últimas três décadas, como a luta Luanda. O terceiro, já como adulto que é este ser em que me vou transformando.
pela emancipação de Portugal, a guerra civil e os esforços para a reconstrução nacional. Como Como se pode bem compreender, neste período ainda estávamos confinados a zonas onde
estes fatos marcaram a sua vida e a sua poesia? produzimos e ganhamos o pouco, embora comungue com o ditado húngaro que diz: "todo o
bocado acrescenta, diz o rato e vai fazer xixi no mar"; ou seja, a minha poesia está revestida
Paxe: A minha poesia dialoga, como bem indicou, com estes momentos do nosso mais recente de simbologia que permite a compreensão de épocas passadas, alarga a sua voz e espalha-a
passado sócio-histórico, embora de forma perversa, na qual privilegio a informação estética. Tra- no culto das cerimônias atuais dirigidas à magia da vida, lugares ainda por conhecer, verda-
duz a minha condição de ser, um ser confuso, incompleto sempre pronto a ser forjado, moldado, deiras zonas cinzentas, legitimando cavernas, muitas vezes, não só de difícil acesso na reso-
formado e transformado. lução dos nossos conflitos e desafios, assim como de fácil acesso ao fazer-nos recordar os
O meu país também ostenta este rosto. Ele cria o primeiro rosto fundado no Movimento dos ciclos de ossos num estranho apodrecer, de que felizmente, já só vão ficando sequelas que
Novos Intelectuais de Angola (MNIA) sob a bandeira "Vamos Descobrir Angola", uma frente cul- vamos tentando esquecer.
tural que se criou no domínio da literatura e da guerrilha, ligados pelo mesmo denominador, que é
o sentimento nacional, para combater o colonialismo, um mal que se implantou entre nós, cuja Zunái: Como foi a sua formação literária? Quais foram os autores que chamaram a sua
finalidade era a de destruir o outro despojando-o de todos os seus valores culturais e não só privile- atenção para o fazer poético? Por que você escolheu ser poeta?
giando os do sistema colonial. De seguida, cria o segundo rosto no qual o País experimenta à época
pós-independência: neste período, abraça a orientação política do comunismo, anulando as preocu- Paxe: Minha formação literária... será que a tenho? É curioso, em Angola, a produção literá-
pações coloniais sob a forma superior de organização social que reflectia a nova situação. É neste ria supera em anos-luz o ensino da literatura, ou seja, produzem-se mais livros do que leito-
período que a guerra civil ganha força e expressão. Por fim, cria o rosto do multipartidarismo, fun- res, em proporções abismais. O ensino da literatura ainda se constitui na nossa zona do
dado num princípio de unidade nacional, período em que cessa a guerra civil, unindo esforços para sahel, ainda é a nzaya almejada. Para o meu caso, mais concretamente, toda a minha forma-
a reconstrução nacional, no qual nos submetemos aos novos desafios em busca de um bem-estar ção académica, do básico à licenciatura, realizou-se cá. Felizmente, "nos áureos anos de
para todos. 1978/79", o Instituto Nacional do Livro e do Disco (INALD), das várias e riquíssimas colec-
Conjugam-se em mim estes três rostos: o primeiro, não tinha eu ainda nascido. O segundo, quando ções que possuía constava a da literatura para crianças. Meu pai, então motorista da Delega-
criança e adolescente vivendo o drama da guerra, da fome e da miséria: terríveis anos, até a nível ção Provincial da Educação, sempre que viesse para Luanda tinha o cuidado de comprar
de escolarização, razão pela qual a minha família troca o interior (Uíje), minha terra natal, por para nós estes livros. Por isso fomo-nos forjando, embora de forma, arrojada como leitores
9. SEXTA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 9
Entrevista por Eduardo Quive
uma demarche autodidata, pouco ou nada recebendo da escola oficial. move minha poesia. Perceberam, como dizia E. M. de Melo e Castro, que a poesia está sem-
pre no limite das coisas. No limite do que pode ser dito, do que pode ser escrito, do que
Posto cá em Luanda, nos finais da década de oitenta, ao ler poetas como Costa Andrade, Antó- pode ser feito, do que pode ser visto e até pensado, sentido e compreendido. Estar no limite,
nio Jacinto, Roberto de Almeida, Viriato da Cruz, Agostinho Neto, Jorge Macedo, Manuel ainda dizia, significa muitas vezes, para o [poeta/leitor], estar para lá do que estamos prepa-
Rui, Henrique Guerra... fui ganhando o gosto pela poesia e fui compreendendo a nossa condi- rados para aceitar como possível. Postura contrária tiveram os que se constituíram em críti-
ção como povo. A essa leitura segue-se a dos poetas que mais se destacaram nas décadas de 70 cos literários, desferindo duros golpes à minha pessoa e aos que têm escrito mais ou menos
e 80, nas brigadas e não só. Lia-os todos. Mesmo sem os entender, gostava da forma como na senda do que tenho estado a fazer, mesmo sendo anteriores a mim, chegando a dizer que
propunham aquelas peças poéticas que não entendia, mesmo assim gostava de os ler. Foram os o mesmo livro em nada contribuía para a literatura e que vinha destruir os propósitos da
casos de João Maimona, Lopito Feijoó, Rui Augusto, Conceição Cristóvão, José Luís Men- poesia, e que tinha uma linguagem muito difícil de entender e que eu não percebia nada do
donça, David Mestre, Arlindo Barbeitos e Ruy Duarte de Carvalho... Só começo a ter contato que fazia... Como se a poesia obedecesse a regulamentos, a decretos ou normas pré-
com poetas contemporâneos estrangeiros, em meados da década de noventa, através de João estabelecidas. Mas eu percebo a razão de muitos terem reagido assim: em primeiro lugar, é
Maimona, que também me põe em contacto com a revista Dimensão (de Guido Bilharinho, do para perpetuar uma perspectiva da uniformidade inquestionável, do discurso dos poetas que
Triângulo Mineiro), intelectual brasileiro que prezo muito que me passou a enviar a referida mais se destacam no nosso passado recente, cultivando o culto do facilitarismo com vesti-
revista com regularidade até o seu último número. Esta fase foi muito importante para a minha mentas conservadoras; e por outro, é pelo fato de terem dificuldades em se integrarem nos
produção poética. É através dessa revista que conheço poetas importantíssimos do panorama novos desafios da poesia, pensando que para isto estariam a anunciar a sua não sobrevivên-
da poesia mundial, um conhecimento que se vai alargando cada vez mais. E agora, claro, em cia, o seu desaparecimento, ou a sua morte, acusando, claro, os diversos limites com que um
contacto consigo que se constituiu para mim num verdadeiro poço de descober- leitor/poeta se pode confrontar: os sociais, os políticos, os religiosos, os ideológicos, os pre-
tas. conceituosos, os psicológicos, os morais, os retóricos, os estéticos, os linguísticos... Dá para
Escolhi a condição de ser poeta, por ser, um ser confuso, incompleto, sempre pronto a ser for- perceber como têm sido a repercussão de A Chave no Repousa da Porta nos nossos meios
jado, moldado, formado e transformado. Sinto que nesta condição acomodo-me no triângulo literários?
ritualístico, no processo de transmigração.
Zunái: Ao contrário da dicção mais discursiva, retórica, de conteúdo político directo, que
Zunái: Como foi o início de sua carreira poética? Publicou em revistas? Participou da Briga- esteve em evidência nos anos 60 e 70, tua poesia parece mover-se em outro sentido, buscan-
da Jovem de Literatura? do uma reinvenção da sintaxe e a força mântrica das palavras. A linguagem poética, a seu
ver, é uma leitura crítica da realidade ou a criação de uma outra realidade?
Paxe: Penso que a poesia, como ato de criação, para mim não deve de forma
objectiva nomear as coisas tal qual como elas acontecem no cosmos, tal
como se movem, tal como o cosmos as regula, vistas, à vista desarmada ou
macroscopicamente. A poesia deve constituir-se no mundo alternativo, este
funcionando como mundo não codificado ou convencionado numa visão
globalizante, senão como codificação singular do criador e do leitor. Ao
serviço da arte, a poesia deve-se construir com certa erudição, ou seja, a
partir do que já existe, do que já foi proposto nos matizes artísticos. A poesia
deve convidar-nos a mergulhar no escuro, como dizia Gastão Cruz, não para
o iluminar, mas para aprender a conhecê-lo, evocando todos os sentidos.
Como se pode ver, para mim a linguagem poética é a criação de uma outra
realidade, fundada numa realidade, ou seja, a recriação da realidade observá-
vel.
Zunái: O seu olhar está voltado para as mínimas coisas do quotidiano, que
não é retratado de modo ingénuo, fotográfico, mas antes é fragmentado em
cenas rápidas, como num videoclipe. Esta reconstrução das imagens pela
palavra poética tem uma influência das mídias eletrônicas?
Paxe: De certo modo, sim. Persigo, neste exercício, a capacidade de recom-
posição e síntese, transformando meu olhar em unidades de análise, uma
qualidade que impregna todas as criações resultantes de um processo inte-
ractivo entre o homem e os meios electrónicos em que a metamorfose e o
virtual se projectam na mente humana como agentes da própria instabilidade
e plasticidade, como
agentes da invenção e da percepção,
Paxe: A minha careira poética inicia-se com a publicação, no não distante ano de 1999, de levando a poesia para além dos limi-
quatro peças poéticas na página cultural do Jornal de Angola, poemas publicados no ano tes, numa viagem expansiva para o
seguinte (2000) na revista Dimensão. Nunca participei das actividades da Brigada Jovem de lugar inabitado, originando imagens
Literatura (BJL). simultâneas e diversas capazes de
modificar os sentidos (ordenados)
Zunái: A Chave no Repouso da Porta, que você publicou em 2003, revela uma linguagem num elevado grau de fragmentação.
densa, concentrada e fortemente imagética. Qual foi a repercussão desse livro nos meios lite- Estes fragmentos, estes paradoxos,
rários de seu país? que vez ou outra nomeio, buscam
anular a linearidade, a luminosidade,
Paxe: Causou muito estranhamento e é preocupante a reacção de muitos que acusam ainda o detalhe. Mesmo quando experi-
muita desinformação em relação à poesia, depois de alguns comentários que fui ouvindo, mes- mento as vestimentas narrativas,
mo sabendo que o livro tinha resultado dum concurso, confesso que comecei a acusar uma sinto que só participo alegremente
certa insegurança. Aproveito aqui para referir, em forma de agradecimento, o nome de Jomo de uma festa que legitima os estímu-
Fortunato que, para além de ser meu amigo, é um dos poucos leitores que confirmou a força los que nos cercam, nas actualiza-
que o livro tinha; incluo, também outras personalidades: o já falecido professor doutor Augus- ções materiais onde é preciso abrir
to Kambwa, a quem coube a tarefa de apresentar o livro; do júri, os poetas João Maimona, os olhos e a mente de um modo
Jorge Macedo, Adriano Botelho de Vasconcelos, Cláudio Daniel, Guido Bilharinho, Gabriel diferente.
Magalhães, a professora Carmen Secco, entre outros, que perceberam o sentido, no qual se
10. SEXTA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 10
Filosofonias
Colunistas Marcelo Soriano — Brasil
m.m.soriano@gmail.com
O passo certo
no caminho errado
Nelson Lineu - Maputo
nelsonlineu@gmail.com
O Perguntador
e o Primeiro
F
echado o jor-
nal, Horácio esperava ansiosamente pelo impacto a quando
da saída as bancas, sentimento igual a esse teve com a sua
Imagem: " Sunset Shadow", Nomad Thru Life.. No Internet.. http://www.flickr.com/
primeiro texto. Nunca conseguiu convencer os familiares sobre o photos/56684679@N08/5529156581/
nome da sua profissão, dizia ser jornalista. Por estar a fazer constan-
temente perguntas a profissão dele era perguntador, sentenciavam os Comentário: A Quarta Pessoa
seus, a língua portuguesa não podia ser tão enganadora.
Existe uma 4ª Pessoa do Singular e do Plural, diferente de todas as que
A ansiedade desta vez era diferente, o medo lhe subia os pés, ques-
conhecemos. Ao contrário do que pregam os doutos, não é preciso ver para
tionava-se sobre o porquê dos jornalistas terem que pagar com a vida
crer, tampouco crer é preciso. Basta fechar os olhos, e viver o próprio
ou com a pobreza, por coisas que não são eles a falar. Era admirador escuro.
do jornalista Carlos Cardoso, que foi assassinado por não respeitar a
....................................................................
liberdade de expressão vigente, ilimitando-se. O Horácio e outros, no
Mini crônica: Más Companhias Dão Bons Livros
dia em que se assinala mais um ano da efeméride, aparecem em
debates, prestavam homenagens, mas quase ninguém, desrespeitava Más companhias dão bons livros. Más companhias são boas, então. Bons
também a liberdade de expressão, por isso a não entrega do premio livros, nem todos
de jornalismo investigativo com o nome dele num desses anos. No o são. Mas os bons, ah os bons! Sempre bem acompanhados pelas más
seu terceiro cigarro encontra a resposta da sua espinhosa questão, companhias.
eram intimidados, porque os outros só falavam por causa das pergun- ....................................................................
tas deles. Encontrava sentido do nome que os familiares davam a sua Poema: Das Minhas Gavetas
profissão.
(O Mofo, em 07/07/2009)
O que fazia-lhe estar naquele estado, era a reportagem, da conferên-
cia de imprensa, convocada pelo director duma empresa estatal. De
Os fungos escreveram mofo
princípio notou que ele queria ser herói, mas o que contrastava era
no papel velho
facto de sê-lo por incompetência. Logo ficou claro, para ele era mais
importante ser primeiro do que herói.
Os fungos escrevem
- Temos o primeiro presidente da frente que libertou o país, quem coisas antigas
deu o primeiro tiro, primeiro presidente da república de Moçambi-
que, o primeiro presidente empresário. Por ser incapaz, formação Saudade de amor
deficiente, demito-me do meu cargo, por tanto serei o primeiro a
demitir-se nesse país. Releio e
Mesmo sabendo que mais tarde alguns reclamariam o seu posto de fungo
primeiro, ele continuava firme a ambição dele o guiaria, o seu esfor- ....................................................................
ço ou risco não seria menor que dos outros. Num país em que está
- E tenho dito!
tudo bem como testemunha têm-se o informe anual do estadista. As
suas declarações contrariavam o cenário pintado na presidência. Um
som saia do telefone dele, era sinal da bateria estar carregada, para a
Paixões são amores carnívoros.
positividade da sua ansiedade, segundo o seu ponto de vista, com o
jornal nas bancas, de certeza receberia ameaças, intimidações, esse
era o reconhecimento dos jornalistas por essa África.
11. SEXTA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 11
Um diálogo com os mortos!
Matiangola
quase que bovinamente, a partir de agora em diante queremos celebrar o
n_nhamposse@yahoo.com.br nascimento de Cristo e a sua morte, excelentíssimo presidente. Sabe, Mr.
Matias, os mortos também rezam e o seu Deus é o covil. Também temos
O próprio viver é morrer, porque não temos um
direito a Natal. Por outro lado, clarividente e visionário líder, o cemitério
dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nis- anda muito cheio e já há mortos que perderam os seus ente-queridos. Mor-
so, um dia a menos nela, Fernando Pessoa tos que reclamam dos ossos dos seus pares. Nobres saudosos, mais do que
nos atulharmos de palavras e barasfutarmos de um lado para o outro, pro-
pomos a Matias Company a augusta e vidente missão de passar a cremar
Lá se iam os dias. As trincheiras e os soldados da morte plumavam os falecidos e evitar conflitos de mortos sem mortos, assim o município
vagens infinitas. O sol humedecia a cada instante. A estrebaria reinava e, nem precisaria de transferir os cemitérios a cada vez que enchessem dos
para o cúmulo, em pleno cemitério e arredores, os mortos comportavam- nossos ente-queridos ossos. Ademais, continuamos, cegamente, a ver a
se como autênticos asnos. discriminação crescer e tomar proporções outras. Sabemos que o homem é
Perante aquela situação, Matiangola, o líder e visionário dos entre a morte um ser discriminatório de natureza. Sim, excelência, o homem discrimina,
e a vida e detentor de um império que servia aos jazidos, decidiu fazer a título ilustrativo, quando escolhe amigos, namoradas, esposas, etc. É que
uma reflexão e auscultar os perecidos, lógica e evidentemente no Arena o acto de escolha de uma amizade é guiado por um conjunto de elementos
Stadium Jazida, palco de eventos e cerimónias dos falecidos. discriminatórios, tal como porque este é aquilo e russo uma pinóia. Por
- Meus distintos irmãos, é com muita nobreza e preocupação que a causa disso, ilustre clarividente, achamos que os gays e as lésbicas, sobre-
Matiangola Company registou com avesso e clarividência como se com- tudo numa sociedade globalizada como a nossa, onde os mortos têm pala-
portaram durante a semana. E nós, como vossos encarregados de faleci- vras, também têm direito a serem loboladas, tal como Mr. Matías lobolou a
dos, sentimo-nos na obrigação de perceber a vossa atitude. sua Julieta no caixão. Trata-se de uma visão estratégica e do futuro, disse
- Excelentíssimo PCA, distintos choradores da Matiangola Company, Zeca Sibinde, representante dos perecidos, aos aplausos e gritos efeveres-
ilustres, gostávamos de mostrar aos vivos que a morte transcede a vida e, centes dos jazidos.
mais do que blasfemar, também se é feliz numa jazida. A vida é como as Matiangola, perante aquele posicionamento, reagiu e disse: - todos nós
ondas, quanto mais se aproximam da margem, mais reduzem de intensi- temos direito à vida e vocês merecem, mesmo mortos. É que as pessoas
dade. E quanto mais se distanciam, mais fortes são. Por isso, mais do que pensam que morrer é estar enterrado, mas a morte transcede ao estado de
nunca, há que mudar de ambientes e horizontes. Lembrem-se, caríssimos enterrado. Trata-se de um direito consagrado pelos Direitos Humanos.
irmãos, não há cruzes eternas. Por muito tempo, fomos bodes expiatórios Essa é uma decisão sábia, por isso, bem haja mortos. E para consagrarmos
até de erros e/ou problemas ainda não inventados e, invariavelmente, sen- a morte, meus nobres jazidos, anuncio que hoje, mais do que nunca, e para
tíamos que para alguma coisa aquilo servia. Servia para a felicidade das celebrarmos este feito, vou lobolar uma esposa. Isso mesmo. Vou lobolar
pessoas que o faziam. Servia para se sentirem mais poderosas, suposta- um meu colaborador que faleceu a garganta a chorar por vocês, pelas vos-
mente, mais conhecedoras do mundo em relação a nós. Muitas vezes, dis- sas almas, um herói nacional. Sempre fui pastor de ondas, do vagueio, da
tintos mortos, vimos e continuamos a ver ovelhas ensanguentadas de blague, mas na hora de reconhecer aqueles que por nós deram o litro, não
lobos, ou melhor, cordeiros pintados de sangue. Desde sempre, e talvez a vacilo. A morte é um direito consagrado por lei e não podemos deixar
sociedade tenha culpa nisso, as pessoas sempre procuraram culpados dos impune a partida da garganta do nosso colaborador. Igualmente, anuncia-
seus insucessos do lado falecidos. Mas hoje, camaradas, queremos reafir- mos que a partir de hoje a Matiangola Company irá lobolar e sepultar os
mar que o ser e/ou estar em estado de falecido não significa estar, neces- gays e lésbicas. A bem de todos, bem haja a morte.
sariamente, morto. Vivemos num mundo onde entre os vivos há mais PS: A Matiangola Company comunica, com profundo pesar e consterna-
mortos do que entre os falecidos. Há mais cemitérios enterrados na terra ção, o falecimento que ocorrerá do seu PCA. Pelo que está aberto um con-
do que debaixo dela. É que para ser morto não precisa ser falecido. E, curso público para a vaga de potencial Txingador. Apela-se e encoraja-se!
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Em Agosto de 2012
Maputo será a capital da Literatura
Festival Literário de Maputo
Saiba como participar em:
http://festivalliterariodemaputo.blogspot.com
festivalliterario.maputo@gmail.com
12. SEXTA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 12
Tributo Brasil e Moçambique
Castro Alves e Rui Nogar
A
Manuel Bandeira os catorze dias do mês Escritor e político moçambicano, Rui
Fonte: http://www.culturabrasil.org de Março, no ano de Nogar, pseudónimo de Francisco Rui
1847, nasceu António Moniz Barreto, nasceu a 2 de feverei-
de Castro Alves, na fazenda
ro de 1935, em Lourenço Marques
Cabaceiras, a sete léguas da vila
de Curralinho, hoje cidade de (atual Maputo), Moçambique.
Castro Alves. Era filho do Dr. Fez os estudos primários e secundá-
António José Alves e D. Clélia rios em Lourenço Marques e come-
Brasília da Silva Castro. çou a trabalhar como empregado
Passou a infância no sertão comercial e funcionário de agência de
natal, e em 54 iniciou os estu- publicidade. Para além disso, exerceu
dos na capital baiana. Aos
vários cargos como o de deputado da
dezasseis anos foi mandado
para o Recife. Ia completar os Assembleia Popular, Diretor do
preparatórios para se habilitar à Museu da Revolução, Diretor Nacio-
matrícula na Academia de nal da Cultura e Secretário-Geral da
Direito. A liberdade aos 16 anos Associação dos Escritores Moçambi-
é coisa perigosa. O poeta achou canos. Desde 1964 era militante da
a cidade insípida. Como ocupa- Frelimo e foi preso pela PIDE por fazer parte da organização. A obra Silên-
va os seus dias? Disse-o em car-
ta a um amigo da Baía: "Minha cio Escancarado (1982) resultou de uma recolha de textos escritos no tempo
vida passo-a aqui numa rede olhando o telhado, lendo pouco fumando em que esteve preso.
muito. O meu ‗cinismo‘ passa a misantropia. Acho-me bastante afectado Poeta, contista, declamador, Rui Nogar colaborou em publicações de
do peito, tenho sofrido muito. Esta apatia mata-me. De vez em quando imprensa, como Itinerário, O Brado Africano, A Voz de Moçambique, Cali-
vou à Soledade." Que era a Soledade? Um bairro do Recife, onde o poeta ban e África. A sua obra está incluída em várias antologias nacionais e
tinha uma namorada. O resultado dessa vadiagem foi a reprovação no exa- estrangeiras, como Poetas Moçambicanos (1960), Resistência Africana
me de geometria. Mas em 64 consegue o adolescente matricular-se no
(1975) e No Ritmo dos Tantãs (1991).
Curso Jurídico.
Se era tido por mau estudante, já começava a ser notado como poeta. Em Rui Nogar morreu em Lisboa, em 1994. Infopédia.
62 escrevera o poema "A Destruição de Jerusalém", em 63 "Pesadelo",
"Meu Segredo", já inspirado pela actriz Eugénia Câmara, "Cansaço",
"Noite de Amor", "A Canção do Africano" e outros. Tudo isso era, verda-
de seja, poesia muito ruim ainda. O menino atirava alto. "A poesia", dizia, XICUEMBO
"é um sacerdócio — seu Deus, o belo — seu tributário, o Poeta." O Poeta
derramando sempre uma lágrima sobre as dores do mundo. "É que", acres- Eu bebeu suruma
centava, "para chorar as dores pequenas, Deus criou a afeição, para chorar dos teus ólho Ana Maria
a humanidade — a poesia." eu bebeu suruma
Mas, no dia 9 de Novembro de 1864, ao toque da meia-noite, na sotéia em e ficou mesmo maluco
que morava, o poeta, que sem dúvida se balançava na rede, fumando mui-
to, sentiu doer-lhe o peito, e um pressentimento sinistro passou-lhe na
alma. Pela primeira vez ia beber inspiração nas fontes da grande poesia: agora eu quero dormir quer comer
essa a importância do poema "Mocidade e Morte" na obra de Castro mas não pode mais dormir
Alves. Uma dor individual, dessas para as quais "Deus criou a afeição", não pode mais comer
despertou no poeta os acentos supremos, que ele depois saberá estender às
dores da humanidade, aos sofrimentos dos negros escravos (O Navio suruma dos teus olhos Ana Maria
Negreiro), ao martírio de todo um continente (Vozes d'África). Não era matou sossego no meu coração
mais o menino que brincava de poesia, era já o poeta-condor, que iniciava
os seus voos nos céus da verdadeira poesia. Naquela mesma noite escreve
oh matou sossego no meu coração
o poema, tema pessoal, logo alargado na antítese mocidade-morte, a moci-
dade borbulhante de génio, sedenta de justiça, de amor e de glória, doloro- eu bebeu suruma oh suruma suruma
samente frustrada pela morte sete anos depois. dos teus ólho Ana Maria
A versão primitiva do Poema foi conservada em autógrafo, documento com meu todo vontade
precioso porque revela duas coisas: o poeta não se contentava com a for- com meu todo coração
ma em que lhe saíam os versos no primeiro momento da inspiração; na
tarefa de os corrigir e completar procedia com segura intuição e fino gos-
to. Cotejada a primeira versão com a que foi publicada pelo poeta em São e agora Ana Maria minhamor
Paulo, por volta de 68-69, verifica-se que todas as emendas foram para eu não pode mais viver
melhor. Baste um exemplo: o sexto verso da segunda oitava era na primei- eu não pode mais saber
ra versão "Adornada" com os prantos do arrebol, substituído na definitiva
por "Que" banharam de prantos as alvoradas, verso que forma com o ante- que meu Ana Maria minhamor
rior um dístico de raro sortilégio verbal. é mulher de todo gente
é mulher de todo gente
"vem! formosa mulher — camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas". (…) todo gente todo gente
menos meu minhamor.
13. SEXTA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 13
Ensaio Adelto Gonçalves - Brasil
Lima Barreto e o refúgio dos infelizes
N
ão se pode dizer que a reedição de Clara dos Anjos, de Lima Barreto (1881- vam sangue africano ou indígena nas veias.
1922), que narra as desventuras de uma adolescente pobre e mulata, filha de
um carteiro, seduzida por um malandro branco, apesar das cautelas familia- III
res, seja uma boa oportunidade para se reavaliar o conceito emitido por antigos críti-
cos segundo o qual este romance que não estaria à altura da melhor produção de seu Não foi o caso de Afonso Henriques de Lima Barreto, nascido no Rio de Janeiro,
autor. Não está mesmo. Se não constitui um romance de todo falhado, a verdade é filho do tipógrafo João Henriques e da professora Amália Augusta, ambos mulatos.
que, se comparado com os de Machado de Assis (1839-1908), cujas origens sociais Seu padrinho era o visconde de Ouro Preto, senador do Império. A mãe, escrava
são idênticas às de Lima Barreto, este livro deixa a desejar em alguns aspectos, inclu- liberta, morreu precocemente, quando ele tinha seis anos. As marcas desse período
sive, em certa pobreza vocabular, ainda que seja fundamental conhecê-lo para se da história brasileira, que inclui a abolição da escravatura em 1888, sempre ocupa-
entender a grandeza de toda a obra do autor. ram o centro da obra literária de Lima Barreto, que procurou denunciar o precon-
ceito racial e a difícil inserção de negros e mulatos na sociedade brasileira.
Publicado postumamente em folhetim entre 1923 e 1924 e em livro em 1948, Clara
dos Anjos, provavelmente, ainda passaria várias vezes pela lima horaciana de Lima Lima Barreto sempre preferiu o subúrbio, o ―refúgio dos infelizes‖, território que
Barreto, não tivesse o autor uma vida tão breve e interrompida aos 41 anos de idade passara a abrigar ―os que perderam o emprego, as fortunas, os que faliram nos
por um colapso cardíaco depois de impiedosamente minada pelo alcoolismo. Fosse negócios‖. Mas, ao contrário do pobre que só entraria triunfalmente no romance
como fosse, o certo é que a trajectória de uma mulata jovem moradora nos subúrbios brasileiro na década de 1930 cheio de solidariedade com o próximo – inspirado
do Rio de Janeiro do começo do século XX foi uma ideia que perseguiu Lima Barreto pelas ideias socialistas e comunistas –, os pobres de Lima Barreto são ―feios, sujos
desde cedo, exactamente desde 1904, quando começou a tentar colocar em pé o esque- e malvados‖, para lembrar aqui um filme de Ettore Scola.
leto desse romance. Levou quase vinte anos nessa luta e, quando morreu, ainda estaria
Nada solidário, quem é um pouco mais branco já olha o mais escuro com desdém.
às voltas com o romance. A família cujo patriarca – geralmente, funcionário público – ganha um pouco mais
De fato, a obra traz algumas descrições que, mesmo hoje, quando o Rio de Janeiro já encontra motivos para menosprezar aquela que vive em maiores dificuldades. A
está totalmente desfigurado em relação ao que era há um século, graças às picaretas de família de Cassi, por exemplo, fazia questão de se mostrar superior às demais no
uma falsa modernidade que não respeita nada e só leva em conta os lucros das cons- subúrbio porque teria tido um ascendente importante. Isso era comum no Brasil:
trutoras e incorporadoras que seguem sempre montadas à ignorância cavalar dos não havia família de descendentes de portugueses que, ao enriquecer, não tratasse
governantes, seriam perfeitamente dispensáveis, pois tiram um pouco o ritmo da tra- de recorrer à arte da heráldica. Mais tarde, quando um dos rebentos ia a Portugal
ma. Uma trama cujo desfecho está anunciado desde as primeiras páginas: a de que a em busca de terras e brasões, geralmente, descobria que pais, avós ou bisavós nun-
jovem mulata haveria de sucumbir à lábia do malandro carioca suburbano, de nome ca passaram de aldeões que se haviam atirado ao mar para escapar da pobreza.
Cassi Jones, entregando-se a ele para, logo em seguida, ser rejeitada. E condenada a
Diz Sérgio Buarque de Holanda que Lima Barreto nunca conseguiu reunir forças
criar um filho sem pai. para vencer, ―ou sutilezas para esconder, à maneira de Machado, o estigma que o
Já o sedutor Cassi é pintado com tintas pouco carregadas. Contra ele, vê-se apenas que humilhava‖. Pelo contrário. Em seus contos, romances e artigos de jornal ou revis-
é um incorrigível galanteador de donzelas pobres, mas, ao contrário de outras persona- ta, há vários exemplos de críticas ao comportamento larvar de alguns mestiços
gens, não é dado ao vício da bebida. De pele sardenta e cabelos claros, pouco afeito ao diante de brancos.
trabalho, Cassi serviria hoje mais para compor um personagem comum na cena políti-
Diante disso, não foi à toa que Lima Barreto também encontrou obstáculos quando
ca brasileira: o malandrão de poucos estudos que, graças à lábia, sabe como convencer
tentou ascender na república literária, ainda que a casa principal que abrigava a
amigos, conhecidos e até multidões para, assim, galgar espaço na vida sem muito
intelectualidade da época tivesse sido fundada exactamente por Machado de Assis.
esforço. São tipos comuns hoje no sindicalismo e nos partidos políticos.
Intelectual versado em Humanidades, que por pouco não se formara engenheiro – a
II loucura que acometeria o seu pai o obrigaria a ganhar o sustento para a família –,
Lima Barreto procurou por mais de uma vez alcançar o reconhecimento de seu
Apesar de tudo o que se escreveu aqui, é claro que Clara dos Anjos constitui um texto talento por aquela sociedade ainda escravocrata no pensamento, ao candidatar-se
-chave para se entender a obra do criador de Triste fim de Policarpo Quarema, autor sem êxito a uma vaga na Academia Brasileira de Letras.
de cabeceira e inspirador de outro escritor que procurou retratar a vida dos proletários
e marginais que habitam as periferias das grandes cidades brasileiras, João António Ainda no prefácio de 1956, Sérgio Buarque de Holanda recorda uma observação de
(1937-1996). Além disso, esta nova edição pela Companhia das Letras traz notas Astrojildo Pereira (1890-1965) segundo a qual Lima Barreto pertenceria à categoria
explicativas a cargo de Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Galdino, que se tornam funda- dos ―romancistas que mais se confessam‖, isto é, daqueles que menos se escondem
mentais para a compreensão de alguns trechos e para a localização de determinados e menos se dissimulam. É o que se constata também nos registos de seu Diário ínti-
logradouros que no Rio de Janeiro desfigurado de hoje já não existem. mo, iniciado em 1900, que reúne impressões sobre a vida urbana do Rio de Janeiro.
Sem contar que os editores tiveram o bom senso de reproduzir a introdução escrita por IV
Lúcia Miguel Pereira (1901-1959), publicada originalmente na edição de Clara dos
Lima Barreto começou sua colaboração mais regular na imprensa em 1905, quando
Anjos de 1948 pela editora Mérito, e o prefácio de Sérgio Buarque de Holanda (1902-
escreveu reportagens publicadas no Correio da Manhã, sobre a demolição do Mor-
1982), que saiu na edição de 1956 preparada pela editora Brasiliense. E ainda enco-
ro do Castelo, no centro do Rio, consideradas um dos marcos inaugurais do jorna-
mendar uma apresentação à crítica literária Beatriz Resende, professora titular da Uni-
lismo literário brasileiro. Dele são ainda os romances Recordações do escrivão
versidade Federal do Rio de Janeiro e especialista na obra de Lima Barreto, que não só
Isaías Caminha e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.
elucida muitas passagens do romance e aspectos da escrita do autor como traça um
panorama do que foi a rejeição sofrida pelo romancista/jornalista a uma época em que O primeiro saiu em folhetim na revista Floreal, em 1907, e em livro em 1909 e o
o Brasil vivia um regime de apartheid disfarçado. segundo seria publicado apenas em 1919. No primeiro romance, o jornal Correio
da Manhã e seu director de redacção são retratados de maneira impiedosa, ao que
Apartheid, aliás, que pôde ser superado por alguns poucos afrodescendentes que não
parece como uma espécie de vingança por seu autor ter sido maltratado. Provavel-
só tiveram engenho para adquirir fortuna e prestígio social como por aqueles que sou-
mente, Lima Barreto teria recebido como pagamento um salário tão miserável que
beram ascender socialmente por meio da aquisição de cultura e conhecimento. Entre
não daria sequer para pagar uma dose diária de parati. Teve, então, seu nome pros-
esses, podemos citar não só Machado de Assis, que procurou seguir caminho inverso
crito na grande imprensa carioca.
de Lima Barreto, saindo do morro do Livramento para viver em bairros de classe
média e abastada, depois de conquistada uma boa posição na burocracia estatal, como O escritor publicou ainda crónicas, contos e peças satíricas em veículos como o
ainda por pelo menos dois presidentes da República, Campos Sales (1841-1913) e Diabo, Revista da Época, Fon-Fon, Careta, Brás Cubas, O Malho e Correio da
Nilo Peçanha (1867-1924), ambos com visíveis traços fenótipos de descendência afri- Noite. Colaborou também com o ABC, periódico de orientação marxista e revolu-
cana. Todos, obviamente, graças à riqueza familiar e ao prestígio social, tornaram-se
cionária. Em 1911, escreveu e publicou Triste fim de Policarpo Quaresma em
―homens invisíveis‖, para se citar aqui Invisible Man (1952), romance do norte- folhetim do Jornal do Commercio. Levando-se em conta a precariedade dos jornais
americano Ralph Ellison (1914-1994). e revistas da época, é de imaginar que escrevesse apenas pelo prazer da polémica
ou pelo fascínio da letra impressa. Afinal, se nos dias de hoje a grande imprensa
É de lembrar que, no Brasil, o dinheiro sempre teve o poder de ―embranquecer‖ pes-
costuma não pagar nada aos seus articulistas-colaboradores, só um tolo poderia
soas que, quando bem-postas na vida, sempre tratavam de ―esquecer‖ as origens. Ain-
imaginar que há cem anos teria sido diferente.
da na década de 1980 – não faz tanto tempo assim... –, alguns senadores e deputados
fugiam de qualquer reportagem que pretendesse fazer alguma referência a suas ori- Publicou ainda Numa e ninfa (1915) e Histórias e sonhos (1920). Postumamente
gens raciais. Bem situados no poder, o que menos queriam lembrar era que carrega- saíram Os bruzundangas e as crônicas de Bagatelas e mafuás.
14. SEXTA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 14
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