Este capítulo apresenta a história de Honório Montenegro e seu filho Avelino que vão prestar homenagem no funeral de Joaquim Varejão, um trabalhador leal da família Montenegro. Apesar das reticências iniciais de Avelino, ele passa a respeitar e admirar a família de Joaquim, principalmente a jovem órfã Maria da Conceição. O capítulo também explora a longa amizade entre Honório e Joaquim, desde os tempos em que Joaquim defendia a aldeia contra os franceses.
5. INDÍCE
RESPEITO E AMIZADE..........................................................1
O FUNERAL...........................................................................11
RIVAIS.....................................................................................20
AMADOS E ODIADOS..........................................................28
MARIA DA CONCEIÇÃO......................................................37
ORGULHO E PRECONCEITO..............................................45
UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA.............................................54
O ALMOÇO DE NATAL........................................................62
POR QUEM TOCAM OS SINOS...........................................71
DÔR.........................................................................................83
MEDINDO FORÇAS..............................................................94
CONSOLIDANDO O PODER .............................................108
DESENHANDO O FUTURO...............................................118
PONTAS SOLTAS.................................................................130
A MALDIÇÃO DOS MONTENEGRO................................142
MAS LIVRAI-NOS DO MAL..............................................157
UM FUNERAL NUNCA VISTO..........................................173
EPÍLOGO..............................................................................185
Agradecimentos.....................................................................188
Biografia................................................................................189
TERRAS DE XISTO E OUTRAS HISTÓRIAS..............191
v
AMOSTRA
8. Manuel Amaro Mendonça
1º CAPÍTULO
RESPEITO E
AMIZADE
hovia. Eram grossas e geladas as pingas que caíam
dos céus, naquela noite do mês de dezembro de
1830. O céu de chumbo, tornava a noite ainda mais
escura, mal se conseguindo divisar as bermas dos
caminhos.
C
Os dois cavaleiros, chegavam ao cimo da íngreme subida
que terminava na igreja da freguesia de São Cristóvão do
Covelo. Mantinham-se curvados, em silêncio, debaixo dos
capotes encharcados. A lama da estrada, que deixara as
suas marcas nas patas brancas dos dois cavalos bem
tratados, sujou a calçada à entrada do pequeno templo.
Um homem saiu e apressou-se a segurar as rédeas das
montadas para que os cavaleiros desmontassem em
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AMOSTRA
9. LÁGRIMAS NO RIO - RESPEITO E AMIZADE
segurança.
– Obrigado, Manuel! - Agradeceu o mais velho.
O mais novo resmungou um obrigado e correu a abrigar-
se na porta do templo logo seguido pelo companheiro.
Eram, Honório Montenegro, o maior proprietário da
região e seu filho Avelino Sampaio Montenegro. Honório
era baixo, quase careca, mas com fartas barbas e a puxar
para o gordo, mantinha uma postura de homem sério e
austero que desarmava qualquer tentativa de brincadeira
ou familiaridade. No entanto, todos na aldeia o
respeitavam e estimavam, por reconhecimento para o seu
sentido de justiça e pagamento honesto do trabalho. O
mais novo, Avelino, regressado há apenas algumas
semanas dos estudos no Porto, estava enfastiado pela vida
pacata da aldeia por troca da agitação boémia da cidade.
O seu regresso antecipado, a mando do pai, não lhe
agradou nada, mesmo depois de todas as explicações
sobre os receios da guerra civil que se avizinhava, com o
ex imperador do Brasil, D. Pedro, a caminho de Portugal
para fazer a guerra ao seu irmão D. Miguel.
– Continuo sem perceber porque sou preciso aqui,
todo molhado, nesta cerimónia, senhor meu pai. -
Resmungou Avelino.
– Quantas vezes terei de explicar? - Honório estava a
ficar agastado com a rabugice do filho. - Este
homem trabalhou para nós muitos anos, a filha
ainda trabalha. É uma questão de respeito pelas
pessoas.
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AMOSTRA
10. Manuel Amaro Mendonça
– E o senhor não lhes paga? E bem melhor que a
maioria dos proprietários das redondezas? Parece-
me que os respeita o suficiente.
– Há coisas que o dinheiro não compra. - O homem
mais velho olhou o mais novo nos olhos enquanto
aproximava o seu rosto do dele e sussurrava. -
Espero que não você não venha a aprender isso da
pior maneira. A lealdade e a honestidade não se
compram, dedicam-se. O seu avô destruiu
praticamente tudo o que o pai dele lhe deixou,
com arrogâncias como a sua; tinha terras, mas
ninguém trabalhava para ele. Foi o meu trabalho
de muitos anos, que trouxe as pessoas da aldeia de
novo a trabalhar para nós.
O jovem desviou o rosto, contrariado e ergueu bem a
cabeça com orgulho para passar através da porta que lhe
abriram para dar acesso à nave da igreja. Afinal, ele é um
Montenegro, filho de um dos homens mais ricos da
região. Todos naquela igreja lhe são inferiores, como o
avisara sua mãe, não passam de camponeses miseráveis.
Logo que passou a porta olhou a enorme pedra tumular,
no chão, com o brasão e o nome Montenegro gravados.
Conduzia à cripta onde várias gerações da sua família
repousavam. Calcou-a decididamente e avançou para o
interior.
O cheiro a incenso, cera e fumo bateu-lhe forte junto,
com o bafo quente das braseiras e o som monocórdico de
um interminável rosário. As dezenas de candelabros
espalhados pela nave do templo tremeluziam com as velas
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AMOSTRA
11. LÁGRIMAS NO RIO - RESPEITO E AMIZADE
amarelas escorrendo cera. Todos os bancos estavam
cheios e havia muitas pessoas em pé, encostadas às
paredes. Alguns olharam-nos com curiosidade. No centro,
bem em frente ao altar, um caixão de madeira crua
continha o corpo amortalhado de um homem com fartas
barbas.
Pouco a pouco, foi perdendo a audácia e encurtando os
passos; as pessoas olhavam-no, uns com receio, outros
com admiração, outros ainda com desdém. Mas a maior
parte, praticamente ignorou-o, compenetrado no fervor
das orações, cabeças baixas e olhos marejados de lágrimas.
Honório passou ao lado do filho e sussurrou-lhe um
“Venha!” enquanto se encaminhava para junto do ataúde.
Mesmo ao lado do esquife, num dos bancos corridos,
estavam duas mulheres vestidas de negro, com a cabeça
baixa e dois rapazes jovens, um dos quais não conseguia
conter as lágrimas e chorava mansamente.
– Senhora Ana. - Honório falou respeitosamente em
voz baixa e com uma pequena vénia. - Eu e o meu
filho Avelino vimos, em nome da família,
apresentar o mais profundo pesar pelo seu marido.
– Muito obrigada a vossa senhoria, senhor
Montenegro. - A mulher de rosto moreno ergueu
para eles uns olhos azuis marejados de lágrimas
enquanto falava numa voz enrouquecida pela dor. -
O meu marido sempre o estimou muito, trocava
qualquer trabalho só para ir trabalhar para o
senhor... morreu a fazer aquilo que queria.
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AMOSTRA
12. Manuel Amaro Mendonça
– Não pense a senhora que vamos esquecer isso. Vou
dar ordens para que vos seja pago o que o vosso
marido ganhou e mais uma mesada para vos aliviar
um pouco a falta dele.
– Oh, senhor Montenegro. - Ela tentou beijar-lhe as
mãos, mas ele impediu-a. - O senhor é um santo,
não sabia o que ia fazer da minha vida, eu que não
posso trabalhar desde que apanhei a tísica.... os
meus filhos ainda não trabalham muito...
– Obrigada senhor Montenegro. - A outra mulher,
muito jovem e também com os estonteantes olhos
azuis, falou. - Prometo que vou trabalhar muito,
meu senhor, vou ser a melhor lavadeira que tem.
Não haverá ninguém que faça tanto e tão bem
como eu.
– Sossega, menina. - Honório deu-lhe um sorriso
benevolente enquanto passava a mão na cabeça
coberta com o lenço negro. - És uma boa rapariga
e tens trabalhado bem.
– Obrigado! - Os dois rapazes sussurraram quase em
uníssono, sem levantar os olhos, em resposta a uma
cotovelada da mãe.
Logo ali a atitude de Avelino começava a modificar-se... os
olhos da jovem órfã ficaram gravados a fogo no seu
cérebro, apesar dela os ter baixado rapidamente.
Após mais uns minutos de palavras de circunstância com
outros familiares do falecido, despediram-se e saíram
ambos do ambiente opressivo do velório. Calado,
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AMOSTRA
13. LÁGRIMAS NO RIO - RESPEITO E AMIZADE
assoberbado pela dor mansa daquela gente que chorava
um ente querido, Avelino sentia as lágrimas a quererem
irromper. Foi o primeiro a chegar à porta e, sem se
benzer à saída, deitou um olhar de soslaio aos órfãos
conseguindo surpreender a jovem a olhá-lo.
Cá fora, o ar gélido e a chuva permitiam por fim respirar
livremente e o jovem inspirou por várias vezes, de forma
prolongada.
Honório olhou o filho e permitiu-se um sorriso triste
enquanto perguntava:
– Não imaginava, não é? Uma coisa é ver de longe,
outra é estar no meio deles... são pessoas como
nós. Sofrem, choram, riem... e precisam de comer.
Este homem que ali jazia, chamavam-lhe o Quim
Varejão e trabalhava para nós há perto de quinze
anos.
– São os três filhos dele? - Quis saber o jovem.
– Sim. Havia um quarto, mas morreu em 1813
durante a tísica que abrasou a aldeia, logo após o
nascimento da menina Maria da Conceição. Você
era uma criança ainda. Morreu tanta gente... tantas
crianças... e Ana, a mulher do Joaquim, escapou
por pouco. Esteve muito doente por alguns anos.
Depois arribou e ainda teve mais dois filhos.
– O senhor gostava dele, não era?
– Se gostava? Era capaz de ir com este homem até ao
fim do mundo. Confiava-lhe a minha vida sem
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AMOSTRA
14. Manuel Amaro Mendonça
hesitar, que não era pessoa de se deixar bater nem
de ver injustiças e maldades. Sempre foi arrojado.
Em novo, andou pelas fraldas do Marão atrás dos
franceses com as milícias do Silveira. Combateu na
defesa de Amarante e dizem que matou muitos
jacobinos.
– Era mesmo um homem extraordinário. -
Reconheceu o jovem.
– E trabalhador como nenhum! Punham-lhe duas
sacas de azeitona às costas e subia monte acima a
deixá-las nas carroças.
– Como é que morreu então?
– Sempre o mais trabalhador, era o primeiro a subir
às oliveiras e colocar-se nas pernadas mais difíceis
onde ninguém queria ir. Esta manhã, subiu à nossa
oliveira maior, nas “Fragas Traiçoeiras” e como os
ramos estavam muito escorregadios da chuva, caiu
desamparado no penhasco. Dizem que se ergueu,
furioso, rebentou com a vara no chão e lançou
pragas aos quatro ventos. Só depois de dar mais
alguns passos, tombou e não se levantou mais. -
Havia lágrimas e um sorriso triste no rosto de
Honório. - Assim se foi um grande homem e um
grande amigo.
– O senhor conheceu-o, já ele trabalhava para o avô?
– Não, foi no batizado da sua irmã Ana... o filho de
Joaquim, Augusto, nasceu mais ou menos no
mesmo dia e ele queria batiza-lo, mas o falecido
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AMOSTRA
15. LÁGRIMAS NO RIO - RESPEITO E AMIZADE
abade Mendonça não queria. Tinha um casamento
importante na Vila na parte da tarde e não queria
perder mais tempo. Não fosse eu intervir e o
Joaquim tinha desancado o padre dentro da igreja,
com ameaça de excomunhão e tudo. A pobre Ana
da Trindade, com o bebé ao colo, chorava como
uma desalmada, tal era a aflição que o marido
cometesse um pecado mortal.
Riram-se ambos. Um ao ouvir a história engraçada de um
homem que não deixava que lhe levassem a melhor e
outro com uma memória divertida do amigo. Mas o
sorriso de Honório foi-se desvanecendo lentamente e com
o olhar perdido no vazio, continuou a sua história:
– Nunca mais me largou desde aquele dia. E, volta e
meia, mandava uma broa ainda quente, feita pela
mulher, para nós... com as suas poucas posses... e
nós dizíamos que não precisava incomodar-se e
retribuíamos com vinho, azeite, várias coisas. Mas
ele, homem orgulhoso, não aceitava na maior
parte das vezes e quando aceitava, era preciso
dizer-lhe que era de um amigo para outro.
– Mas, realmente, nunca o vi lá por casa. Lembro-me
dele a trabalhar com os homens, mas em casa, não.
– Dizia que um homem deve saber qual é o seu lugar
e que já era para ele uma grande honra ter a
amizade de uma pessoa como eu. Não precisava de
frequentar a nossa casa. Além de que ele percebia
bem que a nossa amizade não era bem vista por sua
mãe e pela sua avó.
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AMOSTRA
16. Manuel Amaro Mendonça
– Elas não gostam muito das pessoas da aldeia...
– E desta família em especial. Principalmente por
causa da minha proximidade com eles. Quando
nasceu o último filho do Quim, convidaram-nos
para uma pequena refeição e claro que a tua mãe
sentiu-se ofendida com a ideia e não quis ir. Fui eu.
Foi no dia da festa do padroeiro, São Cristóvão,
vinte e cinco de julho; a aldeia estava a abarrotar
de gente que vinha à romaria. O cais não tinha
espaço para mais barcos e havia pessoas a passar o
rio pelos vaus, pois corria baixo nessa altura. Eu e
ele, apanhamos uma bebedeira tão grande, na
taberna do Tiago, o pai do Sebastião, que
acabamos envolvidos numa cena de pancadaria
com uns forasteiros que estavam a desacatar umas
moças da aldeia.
– Meu pai! - Avelino fez uma expressão de
desaprovação divertida. - À pancada na taberna
como um vulgar rufião?!?
– Acho que nunca me diverti tanto na vida! Mas se
quer saber, ai de quem se aproximasse de mim,
amigo ou inimigo, que o Joaquim “mascotava-os”
para longe. Apareci em casa sujo, com a roupa
rasgada, e cheio de mazelas. A sua mãe é que não
achou graça nenhuma e não me falou durante
mais de uma semana. A partir daí, qualquer
contacto com aquela família era completamente
reprovado.
– Não consigo imaginar o senhor nessas tropelias.
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17. LÁGRIMAS NO RIO - RESPEITO E AMIZADE
– Eu não fui sempre o chefe da família, sabes? E
quando o teu avô era vivo e eu não tinha
responsabilidades, também fiz as minhas
patifarias... Bem, vamos embora, o pobre do
Manuel está ali com os cavalos, à chuva.
Quando montavam, Avelino perguntou ainda:
– E amanhã? Vimos ao funeral?
– Não, eu não posso, tenho que ir ver das obras na
casa dos Sousas, na aldeia. Estava a precisar de
muitos reparos no interior. No verão, talvez se veja
a parte de fora.
– A casa dos Sousas? A casa da avó? O senhor sempre
se decidiu a repará-la?
– Sim, desde que a minha mãe faleceu, não se fez
mais nada ali. Já estava marcado com os trolhas...
– Então, se calhar, virei eu...
Honório deitou um olhar intrigado ao filho, mas não
respondeu. Puseram-se ambos caminho abaixo, sob a
chuva insistente.
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18. Manuel Amaro Mendonça
2º CAPÍTULO
O FUNERAL
o outro dia de manhã, Avelino acordou cedo,
arranjou-se e apresentou-se na cozinha para o
desjejum em vez de aguardar na sala de jantar como todos
os dias. A sua mãe, que estava lá a dar as ordens às
cozinheiras e às criadas, surpreendeu-se ao vê-lo:
N
– Que está o menino a fazer aqui a estas horas?!?
Para si ainda é madrugada.
– Tenho que sair já para ir ao funeral do Joaquim
dos Santos. - Respondeu ele com naturalidade.
Maria Luísa Sampaio era alta, para mulher, mas um pouco
mais baixa que o seu filho. Mesmo assim, conseguiu olha-
lo com altivez, como se estivesse alguns degraus acima
dele:
– Também o menino? Também você está encantado
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