SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 75
Baixar para ler offline
A FORTALEZA

  QUE SE

LEVANTA DA

 DERROTA
ÍNDICE




Índice........................................................................................................................2


Anti-errata.................................................................................................................3


Prefácio……………………………………………………………………….........4


Introdução à música………………………………………………………………..5


Abertura em Dó Menor…………………………………………………………….6


Dança de roda…………………………………………………………………….12


Desafinação aguda………………………………………………………………..18


Clave de fá (do)…………………………………………………………………...29


Clave de sol……………………………………………………………………….46


Valsa triste..............................................................................................................73




                                                           2
Anti-errata




        Feitas, refeitas e contrafeitas as correcções gráficas desta autobiografia, de cada vez
que se fazia, refazia e contrafazia, sempre uma “gralha” aparecia.
        Não nos atrevemos, pois, a pôr aqui uma errata, porque, lògicamente, ela própria
podia ter erros. Confiamos inteiramente na capacidade de descodificação – hetero-correcção
por parte do prezado leitor que, aliás, não é burro nenhum, porque – repita-se – se o fosse,
não iria ler esta história.




                                               3
PREFÁCIO



       Não tendo tido a graça de ser nado e criado no Portugal propriamente dito que, desde
Afonso Henriques, é Lisboa e o resto é paisagem e tendo tido, portanto, a desgraça de nascer
e crescer na restante paisagem, ainda por cima no Alentejo dos “mouros” tão sornas que só
por milagre se poderá entender a produção das searas, cujas, em tempos idos faziam do
Além-Tejo o celeiro da Europa [mas graças a Deus nos nossos dias europeus de Bruxelas e
Bijeus o Alentejo está mais civilizado com as quotas de produção da “sociedade de mercado”
(que sociedade não é de mercado?)] e então Manuel da Graça imigrou neste cantinho
ocidental da Europa, país de brandos-costumes, jardim à beira-mar plantado (com Jardim na
Madeira democraticamente eternizado) andou pelo Cu de Judas; estanciou no Porto que é
uma nação e daí o nome de Portugal, o país mais português do mundo; acabando por se fixar
em Coimbra, capital portuguesa da cultura, porque aqui quem não é doutor fala com quem é
doutor e quem não fala com quem é doutor fala com quem fala com quem é doutor e deste
modo o Manuel, aprendendo umas coisas na escola da vida e ensinando outras na escola
formal, dá agora à estampa A Fortaleza que se levanta da derrota cuja, não sendo
candidata ao Prémio Nobel da Literatura tem, todavia, estilo literário cabonde, que
ultrapassa, de longe, a temática restrita do alcoolismo e do seu público destinatário, através
da ironia de apontamentos psico-sociais de personagens como a Avó que, não sabendo ler
nem escrever e ignorando o que quer que fosse de códigos esotéricos, sabia descodificar as
horas nos hieróglifos do relógio de sala, gravados com riscos esquisitos no mostrador (I, II,
III, etc.) e não como o Manuel aprendera na Mestra como deve ser (1, 2, 3, etc.) ou a proeza
aritmética do Tio Catorze que, igualmente analfabeto toda a vida, conseguiu aprender a
contar até 14, daí lhe advindo a garbosa alcunha, ou a ética financeira elementar da
terminante recusa de pagamento do quarto alugado pelo Manuel, porque quem lá dormira
fora a mala e não o dono dela e, assim sendo, era ela e não ele a devedora do numerário
exigido pela credora.




                             Coimbra, 27 de Dezembro de 2008



                                       Severo de Melo

                                              4
INTRODUÇÃO À MÚSICA



     A Fortaleza que se levanta da derrota é a história de vida de um homem que foi
bebedor inveterado até aos trinta anos. Com esta idade, bem municiado de tudo o que fosse
artilharia alcoólica e após várias observações médicas, admitiu ser um doente e, mesmo
sem saber como, concordou com o respectivo tratamento.
     Confiou naquele médico invulgar que o examinou, o Dr. Leitão de Barros e aceitou
em Lisboa, no Verão de 79, internamento de trinta dias no Centro António Flores, Hospital
Júlio de Matos.
     Muito tempo levara a adquirir a força necessária para naquele dia ter a coragem
suficiente de fazer a mala e partir. O enófilo de carreira virou navegante de primeira
viagem e foi parar ao hospital. Apesar dos anos de balda não era com aquela triste figura
que se queria identificar. Sabia que o vinomaníaco era, no mínimo, um homem muito
limitado e isso incomodava-o. Quis, por isso, aproveitar a oportunidade que lhe surgiu de
vir a ser outra pessoa. Ninguém lhe pagou nem o premiou por tomar tal decisão. Fê-lo
espontaneamente.
     Não é de ânimo leve que um homem concorda em deixar – para o resto da vida – de
devorar bebidas alcoólicas em quantidade industrial, como ele o fizera durante vinte anos.
Foi, sem margem para dúvidas, um activista militante da Vinicultura Portuguesa. As
pessoas habituaram-se a identificá-lo exactamente com aquilo que ele era: um vinolento.
Quem o conhecia dificilmente aceitava que este fabiano pudesse mudar para melhor. Teve
que aprender a defender-se das mentalidades somíticas que, não tendo discernimento para
alterar o rumo da própria vida e acomodando-se à mediocridade da sua existência, não
tinham capacidade para compreender e aceitar quem muda de direcção.
     No entanto este homem nunca desistiu e ofereceu resistência a tudo e a todos. Trinta
anos depois vem contar, na linguagem que lhe é característica – com a qual procura
explicar sorrindo e com prazer – a evasão da prisão perpétua a que fora condenado.
     Não lhe passando pela caixa dos pirolitos ser exemplo moralista para ninguém, o
desejo deste comum dos mortais é contar para a eventual posteridade uma história que
possa fornecer ao leitor materiais de construção para uma Fortaleza que se levanta da
derrota.
                                                               Cordialmente,
                                                               o autor,
                                                               Manuel da Graça
                                           5
ABERTURA EM DÓ MENOR




     Decorria a Primavera do Ano de MCMXLIX da Era de Cristo.
     Naquela tarde de quarta-feira – 4 de Maio – nasceu na Casa de Saúde de Portalegre,
freguesia de S. Lourenço – concelho e distrito da mesma cidade – um menino, filho de
Domingos da Rosa Félix da Graça e de Maria Monteiro Fragoso, sendo ao bebé dado o
nome de Manuel Francisco Fragoso da Graça e apadrinhando o acto Manuel Marques e
Mariana da Conceição.
     O gaiato cresceu no campo embalado na ondulação da farta seara alentejana, criado
no monte – ao sabor do tempo e com o gosto das coisas campestres – na Herdade da Vinha,
propriedade do então lavrador Senhor José Elias Martins, onde moravam e trabalhavam a
terra, a mãe camponesa e o pai operário. O garoto era livre na brincadeira, de que a apanha
da azeitona, a monda do trigo e a ajuda aos pais no trabalho eram pagode. O que mais
gostava de fazer era regar, enxada nas mãos, pé descalço pelo rego, abrindo e fechando
regadeiras. Se fosse preciso até regava a horta toda. Acima de tudo era disciplinado, porque
os pais analfabetos aprendiam na escola da vida a pedagogia social da educação.
     Uma das fainas agrícolas que mais o fascinava era a lavoura. Esquecia-se, sentado
numa parede, a olhar os ganhões que lavravam com juntas de bois, apreciando – sem
pestanejar – o virar do arado, ao mesmo tempo que os homens cantavam:




“Ò morte anda cá, anda cá,                                     Delicado é o ganhão,
Quero-te dar as queixas.                                       Que chama ao toucinho bóia.
Quem não deves levar, levas,                                   Ao pão de Deus marrocate,
Quem deves levar cá deixas.                                    E à açorda, calatróia.


                               Eu sou devedor à terra.
                               A terra me está devendo.
                               A terra pague-me em vida,
                               Eu pago à terra em morrendo.”




                                            6
Na casa em Portalegre também havia uma horta. Para ser regada, o rapaz ia buscar
um burro a casa de um tio, a fim de tirar água à nora. Engatava o burro à carroça, assim fazia
o trajecto e por vezes, os colegas gozavam-no “Passaste de cavalo para burro?”
       No final da rega e já depois de ter entregue ao tio a carroça e o burro, mudava de
roupa e agora de motorizada, voltava a descer a Rua do Comércio, para estacionar o
velocípede à porta do Café Facha, onde entrava com descontracção, estupidez natural e
elegância no andar, para beber um café e um bagaço. Nunca ninguém foi suficientemente
corajoso para interpelar o hortelão engravatado que sabia ser.




                          O Manuel pelos dois anos de idade




       O primo Zé – um solteirão que fazia parte da família, com o qual o miúdo sempre
teve um relacionamento porreiraço – ensinou-o a andar de bicicleta, ainda mal chegava aos
pedais, no caminho de terra batida de acesso ao monte, depois de se deixar a estrada
nacional. Ao mesmo tempo que queria aprender a pedalar, tinha medo de cair e só o perdeu
quando o primo o deixou mergulhar, de propósito, sobre uns torrões de terra lavrada que lhe
amorteceram a queda. Finalmente cresceu-lhe a confiança de que precisava e foi para a via de
alcatrão praticar, pois naquele tempo passava um automóvel de manhã, outro à tarde e
nenhum à noite, que era de agasalho.
       Quem havia de dizer que, anos mais tarde, seria com aquela mesma máquina que se
iria estrear e aprender a andar na tão querida e bem avinhada vida nocturna?...




                                              7
Com catorze anos naquela burra a pedal, começou a ir aos bailes à Urra e a Caia, ao
Reguengo e a Alegrete, aos Fortios e a Nisa, a Monforte e Assumar, quase sempre com o
Caetano, com o qual aprendeu a dançar e a fumar e se não tinha tabaco o amigo passava-lhe
um cigarro de quando em vez pelo intervalo das vigas do tecto do quarto, quando residiu nos
Telheiros, pois moravam de casas pegadas e a parede era comum a ambos os aposentos.
       Embora não fizesse parte da família e com domicílios separados, no monte habitava
um idoso, que não tinha parentes e – como a azinheira da “Grândola, vila morena” do Zeca
Afonso – já não sabia a idade. Falava muito sozinho e pouco fazia, a não ser granjear comida
para o gado e pouco mais. Conseguindo contar até catorze, era conhecido pela galharda
alcunha do Ti Quatorze. O Manuel gostava de falar com ele e de o acompanhar à cidade,
quando lá iam de carroça, puxada pelo molengão do burro, que o bom idoso lhe deixava
conduzir, o que dava ao miúdo um sentimento de poder, concretizado no comando da viatura.
       Aos cinco anos o rapazinho foi para a Mestra, na cidade, a cinco quilómetros do
monte onde habitava. Ia na manhã de segunda-feira no transporte público regular, ficava em
casa da avó paterna durante a semana e regressava ao campo na sexta à tarde, quase sempre
com o pai, que voltava da fábrica. O almoço era umas vezes em casa da anciã e outras com o
pai na Taberna da Tia Inês do Cuco, que ficava mesmo junto à fábrica.
       Em casa da avó havia sobre uma cómoda um relógio grande de caixa de madeira
trabalhada, com o vidro da porta artisticamente pintado, que fazia parte da precária mobília
da anciã.
       Aquele grilo fazia uma certa confusão na cachimónia do miúdo, por no mesmo não
saber ver as horas. Os números não eram iguais aos que a menina Madalena lhe tinha
ensinado na Mestra. Não, não eram árabes… Eram romanos! E mais admirado ficava por a
avó, sem saber ler nem escrever, lhe saber ler as horas, nos riscos do zanzo.
       Quem havia de dizer que, cinquenta anos depois, é ele que dá corda ao
aparelhómetro, única relíquia que lhe resta daqueles tempos de menino e moço...
       Na capelinha da tia Inês do Cuco, onde o pequeno tomou gosto ao vinho branco e deu
os primeiros passos na carreira de bebedolas com os trabalhadores que naquela venda faziam
a refeição do meio-dia, todos o consideravam capaz de superar a dificuldade que o pequeno
tinha em chegar ao balcão mais alto do que ele e ficavam extasiados com a ligeireza com que
invertia de uma só vez um copo de cinco, assim chamado, por custar 5 tostões (para quem
não percebe patavina destes câmbios, ¼ de cêntimo).




                                               8
Praticando e aprendendo ao longo de vinte anos chegou à perfeição científica da
copologia, atingindo o escalão profissional de copofónico e ocupando honrosos lugares na
arte de vira-milho de garrafas, garrafinhas e garrafões.
       Na Mestra, fazendo as primeiras contas e aprendendo as primeiras letras, fazia a
junção das mesmas em casa, praticando nos livros de còbois, escritos num português que
ainda honrava a língua de Camões e de fazer inveja aos livros escolares de hoje, que nem
para atear as cavacas servem – negam-se a arder – sabendo interpretar a leitura, era livre no
divertimento costumeiro com o irmão mais novo, brincando com ele aos bandidos.
       O Manuel montava a azémola do bandido a fugir do xerife, o irmão, representando a
herdade o Far-west americano, na qual passava uma ribeira, que a cabeça do aprendiz de
galdério interpretava como fronteira América-México e, ao passá-la, sentia-se seguro, pois o
irmão já não podia prendê-lo.
       O culto de Baco progredia. Quando almoçava com o pai davam-lhe sempre aquela tal
medida e se o respectivo copo não aparecesse ficava amuado, encostado ao balcão, mudo e
quedo que nem um penedo. O Ti Zé tasqueiro adivinhava: “Não deste um copo ao gaiato, aí
tens o que ele quer…”
       E era. Davam-lhe então um de cinco e ia feliz da vida para a brincadeira na rua.
       Com sete anos entrou para a Escola Primária, fez a primeira e segunda classes na
escola da Corredora e a terceira na escola da Estrada da Serra. No intervalo das aulas nunca
jogou à bola. Sentado num canteiro, presenciava o jogo e guardava os haveres dos outros
miúdos. Querem saber porquê?
       Uma vez andava a brincar na esplanada do Café Vitória e em dado momento viu
entrar um polícia fardado, que retirou o crachá e o meteu no bolso. O gaiato não percebeu e
parou a brincadeira para observar o que o bófia ia fazer. Este dirigiu-se ao balcão, pediu um
copo de branco, virou-o de uma assentada, pagou e, ao encaminhar-se para a saída, voltou a
pôr a insígnia. Antes, porém, de transpor a porta, parou junto de uma mesa onde estavam
sentados quatro indivíduos em renhida disputa na velha questão de salvação da Humanidade
fado-futebol-e-fátima. O guarda, que não era perdido nem achado naquele debate, meteu o
bedelho e as coisas deram para o torto.
       Tanto encanzinou a conversa que, a certa altura, um conviva perdeu as estribeiras e
chegou-lhe a roupa ao pelo. A fim de manter a autoridade, o agente deu voz de prisão aos
civis e foram todos de cana.




                                               9
Foi um festim para a garotada, que agaiatou o acontecimento pelas ruas até à
esquadra, onde, passado algum tempo, ficou o patrocinador do evento e os civis retomaram a
gandaia.
         Moral da história: por causa da bola, o guarda saiu-se mal. Melhor seria ter entrado
no Café a aliviar a sede e ter saído sem se meter onde não era chamado, para não passar pelo
vexame que a insânia lhe provocou, até porque, por causa disto, mais tarde foi transferido.
         Ficando gravado na cabecinha do Manuel, este episódio desinteressou-o para sempre
de assistir a tudo o que fosse bola. Enquanto os demais miúdos saltavam a parede do campo e
outros faltavam às aulas para ir ver os treinos, o Manuel nem na hora do recreio ia em
futebóis, limitando-se a observar os colegas, sentado num dos canteiros que ladeavam a porta
da escola da Corredoura, onde foi gratificado com o talento da Dona Mimi – professora da
quarta classe, que o preparou para o exame de admissão – cuja Senhora sabia tanto da poda
que – meio século depois – o Manuel ainda dela se recorda tão bem como se tivesse sido
ontem.
         Os quatro anos de ensino primário não chegavam para prosseguir os estudos. Como
se ao aluno lhe faltassem conhecimentos, tinha de fazer um exame de admissão à Escola
Industrial e Comercial e/ ou ao Liceu Nacional, havendo quem fizesse o exame aos dois
estabelecimentos de ensino, porque vale mais um pássaro na mão que dois a voar: se
chumbasse num deles, podia bem ser que passasse no outro.
         O exame de admissão não era nada fácil – era o filtro da época, tal como hoje os
décimos anos o são – até lhe chamavam a quarta classe bem sabida. Reprovar era igual a
trabalho no campo ou na fábrica. Não havia mais consideração pelo estudante, porque
naquele tempo os alunos contavam-se pelos dedos de uma mão e eram bem conhecidos dos
professores.
         Embora miúdo e com a cabeça em vinha-d`-alhos, o Manuel aprendeu a dar valor ao
trabalho, começando a observar que nem todos os rapazes da idade dele tinham a
possibilidade de estudar e o Caetano foi um dos tais que toda a vida trabalhou no campo. Aos
pais ficou o Manuel eternamente agradecido pela oportunidade que lhe deram de um dia o
mandarem à escola.
           Naquele tempo, para quem colhia no campo o pão-nosso-de-cada-dia, pôr um filho
a estudar era uma ginástica bem difícil, ainda por cima agravada pela inveja dos unhas de
fome que, com algum dinheiro e poder, não mandavam estudar os filhos para além da quarta
classe, pois tal não era necessário para se arranjar trabalho nas fábricas e ser operário na
Finicisa até era um luxo, dizia-se.

                                              10
No entanto, os pais do Manuel viam mais longe e o rapaz chegou onde nunca pensou chegar:
professor efectivo de Trabalhos Manuais do Ensino Preparatório.




                                            11
DANÇA DE RODA




       Nessa época dominava o conceito sócio-matemático de que a Escola Industrial estava
para os pobres como o Liceu Nacional estava para os ricos, mas com dez anos, o nosso
Manuel não saberia fazer a correlação, sabendo no entanto dizer que só queria fazer exame à
Escola e assim foi. Preparou-se para a prova com a querida professora da quarta classe, Dona
Mimi e o marido desta, o senhor Coelho, uma figura que sabia muito de Língua Portuguesa e
que instruiu o Manuel no idioma que ainda hoje não esqueceu.
       A verificação de conhecimentos do exame de admissão constava da prova escrita, em
duas páginas de papel de trinta e cinco linhas e da prova oral, cuja o rapaz nunca esqueceu.
Foi o próprio Director da Escola que, ao chamá-lo, o sentou ao colo e lhe fez perguntas sobre
o mapa de Portugal e, porque se chamava Manuel, o professor perguntou-lhe pelos reis da
História com o nome do rapaz, cujo só sabia o Manuel I, ficando pois a História de Portugal
manuelinamente prejudicada a 50%.
       Este relacionamento afectuoso deu origem a que o Manuel não-monarca ficasse
sempre a gostar daquele docente e, sempre que se cruzavam, o rapaz estendia a mão para
cumprimentar o Senhor Director, que uma vez lhe perguntou o porquê desta saudação,
respondendo-lhe o cachopo que era uma retribuição pela boa lembrança de ele o ter sentado
ao colo no supra dito exame.
       E assim ficaram de bom relacionamento durante a meia dúzia de anos que o rapaz
frequentou aquele estabelecimento de ensino.
       Tal como hoje, o Ciclo Preparatório tinha a duração de dois anos. Do primeiro para o
segundo ano o aluno transitava com o mínimo de vinte e nove valores, que era a soma das
notas dos três períodos em cada disciplina. Vinte e oito numa delas e o estudante reprovava o
ano completo, ou seja, não se chumbava por disciplinas. No final do segundo ano fazia-se
obrigatoriamente exame de Língua Portuguesa e de Matemática. Do mesmo modo tinham
que arranjar na mesma os mesmos vinte e nove valores a cada cadeira que, aliás, não
salvavam o discípulo se reprovasse numa delas. O Manuel dispensou da oral de Português
com catorze – aquela quarta classe bem sabida deu frutos – porém, em Matemática, andava
um bocado à rasca – até por causa da tasca – mas fez uma prova escrita menos rasca com a
ajuda da Dona Lúcia Malcata, por ter tido um professor tão bom, tão bom, que até lhe fez
esquecer o que já sabia fazer com olhos de ver: operações de fracções.


                                               12
Na prova oral, foi um regalo ouvir o professor José Nunes a dizer que o aluno não
percebia um chavo de Matemática, no entanto, tinha que se passar, senão nunca mais fazia
um curso.
       E assim foi. Meia dúzia de perguntas sobre figuras geométricas e o problema da
Matemática ficou aritmeticamente resolvido.
       As Escolas Industriais e Comerciais proporcionavam aos alunos os cursos de:
Formação Feminina, só para raparigas e Geral de Comércio, comum aos dois sexos;
Montador Electricista, Carpinteiro Marceneiro e Formação de Serralheiro, só para rapazes.
       Por sugestão da chefe da secretaria, a Dona Regina, o Manuel matriculou-se no Curso
Geral de Comércio. Porém e por incúria própria, esqueceu-se que não sabia nem um, nem
dois, nem três chavos de Matemática e o Curso tinha um cadeirão chamado Cálculo
Comercial, leccionado por aquele pedagogo que o passou ao colo naquela oral e que tinha
por hábito dizer aos alunos, quando não davam uma p’rà a caixa na matéria que era exímio a
ensinar “Vocês não percebem nada disto, o Cartucho que o diga”.
       Cartucho era a alcunha do professor por quase não ter pescoço e que – para pasmo
dos alunos – ele conhecia muito bem. Resultado: no final do primeiro período o Manuel
considerou-se chumbado, pelo número de negativas obtidas, que lhe fizeram perder o
interesse pelos estudos.
       Para um rapaz de treze anos esta indiferença tornou-se perigosa.
       Passou a ir somente às aulas de que gostava e nos feriados que dava aos professores
ia, com as más companhias da praxe – quando tinha dinheiro – até ao Café da Praça, muito
perto da escola, virar umas aguardentezinhas. O gosto do vinho branco já o conhecia e era
fraco, dizia. O Arnaldo, camarada do Manuel e colega da mesma turma, vivia totalmente
desinteressado da escola e ambos passaram a ser abnegados e devotados faltistas militantes.
       Neste contexto, a saga deste grogue heróico começou a tomar forma. O Manuel
passou a dispor de tempo para conhecer a cidade, ou seja, saber onde eram os escoamentos
de vinho, cerveja e tudo o que fosse bebida branca. Entrava sem ser convidado a sair. Foi
uma aprendizagem rápida para a idade e como reprovou comemorou o facto com o Arnaldo e
outros da mesma estirpe, fazendo o Rali das Tascas, que começava e acabava ciclicamente no
Café da Praça. Quando chegou ao Café, o rapaz sentou-se à chuva, na maior das
descontracções. Os amigos é que o recolheram. Anos mais tarde quis repetir o Rali, sem no
entanto ser capaz de o terminar, porque as betesgas do briol tinham triplicado e o rapaz ficou
alcoolicamente bem disposto a meio do percurso.



                                              13
No ano seguinte matriculou-se – com gosto – no Curso Formação de Serralheiro.
Deixou de andar com o Arnaldo e passou a acompanhar com o Abílio, mais conhecido por
Pa-a-ar-da-linho, porque, além de ser gago, era ainda mais moinante e desprendido da escola
que o outro.
       Com este novo sabido, o Manuel passou a andar nos bailes, festas, romarias e noites
perdidas.
       Começou a olhar para as cachopas e o objectivo de cada baile era, por aposta, pedir
namoro a uma moça. Quando não conseguia este propósito, ou porque elas não lhe aceitavam
o galanteio, ou porque o baile tinha mais rapazes que raparigas, dava-se por vencido e ia para
os copos com os mais velhos, com os quais sempre soube manter um bom relacionamento,
em qualquer localidade para onde quer que fosse.
       Não reprovou neste ano lectivo, porque estava no curso que preferia, mas transitou de
ano à rasca. A surpresa veio depois: não passou as férias no monte, como era hábito, o pai
arranjou-lhe trabalho na fábrica onde laborava. O rapaz ainda o questionou:
       - Então o ano passado é que chumbei e este ano é que vou trabalhar?
       - O ano passado não precisavam de serralheiros. Este ano é que precisam.
       E lá foi o cachopo de catorze anos – não, não era então considerado exploração de
mão de obra infantil, restando saber, porém, se os adultos não são igualmente explorados –
parar ao mundo do trabalho como aprendiz de torneiro mecânico, a fazer oito horas e a
ganhar sete escudos e sete tostões à jorna (menos de quatro cêntimos). O rapaz não sabia o
que havia de fazer a tanto dinheiro.
       Recebia à sexta-feira e como o caminho para a baiuca da Tia Inês do Cuco era a
descer e a descer todos os santos ajudam – para cima é só um e é coxo – era ali que fazia o
câmbio de algum dinheiro por carapulos de quarto de litro, com outros serralheiros que,
como ele, não gostavam nada de ver os copázios cheios.
       Ali trabalhou as férias do Verão e o que ganhava chegava-lhe para a berzundela.
Pelos Santos Populares fez directas consecutivas.
       Saía às cinco da tarde da fábrica, corria a casa mudar de roupa, jantar e ir de seguida
para os bailaricos até de manhã.




                                             14
Diagrama da casa de família em Portalegre.


       Fazia o percurso de bicicleta, mesmo que tivesse que pedalar vinte quilómetros para
cada lado, quando o baile era no Assumar. A distância e a perigosidade do caminho – ao
longo da via-férrea, cruzando-se com o pú-pú das 5 da manhã – nunca lhe meteram medo.
Sozinho ou acompanhado, o que interessava era ir ao baile.
       Passava por casa para mudar de fardeta, vestia o fato-macaco e lá ia para a fábrica,
onde tinha que estar religiosamente ao alvorecer das oito horas, sob a vigia do pai, que nunca
o deixou ir para a cama depois de três directas seguidas. À quarta arreou o esqueleto.
       Foi assim durante os meses de Julho, Agosto e Setembro. Estávamos em 64.
       Quando mais tarde o pai lhe permitiu substituir a bicicleta pela motorizada, passou a
ir a três bailes na mesma noite. O Barradas de Caia ensinou-lhe a desligar o conta-
quilómetros, para marcar só os que o pai podia saber. Entretanto, esqueceu-se que gastava
mais gasolina, o que levou o pai a colocar-lhe o seguinte problema de Matemática: “Como é
que só andaste estes quilómetros e gastaste a gasolina que aqui falta?!...”
       Na primeira oportunidade resolveu o problema: o ciclomotor passou a trabalhar a
petróleo, mais barato que a gasolina, cujo não faltava lá em casa por ser o combustível dos
candeeiros, passando a ter outro problema: o escape fazia muito fumo.

                                               15
Uma vez foi o agente Ramalho do posto da Polícia de Viação e Trânsito que lhe chamou à
atenção para o facto e aos seus quesitos lhe foi respondido que no próximo fim-de-semana o
escape já seria limpo.
         E não pagou a multa.
         Aliás, nunca mais pagaria.
         O senhor Clemente – de acordo com o nome de clemência de baptismo, também
morador nos Telheiros e da mesma polícia agente – tinha a prévia amabilidade social de
avisar o Manuel e sua maralha sobre a escala de serviço do dito posto e, posto isto, o serviço
de Deus, da Pátria e da Família, zelosamente desempenhado pelo subchefe Santos e pelo
agente Ramalho, ficava estrategicamente sabotado pelo Manuel e respectivos moinantes, ao
contornarem o posto pelo olival, quando vinham dos bailes quase de dia, uns sem luz, outros
sem documentos, quase todos bêbedos.
         Embora boémio e encandeado pelas luzes da vida nocturna, aprendendo, no entanto, o
rapaz a trabalhar – e o que fazia, fazia-o bem feito – depressa se tornou exímio no torno
mecânico.
         De todas as máquinas com que operou na escola, o torno foi aquela que mais o
fascinou, no qual arredondou madeira, ferro, aço e – por incrível que pareça – numa manhã
torneou e abriu uma catrèfada de carretos em ferro fundido sem partir nenhum, mesmo que
estivesse a cabecear agarrado à máquina, como acontecia muitas vezes, sem nunca se ter
ferido, arrelampando os olhos no momento crucial do ferro de corte a bater na bucha do torno
e por instinto, desligava o automático.
         Quando não tinha trabalho definido, torneava pedaços de madeira, previamente
afeiçoados na carpintaria em paralelepípedos, dos quais saíam cabos para limas, nunca
demais numa fábrica como era a Robinson Bros.
         Apesar de pândego, este sucesso no trabalho não passou despercebido ao Mestre da
Oficina, que – apertado pela carência de serralheiros, obrigatoriamente incorporados na tropa
e seguindo depois para a Guerra Colonial – disse mais ou menos assim ao pai do Manuel:
         - O rapaz ajeita-se e eu preciso de torneiros, porque se me vão embora três mancebos
para o serviço militar.
         - Está bem, senhor mestre Félix, ele fica cá e vai estudar à noite.
         Quando o Manuel soube desta novidade ficou desaparafusado de todo e foi falar com
a mãe:
         - Ó mãe, se eu vou para a noite, nunca mais faço o Curso.
         - Então porquê?

                                                16
- Porque os bailes são ao sábado, nessas noites também há aulas e eu só posso dar três
faltas. Quando der quatro, estou chumbado.
       Não sabendo o Manuel o que é que a mãe foi falando com o pai, a verdade é que o
rapaz não ficou na fábrica, continuando os estudos de dia por mais dois anos para acabar o
raio do curso, porém – envolvido com a maltosa da sua laia e com quatro disciplinas de
exame às costas – viu-se aflito no quarto ano. Foi o José Américo que lhe chamou à atenção
“Se não deixas de andar com o Pardal, chumbas tu e ele” e, antes que tal acontecesse, acatou
o conselho e lá conseguiu ir fazendo as provas.
       E – à risca, à rasca e às roscas – acabou o curso aos dezasseis anos com a
classificação de 10,8, porque só ia estudando para ir passando e a cabeça avinagrada também
não dava para mais.




                                             17
DESAFINAÇÃO AGUDA




       Mais ou menos por esta altura e ainda estudante, reparou numa miúda, sua vizinha e
colega no Curso de Formação Feminina, que o rapaz, infelizmente, não frequentava. Por uma
razão biológica natural, o Curso de Formação Feminina era frequentado pelas raparigas e não
pelos rapazes. Amigos, amigos, negócios à parte, rapazes e raparigas eram separados em
turmas femininas e turmas masculinas, de onde se conclui que o cristianismo oficial de Deus-
Pátria-Família não é assim tão antagónico do islamismo oficial de Alá e Maomé Seu Profeta,
havendo pois necessidade de dar formação específica às mulheres e de não a dar aos homens,
porque estes já são bem formados à nascença e daqui a obvia desnecessidade de um Curso de
Formação Masculina.
       O Manuel gostou da cachopa e a cachopa gostou do Manuel.
       Porém, todavia, contudo – como acabou de se ver e como desde tempos imemoriais é
sabido – a mulher tem pacto com o Diabo e foi um caso dos diabos. Namoriscavam às
escondidas, também porque o rapaz tinha pacto com o diabo da vinhaça, o que não era visto
com bons olhos pela família da moça, agravado o caso pela situação de bigamia dos dois
amores do rapaz: a moça e o briol.
       Acompanhava a namorada desde a saída da Escola até ao local onde a Lurdes
apanhava o transporte para casa. Como sempre, o Manuel ia de bicicleta e se queria
acompanhar a pequena na camioneta, tinha que enganar os tios onde deixava o velocípede
durante o dia. Trocava a lâmpada da luz traseira por uma fundida, cuja trazia sempre no bolso
e, como não podia passar no posto da Polícia de Viação e Trânsito sem aquela luz, pois nem
sempre sabia onde é que estava o tal agente Ramalho – se no Posto ou na estrada – que era
mau como qualquer ordinário. Uma vez autuou o próprio pai por não levar luz na carroça.
       A tia dava-lhe vinte e cinco tostões (menos de cêntimo e meio) para o transporte, que
era bem mais barato que a multa e fazia o rapaz feliz, sem o saber, por ir para casa na
companhia da gaiata.
       O namoro durou sete anos e – variando em relação inversamente proporcional entre o
escalão etário e a capacidade racional – foi sempre um enamoramento descontente para a
Lurdes, pelo procedimento do Manuel que, quanto mais velho era, menos juízo tinha na
mona e continuava fazendo o que mais ia gostando: andar nos bailaricos dos fins-de-semana
a namoriscar as moças que lhe aprovavam o passatempo, mas o rapaz só lhes pedia namoro e
a seguir nunca mais lhes aparecia.

                                             18
A Lurdes é que não achava piada nenhuma à graça do Manuel da Graça e foram
muitas as vezes que amuou. No entanto, ele voltava sempre e a cachopa aceitava-o.
       Sabemos que gostavam um do outro, no entanto, a rambóia era superior à vontade e o
moço não era capaz de resistir à tentação de beber uns canecos, mesmo antes de ir namorar.
Quando chegava aos Telheiros, primeiro entrava na tasca do Basílio e só depois é que ia ter
com a moça.
       Concluindo o 3º e último ano do Curso com dezasseis anos – como já dissemos – o
rapaz foi trabalhar como serralheiro mecânico para a Metalúrgica do Crato, onde reencontrou
o Pardal e com ele conheceu, reconheceu e desconheceu todas as tascas da vila e arrabaldes.
Duas semanas depois imigrou para a Figueira da Foz como serralheiro montador de
máquinas na instalação de uma multinacional.
       O serviço era perigoso. Por vezes trabalhava-se em altura e uma queda era quase
sempre o caminho prós anjinhos. Embora amigo dos copos, o Manuel tinha mais amor à vida.
Só ali laborou três meses. Tudo o que ganhou gastou-o nos bares da Figueira, para onde ia de
táxi com outros da sua casta quase todas as noites e copos a fio, ao calor e ao frio era um ver-
se-te-avio. Ao fim daquele tempo despediu-se, como outros colegas o fizeram, por o trabalho
não oferecer segurança e foi para a Fábrica de Lanifícios, de Portalegre, com o objectivo de
aí estagiar seis meses, para poder fazer o Exame de Aptidão Profissional e assim concluir o
Curso. Ali era pau para toda a colher, tendo a vintena de camaradas de trabalho uma
característica solidária comum: a fraqueira pela frasqueira. O Manuel ascendeu ao grau de
segundo maior bêbedo da escala da confraria.
       A camisola amarela era envergada pelo senhor Amaro, imbatível veterano nos treinos
e nas provas dos carapulos de ¼ de litro – para ele os mais pequenos – no entanto não
demorou o tempo de um fósforo para que o Manuel passasse a envergar a camisola do
vencedor, não só porque a este lhe deu o badagaio num acidente de viação, mas também
porque o novo camisola amarela já tinha passado ao escalão do garrafão.
       Quando andou com o Benvindo e o David a substituir uma canalização entre o portão
da fábrica e o Rossio, embebedavam-se os três todas as tardes, para assombro dos demais,
que nunca descobriram como é que às cinco da tarde estavam a falar com as formigas. No
percurso da vala onde trabalhavam, tinham uma taberna a cada ponta, cujos tasqueiros, o Tio
Zé e o Tio Chico, punham-lhes os copos em cima da parede e em frente do portão estava
sempre alguém conhecido de sentinela, que tossia ou bocejava, qual toque de alvorada, para
alertar da chegada do fiscal da obra que, para raiva deste, nunca foi capaz de os apanhar com
a boca na botija.

                                               19
Enquanto trabalhou nesta fábrica, só ele, o senhor Amaro – com quem o Manuel
repartia o tabaco – e os demais homens como aquele, é que eram serralheiros; entravam e
saíam da fábrica com o fato-macaco vestido; os demais rapazes eram empregados de
escritório – diziam – pois entravam e saíam da fábrica de fato e gravata.
        Ainda na Escola Industrial, um dia foi almoçar de fato-macaco, pois no 5º ano e num
dia tinha no horário semanal aula de Oficina de Serralharia de manhã e de tarde. Ao voltar,
deu de caras com o Director:
        - Posso saber porque é foste almoçar de fato-macaco?
        - Foi para ganhar uma aposta, senhor Director.
        - Bom, se foi só por isso, ganhaste a aposta. Vai lá para a oficina.
        Se os colegas estavam à espera de ver o rapaz a levar porrada, saiu-lhes o cão cadela.
        Fazendo o supradito exame, outra coisa não era de esperar que não fosse uma
encorpadinha raposa, pois a única preocupação era ir bebendo, em vez de se ir concentrando
na prova, conseguindo até sair da escola durante os exames práticos para matar a sede no
Café da Praça.
        Estávamos em 1967. Pouco tempo antes de fazer dezoito anos, pensou em ir para o
Exército, como voluntário. O pai não lhe abençoou a nóia, por causa da Guerra Colonial. No
entanto, o Manuel insistiu, argumentando que era para se despachar mais cedo daquele
serviço e o pai lá o deixou ir assentar praça. Por não ter ainda 18 anos, teve que ser
emancipado.
        Na verdade, o que o rapaz pretendia era mesmo livrar-se daquele atraso de vida, por
já ter ouvido dizer que a inteligência não é a favor da guerra. Foi à inspecção militar na
Escola Prática de Engenharia, de Tancos e nunca pensou que lhe saísse a sorte grande de
ficar livre.
        De regresso parou nos Telheiros em casa da namorada para lhe dar a escolher, livre
ou apurado, pois trazia nas lapelas do casaco as respectivas fitas branca e vermelha e a
Lurdes logo viu que o rapaz não vinha sozinho, já vinha aos hic’s como era hábito e não
esteve para o aturar, só que o moço não se incomodou com o arrufo, já era normal e sempre
que tal acontecia dava azo a retomar a estúrdia mais cedo e foi o que aconteceu, não foi para
casa, foi comemorar o acontecimento com o maralhal copofónico, de onde resultou uma
daquelas bebedeiras que ele sabia agarrar e que demoravam, pelo menos, quinze dias a
“curar”.




                                               20
Porém, todavia, contudo ao requerer o montante da taxa militar – devida por isenção
do serviço militar obrigatório – responderam-lhe que ainda não estava livre, aos vinte anos
tinha que voltar à inspecção. Guardou a informação.
          Porque fossem responsáveis membros praticantes, efectivos e militantes da
Irmandade local de S. Baco, os colegas da fábrica incentivaram-no a procurar outro tipo de
emprego e o próprio senhor Amaro chegou a dizer-lhe que aquilo ali não era para ele, era
para os que lá estavam como ele, Amaro, que já não tinham para onde ir, incentivando o
moço de dezoito anos, livre do serviço militar, a sair dali, o futuro do rapaz estava lá fora, ele
que fosse prègar para outra freguesia.
          E assim foi. Nunca mais quis saber da fábrica. Gostando dos colegas, tinha no entanto
à sua frente a oportunidade de se livrar de um patrão que não sabia trabalhar e quem não sabe
trabalhar não sabe mandar. Foi o que aprendeu aos 17 anos, quando uma vez estava na
secção dos teares a limar ferro fundido com a lima apropriada, a lima bastarda e o
encarregado-geral, um tal Espiga, ao passar por ele tirou-lhe a lima, pôs-lhe giz e foi uma
espiga:
          - Assim limas melhor…
          -Assim lima o senhor, porque eu não limo mais.
          Virando-lhe as costas, foi para a serralharia, pedindo aí ao senhor Eduardo que o
mandasse para outro serviço, pois não ia mais para os teares.
          O encarregado da serralharia já se tinha habituado a este tipo de comportamento por
parte dos rapazes vindos da Escola Industrial.
          O que lhe custava a mascar era ter que concordar com os moços, que sabiam trabalhar
e ao mesmo tempo ter que render homenagem ao outro capataz. Danado, mandou o Manuel
para a vala de que já falámos.
          Disse ao senhor Amaro que, quando se fosse embora, lhe deixaria o fato-macaco e
uma camisa, amabilidade que o colega agradeceu. Pensando em sair dali, nunca mais se
lembrou que tinha o exame de Aptidão Profissional por fazer.
          Passando a andar à procura, sem saber muito bem de quê, um dia recordou-se do bom
do Director da Escola Industrial. Foi-lhe lá falar, encontrando-o a descer a escadaria e de
imediato o mesmo lhe indicou dois ou três estabelecimentos de ensino industrial, com vagas
de Contramestre de Oficinas de Serralharia, optando o Manuel por uma no Porto,
concorrendo para a Escola Industrial Infante D. Henrique, onde ensinou no ano lectivo de
67/68.



                                                 21
No dia em que chegou à capital do norte almoçou na Rua da Torrinha onde, de
conversa com estudantes, conseguiu arranjar quarto logo ali ao virar da esquina da Rua
Aníbal Cunha. No mesmo apartamento estavam dois agentes da P.S.P., que o receberam
secamente, por ser um simples civil com a suspeitosa agravante de ser desconhecido.




              Portalegre – Casa apalaçada do lavrador Senhor José Elias Martins.



       No entanto o gelo depressa se quebrou, quando descobriram que o Manuel não era
nenhum emproado e partilhava com ambos uma característica religiosa especial: a comunhão
fervorosa do culto de S. Baco e nessa mesma noite o rapaz foi fazer o giro com um dos
polícias, o Sequeira, até às baiucas de S. Bento e quando regressaram, ficou a saber que outro
santo se venerava no culto doméstico do quarto, cujo instrumento litúrgico principal era o
garrafão de cinco litros, verde branco, nunca vazio, como mandam os preceitos da reverência
sacral e a quem o esvaziasse assistia-lhe a misericordiosa obra de o trocar por outro cheio,
porque o paroquiano que viesse a seguir podia vir com zelo litúrgico, cuja sede é sagrada e
por esta mesma secura o Sequeira (do mesmo campo semântico da dita secura) foi o
cúmplice que mais o acompanhou nas noitadas directas, com o qual passou por polícia no
Palácio de Cristal, onde viram à borla o mundial de hóquei em patins.
       Algumas noites, depois de jantar e quando não lhes agradava a sobremesa, os três
confessavam-se, comungavam e ajoelhavam frente ao orago de cinco litros, santo protector
do quarto, que de imediato era substituído, antes que fechasse o tasco do outro lado da rua.



                                              22
Neste ano lectivo, o Manuel só se recorda de ter apanhado uma bebedeira no dia em
que chegou, para a deixar no dia em que se foi embora. Assim como nunca hesitou em apifar,
também não hesita em dizer que foi, de todos, o melhor tempo de estúrdia que teve na vida
de solteiro.
          Foi no Porto que o Manuel tirou a recruta, a especialidade e passou a pronto, em tudo
o que foram festas e festanças, farras e folias, que fizeram dele o maior estroina de todos os
tempos, até ao dia em que deixou de beber (doze anos mais tarde). Ainda hoje recorda aquele
S. João de 68.
          Saiu de casa às nove da noite, começou a dançar no Jardim de S. Lázaro com a
Amélia – uma das paixões pluralistas que alimentou em tão pouco tempo – e acabou a
cabriolar nas Fontainhas, para voltar a casa às nove da manhã, sem saber muito bem por onde
foi porque, sempre que regressava ao quarto, vindo de onde viesse, regressava embriagado,
cada vez mais bêbedo do que nas noites anteriores.
          Não era vaidoso, todavia, tinha apresentação, vestia-se a preceito, fato e gravata e aos
sábados de manhã arranjava o cabelo e as unhas na Rua das Carmelitas, para à tarde se
apresentar em casa de gente de linhagem.
          Jovem na flor da idade, com 18 anos na flor da vida, um metro e setenta na flor da
altura e sessenta quilos na flor do peso, trajava fino de acordo com a época, permitindo-lhe o
cargo que ocupava frequentar qualquer lugar, desde os bares esconsos da Rua Escura, até aos
bailes particulares em casa de gente da fina-flor da sociedade, sabendo entabular amizade
com a família Freitas e a família Vasconcelos, cujas benquerenças se tornaram sólidas e o
livraram do tribunal,
por ter virado costas à Fábrica de Lanifícios, sem mais nem menos, porque nunca se
despediu, apenas ofereceu a roupa de trabalho ao senhor Amaro. O bem-querer que
estabeleceu naquelas casas durou anos e só terminou, porque o tempo e a ausência o fizeram
perder.
          Os namoros enfiaram uns nos outros e perdeu-lhes a conta. No entanto, deixou-se
conquistar pela Amélia, transmontana que conheceu através do Sequeira numa ida ao circo
no Palácio de Cristal, com a qual namoriscou por pouco tempo, pois a moça depressa
descobriu o pielas que o Manuel era e – cachopa com vistas para o casamento – o Manuel
não estava para aí virado nem um bocadinho, mandou-o e muito bem, apanhar patas de burro
para a terra dele. A simpatia da Eduarda, aluna da escola onde leccionava, hipnotizou-o,
desde que o Freitas, seu discípulo, lha apresentou, até ao dia em que virou costas ao Porto.



                                                23
Com ela bailava nos chás dançantes de sábado à tarde nas ditas casas de gente de
estirpe, a cuja frequência o Manuel era tão assíduo como assíduo era nas tascas, sendo porém
que – como qualquer cavalheiro de impecável finesse – nestas reuniões sabia beber, nunca se
embebedava Noblesse oblige.
          Pretendendo dançar sem parar – fosse com uma ou com todas as moças – sabendo
dançar com todas e todas, sem excepção, lhe merecendo o maior respeito, nunca em parte
alguma deixou de ser estimado, voltando sempre aos locais onde já tinha estado.
          Durante este ano lectivo andou de braço dado com as noitadas e a estroinice, as
únicas cúmplices que o fizeram gastar tudo, mesmo tudo, o que ganhou. O vencimento era
razoável, no entanto, se mais tivesse – e gostaria de ter – mais tinha estrapaceado.
          Nunca teve amor ao dinheiro e nem podia ter, porque o caroço para ele era
excremento do Diabo e – bem apresentado como sempre andava – não podia andar com os
bolsos cheios de diabólico estrume.
          Só porque a mãe lhe mandou, pelas duas vezes, o dinheiro para a viagem, as férias
escolares do Natal e da Páscoa foi passá-las a Portalegre, caso contrário tinha ficado na
sacramental estúrdia tripeira. Em condições normais, a viagem de comboio demorava doze
horas. O Manuel demorou sempre mais. Quando chegava ao Entroncamento, mudava para o
comboio errado e em vez de apanhar o trem do Leste, quando se apercebia dava consigo a
caminho do Oeste. Ou então tinha-se metido numa carruagem, cujo trem o levava para
Lisboa.
          Desfazia o engano, junto do chefe da estação, que o autorizava a voltar para trás no
próximo comboio, para se voltar a enganar e sair em Belver, já sem dinheiro e à chegada a
Portalegre ia direitinho à tasca do tio Chico pedir cacau emprestado para pagar o bilhete ao
revisor do transporte que o tinha trazido.
          Até porque ganhavam menos, os colegas de quarto tinham que ser mais orientados do
que ele.
       No entanto, o Manuel andava sempre a pedir-lhes pilim emprestado, que pagava
prontamente logo que recebia. O Sequeira e o Teixeira foram, sem sombra de pestanejo, os
melhores amigos que o Manuel teve no Porto. Nunca se desentenderam durante os meses em
que co-habitaram no apartamento.
          Das noitadas partilhadas do Carnaval ao S. João e das festas aos casamentos, deram
brado na vizinhança as serenatas às moças da frente, que religiosamente os escutavam até
que, de manhã, os passarinhos substituíam os cantores da noite.



                                               24
Salvaguardando a posição dos agentes, o Manuel punha o casaco e o boné policiais,
mantendo-se calado enquanto o Teixeira acompanhava à guitarra o passarinho do Sequeira,
os dois à civil, para que quem os visse, pensasse que era o Manuel que cantava e os polícias
assistiam. Este cuidado prudencial era fundamentado na forte probabilidade de que os
vizinhos acabassem por não achar muita piada às cantorias, o que, efectivamente, veio a
acontecer: um dia batem à porta.
       Estavam os três no quarto. Era um polícia da 12ª Esquadra, à qual pertenciam o
fadista e o guitarrista. Mal ouviram a voz do colega – que reconheceram – precipitaram-se
em direcção à entrada e chamando-o ao aposento, indagaram se vinha por eles, que até
estavam de folga. Para alívio de todos, o agente nem chegou a falar com a senhoria. Estava
ali por causa de uma queixa recebida na Esquadra sobre cantorias nocturnas, que
incomodavam o merecido descanso dos vizinhos.
       Riram e contaram ao colega inquiridor o motivo da risota, cujo, depois de esclarecido,
de tal modo se prontificou a alinhar na comezaina comemorativa do acontecimento, que saíu
dali a trocar o passo:
       - E agora, hic, o que é que eu digo ao chefe, hic?
       - Diz-lhe que falaste, com a dona da casa, hic, e que finalmente tem um bom motivo,
hic, para pôr o civil Manuel no olho da rua, hic.
       E lá foi, hic, sem nunca mais ter voltado. Pouco tempo depois deixou de se cantar o
fado naquele retiro avinhado, não por este incidente, por outro bem mais sensível e que
quebrou o que de mais terno havia na vida afectiva daqueles três personagens: o Teixeira foi-
se embora!
       Viu-se obrigado a deixar a Polícia, por ser colocado em Lisboa, para onde
efectivamente tinha concorrido anos antes. Entretanto, casara, a família estava em Cabeceiras
de Basto e não podia aceitar tal colocação. Voltou para a agricultura e nunca mais o viram.
       Enquanto estiveram juntos naquele quarto, o Manuel e a Sequeira recordaram sempre
o amigo apartado.
       Puseram-lhe a cama de luto. Sobre a almofada, o pano de um guarda-chuva, um livro
aberto a meio da cama e o terço pendurado no garrafão, que se equilibrava sobre a cabeceira
e encostado à parede. A empregada de quartos, quando viu aquilo, deu meia volta e nunca
mais entrou no aposento, negando-se a arrumar tal alcova.
       A funestação manteve-se, porque dos hóspedes que chegavam nenhum se interessou
por aquele quarto, ou melhor, os residentes é que espantavam a clientela.



                                              25
Uma vez o pai do Manuel foi numa excursão ao Porto. À parte do passeio, queria
saber como era a vida do filho e o rapaz levou-o à Rua Aníbal Cunha para lhe mostrar o
quarto onde acabou por dormir. Os polícias também lá estavam nessa noite. Estava tudo
combinado.
          Depois dos cumprimentos da praxe, viraram-se todos para o oratório do quarto,
propositadamente cheio e o recém-chegado, que não estava habituado ao berde, depressa
ficou bermelho, adormecendo angelicalmente nas cores da bandeira nacional.
          No dia seguinte e antes de sair, despediu-se dos presentes e do orago protector
daquele aposento, desceu as escadas de marcha-atrás, agarrado ao corrimão, para não cair nos
degraus que outros desceram de gatas e lá foi, trocando o passo, apanhar a camioneta que o
tinha trazido no dia anterior, sem ter gozado o passeio.
          O senhor Domingos não podia saber a vida que o filho levava no Porto, nem ir para a
terra contar o que não devia, pois seria um desgosto para ele e outro para a mãe, que se iria
benzer à canhota, por à direita ser pecado, se soubessem que o rapaz conhecia todas as
Baiucas de S. Bento, todos os Bares Nocturnos da Boavista e arrabaldes, todos os Botequins
que o Augusto lhe ensinou em Matosinhos e Leixões, com o qual, no final do mês, derretiam,
numa noite, parte do ordenado recebido nesse dia.
Ao chegar a Portalegre, a D. Maria – naturalmente e ansiosamente – logo quis saber:
          - Então, como é que está o Manuel?
          -Acho que está bem.
          -Achas? Então não estiveste com ele?
          - Estive, levou-me ao quarto onde está hospedado. Para lá fui bem, para cá é que já
não me lembro por onde vim.
          - Então o que é que foste lá fazer?
          - Apanhar uma bebedeira. Mais nada.
          - Só para isso não precisavas de ir tão longe, apanhava-la cá, que te ficava mais
barata.
          Por mais vergonhosa que ela seja, na vida tudo tem uma explicação e, nesta
conformidade, o comportamento do Manuel não faz excepção à regra.
          O ambiente sacana que se respirava nas oficinas de serralharia foi sempre nojento
desde o primeiro ao último dia. Porém, em oposição a esta atmosfera, o Manuel saboreava
com os alunos um relacionamento desemparelhado. O mestre geral das Oficinas, um tal
Santos, era um déspota como o Manuel nunca conheceu outro, com mais poder que o
Director da Escola – por sinal, uma jóia de pessoa – só que o Santos tinha o nome invertido,

                                                 26
era um opressor da pior espécie e – dito por ele próprio – não permitia ao filho que comesse à
mesa com o pai. Porquê? Apenas e só porque o rapaz não trazia para casa as classificações
que o pai queria e o moço já andava no Instituto Industrial, não sendo, pois, nenhum catraio,
indo nas férias trabalhar para a oficina da escola sob o olhar – por detrás dos óculos –
esgazeado do pai.
       Quando um ditador é assim com a família, imagine-se como será no emprego com os
colegas. Naquele ano o opressor exonerou um contramestre, por este se ter negado a serrar à
mão um cilindro de aço, com vinte centímetros de diâmetro, estando ali á mesma mão, o
serrote mecânico.
       O Manuel não teve este azar, porque nunca se negou a malhar ferro à forja com o
camarada Serrano, um rapaz de Monforte que o Manuel chamou, por ainda haver uma vaga
de contramestre e com o qual o rapaz só jogou uma vez à lerpa, pois teve que pedir ao colega
que lhe emprestasse os vinte paus que lhe ganhou, tendo o sucesso deste fracasso ensinado ao
moço a nunca mais se sentar a jogar fosse o que fosse. Nem a feijões.
       Entretanto, cedo descobriu que não seria reconduzido no cargo que ocupava. Quem o
tinha colocado fora o Director. A recondução, por sua vez, estava a cargo daquele mestre
zangão, a quem o rapaz não engraxava os sapatos, por ser coisa que nunca fez nem aprendeu
a fazer em lado nenhum. Assim e perante um ambiente de trabalho hediondo como este, o
rapaz tinha que saber distrair-se ou então virar costas ao Porto. Não o fez e fez ele muito
bem. A vingança serve-se fria.
       As paixões femininas fizeram-no ficar e estas, não aceitando muito bem os seus
devaneios, souberam-lhe, porém, perdoar a maior paixão da sua vida: o briol e só o briol!
       No entanto venceu sempre por capacidade própria. Sabia trabalhar, já o sabemos. O
que fazia fazia-o bem feito. Aprendeu a ser assim na qualidade de aluno – ainda hoje se
recorda o que era trabalhar uma peça ao centésimo de milímetro, quando rebaixou, com 15
anos, a cabeça de um motor na fresadora da Escola, sob a orientação do Mestre António – e,
como tal, não era nenhum parasita.
       Embora defensor da teoria quem-gosta-do-trabalho-não-sabe-escolher-amizades-é-
burro, o mesmo nunca o atrapalhou. Estávamos em 1968.
       Os lugares de poder e de chefia eram ocupados por escumalha humana, que os usava
como arma ruim e perigosa em prejuízo dos que trabalhavam. Quem não era lambe-botas não
se safava. O Manuel cedo descobriu que não faria outro ano lectivo no mesmo lugar.
       Como tal e sabedor de que um dia deixaria o Porto, dedicou-se a amar perdidamente,
sem nunca a considerar inútil, a tão bem aventurada e avinhada vida nocturna, da qual nunca

                                             27
se arrependeu e voltaria a fazer o triplo, hoje no estado sóbrio, se a vida o bafejasse com tal
ventura, tais são as nostalgias desse tempo único…
          Confraternizou com as figuras mais notáveis da época nos cafés da Boa Vista, de
entre os quais nunca se cansa de recordar o culto, ilustre e distinto Senhor, com Dom, Dr.
Pedro Homem de Mello, que teve a amabilidade de dar ao Manuel a honra de colega de
profissão na mesma Escola, ao ensinar-lhe a ser condiscípulo no meio dos alunos, pois tinha-
os lá mais velhos do que ele.
          Naquele tempo, um rapaz ia para o serviço militar em cabo miliciano, com o quinto
ano (actual nono ano). O Manuel tinha turmas onde leccionava sozinho, sem a indesejável
presença do retrodito abelhão, que tinha reprovado no ano transacto, a oficinas de serralharia,
alunos que agora eram discípulos do Manuel.
          Outro chumbo e adeus Curso de Cabos Milicianos. Os rapazes souberam falar com o
Mestre sobre o assunto logo no início do primeiro período.
          Assim, acertaram de imediato as seguintes notas: 10 - 9 - 10. Era o indispensável para
fazer a disciplina e para não levantar suspeitas (29 valores nos três períodos, como já
sabemos). Ao longo do ano lectivo os rapazes foram de uma impecabilidade extraordinária,
em termos de comportamento, agradecendo ao mestre Fragoso – era assim que era conhecido
– a humanidade acordada e ao proporcionarem ao Manuel a felicidade de se entrosar nas tais
famílias de linhagem, assim como nos chás dançantes, aos quais, como já sabemos, nunca
faltou.
          Volvidos quarenta anos, o rapaz ainda hoje recorda com a saudade que lhe é devida e
que só ele sabe, as amizades sadias criadas num período tão mortal de ditadura, como este
que o Manuel viveu no Porto.
          Um dia, quase sem dar por isso, o ano lectivo acabou. Só lhe restava partir. Foi numa
quarta-feira, às nove horas. O Sequeira acompanhou-o até à Estação de Campanhã, onde o
esperava a última surpresa, que o deixou estupefacto: a Florinda foi-lhe desejar boa viagem.
Era uma mulher da idade do Manuel, mas com mais idoneidade que ele.
          Foi uma das várias labaredas resplandecentes e amorosas que se lhe acenderam e que
o vinho – sem dó nem piedade de espécie alguma – apagou.
          Conheceu-a numa daquelas tardes de sábado sem, no entanto, a moça ter ligado aos
galanteios do rapaz. Por isso mesmo estava ali como a amiga que sempre se mostrou, para
lhe almejar felicidades. Uma lágrima atrevida, um abraço de adeus, um apito de comboio,
uma partida sem regresso…



                                                28
CLAVE DE FÁ (DO)




           De volta a Portalegre e depois de acreditar que não ia mais para onde tinha saudades,
começou a andar aos bonés, sem nunca lhe ter passado pelo toutiço quanto a falta de trabalho
isso lhe ia ser difícil e mesmo impossível, por ser demasiado conhecido como religioso
militante de S. Baco. Não querendo voltar às fábricas onde trabalhara, por se ir apercebendo
de que aquelas indústrias eram uma exploração de mão-de-obra barata, o trabalho do campo
era ainda menor gratificante e os pais tinham feito o sacrifício de o pôr a estudar,
precisamente para o libertar dessas profissões, às quais o escolarizado e ao longo da história
nunca soube dar valor, nem acreditamos que o venha a fazer.
           Procurando por Seca e Meca e concorrendo para França e Aragança, nicles-
batatóides. Viu-se à brocha durante oito meses, sem dinheiro, com uma alcoolemia galopante
para sustentar. A mãe não o tinha para lhe dar e ao pai não tinha à vontade para lho pedir.
Havendo, no entanto, sempre amigos, através das temáticas copológicas, estes lá lhe iam
apoiando a carência, como diria o Zeca Afonso, Venham mais cinco/duma assentada/que eu
pago já/do branco ao tinto (…)
           Decorrido aquele tempo e desatinado de todo, chegou a pedir serventia ao tio João e
iria trabalhar para as obras naquela segunda-feira, se não tivesse na caixa do correio um
postal para se apresentar na Repartição de Finanças de Évora, onde compareceu no dia
seguinte e ali, durante sete meses desempenharia o cargo de escriturário das Execuções
Fiscais.
           Um colega arranjou-lhe quarto na Rua do Cano, não por muito tempo. Um dia ao
almoço encabeçou um levantamento de rancho, por os bifes estarem mais duros que as solas
dos sapatos, o arroz, se atirado à parede, ficaria lá colado e – como se isto já não bastasse –
no final do mês debandaram todos os hóspedes menos um, que era militar, até porque
assentou praça, como voluntário, naquela casa.
           O colega Caldeira arranjou-lhe outro quarto na Rua Cândido dos Reis, onde só
dormiu uma noite, ou melhor, a mala da roupa é que lá dormiu. Depois de apalavrar o
aposento, saiu para jantar e regressou no outro dia, ao romper da bela aurora e a trocar o
passo. Quem não gostou da entrada e daquela figura àquela hora foi a senhora da casa, que
refilou:
           - Olhe lá: o senhor acha que isto são horas de entrar em casa de uma senhora viúva?!
Pague-me o quarto e vá-se embora, ou quer que me vá queixar às Finanças?

                                                29
- Como funcionário que sou da Fazenda Pública, hic, tenho muito gosto em a atender,
minha senhora, hic, explicando-lhe o melhor que puder e souber que não fui eu quem cá
dormiu, hic, foi a mala, ela é que lhe deve a dormida, eu não lhe devo nada, hic.
       - Pegue na mala e saia já! Imediatamente! Rua! Rua!
       Já ontem era tarde. Sem mais palavras, o Manuel pegou na mala, desceu as escadas,
deu corda aos sapatos e só parou nas Portas de Almeirim, aí se hospedando na casa da Dona
Cidália, cujo marido, o senhor Vicente, também gostava de virar uns canecos e quando saíam
juntos, aos fins de semana, a Dona Cidália já sabia que na volta iam sempre duas bebedeiras
para casa e, em consequência, o almoço de segunda-feira era a única refeição semanal que
aquela senhora sabia o que havia de fazer, sem reclamação do marido ou do hóspede: açorda
alentejana en su sitio. Compreende-se porquê: as noites de sexta, sábado e domingo
deixavam-lhes a boca a saber a papéis de música e só aquele prato aligeirava a melodiosa
papelada.
       A função de escriturário das Execuções Fiscais permitiu-lhe conhecer os circuitos
pedonais de todas as chafaricas da cidade e depois, em circuitos motorizados, passou a saber
onde ficavam as capelinhas nos bairros limítrofes até à Torre de Coelheiros.
       O trabalho era propício para este tipo de conhecimento, pelas Execuções Fiscais que
lhe mandavam fazer. Nunca deixou de realizar nenhuma.
       Assistia-lhe a finura de saber encontrar o contribuinte, para lhe assinar o documento,
mesmo que isso implicasse permanecer numa esplanada duas horas a beber cerveja, como
trabalho complementar, à espera que o tributário saísse de casa, porque sabia que ele estava
lá.
       Uma vez um deles negou-se a assinar o testemunho e o Manuel teve a amabilidade
profissional de o informar:
       - Não se preocupe, o polícia vai assinar comigo, já falei com ele.
       - Dê cá o papel! Você só é maçarico, de parvo não tem nada…
       E assinou imediatamente o documento.
       Quando entregou o serviço ao superior hierárquico, este deixou escapar o comentário
“O quê? Você conseguiu caçar a assinatura a este indivíduo? A notificação já vem de Lisboa.
Como é que você o apanhou?”
       O rapaz contou-lhe o sucedido e o subchefe – a quem já tinham tido a gentileza de
contar que o funcionário passava as tardes nas esplanadas dos cafés do Bairro de Almeirim e
não só – ignorou a repreensão que tinha para lhe dar e recolheu, com agrado, o trabalho que
lhe acabava de entregar.

                                              30
Na mesma Repartição de Finanças trabalhava uma escriturária de Vila Viçosa, através
da qual o Manuel conheceu a Ana Maria, uma cachopa extraordinária, com uma postura que
o rapaz muito admirava e por quem alimentou uma paixão enquanto namorados, o que lhe ia
apagando a vida, quando a moça extinguiu aquela chama que iluminava o rapaz.
       Quem gostava dele era a colega de trabalho, sem no entanto nunca lho ter declarado.
Como tal, ele não sabia e quando começou a acompanhar com a namorada, a colega disse à
Ana: “Ele pediu-te namoro, não é porque goste de ti, é para andar comigo, porque sabe que
nós não saímos uma sem a outra”.
       Terão mesmo as mulheres um pacto com o Diabo?
       Só anos mais tarde é que o moço veio a saber desta trapalhice.
       A Ana certamente acreditou e aliando esta aleivosia ao comportamento do jovem, um
dia, no Jardim do Templo de Diana, pôs fim ao amorio.
       O desventurado bem se esforçou para que tal não acontecesse. Não lhe valeu de nada.
A Ana não se demoveu, nem lhe deu nenhuma explicação. Acabou mesmo.
       Ficando o infeliz a bater mal das válvulas, pois gostava mesmo da Ana, nunca mais,
até hoje, se esqueceu de que foi beber para as Alcáçovas onde não era conhecido e ali
ingurgitou briol que chegasse para ficar encharcado até aos olhos. A motorizada é que o
trouxe de volta. Como já era da praxe. Não sabe qual o caminho que pisou. No regresso,
recorda-se de ter passado por cima de qualquer coisa, à entrada de Évora. Mesmo perdido
bêbedo, ficou intrigado e voltou atrás, para ver o que era. Nada de especial. Apenas uma
passagem de nível, que, por acaso, estava aberta...
       Um dia ao almoço ouviu na Rádio uma notícia sobre trabalho, o que lhe adoçou a
bisbilhotice. Foi ao Serviço Nacional de Emprego indagar sobre aquele anúncio e onde, após
várias entrevistas, não hesitou em deixar o trabalho que tinha. Fê-lo, porque nunca lhe
explicaram que, embora fosse provisório na ocupação do lugar de um funcionário que estava
no cumprimento do serviço de Deus-Pátria-Família, não seria despedido quando o José Maria
regressasse do Ultramar. Iria para outra Repartição onde houvesse vaga.
       O segredo é a alma do negócio.
       Não sabendo disso, aceitou o lugar de controlador fabril na firma sueca Melka
Confecções, Lda., também em Évora. De tudo o que até aqui tinha feito, foi a faina de que
mais gostou. Não, não era propriamente por se encontrar no meio de trezentas mulheres.




                                              31
A Organização e Métodos de Trabalho fascinaram-no, de cuja aprendizagem ainda
hoje sabe fazer uso: uma folha de papel, por exemplo, ou tinha lugar na pasta correspondente,
ou na 5ª Secção (cesto dos papeis).
       Já sabemos que o rapaz, embora muito beberrão, sabia trabalhar e desde que entrou no
mundo laboral, aquilo que fazia, fazia-o bem feito, o que lhe abonava a favor dos erros, que,
é claro, também os cometia. Chegou a fazer o Relatório Semanal de Produção e enviá-lo para
a Suécia.
       A primeira vez que o fez, exportou mais camisas do que as que a fábrica produziu.
Imediatamente a sede pergunta, por telex, como é que estava a trabalhar aquela Unidade de
Produção. Ficou à rasca e à espera de ser castigado, porque foi o próprio responsável pela
produção, senhor Nigren, presente em Portugal na fábrica do Cacém, que lhe chamou à
atenção para aquela incorrecção. O incidente não se repetiu e o caso ficou pelo reparo.
       Talvez por isso, o rapaz depressa se esqueceu do caso e tempos mais tarde deu origem
a outro. Passou a imitar aquele sueco na fala, quando pedia a linha telefónica à menina do
escritório, dizendo “Menina, dar-me linha, fazer favor”.
       Um dia é o próprio senhor Nigren que, estando em Évora, pede a linha telefónica e a
menina responde-lhe:
       - Lá está o senhor Graça sempre com as suas gracinhas…
       - Porquê dizer “senhor Graça”? Daqui falar senhor Nigren…
       A menina fica à rasca, mas logo sacode a água do capote, acusando sem mais nem
menos o controlador de imitar na perfeição aquele responsável, cujo lhe ordena:
       - Senhor Graça imitar minha fala? Mandar vir senhor Graça ao meu gabinete.
       “Desta vez é que vou passear” pensou o moço. O sueco só quis ouvi-lo e o rapaz, que
o imitava sem pestanejar, pela primeira vez teve dificuldade em articular o arremedo.
       - Muito bem, fazer uma coisa – disse-lhe o nórdico – imitar minha fala só quando eu
não estar na fábrica, O.K?
       -Está bem, senhor Nigren!
       E o incidente nunca mais se repetiu.
       Só uma vez é que foi mandado dormir para casa, pelo gerente português, o senhor
Arménio, porque a sua apresentação não deixava margem para dúvidas: estava bêbedo como
um cacho e, como tal, não se tinha deitado para não esmagar as uvas. De facto aquela noite
tinha sido muito longa e no caminho Portalegre-Évora, deixou-se ficar esquecido num baile
em S. Miguel de Machede, de onde saiu às seis da manhã.



                                              32
Como sempre, quando não havia moças disponíveis para dançar, bebia uns copos,
neste caso com o Zé Ferreiro. Passou pelo quarto, mudou de roupa, chegou à fábrica e voltou
para trás. Às duas da tarde já estava de volta ao trabalho, o que surpreendeu o gerente, que só
o esperava no dia seguinte.
       Correndo o ano de 1969, com 20 anos de idade o Manuel, tendo que voltar
obrigatoriamente à inspecção dos magalas – ó milagre dos milagres – em pleníssima guerra
colonial, voltou a ficar não só livre da tropa, como também do eventual perigo de passar o
serviço militar no Forte da Graça, posto que o Manuel da Graça não achava muita graça à
doutrina católico-salazarista sobre os conceitos de Deus-Pátria-Familia.
       Definitivamente livre do serviço militar, o rapaz esmerou-se com toda a pompa e
circunstância na comemoração do acontecimento. O pobre do Rosendo, tendo tido o
previsível azar de ser apurado nas “sortes”, decidiu afogar o desgosto antipatriótico na alegria
igualmente antipatriótica do sortudo do Manuel e ambos, patrioticamente, foram-se
enfrascando com o tal produto líquido que patrioticamente dava de comer a um milhão de
portugueses, ficando aquele dia preenchido de acordo com a familiar divisão dos dias em três
partes, divinalmente seguida pelos dois devotos de S. Baco: alambazaram-se com três
bebedeiras, uma de manhã, outra à tarde e outra à noite.
       Quando – já bêbedos que nem um quartel – se apresentaram no recém-dito, vinham
do Mercado Municipal, onde foram dando a volta às capelinhas todas, nas quais fizeram uma
explosiva combinação de aguardente, vinho e cerveja.
       Almoçando numa tasca do Rossio continuaram a visita às grinaldas, acabando a noite
num baile no Salão Frio, para onde foram e vieram a pé, embora houvesse bailes noutros
sítios mais longe, onde o Manuel gostava de ir, só que neste dia estava tão bêbedo, tão
bêbedo, que não se atreveu a apanhar a motorizada, nem mesmo a bicicleta, porque tinha
amor à vida, já o sabemos e – embora soubesse muito bem que ser estúpido em Portugal é
um Dom Divino e por via disso é que vai muita gente para o Céu – só era bêbedo, não era
estúpido.
       Certo dia o rapaz soube que a fábrica ia admitir uma escriturária. Comunicou com a
Lurdes, que estava desempregada e é assim que esta vai trabalhar para a mesma terra e local
onde ele laborava.
       Embora coubessem perfeitamente os dois no mesmo quarto, teve, porém, a atenção de
lhe dispensar o quarto em casa da Dona Cidália e arranjou outro ao cimo da rua. Perante tudo
isto, a moça e a família chegaram mesmo a pensar que o rapaz se queria casar. Ficou deveras
labiríntico das ideias, porque nunca tal lhe tinha passado pela cachola.

                                              33
Estando livre da obrigação militar – a maior dor de cabeça dos rapazes na época – no
entanto tinha uma leve noção – já sabemos que a cabeça avinagrada não lhe permitia ter
muita – de que o matrimónio seria o enjoo e o entorpecimento atrofiantes da idolatrada vida
boémia, à qual não tinha coragem de virar as costas, o que lhe causava o embaraço tremendo
de explicar à sua estimada porque é que não se casava, até porque à Lurdes não era nada
favorável continuar solteira e em Évora, por isso, decidiu e muito bem, voltar para Portalegre
onde e em boa hora, fez o exame de admissão ao Magistério Primário, formando-se como
professora do ensino primário.
       Nesta altura, o Manuel ainda não sabia que o casamento era uma prisão, à qual, uns
anos mais tarde, porém, veio a ser condenado.
       De forma inconsciente, o que ele mais gostava era de ser livre como um passarinho,
principalmente naqueles fins-de-semana em que se dava ao luxo de os passar em Lisboa.
Para lá ia de comboio e de volta, vinha de táxi. Na tarde de sábado fazia a vistoria aos bares
do Intendente e à noite ia para o Bairro Alto ouvir cantar o fado – à mistura com umas
cervejas – no Arroz Doce.
       A tarde e a noite de domingo serviam para fazer a revista aos bares do Cais do Sodré
e como os botequins eram muitos e o tempo era pouco, sentia-se na obrigação de fazer o fim-
de-semana numa directa. Na madrugada de segunda, todo torcido e a abanar sem vento,
escolhia o carro que o havia de levar a Évora.
       Consumidor vinícola profissional que se agraciava de ser, regressava à cidade-museu
de Mercedes, com uma condição eliminatória a este referente: só com rádio.
       Porém, todavia, contudo antes de partir, bebia a última cerveja com o taxista,
pagando-lhe os quinhentos paus da praxe e só depois é que se iniciava a viagem.
       Dormindo as duas horas do trajecto e chegando regularmente a Évora já de dia,
passava pelo quarto para mudar de roupa e lá ia para o trabalho, cambaleando, meio a dormir
– meio acordado, meio borracho – meio sério.
       Enquanto esteve em Évora – aqui com mais tempo e à semelhança do Porto – o
Manuel continuou a fazer o que mais amamentava: depois de um dia de trabalho, mamar a
noite com o enlevo que a mesma lhe proporcionava, só se desmamando ao raiar do dia.
Sozinho ou acompanhado, o ponto de encontro para a estúrdia era cronicamente a Praça do
Geraldo, onde tomava conhecimento do que lhe interessava: festas, bailes e tudo o que fosse
propício à noitada, por vezes muito curta, pois a noite tinha obrigação de ser maior que o dia.




                                                 34
Depois da amada lhe ter virado as costas, o Manuel continuou por mais algum tempo
trabalhando para os suecos, lastimando que a sua mais bem-querida tenha chegado a
professora e ele ficasse simples trabalhador. Não podia ser. Sentindo-se desequilibrado –
embora continuasse a gostar do que fazia e os suecos também gostavam do trabalho dele –
um dia não deu rendimento nenhum na firma, passando-o a escrever para as Escolas
Preparatórias do distrito de Portalegre.
       Pouco tempo depois é chamado para a Escola Preparatória de Campo Maior. Quando
se despediu da Melka, foi o próprio senhor Nigren que veio do Cacém, de propósito, saber
porque é que o rapaz se ia embora.
       Gostando do que estava fazendo, era bem provável que continuasse a trabalhar para
os suecos, se as ordens viessem directas daquele senhor, em vez de passarem por um tal
Carvalho, com quem o Manuel não ia a lado nenhum e assim sendo – com todo o respeito
que o nórdico lhe merecia – despediu-se dele e disse adeus a Évora.
       Pela mão do doutor António Raimundo, é chamado para a Escola Preparatória de
Campo Maior como professor provisório de Trabalhos Manuais no ano lectivo de 71/72.
Uma vez mais e nesta vila alentejana muda de patrão e de actividade profissional.
       Era uma posição diferente e como tal – passando a fazer parte de uma classe mais
privilegiada – só por isto devia ter mudado de postura, mas, porém, todavia, contudo o
comportamento perante o álcool não parou, piorou e a carreira de bebedor progredia em
galope cavalar, cujo na linguagem do alcoolismo se chama “tolerância” – agora com um
garrafão obtinha os mesmos efeitos que antes eram produzidos por uma garrafa ou por uma
garrafinha.
       Foi num baile de finalistas do Colégio de Campo Maior que conheceu a mulher com
quem viria a casar. Para a Lurdes foi um desgosto. Sem o saber, o Manuel fez o pior que se
pode fazer a uma mulher: trocá-la por outra e neste caso, depois de sete anos de namoro, pior
ainda. O certo – tão certo como aqui e agora, estar a dizê-lo – é que ambos casaram mal.
Como seria se tivessem casado um com o outro, ninguém sabe, nem sábios da Natura, nem
mestres da Escritura.
       Namorou um ano com a Catarina, amorio desalinhado e também esta mulher esteve
para deixar o Manuel, pela conduta que sempre acarretou perante a bebida, não sabendo
ninguém – nem os ditos sábios e mestres – porque raio de carga d’água a rapariga não deu
com os pés no bebedolas, como outras o fizeram e, sem saber como nem porquê, um belo dia
o rapaz estava a falar com o padre Soares, que o condenaria com 24 anos de idade, a uns
longos, intermináveis e agressivos 13 anos de xelindró matrimonial.

                                             35
O casamento não o fez mudar coisíssima nenhuma, continuando devoto incondicional
da agência local da Irmandade de S. Baco.
       Uma vez a cabra foi internacional. Sabe com quem foi para Espanha, não sabe como
foi, nem como de lá veio. Três dias sem saberem dele. Meteram-lhe a porta da alcova
adentro, por a motorizada estar à entrada. Ele não estava lá.
       Quando se apresentou na escola surpreendeu o Director. Humildemente lhe pediu
desculpa, pedindo-lhe também que o castigasse, por ser a única coisa que merecia.
       Em vez disso, aquele dirigente mandou-o ao Dr. João Maria, para lhe passar um
atestado médico, a fim de justificar, por doença, os três dias de moina. E que doença… já tão
enraizada…
       No entanto, ainda respondeu assim ao Director:
       - Já lá vão quatro dias e o médico não me passa o atestado.
       - Vá lá, que eu falo daqui com ele – apontou para o telefone.




                 Portalegre – Taberna da Tia Inês do Cuco, hoje Casa Morais.




       O Dr. António Raimundo – seu director – e o Dr. João Maria – seu médico – eram
boas pessoas e uma vez mais o saber ser humilde abonou a favor do rapaz, nesta altura já um
prestigiado galdério, cuja formação – como sabemos – iniciou no Porto.
       De um modo geral os rapazes quando casavam mudavam para melhor. Este piorou.
Cada vez mais pingalho, passou a acompanhar com todo o fel farrapo, com todo o tipo de
gentalha bebedanas, frequentando lugares menos próprios para um professor casado.


                                              36
As luzes da noite continuavam a encandeá-lo, iluminando-lhe a estúrdia, a sua
cônjuge preferida.
       Quando sozinho, distanciava-se para qualquer lado, dormindo trevas sem conta na
valeta da estrada, por não ser capaz de conduzir a motorizada. O casamento esteve prestes a
desmoronar-se. O aparecimento do primeiro filho, ao fim de um ano, não veio equilibrar o
que esteve sempre a desabar.
       O bagacinho passou a ser o forte-fraco das bebidas que consumia.
       Gradualmente foi-se habituando à girgolina e a bica servia para aconchegar meia
dúzia de mata-bichos.
       Um ano o senhor seu pai – em vez de doar as uvas aos pardais como sempre fazia –
lembrou-se de fabricar uma pinga de aguardente. Fez dez litros com a graduação de 35º, mas,
porém, todavia, contudo mal a provou, porque o senhor seu filho engorjitou-a toda numa
semana, enchendo-lhe as garrafas de água e dando à sola por três meses, sem voltar a casa
dos pais.
       Desconfiando da fartura, a mãe, quando descobriu a marosca, apressou-se a pôr outra
branquinha nas garrafas, antes que o pai dissesse que a cachaça se tinha estragado, o que veio
a acontecer, pois quando lhe apeteceu molhar a goela, pareceu-lhe que o bagaço não era o
mesmo e o senhor Domingos acabaria por morrer na dúvida, partindo sem nunca o saber,
pois o Manuel nunca teve coragem de lhe confessar a verdade.
       Este rapaz nunca se devia ter casado, ou melhor, a Catarina é que nunca devia tê-lo
feito, porque o moço andava a leste do paraíso matrimonial, pois continuava a praticar a
bigamia vinícola-conjugal e – como toda a gente sabe – o adultério é pecado mortal.
       A rapariga tinha plena consciência que namorava um ébrio. Dois dias de trabalho
alternavam regularmente com uma noitada mais agradável que a outra. A vocação do moço
aliada à devoção por Baco, durante os primeiros seis anos de casado, fizeram dele veterano
beato de um deus milagreiro que dá pernas aos coxos, vista aos cegos e fala aos mudos.
        Porque eles obrigam aos consequentes deveres conjugais – quando alguém como este
jovem está enraizado em tal vida – não devia ter quaisquer direitos matrimoniais.
       Há quem diga que este encadeamento é uma prisão, onde se pagam os pecados de
solteiro e – se isto é verdade – o Manuel, como já sabemos, apanhou 13 anos de pildra em
regime aberto, o que lhe permitiu continuar a ser cada vez mais perfeito valdevino.
       Leccionou em Campo Maior de 71 a 74 e é neste período que faz o exame de Aptidão
Profissional, quase por imposição do Dr. Raimundo, que lhe disse não o poder reconduzir, se
não completasse o Curso que o credenciasse com habilitação própria.

                                             37
Foi então para a Escola Industrial e Comercial de Elvas em revisão da matéria dada,
como aluno da noite de Desenho de Máquinas e de Oficina de Serralharia, preparando-se
para os exames destas disciplinas. Soubera ele, nunca lá tinha posto os calcantes, porque
nesta escola o manajeiro era um tal mestre Laranjo, primo-irmão do abelhão do Porto, ambos
unha com carne.
       Tinha assistido a meia dúzia de aulas, quando uma noite os companheiros o
aconselharam “Se queres fazer o exame, vai para Estremoz ou para Portalegre, porque aqui
não o fazes. Tu não foste aluno deste mestre e se o ano passado ele chumbou o filho, tu nem
sequer chegas a ir às provas”.
       Como se vê, uma vez mais, os amigos são para as ocasiões.
       Nessa mesma noite estava a ampliar um desenho de peças de máquinas. Os colegas
tinham acabado de falar com ele.
       Ao olhar para a legenda do mesmo projecto, reconheceu a assinatura: era do déspota
do Porto.
       Nem pensar em continuar. Foi tudo muito rápido. Impulsionado por uma mola
invisível, mas real, levantou-se, arrumou as coisas e ao entregar o que estava a fazer,
anunciou ao mestre “Diga ao seu amigo Santos que faça ele o desenho, porque eu não lho
faço nem a peso de ouro”.
       O mestre esbugalhou os olhos, espumou de raiva, ficou verde-amarelo, azul-às-riscas,
o rapaz abandonou a sala de aula sem uma palavra e nunca mais lá apareceu.
       Ainda foi a tempo de ir para Portalegre. Voltou à escola onde estudou, ao convívio
sadio dos bons professores que ainda lá estavam, de entre eles o sempre amigo e senhor
Director.
       Dos que precisou – desde o senhor mestre José Carvalho, ao sempre saudoso senhor
engenheiro Malcata – todos lhe facultaram a revisão da matéria para a realização do exame –
recordando, de entre outros, o desenho de rodas cremalheiras, cujo traçado parecia ter
movimento – que fez à risca, à rasca e às roscas, com a classificação de 10,8 valores. Como
nunca foi ambicioso, trabalhou apenas para a média tangencial, porque teve que voltar a fazer
o circuito Escola – Café da Praça – Escola, do qual ainda se lembrava, quando, anos atrás, se
apresentou a fazer aquela prova.
       Entretanto, é colocado em Portalegre, onde permanece de 74 a 78 e nestes quatro anos
o Manuel, de uma forma lenta e progressiva, entrou em declínio, mas, porém, todavia,
contudo passou a ser um respeitoso e notável avinhado, conhecido em todas as chafaricas da
cidade e subúrbios num raio de 20 quilómetros ao redor, de onde não arredava.

                                             38
Todos os anos adoecia. Passou a andar de médico para médico. A uns queixava-se do
estômago, a outros dizia que tinha nervos.
       Não enganava ninguém, ele, de facto é que não sabia, no entanto, todos lhe
conheciam a doença. A Dra. Lisdália chegou a dizer-lhe que só internado é que teria
salvação. No verão de 79 assim aconteceria.
       O pequeno-almoço era constituído por um bagaço em cada tasca do caminho casa-
escola com a matéria líquida. O intervalo das aulas servia para fazer a revisão da matéria
dada na taberna mais próxima.
       Todas as manhãs transportava, transpirava e tresandava a bagaceira. Instala-se na
comunidade escolar um certo mal-estar, tornando-se intolerável o estado alcoólico a que
chegou, incompatível com as aulas. As queixas eram tantas, que um dia o Presidente do
Conselho Directivo – o Caldeira – não teve outra saída: participar a ocorrência.
       No entanto, a queixa não chegou a sair da Escola. Uma vez mais o rapaz foi
protegido. Desta vez, valeu-lhe o senhor funcionário Manuel Milhinhos, que soube apelar
àquele dirigente e a participação, já redigida, não seguiu para o correio.
       No último ano que leccionou naquela escola o Manuel não se livrou de mais apuros.
No final do ano lectivo, numa reunião de encarregados de educação, houve um que se
insurgiu com firmeza:
       - Para o ano, se o meu filho for aluno do professor Graça, não vem às aulas.
       - Esse problema está resolvido – explicou o Caldeira – para o ano esse professor já cá
não está. Foi colocado noutra Escola.
       Problema resolvido. O Manuel foi prègar para outra freguesia. No ano lectivo de
78/79 regressou a Campo Maior, onde continuou a fazer aquilo de que mais gostava: beber,
dias a fio, sem conta, sem peso e sem medida.
       É ao voltar para a terra onde sempre residiu que a devoção por S. Baco atinge o
pináculo do apogeu. Já não ia em seis bagaços, ia em dez e em balão.
       Algumas vezes era o primeiro cliente – logo ao abrir da porta, às seis da manhã – da
taberna do João Vinagre, não só por ser a primeira a abrir e a que ficava mais perto de casa,
mas também pelo condizente apelido do proprietário.
       Quando extraviava para a cerveja, nunca era uma, nem duas, nem sequer a conta que
dizem ser sagrada – aquela que Deus fez, três – era às dúzias, não só porque à dúzia é mais
barato, mas também porque havia o lucro adicional das apostas na capacidade de
engorjitação volumétrica, tendo-as ganho todas a todos, assim subindo ao pódio da medalha
de ouro das olimpíadas do campeonato copofónico local.

                                               39
Vinho? Era raro beber pelo copo. Bebia-o pela garrafa, garrafinha e garrafão, quando
este era apanhado a jeito em casa do sogro, cujo, muitas vezes teve que beber água à refeição,
pois o vinho, por obra e graça divina – misteriosamente – tinha evaporado.
         O vício crónico conduziu-o às consultas clínicas crónicas. O dr. João Maria matutava
“Mas o que é que lhe hei-de receitar? Ponho-o a dormir? Quando acordar volta a beber… O
que é quer que eu lhe faça? …”
         Em Elvas, numa consulta ao dr. Barbas, o médico apanhou-lhe a vesícula “Segura aí”.
Ele segurou com facilidade. “Sabes do que é isso? É do bagaço. A continuares assim, não
chegas a velho…”
         Isto o rapaz não sabia. Só soube que continuou a beber.
         Em casa, já há muito que não havia bebidas alcoólicas. No entanto, o Manuel – como
todo o bêbedo que se preza – também era manhoso. Escondia a garrafa da aguardente sob o
capô do automóvel, acamada em duas tábuas pregadas em ângulo recto e agasalhada com um
bocado de desperdício. Podia fazer uma travagem brusca, que a botelha não se mexia.
         Um outro da mesma laia do rapaz escondia a botija de bagaço no autoclismo da casa
de banho, para ficar mais fresquinha. A do Manuel estava sempre morninha. São gostos.
Gostos não se discutem.
         Para quem não sabe, fica sabendo que isto são truques defensivos de manholas, como
é a regra, sem excepção, de qualquer bebedor excessivo: ter no sítio estratégico
operacionalmente apropriado o paiol das munições preparadas para o combate à sede aguda,
quando esta aperta com a mesma premência, a mesma insistência e a mesma frequência de
qualquer ruminante.
         O Manuel não chegou a ter o rosto cor de marisco, os olhos inchados e remelados, o
nariz cor de cenoura e em forma de torneira – até porque torneira já ele era – no entanto,
tinha alcançado o píncaro do êxtase, como virtuoso e elegante profissional da ciência e das
artes enófilas.
         Embrenhando-se nesta senda, sem nunca o ter desejado e fazendo-o a bebida passar
por muitos vexames, por incrível que pareça ele tinha consciência disto e não era isso que ele
queria ser.
         O espeque do problema estava em não saber parar e, sozinho, nunca foi capaz de o
fazer.
         Um dia procurou a Maria do Carmo, sua cunhada, residente em Elvas, por quem tinha
respeito e admiração.



                                              40
Esta Dona algumas vezes o quisera ajudar, mas nicles-bitocles batatóides. Desta vez
foi o Manuel que lhe pediu socorro. A Senhora falou-lhe de um indivíduo que tinha feito
tratamento em Coimbra e nunca mais bebera.
         No que diz respeito ao alcoolismo, o Manuel nunca tinha falado com ninguém que
tivesse feito terapêutica e, muito menos, tinha ouvido alguém falar de si próprio, como fez o
Mário. Era como se estivesse na frente de um espelho: o Manuel reflectido nas palavras do
Mário.
         A postura, aliada à franqueza de uma individualidade própria, nada teriam a ver com a
figura, se não fosse a própria pessoa a dizer que chegou a transformar um litro de azeite em
dinheiro, para poder ir beber.
         A sobriedade alcançada, ligada a uma sinceridade única, juntas numa revelação
excepcional do que uma criatura foi e deixou de ser, foi o que mais impressionou o Manuel.
         O Mário contou-lhe que esteve internado no Centro de Recuperação de Alcoólicos de
Coimbra do Hospital Sobral Cid e disse-lhe que em Lisboa, no Hospital Júlio de Matos,
havia também o Centro de Recuperação António Flores, optando o rapaz por este, em virtude
de lhe ser mais fácil a deslocação e ter família na capital. A conversa com o Mário resumiu-a
o Manuel numa feliz e promissora conclusão “Se este homem, que é feito da mesma massa
que eu, deixou de beber, eu também deixo”. Foi o Ti Júlio que lhe marcou a consulta para a
inesquecível data de 30 de Maio de 1979.
         Pela primeira vez na vida, o Manuel falava com alguém que o podia ajudar a pôr fim
a um mistério que o torturou em duas décadas de consecutiva alcoolidade, ou seja – em boa
verdade – dois terços da idade que constava do seu bilhete de identidade, assistindo-lhe
durante uma hora a graça e a felicidade de ser examinado por um GRANDE médico, o Dr.
Leitão de Barros. A este contando e nunca aldrabando, o rapaz desbobinou toda a vida
rocambolesca que ia levando. No final da conversa, o médico diagnosticou:
         - Perante o que me acaba de dizer, só vejo uma solução: interná-lo. Quer ser
internado?
         - Quero sim, senhor doutor.
         - Então fica já cá hoje.
         - Eu não sabia que podia ficar e não venho preparado para isso.
         Conversaram mais um pouco para acertar pormenores e encontrar data para o
regresso do paciente.
         De volta a Campo Maior pediu aos colegas do conselho de turma, de que era o
director, para fazer mais cedo a reunião final do 3º Período.

                                              41
Todos concordaram, excepto o Presidente do Conselho Directivo, que não autorizou a
antecipação, por já ter dado uma nega a um outro professor que lhe tinha feito o mesmo
pedido. O Manuel tinha o internamento agendado. Entregou o dossier de turma àquele
dirigente, sugerindo-lhe que presidisse ele próprio à reunião porque no dia xis pê tê ó foi
mesmo para Lisboa. P’ra vilão, vilão e meio.
       Tendo um mês para fazer as despedidas, as bebedeiras pegaram umas nas outras, ou
melhor, foi só uma, como no Porto. Boémia perpétua.
       Rambóia que se prezava de ser e bom consumidor da Vinhataria Portucalense,
durante duas décadas, naqueles trinta dias fez uma despedida endeusada ao vinho e à
aguardente, à cerveja e ao brandy, dizendo: “Adeus, garrafas, garrafinhas e garrafões, hic!
Acreditem, porque é verdade, hic! Vou ter saudades vossas, hic!”.
       Decidiu-se. Já tinha tresmalhado a conta às vezes que prometera a si próprio deixar de
beber, sem, no entanto, ter sido capaz de cumprir a promessa, sabendo que estava doente e os
médicos já há muito que não lhe rezavam pela pele. Viria um dia em que perderia o emprego,
ou até a própria vida antes do prazo normal de validade. Havia dois filhos, de quem sempre
gostou. O casamento já há muito que se tinha tornado rude, sem carácter.
       A figura do professor que gostava de ser tornou-se denegrida aos olhos da sociedade e
em particular, no seio da comunidade escolar. Todos tinham pena dele, ao mesmo tempo que
comungavam da opinião é-bom-rapaz-mas-o-triste-é-gostar-tanto-da-bebida.
       Tinha agora nas mãos – e pela primeira vez – a oportunidade soberana de ser o
homem que nunca foi. Não a deixou escapar.
       Sabia o que queria. Aceitou o internamento, na espectativa de ver resolvidas todas as
adversidades gratuitamente infligidas.
       Porque terá um tipo assaz bom rapaz, como o Manuel da Graça, deixado estatelar-se
neste tipo de desgraça voraz?
       Ao certo, ao certo, não o sabemos.
       O que sabemos é que – como qualquer outro animal – o animal autodito racional,
sendo produtor do meio ambiente também por ele é produzido (aliás, como qualquer planta)
mas, porém, todavia, contudo como produtor consegue muitas vezes – contra tudo e contra
todos – afirmar a verdade da sua vontade individual. Que o diga Galileu “Ai vocês pensam
que a Terra está parada? Pois fiquem sabendo que gira sobre si própria”. E como disse o
intelectual analfabeto António Aleixo:




                                               42
Não sou esperto nem bruto,
                              nem bem nem mal educado.
                              Sou simplesmente o produto,
                              do meio em que fui criado.




               Portalegre – Fábrica Robinson Bros. Laborou século e meio.




       Nunca um bebedor de 1ª categoria – como este rapaz o foi – deixa de consumir contra
a vontade própria e não há nenhum tratamento que resulte nesse sentido.
       Atrás desse milagre costuma andar a família do doente, sem resultado nenhum.
Acontece que o Manuel não acredita em milagres.
        O Manuel era, em exclusivo, um consumidor militantemente profissionalíssimo da
Vinicultura Portuguesa. Isto, ele sabia-o.
       O que talvez não soubesse é que sofria de uma doença permanentemente progressiva,
tendencialmente definitiva e insuportavelmente excessiva na perda de controlo.
       Para atingir o estado doentio a que chegou percorreu, como tantos outros, este
caminho: começou por uma fase pré-alcoólica; nunca foi um bebedor ocasional, ou
esporádico; rapidamente se tornou num bebedor regular, de consumo elevado, habituando-se
a grandes quantidades de álcool sem, no entanto, manifestar sinais visíveis de embriagues.
Fez parte da maioria dos bebedores habituados ao consumo desmesurado, cujo hábito em
geral é de origem familiar ou social.
       Teve perdas de memória por não conseguir lembrar-se no dia seguinte do modo como
chegou a casa, nem do que disse, nem do que fez.
                                             43
Apesar de não muito embriagado e – muito menos – em estado comatoso, mantendo-se até
em plena actividade, além desta amnésia temporária lhe ser muito desagradável, o não
alcoólico, de um modo geral, não a aceita nem a compreende.
          Intermitentemente tomava a resolução de não mais beber. No entanto, sem renunciar
às suas boas intenções, arriscava beber o suficiente, até chegar à embriaguês completa.
          Algumas vezes teve tentações de abstinência, experimentando beber moderadamente,
conseguindo deixar de beber durante uns dias, sonhando que podia deleitar-se com um copo,
para ficar rapidamente desapontado quando constata, a curto prazo, que não consegue ser um
bebedor moderado.
          Arranjou pretextos para beber desmedidamente, autojustificando os excessos,
arranjando sempre desculpas para a embriaguês.
          Bebeu muitas vezes isolado, duma forma anti-social, abandonando os amigos e – a
sós ou com desconhecidos – não parou de beber.
          Sofrendo de um complexo de culpa, acumulou remorsos e agravou a situação quando
começou a beber logo pela manhã, “para acalmar os nervos”, dizia.
          Passou a ter uma saúde precária. Vergando sem partir, nunca abandonou o emprego
nem foi convidado a ir para o olho da rua. Porém, quando o trabalho lhe estorvava o encanto
da possibilidade de beber como ele queria, sempre que a secura o apertava, dava folga ao
patrão.
          Desenvolveu alcoolemias elevadas, aprendeu a controlar os efeitos da embriaguês,
exercendo um controlo e uma vigilância do próprio comportamento.
          Ao atingir a fase crónica bebeu dias inteiros sem conta, peso e medida, semanas a fio.
Aprisionou-se em si próprio e – assim sozinho – nunca foi capaz de se libertar.
          A sua única preocupação estava concentrada – apenas e só – na bebida. A existência
era uma desistência.
          Não estupidificou. Não passou de rico a mendigo. Não roubou o pão aos filhos. No
entanto, para mal dos seus pecados, foi escravo do álcool. Por incrível que pareça, nunca teve
qualquer tipo de acidente de trabalho nem de viação.
          Tinha uma noção de tudo isto, ao mesmo tempo que gostava de o não ser. Sofria de
desdobramento de personalidade, arriscando a própria identidade.
          Uma coisa o rapaz nunca alimentou: o sonho do alcoólico – todo o bebedor excessivo,
sem excepção – pensa que depois do tratamento pode beber moderadamente. Não pode. A
Medicina ainda não fez esse milagre e aliás – como já se disse – o Manuel não acredita em
milagres.

                                                44
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota
A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Carijó e as Esmeraldas
Carijó e as EsmeraldasCarijó e as Esmeraldas
Carijó e as EsmeraldasNevas_Amaral
 
O ateu-ambulante-salma-ferraz
O ateu-ambulante-salma-ferrazO ateu-ambulante-salma-ferraz
O ateu-ambulante-salma-ferrazLRede
 
A ceia-dos-mortos-salma-ferraz
A ceia-dos-mortos-salma-ferrazA ceia-dos-mortos-salma-ferraz
A ceia-dos-mortos-salma-ferrazLRede
 
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 2
3   érico veríssimo - o arquipélago vol. 23   érico veríssimo - o arquipélago vol. 2
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 2Jerônimo Ferreira
 
Lendas do rio selho e do cutileiro e a boa água de guimarães
Lendas do rio selho e do cutileiro e a boa água de guimarãesLendas do rio selho e do cutileiro e a boa água de guimarães
Lendas do rio selho e do cutileiro e a boa água de guimarãesMaria Manuela Torres Paredes
 
2 érico veríssimo - o retrato vol. 2
2   érico veríssimo - o retrato vol. 22   érico veríssimo - o retrato vol. 2
2 érico veríssimo - o retrato vol. 2Jerônimo Ferreira
 
Maria da Silva e a Era do Não
Maria da Silva e a Era do NãoMaria da Silva e a Era do Não
Maria da Silva e a Era do Nãopamarangoni
 
Minha fama de mau erasmo carlos
Minha fama de mau   erasmo carlosMinha fama de mau   erasmo carlos
Minha fama de mau erasmo carlosTelmo Giani
 
Artur azevedo cavação
Artur azevedo   cavaçãoArtur azevedo   cavação
Artur azevedo cavaçãoTulipa Zoá
 
Contos phantásticos - Teófilo Braga
Contos phantásticos - Teófilo BragaContos phantásticos - Teófilo Braga
Contos phantásticos - Teófilo BragaLuciana Fernandes
 
O vampiro que descobriu o brasil ivan jaf-
O vampiro que descobriu o brasil   ivan jaf-O vampiro que descobriu o brasil   ivan jaf-
O vampiro que descobriu o brasil ivan jaf-Jussaney Ranielly Godoy
 
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 1
3   érico veríssimo - o arquipélago vol. 13   érico veríssimo - o arquipélago vol. 1
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 1Jerônimo Ferreira
 
DUAS HORAS MUITO LOUCAS I
DUAS HORAS MUITO LOUCAS IDUAS HORAS MUITO LOUCAS I
DUAS HORAS MUITO LOUCAS IWendell Santos
 
Caderno poemas 7_8_e_9_ano
Caderno poemas 7_8_e_9_anoCaderno poemas 7_8_e_9_ano
Caderno poemas 7_8_e_9_anoAELPB
 

Mais procurados (20)

Virgilio
VirgilioVirgilio
Virgilio
 
Bocage
BocageBocage
Bocage
 
Carijó e as Esmeraldas
Carijó e as EsmeraldasCarijó e as Esmeraldas
Carijó e as Esmeraldas
 
O ateu-ambulante-salma-ferraz
O ateu-ambulante-salma-ferrazO ateu-ambulante-salma-ferraz
O ateu-ambulante-salma-ferraz
 
A ceia-dos-mortos-salma-ferraz
A ceia-dos-mortos-salma-ferrazA ceia-dos-mortos-salma-ferraz
A ceia-dos-mortos-salma-ferraz
 
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 2
3   érico veríssimo - o arquipélago vol. 23   érico veríssimo - o arquipélago vol. 2
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 2
 
MACARIO
MACARIOMACARIO
MACARIO
 
Lendas do rio selho e do cutileiro e a boa água de guimarães
Lendas do rio selho e do cutileiro e a boa água de guimarãesLendas do rio selho e do cutileiro e a boa água de guimarães
Lendas do rio selho e do cutileiro e a boa água de guimarães
 
2 érico veríssimo - o retrato vol. 2
2   érico veríssimo - o retrato vol. 22   érico veríssimo - o retrato vol. 2
2 érico veríssimo - o retrato vol. 2
 
Maria da Silva e a Era do Não
Maria da Silva e a Era do NãoMaria da Silva e a Era do Não
Maria da Silva e a Era do Não
 
Machado de assis marcha fúnebre
Machado de assis   marcha fúnebreMachado de assis   marcha fúnebre
Machado de assis marcha fúnebre
 
Minha fama de mau erasmo carlos
Minha fama de mau   erasmo carlosMinha fama de mau   erasmo carlos
Minha fama de mau erasmo carlos
 
Artur azevedo cavação
Artur azevedo   cavaçãoArtur azevedo   cavação
Artur azevedo cavação
 
Contos phantásticos - Teófilo Braga
Contos phantásticos - Teófilo BragaContos phantásticos - Teófilo Braga
Contos phantásticos - Teófilo Braga
 
O vampiro que descobriu o brasil ivan jaf-
O vampiro que descobriu o brasil   ivan jaf-O vampiro que descobriu o brasil   ivan jaf-
O vampiro que descobriu o brasil ivan jaf-
 
Noturno
NoturnoNoturno
Noturno
 
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 1
3   érico veríssimo - o arquipélago vol. 13   érico veríssimo - o arquipélago vol. 1
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 1
 
Os Lusíadas - Canto III
Os Lusíadas - Canto IIIOs Lusíadas - Canto III
Os Lusíadas - Canto III
 
DUAS HORAS MUITO LOUCAS I
DUAS HORAS MUITO LOUCAS IDUAS HORAS MUITO LOUCAS I
DUAS HORAS MUITO LOUCAS I
 
Caderno poemas 7_8_e_9_ano
Caderno poemas 7_8_e_9_anoCaderno poemas 7_8_e_9_ano
Caderno poemas 7_8_e_9_ano
 

Destaque

Livro turma a
Livro turma aLivro turma a
Livro turma aPESES
 
Pidato ridwan 2224
Pidato ridwan 2224Pidato ridwan 2224
Pidato ridwan 2224ridwan
 
Presentacion de comunicación (teoría de la comunicación)
Presentacion de comunicación (teoría de la comunicación)Presentacion de comunicación (teoría de la comunicación)
Presentacion de comunicación (teoría de la comunicación)Hector Macia
 
Reyes cortazar cesar americo (si no lo conocen no existe).docx
Reyes cortazar cesar americo (si no lo conocen no existe).docxReyes cortazar cesar americo (si no lo conocen no existe).docx
Reyes cortazar cesar americo (si no lo conocen no existe).docxCésar Américo
 
Vimos Juan Analisis
Vimos Juan AnalisisVimos Juan Analisis
Vimos Juan AnalisisDreadMarcel
 
Desporto
DesportoDesporto
Desportomoises
 
Òrgans digestius al Laboratori
Òrgans digestius al LaboratoriÒrgans digestius al Laboratori
Òrgans digestius al LaboratoriPere Vergés
 
Jasvir certificates
Jasvir certificatesJasvir certificates
Jasvir certificatesJasvir Kumar
 
UIIPS, Reunião com os membros, 30-06-2011
UIIPS, Reunião com os membros, 30-06-2011UIIPS, Reunião com os membros, 30-06-2011
UIIPS, Reunião com os membros, 30-06-2011Pedro Sequeira
 
Taller de repaso 2
Taller de repaso 2 Taller de repaso 2
Taller de repaso 2 Samara Ruiz
 
Cumple Martin
Cumple MartinCumple Martin
Cumple MartinPaterna
 

Destaque (20)

Livro turma a
Livro turma aLivro turma a
Livro turma a
 
fredy
fredyfredy
fredy
 
Pidato ridwan 2224
Pidato ridwan 2224Pidato ridwan 2224
Pidato ridwan 2224
 
Definição do Objeto - L.Belluzzo
Definição do Objeto - L.BelluzzoDefinição do Objeto - L.Belluzzo
Definição do Objeto - L.Belluzzo
 
Presentacion de comunicación (teoría de la comunicación)
Presentacion de comunicación (teoría de la comunicación)Presentacion de comunicación (teoría de la comunicación)
Presentacion de comunicación (teoría de la comunicación)
 
Actividad no15 2do_parcial_lema_evelyn
Actividad no15 2do_parcial_lema_evelynActividad no15 2do_parcial_lema_evelyn
Actividad no15 2do_parcial_lema_evelyn
 
Actividad no16 2do parcial lema evelyn
Actividad no16 2do parcial lema evelynActividad no16 2do parcial lema evelyn
Actividad no16 2do parcial lema evelyn
 
Reyes cortazar cesar americo (si no lo conocen no existe).docx
Reyes cortazar cesar americo (si no lo conocen no existe).docxReyes cortazar cesar americo (si no lo conocen no existe).docx
Reyes cortazar cesar americo (si no lo conocen no existe).docx
 
Vimos Juan Analisis
Vimos Juan AnalisisVimos Juan Analisis
Vimos Juan Analisis
 
Desporto
DesportoDesporto
Desporto
 
Teoria shiatsu
Teoria shiatsuTeoria shiatsu
Teoria shiatsu
 
Diaporama Animé
Diaporama AniméDiaporama Animé
Diaporama Animé
 
EPICENTRO: Apresentação Gabriel Peixoto
EPICENTRO: Apresentação Gabriel PeixotoEPICENTRO: Apresentação Gabriel Peixoto
EPICENTRO: Apresentação Gabriel Peixoto
 
Òrgans digestius al Laboratori
Òrgans digestius al LaboratoriÒrgans digestius al Laboratori
Òrgans digestius al Laboratori
 
Jasvir certificates
Jasvir certificatesJasvir certificates
Jasvir certificates
 
UIIPS, Reunião com os membros, 30-06-2011
UIIPS, Reunião com os membros, 30-06-2011UIIPS, Reunião com os membros, 30-06-2011
UIIPS, Reunião com os membros, 30-06-2011
 
Aritha - Hi Magazine - March 2016
Aritha - Hi Magazine - March 2016Aritha - Hi Magazine - March 2016
Aritha - Hi Magazine - March 2016
 
Lector de codigo de barras
Lector de codigo de barrasLector de codigo de barras
Lector de codigo de barras
 
Taller de repaso 2
Taller de repaso 2 Taller de repaso 2
Taller de repaso 2
 
Cumple Martin
Cumple MartinCumple Martin
Cumple Martin
 

Semelhante a A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

Padre Américo
Padre AméricoPadre Américo
Padre Américokyzo
 
Machado de-assis-o-alienista
Machado de-assis-o-alienistaMachado de-assis-o-alienista
Machado de-assis-o-alienistaestudante
 
Lp e literatura brasileira
Lp e literatura brasileiraLp e literatura brasileira
Lp e literatura brasileiracavip
 
HISTORIAS DA ARCA DO VELHO
HISTORIAS DA ARCA DO VELHOHISTORIAS DA ARCA DO VELHO
HISTORIAS DA ARCA DO VELHOCoelho De Moraes
 
acidadeeasserras.docx
acidadeeasserras.docxacidadeeasserras.docx
acidadeeasserras.docxIsabel273720
 
A cidade e as serras
A cidade e as serrasA cidade e as serras
A cidade e as serrasFlávio Mello
 
As Cidades & as Serras | Eça de Queiróz
As Cidades & as Serras | Eça de Queiróz As Cidades & as Serras | Eça de Queiróz
As Cidades & as Serras | Eça de Queiróz Leandro Montino
 
A árvore que dava dinheiro domingos pellegrin
A árvore que dava dinheiro   domingos pellegrinA árvore que dava dinheiro   domingos pellegrin
A árvore que dava dinheiro domingos pellegrinAlessandra souza
 
A cidade e as serras
A cidade e as serrasA cidade e as serras
A cidade e as serrasCaio Melo
 
A cidade e as serras
A cidade e as serrasA cidade e as serras
A cidade e as serrasJairo Valenti
 
A Cidade e as Serras
A Cidade e as SerrasA Cidade e as Serras
A Cidade e as SerrasMateus Lemos
 
A cidade e as serras, de eça de queirós
A cidade e as serras, de eça de queirósA cidade e as serras, de eça de queirós
A cidade e as serras, de eça de queirósLucas Freire
 
A Cidade e as Serras - Eça de Queirós
A Cidade e as Serras - Eça de Queirós A Cidade e as Serras - Eça de Queirós
A Cidade e as Serras - Eça de Queirós FabsVitti
 

Semelhante a A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota (20)

Padre Américo
Padre AméricoPadre Américo
Padre Américo
 
16
1616
16
 
Cidadeserras
CidadeserrasCidadeserras
Cidadeserras
 
Machado de-assis-o-alienista
Machado de-assis-o-alienistaMachado de-assis-o-alienista
Machado de-assis-o-alienista
 
O alterense 28
O alterense 28O alterense 28
O alterense 28
 
Papeis avulsos
Papeis avulsosPapeis avulsos
Papeis avulsos
 
Lp e literatura brasileira
Lp e literatura brasileiraLp e literatura brasileira
Lp e literatura brasileira
 
Novelas do Minho
Novelas do MinhoNovelas do Minho
Novelas do Minho
 
HISTORIAS DA ARCA DO VELHO
HISTORIAS DA ARCA DO VELHOHISTORIAS DA ARCA DO VELHO
HISTORIAS DA ARCA DO VELHO
 
Bertolt brecht antologia poética
Bertolt brecht   antologia poéticaBertolt brecht   antologia poética
Bertolt brecht antologia poética
 
acidadeeasserras.docx
acidadeeasserras.docxacidadeeasserras.docx
acidadeeasserras.docx
 
A cidade e as serras
A cidade e as serrasA cidade e as serras
A cidade e as serras
 
As Cidades & as Serras | Eça de Queiróz
As Cidades & as Serras | Eça de Queiróz As Cidades & as Serras | Eça de Queiróz
As Cidades & as Serras | Eça de Queiróz
 
A árvore que dava dinheiro domingos pellegrin
A árvore que dava dinheiro   domingos pellegrinA árvore que dava dinheiro   domingos pellegrin
A árvore que dava dinheiro domingos pellegrin
 
O alienista
O alienistaO alienista
O alienista
 
A cidade e as serras
A cidade e as serrasA cidade e as serras
A cidade e as serras
 
A cidade e as serras
A cidade e as serrasA cidade e as serras
A cidade e as serras
 
A Cidade e as Serras
A Cidade e as SerrasA Cidade e as Serras
A Cidade e as Serras
 
A cidade e as serras, de eça de queirós
A cidade e as serras, de eça de queirósA cidade e as serras, de eça de queirós
A cidade e as serras, de eça de queirós
 
A Cidade e as Serras - Eça de Queirós
A Cidade e as Serras - Eça de Queirós A Cidade e as Serras - Eça de Queirós
A Cidade e as Serras - Eça de Queirós
 

A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

  • 1. A FORTALEZA QUE SE LEVANTA DA DERROTA
  • 2. ÍNDICE Índice........................................................................................................................2 Anti-errata.................................................................................................................3 Prefácio……………………………………………………………………….........4 Introdução à música………………………………………………………………..5 Abertura em Dó Menor…………………………………………………………….6 Dança de roda…………………………………………………………………….12 Desafinação aguda………………………………………………………………..18 Clave de fá (do)…………………………………………………………………...29 Clave de sol……………………………………………………………………….46 Valsa triste..............................................................................................................73 2
  • 3. Anti-errata Feitas, refeitas e contrafeitas as correcções gráficas desta autobiografia, de cada vez que se fazia, refazia e contrafazia, sempre uma “gralha” aparecia. Não nos atrevemos, pois, a pôr aqui uma errata, porque, lògicamente, ela própria podia ter erros. Confiamos inteiramente na capacidade de descodificação – hetero-correcção por parte do prezado leitor que, aliás, não é burro nenhum, porque – repita-se – se o fosse, não iria ler esta história. 3
  • 4. PREFÁCIO Não tendo tido a graça de ser nado e criado no Portugal propriamente dito que, desde Afonso Henriques, é Lisboa e o resto é paisagem e tendo tido, portanto, a desgraça de nascer e crescer na restante paisagem, ainda por cima no Alentejo dos “mouros” tão sornas que só por milagre se poderá entender a produção das searas, cujas, em tempos idos faziam do Além-Tejo o celeiro da Europa [mas graças a Deus nos nossos dias europeus de Bruxelas e Bijeus o Alentejo está mais civilizado com as quotas de produção da “sociedade de mercado” (que sociedade não é de mercado?)] e então Manuel da Graça imigrou neste cantinho ocidental da Europa, país de brandos-costumes, jardim à beira-mar plantado (com Jardim na Madeira democraticamente eternizado) andou pelo Cu de Judas; estanciou no Porto que é uma nação e daí o nome de Portugal, o país mais português do mundo; acabando por se fixar em Coimbra, capital portuguesa da cultura, porque aqui quem não é doutor fala com quem é doutor e quem não fala com quem é doutor fala com quem fala com quem é doutor e deste modo o Manuel, aprendendo umas coisas na escola da vida e ensinando outras na escola formal, dá agora à estampa A Fortaleza que se levanta da derrota cuja, não sendo candidata ao Prémio Nobel da Literatura tem, todavia, estilo literário cabonde, que ultrapassa, de longe, a temática restrita do alcoolismo e do seu público destinatário, através da ironia de apontamentos psico-sociais de personagens como a Avó que, não sabendo ler nem escrever e ignorando o que quer que fosse de códigos esotéricos, sabia descodificar as horas nos hieróglifos do relógio de sala, gravados com riscos esquisitos no mostrador (I, II, III, etc.) e não como o Manuel aprendera na Mestra como deve ser (1, 2, 3, etc.) ou a proeza aritmética do Tio Catorze que, igualmente analfabeto toda a vida, conseguiu aprender a contar até 14, daí lhe advindo a garbosa alcunha, ou a ética financeira elementar da terminante recusa de pagamento do quarto alugado pelo Manuel, porque quem lá dormira fora a mala e não o dono dela e, assim sendo, era ela e não ele a devedora do numerário exigido pela credora. Coimbra, 27 de Dezembro de 2008 Severo de Melo 4
  • 5. INTRODUÇÃO À MÚSICA A Fortaleza que se levanta da derrota é a história de vida de um homem que foi bebedor inveterado até aos trinta anos. Com esta idade, bem municiado de tudo o que fosse artilharia alcoólica e após várias observações médicas, admitiu ser um doente e, mesmo sem saber como, concordou com o respectivo tratamento. Confiou naquele médico invulgar que o examinou, o Dr. Leitão de Barros e aceitou em Lisboa, no Verão de 79, internamento de trinta dias no Centro António Flores, Hospital Júlio de Matos. Muito tempo levara a adquirir a força necessária para naquele dia ter a coragem suficiente de fazer a mala e partir. O enófilo de carreira virou navegante de primeira viagem e foi parar ao hospital. Apesar dos anos de balda não era com aquela triste figura que se queria identificar. Sabia que o vinomaníaco era, no mínimo, um homem muito limitado e isso incomodava-o. Quis, por isso, aproveitar a oportunidade que lhe surgiu de vir a ser outra pessoa. Ninguém lhe pagou nem o premiou por tomar tal decisão. Fê-lo espontaneamente. Não é de ânimo leve que um homem concorda em deixar – para o resto da vida – de devorar bebidas alcoólicas em quantidade industrial, como ele o fizera durante vinte anos. Foi, sem margem para dúvidas, um activista militante da Vinicultura Portuguesa. As pessoas habituaram-se a identificá-lo exactamente com aquilo que ele era: um vinolento. Quem o conhecia dificilmente aceitava que este fabiano pudesse mudar para melhor. Teve que aprender a defender-se das mentalidades somíticas que, não tendo discernimento para alterar o rumo da própria vida e acomodando-se à mediocridade da sua existência, não tinham capacidade para compreender e aceitar quem muda de direcção. No entanto este homem nunca desistiu e ofereceu resistência a tudo e a todos. Trinta anos depois vem contar, na linguagem que lhe é característica – com a qual procura explicar sorrindo e com prazer – a evasão da prisão perpétua a que fora condenado. Não lhe passando pela caixa dos pirolitos ser exemplo moralista para ninguém, o desejo deste comum dos mortais é contar para a eventual posteridade uma história que possa fornecer ao leitor materiais de construção para uma Fortaleza que se levanta da derrota. Cordialmente, o autor, Manuel da Graça 5
  • 6. ABERTURA EM DÓ MENOR Decorria a Primavera do Ano de MCMXLIX da Era de Cristo. Naquela tarde de quarta-feira – 4 de Maio – nasceu na Casa de Saúde de Portalegre, freguesia de S. Lourenço – concelho e distrito da mesma cidade – um menino, filho de Domingos da Rosa Félix da Graça e de Maria Monteiro Fragoso, sendo ao bebé dado o nome de Manuel Francisco Fragoso da Graça e apadrinhando o acto Manuel Marques e Mariana da Conceição. O gaiato cresceu no campo embalado na ondulação da farta seara alentejana, criado no monte – ao sabor do tempo e com o gosto das coisas campestres – na Herdade da Vinha, propriedade do então lavrador Senhor José Elias Martins, onde moravam e trabalhavam a terra, a mãe camponesa e o pai operário. O garoto era livre na brincadeira, de que a apanha da azeitona, a monda do trigo e a ajuda aos pais no trabalho eram pagode. O que mais gostava de fazer era regar, enxada nas mãos, pé descalço pelo rego, abrindo e fechando regadeiras. Se fosse preciso até regava a horta toda. Acima de tudo era disciplinado, porque os pais analfabetos aprendiam na escola da vida a pedagogia social da educação. Uma das fainas agrícolas que mais o fascinava era a lavoura. Esquecia-se, sentado numa parede, a olhar os ganhões que lavravam com juntas de bois, apreciando – sem pestanejar – o virar do arado, ao mesmo tempo que os homens cantavam: “Ò morte anda cá, anda cá, Delicado é o ganhão, Quero-te dar as queixas. Que chama ao toucinho bóia. Quem não deves levar, levas, Ao pão de Deus marrocate, Quem deves levar cá deixas. E à açorda, calatróia. Eu sou devedor à terra. A terra me está devendo. A terra pague-me em vida, Eu pago à terra em morrendo.” 6
  • 7. Na casa em Portalegre também havia uma horta. Para ser regada, o rapaz ia buscar um burro a casa de um tio, a fim de tirar água à nora. Engatava o burro à carroça, assim fazia o trajecto e por vezes, os colegas gozavam-no “Passaste de cavalo para burro?” No final da rega e já depois de ter entregue ao tio a carroça e o burro, mudava de roupa e agora de motorizada, voltava a descer a Rua do Comércio, para estacionar o velocípede à porta do Café Facha, onde entrava com descontracção, estupidez natural e elegância no andar, para beber um café e um bagaço. Nunca ninguém foi suficientemente corajoso para interpelar o hortelão engravatado que sabia ser. O Manuel pelos dois anos de idade O primo Zé – um solteirão que fazia parte da família, com o qual o miúdo sempre teve um relacionamento porreiraço – ensinou-o a andar de bicicleta, ainda mal chegava aos pedais, no caminho de terra batida de acesso ao monte, depois de se deixar a estrada nacional. Ao mesmo tempo que queria aprender a pedalar, tinha medo de cair e só o perdeu quando o primo o deixou mergulhar, de propósito, sobre uns torrões de terra lavrada que lhe amorteceram a queda. Finalmente cresceu-lhe a confiança de que precisava e foi para a via de alcatrão praticar, pois naquele tempo passava um automóvel de manhã, outro à tarde e nenhum à noite, que era de agasalho. Quem havia de dizer que, anos mais tarde, seria com aquela mesma máquina que se iria estrear e aprender a andar na tão querida e bem avinhada vida nocturna?... 7
  • 8. Com catorze anos naquela burra a pedal, começou a ir aos bailes à Urra e a Caia, ao Reguengo e a Alegrete, aos Fortios e a Nisa, a Monforte e Assumar, quase sempre com o Caetano, com o qual aprendeu a dançar e a fumar e se não tinha tabaco o amigo passava-lhe um cigarro de quando em vez pelo intervalo das vigas do tecto do quarto, quando residiu nos Telheiros, pois moravam de casas pegadas e a parede era comum a ambos os aposentos. Embora não fizesse parte da família e com domicílios separados, no monte habitava um idoso, que não tinha parentes e – como a azinheira da “Grândola, vila morena” do Zeca Afonso – já não sabia a idade. Falava muito sozinho e pouco fazia, a não ser granjear comida para o gado e pouco mais. Conseguindo contar até catorze, era conhecido pela galharda alcunha do Ti Quatorze. O Manuel gostava de falar com ele e de o acompanhar à cidade, quando lá iam de carroça, puxada pelo molengão do burro, que o bom idoso lhe deixava conduzir, o que dava ao miúdo um sentimento de poder, concretizado no comando da viatura. Aos cinco anos o rapazinho foi para a Mestra, na cidade, a cinco quilómetros do monte onde habitava. Ia na manhã de segunda-feira no transporte público regular, ficava em casa da avó paterna durante a semana e regressava ao campo na sexta à tarde, quase sempre com o pai, que voltava da fábrica. O almoço era umas vezes em casa da anciã e outras com o pai na Taberna da Tia Inês do Cuco, que ficava mesmo junto à fábrica. Em casa da avó havia sobre uma cómoda um relógio grande de caixa de madeira trabalhada, com o vidro da porta artisticamente pintado, que fazia parte da precária mobília da anciã. Aquele grilo fazia uma certa confusão na cachimónia do miúdo, por no mesmo não saber ver as horas. Os números não eram iguais aos que a menina Madalena lhe tinha ensinado na Mestra. Não, não eram árabes… Eram romanos! E mais admirado ficava por a avó, sem saber ler nem escrever, lhe saber ler as horas, nos riscos do zanzo. Quem havia de dizer que, cinquenta anos depois, é ele que dá corda ao aparelhómetro, única relíquia que lhe resta daqueles tempos de menino e moço... Na capelinha da tia Inês do Cuco, onde o pequeno tomou gosto ao vinho branco e deu os primeiros passos na carreira de bebedolas com os trabalhadores que naquela venda faziam a refeição do meio-dia, todos o consideravam capaz de superar a dificuldade que o pequeno tinha em chegar ao balcão mais alto do que ele e ficavam extasiados com a ligeireza com que invertia de uma só vez um copo de cinco, assim chamado, por custar 5 tostões (para quem não percebe patavina destes câmbios, ¼ de cêntimo). 8
  • 9. Praticando e aprendendo ao longo de vinte anos chegou à perfeição científica da copologia, atingindo o escalão profissional de copofónico e ocupando honrosos lugares na arte de vira-milho de garrafas, garrafinhas e garrafões. Na Mestra, fazendo as primeiras contas e aprendendo as primeiras letras, fazia a junção das mesmas em casa, praticando nos livros de còbois, escritos num português que ainda honrava a língua de Camões e de fazer inveja aos livros escolares de hoje, que nem para atear as cavacas servem – negam-se a arder – sabendo interpretar a leitura, era livre no divertimento costumeiro com o irmão mais novo, brincando com ele aos bandidos. O Manuel montava a azémola do bandido a fugir do xerife, o irmão, representando a herdade o Far-west americano, na qual passava uma ribeira, que a cabeça do aprendiz de galdério interpretava como fronteira América-México e, ao passá-la, sentia-se seguro, pois o irmão já não podia prendê-lo. O culto de Baco progredia. Quando almoçava com o pai davam-lhe sempre aquela tal medida e se o respectivo copo não aparecesse ficava amuado, encostado ao balcão, mudo e quedo que nem um penedo. O Ti Zé tasqueiro adivinhava: “Não deste um copo ao gaiato, aí tens o que ele quer…” E era. Davam-lhe então um de cinco e ia feliz da vida para a brincadeira na rua. Com sete anos entrou para a Escola Primária, fez a primeira e segunda classes na escola da Corredora e a terceira na escola da Estrada da Serra. No intervalo das aulas nunca jogou à bola. Sentado num canteiro, presenciava o jogo e guardava os haveres dos outros miúdos. Querem saber porquê? Uma vez andava a brincar na esplanada do Café Vitória e em dado momento viu entrar um polícia fardado, que retirou o crachá e o meteu no bolso. O gaiato não percebeu e parou a brincadeira para observar o que o bófia ia fazer. Este dirigiu-se ao balcão, pediu um copo de branco, virou-o de uma assentada, pagou e, ao encaminhar-se para a saída, voltou a pôr a insígnia. Antes, porém, de transpor a porta, parou junto de uma mesa onde estavam sentados quatro indivíduos em renhida disputa na velha questão de salvação da Humanidade fado-futebol-e-fátima. O guarda, que não era perdido nem achado naquele debate, meteu o bedelho e as coisas deram para o torto. Tanto encanzinou a conversa que, a certa altura, um conviva perdeu as estribeiras e chegou-lhe a roupa ao pelo. A fim de manter a autoridade, o agente deu voz de prisão aos civis e foram todos de cana. 9
  • 10. Foi um festim para a garotada, que agaiatou o acontecimento pelas ruas até à esquadra, onde, passado algum tempo, ficou o patrocinador do evento e os civis retomaram a gandaia. Moral da história: por causa da bola, o guarda saiu-se mal. Melhor seria ter entrado no Café a aliviar a sede e ter saído sem se meter onde não era chamado, para não passar pelo vexame que a insânia lhe provocou, até porque, por causa disto, mais tarde foi transferido. Ficando gravado na cabecinha do Manuel, este episódio desinteressou-o para sempre de assistir a tudo o que fosse bola. Enquanto os demais miúdos saltavam a parede do campo e outros faltavam às aulas para ir ver os treinos, o Manuel nem na hora do recreio ia em futebóis, limitando-se a observar os colegas, sentado num dos canteiros que ladeavam a porta da escola da Corredoura, onde foi gratificado com o talento da Dona Mimi – professora da quarta classe, que o preparou para o exame de admissão – cuja Senhora sabia tanto da poda que – meio século depois – o Manuel ainda dela se recorda tão bem como se tivesse sido ontem. Os quatro anos de ensino primário não chegavam para prosseguir os estudos. Como se ao aluno lhe faltassem conhecimentos, tinha de fazer um exame de admissão à Escola Industrial e Comercial e/ ou ao Liceu Nacional, havendo quem fizesse o exame aos dois estabelecimentos de ensino, porque vale mais um pássaro na mão que dois a voar: se chumbasse num deles, podia bem ser que passasse no outro. O exame de admissão não era nada fácil – era o filtro da época, tal como hoje os décimos anos o são – até lhe chamavam a quarta classe bem sabida. Reprovar era igual a trabalho no campo ou na fábrica. Não havia mais consideração pelo estudante, porque naquele tempo os alunos contavam-se pelos dedos de uma mão e eram bem conhecidos dos professores. Embora miúdo e com a cabeça em vinha-d`-alhos, o Manuel aprendeu a dar valor ao trabalho, começando a observar que nem todos os rapazes da idade dele tinham a possibilidade de estudar e o Caetano foi um dos tais que toda a vida trabalhou no campo. Aos pais ficou o Manuel eternamente agradecido pela oportunidade que lhe deram de um dia o mandarem à escola. Naquele tempo, para quem colhia no campo o pão-nosso-de-cada-dia, pôr um filho a estudar era uma ginástica bem difícil, ainda por cima agravada pela inveja dos unhas de fome que, com algum dinheiro e poder, não mandavam estudar os filhos para além da quarta classe, pois tal não era necessário para se arranjar trabalho nas fábricas e ser operário na Finicisa até era um luxo, dizia-se. 10
  • 11. No entanto, os pais do Manuel viam mais longe e o rapaz chegou onde nunca pensou chegar: professor efectivo de Trabalhos Manuais do Ensino Preparatório. 11
  • 12. DANÇA DE RODA Nessa época dominava o conceito sócio-matemático de que a Escola Industrial estava para os pobres como o Liceu Nacional estava para os ricos, mas com dez anos, o nosso Manuel não saberia fazer a correlação, sabendo no entanto dizer que só queria fazer exame à Escola e assim foi. Preparou-se para a prova com a querida professora da quarta classe, Dona Mimi e o marido desta, o senhor Coelho, uma figura que sabia muito de Língua Portuguesa e que instruiu o Manuel no idioma que ainda hoje não esqueceu. A verificação de conhecimentos do exame de admissão constava da prova escrita, em duas páginas de papel de trinta e cinco linhas e da prova oral, cuja o rapaz nunca esqueceu. Foi o próprio Director da Escola que, ao chamá-lo, o sentou ao colo e lhe fez perguntas sobre o mapa de Portugal e, porque se chamava Manuel, o professor perguntou-lhe pelos reis da História com o nome do rapaz, cujo só sabia o Manuel I, ficando pois a História de Portugal manuelinamente prejudicada a 50%. Este relacionamento afectuoso deu origem a que o Manuel não-monarca ficasse sempre a gostar daquele docente e, sempre que se cruzavam, o rapaz estendia a mão para cumprimentar o Senhor Director, que uma vez lhe perguntou o porquê desta saudação, respondendo-lhe o cachopo que era uma retribuição pela boa lembrança de ele o ter sentado ao colo no supra dito exame. E assim ficaram de bom relacionamento durante a meia dúzia de anos que o rapaz frequentou aquele estabelecimento de ensino. Tal como hoje, o Ciclo Preparatório tinha a duração de dois anos. Do primeiro para o segundo ano o aluno transitava com o mínimo de vinte e nove valores, que era a soma das notas dos três períodos em cada disciplina. Vinte e oito numa delas e o estudante reprovava o ano completo, ou seja, não se chumbava por disciplinas. No final do segundo ano fazia-se obrigatoriamente exame de Língua Portuguesa e de Matemática. Do mesmo modo tinham que arranjar na mesma os mesmos vinte e nove valores a cada cadeira que, aliás, não salvavam o discípulo se reprovasse numa delas. O Manuel dispensou da oral de Português com catorze – aquela quarta classe bem sabida deu frutos – porém, em Matemática, andava um bocado à rasca – até por causa da tasca – mas fez uma prova escrita menos rasca com a ajuda da Dona Lúcia Malcata, por ter tido um professor tão bom, tão bom, que até lhe fez esquecer o que já sabia fazer com olhos de ver: operações de fracções. 12
  • 13. Na prova oral, foi um regalo ouvir o professor José Nunes a dizer que o aluno não percebia um chavo de Matemática, no entanto, tinha que se passar, senão nunca mais fazia um curso. E assim foi. Meia dúzia de perguntas sobre figuras geométricas e o problema da Matemática ficou aritmeticamente resolvido. As Escolas Industriais e Comerciais proporcionavam aos alunos os cursos de: Formação Feminina, só para raparigas e Geral de Comércio, comum aos dois sexos; Montador Electricista, Carpinteiro Marceneiro e Formação de Serralheiro, só para rapazes. Por sugestão da chefe da secretaria, a Dona Regina, o Manuel matriculou-se no Curso Geral de Comércio. Porém e por incúria própria, esqueceu-se que não sabia nem um, nem dois, nem três chavos de Matemática e o Curso tinha um cadeirão chamado Cálculo Comercial, leccionado por aquele pedagogo que o passou ao colo naquela oral e que tinha por hábito dizer aos alunos, quando não davam uma p’rà a caixa na matéria que era exímio a ensinar “Vocês não percebem nada disto, o Cartucho que o diga”. Cartucho era a alcunha do professor por quase não ter pescoço e que – para pasmo dos alunos – ele conhecia muito bem. Resultado: no final do primeiro período o Manuel considerou-se chumbado, pelo número de negativas obtidas, que lhe fizeram perder o interesse pelos estudos. Para um rapaz de treze anos esta indiferença tornou-se perigosa. Passou a ir somente às aulas de que gostava e nos feriados que dava aos professores ia, com as más companhias da praxe – quando tinha dinheiro – até ao Café da Praça, muito perto da escola, virar umas aguardentezinhas. O gosto do vinho branco já o conhecia e era fraco, dizia. O Arnaldo, camarada do Manuel e colega da mesma turma, vivia totalmente desinteressado da escola e ambos passaram a ser abnegados e devotados faltistas militantes. Neste contexto, a saga deste grogue heróico começou a tomar forma. O Manuel passou a dispor de tempo para conhecer a cidade, ou seja, saber onde eram os escoamentos de vinho, cerveja e tudo o que fosse bebida branca. Entrava sem ser convidado a sair. Foi uma aprendizagem rápida para a idade e como reprovou comemorou o facto com o Arnaldo e outros da mesma estirpe, fazendo o Rali das Tascas, que começava e acabava ciclicamente no Café da Praça. Quando chegou ao Café, o rapaz sentou-se à chuva, na maior das descontracções. Os amigos é que o recolheram. Anos mais tarde quis repetir o Rali, sem no entanto ser capaz de o terminar, porque as betesgas do briol tinham triplicado e o rapaz ficou alcoolicamente bem disposto a meio do percurso. 13
  • 14. No ano seguinte matriculou-se – com gosto – no Curso Formação de Serralheiro. Deixou de andar com o Arnaldo e passou a acompanhar com o Abílio, mais conhecido por Pa-a-ar-da-linho, porque, além de ser gago, era ainda mais moinante e desprendido da escola que o outro. Com este novo sabido, o Manuel passou a andar nos bailes, festas, romarias e noites perdidas. Começou a olhar para as cachopas e o objectivo de cada baile era, por aposta, pedir namoro a uma moça. Quando não conseguia este propósito, ou porque elas não lhe aceitavam o galanteio, ou porque o baile tinha mais rapazes que raparigas, dava-se por vencido e ia para os copos com os mais velhos, com os quais sempre soube manter um bom relacionamento, em qualquer localidade para onde quer que fosse. Não reprovou neste ano lectivo, porque estava no curso que preferia, mas transitou de ano à rasca. A surpresa veio depois: não passou as férias no monte, como era hábito, o pai arranjou-lhe trabalho na fábrica onde laborava. O rapaz ainda o questionou: - Então o ano passado é que chumbei e este ano é que vou trabalhar? - O ano passado não precisavam de serralheiros. Este ano é que precisam. E lá foi o cachopo de catorze anos – não, não era então considerado exploração de mão de obra infantil, restando saber, porém, se os adultos não são igualmente explorados – parar ao mundo do trabalho como aprendiz de torneiro mecânico, a fazer oito horas e a ganhar sete escudos e sete tostões à jorna (menos de quatro cêntimos). O rapaz não sabia o que havia de fazer a tanto dinheiro. Recebia à sexta-feira e como o caminho para a baiuca da Tia Inês do Cuco era a descer e a descer todos os santos ajudam – para cima é só um e é coxo – era ali que fazia o câmbio de algum dinheiro por carapulos de quarto de litro, com outros serralheiros que, como ele, não gostavam nada de ver os copázios cheios. Ali trabalhou as férias do Verão e o que ganhava chegava-lhe para a berzundela. Pelos Santos Populares fez directas consecutivas. Saía às cinco da tarde da fábrica, corria a casa mudar de roupa, jantar e ir de seguida para os bailaricos até de manhã. 14
  • 15. Diagrama da casa de família em Portalegre. Fazia o percurso de bicicleta, mesmo que tivesse que pedalar vinte quilómetros para cada lado, quando o baile era no Assumar. A distância e a perigosidade do caminho – ao longo da via-férrea, cruzando-se com o pú-pú das 5 da manhã – nunca lhe meteram medo. Sozinho ou acompanhado, o que interessava era ir ao baile. Passava por casa para mudar de fardeta, vestia o fato-macaco e lá ia para a fábrica, onde tinha que estar religiosamente ao alvorecer das oito horas, sob a vigia do pai, que nunca o deixou ir para a cama depois de três directas seguidas. À quarta arreou o esqueleto. Foi assim durante os meses de Julho, Agosto e Setembro. Estávamos em 64. Quando mais tarde o pai lhe permitiu substituir a bicicleta pela motorizada, passou a ir a três bailes na mesma noite. O Barradas de Caia ensinou-lhe a desligar o conta- quilómetros, para marcar só os que o pai podia saber. Entretanto, esqueceu-se que gastava mais gasolina, o que levou o pai a colocar-lhe o seguinte problema de Matemática: “Como é que só andaste estes quilómetros e gastaste a gasolina que aqui falta?!...” Na primeira oportunidade resolveu o problema: o ciclomotor passou a trabalhar a petróleo, mais barato que a gasolina, cujo não faltava lá em casa por ser o combustível dos candeeiros, passando a ter outro problema: o escape fazia muito fumo. 15
  • 16. Uma vez foi o agente Ramalho do posto da Polícia de Viação e Trânsito que lhe chamou à atenção para o facto e aos seus quesitos lhe foi respondido que no próximo fim-de-semana o escape já seria limpo. E não pagou a multa. Aliás, nunca mais pagaria. O senhor Clemente – de acordo com o nome de clemência de baptismo, também morador nos Telheiros e da mesma polícia agente – tinha a prévia amabilidade social de avisar o Manuel e sua maralha sobre a escala de serviço do dito posto e, posto isto, o serviço de Deus, da Pátria e da Família, zelosamente desempenhado pelo subchefe Santos e pelo agente Ramalho, ficava estrategicamente sabotado pelo Manuel e respectivos moinantes, ao contornarem o posto pelo olival, quando vinham dos bailes quase de dia, uns sem luz, outros sem documentos, quase todos bêbedos. Embora boémio e encandeado pelas luzes da vida nocturna, aprendendo, no entanto, o rapaz a trabalhar – e o que fazia, fazia-o bem feito – depressa se tornou exímio no torno mecânico. De todas as máquinas com que operou na escola, o torno foi aquela que mais o fascinou, no qual arredondou madeira, ferro, aço e – por incrível que pareça – numa manhã torneou e abriu uma catrèfada de carretos em ferro fundido sem partir nenhum, mesmo que estivesse a cabecear agarrado à máquina, como acontecia muitas vezes, sem nunca se ter ferido, arrelampando os olhos no momento crucial do ferro de corte a bater na bucha do torno e por instinto, desligava o automático. Quando não tinha trabalho definido, torneava pedaços de madeira, previamente afeiçoados na carpintaria em paralelepípedos, dos quais saíam cabos para limas, nunca demais numa fábrica como era a Robinson Bros. Apesar de pândego, este sucesso no trabalho não passou despercebido ao Mestre da Oficina, que – apertado pela carência de serralheiros, obrigatoriamente incorporados na tropa e seguindo depois para a Guerra Colonial – disse mais ou menos assim ao pai do Manuel: - O rapaz ajeita-se e eu preciso de torneiros, porque se me vão embora três mancebos para o serviço militar. - Está bem, senhor mestre Félix, ele fica cá e vai estudar à noite. Quando o Manuel soube desta novidade ficou desaparafusado de todo e foi falar com a mãe: - Ó mãe, se eu vou para a noite, nunca mais faço o Curso. - Então porquê? 16
  • 17. - Porque os bailes são ao sábado, nessas noites também há aulas e eu só posso dar três faltas. Quando der quatro, estou chumbado. Não sabendo o Manuel o que é que a mãe foi falando com o pai, a verdade é que o rapaz não ficou na fábrica, continuando os estudos de dia por mais dois anos para acabar o raio do curso, porém – envolvido com a maltosa da sua laia e com quatro disciplinas de exame às costas – viu-se aflito no quarto ano. Foi o José Américo que lhe chamou à atenção “Se não deixas de andar com o Pardal, chumbas tu e ele” e, antes que tal acontecesse, acatou o conselho e lá conseguiu ir fazendo as provas. E – à risca, à rasca e às roscas – acabou o curso aos dezasseis anos com a classificação de 10,8, porque só ia estudando para ir passando e a cabeça avinagrada também não dava para mais. 17
  • 18. DESAFINAÇÃO AGUDA Mais ou menos por esta altura e ainda estudante, reparou numa miúda, sua vizinha e colega no Curso de Formação Feminina, que o rapaz, infelizmente, não frequentava. Por uma razão biológica natural, o Curso de Formação Feminina era frequentado pelas raparigas e não pelos rapazes. Amigos, amigos, negócios à parte, rapazes e raparigas eram separados em turmas femininas e turmas masculinas, de onde se conclui que o cristianismo oficial de Deus- Pátria-Família não é assim tão antagónico do islamismo oficial de Alá e Maomé Seu Profeta, havendo pois necessidade de dar formação específica às mulheres e de não a dar aos homens, porque estes já são bem formados à nascença e daqui a obvia desnecessidade de um Curso de Formação Masculina. O Manuel gostou da cachopa e a cachopa gostou do Manuel. Porém, todavia, contudo – como acabou de se ver e como desde tempos imemoriais é sabido – a mulher tem pacto com o Diabo e foi um caso dos diabos. Namoriscavam às escondidas, também porque o rapaz tinha pacto com o diabo da vinhaça, o que não era visto com bons olhos pela família da moça, agravado o caso pela situação de bigamia dos dois amores do rapaz: a moça e o briol. Acompanhava a namorada desde a saída da Escola até ao local onde a Lurdes apanhava o transporte para casa. Como sempre, o Manuel ia de bicicleta e se queria acompanhar a pequena na camioneta, tinha que enganar os tios onde deixava o velocípede durante o dia. Trocava a lâmpada da luz traseira por uma fundida, cuja trazia sempre no bolso e, como não podia passar no posto da Polícia de Viação e Trânsito sem aquela luz, pois nem sempre sabia onde é que estava o tal agente Ramalho – se no Posto ou na estrada – que era mau como qualquer ordinário. Uma vez autuou o próprio pai por não levar luz na carroça. A tia dava-lhe vinte e cinco tostões (menos de cêntimo e meio) para o transporte, que era bem mais barato que a multa e fazia o rapaz feliz, sem o saber, por ir para casa na companhia da gaiata. O namoro durou sete anos e – variando em relação inversamente proporcional entre o escalão etário e a capacidade racional – foi sempre um enamoramento descontente para a Lurdes, pelo procedimento do Manuel que, quanto mais velho era, menos juízo tinha na mona e continuava fazendo o que mais ia gostando: andar nos bailaricos dos fins-de-semana a namoriscar as moças que lhe aprovavam o passatempo, mas o rapaz só lhes pedia namoro e a seguir nunca mais lhes aparecia. 18
  • 19. A Lurdes é que não achava piada nenhuma à graça do Manuel da Graça e foram muitas as vezes que amuou. No entanto, ele voltava sempre e a cachopa aceitava-o. Sabemos que gostavam um do outro, no entanto, a rambóia era superior à vontade e o moço não era capaz de resistir à tentação de beber uns canecos, mesmo antes de ir namorar. Quando chegava aos Telheiros, primeiro entrava na tasca do Basílio e só depois é que ia ter com a moça. Concluindo o 3º e último ano do Curso com dezasseis anos – como já dissemos – o rapaz foi trabalhar como serralheiro mecânico para a Metalúrgica do Crato, onde reencontrou o Pardal e com ele conheceu, reconheceu e desconheceu todas as tascas da vila e arrabaldes. Duas semanas depois imigrou para a Figueira da Foz como serralheiro montador de máquinas na instalação de uma multinacional. O serviço era perigoso. Por vezes trabalhava-se em altura e uma queda era quase sempre o caminho prós anjinhos. Embora amigo dos copos, o Manuel tinha mais amor à vida. Só ali laborou três meses. Tudo o que ganhou gastou-o nos bares da Figueira, para onde ia de táxi com outros da sua casta quase todas as noites e copos a fio, ao calor e ao frio era um ver- se-te-avio. Ao fim daquele tempo despediu-se, como outros colegas o fizeram, por o trabalho não oferecer segurança e foi para a Fábrica de Lanifícios, de Portalegre, com o objectivo de aí estagiar seis meses, para poder fazer o Exame de Aptidão Profissional e assim concluir o Curso. Ali era pau para toda a colher, tendo a vintena de camaradas de trabalho uma característica solidária comum: a fraqueira pela frasqueira. O Manuel ascendeu ao grau de segundo maior bêbedo da escala da confraria. A camisola amarela era envergada pelo senhor Amaro, imbatível veterano nos treinos e nas provas dos carapulos de ¼ de litro – para ele os mais pequenos – no entanto não demorou o tempo de um fósforo para que o Manuel passasse a envergar a camisola do vencedor, não só porque a este lhe deu o badagaio num acidente de viação, mas também porque o novo camisola amarela já tinha passado ao escalão do garrafão. Quando andou com o Benvindo e o David a substituir uma canalização entre o portão da fábrica e o Rossio, embebedavam-se os três todas as tardes, para assombro dos demais, que nunca descobriram como é que às cinco da tarde estavam a falar com as formigas. No percurso da vala onde trabalhavam, tinham uma taberna a cada ponta, cujos tasqueiros, o Tio Zé e o Tio Chico, punham-lhes os copos em cima da parede e em frente do portão estava sempre alguém conhecido de sentinela, que tossia ou bocejava, qual toque de alvorada, para alertar da chegada do fiscal da obra que, para raiva deste, nunca foi capaz de os apanhar com a boca na botija. 19
  • 20. Enquanto trabalhou nesta fábrica, só ele, o senhor Amaro – com quem o Manuel repartia o tabaco – e os demais homens como aquele, é que eram serralheiros; entravam e saíam da fábrica com o fato-macaco vestido; os demais rapazes eram empregados de escritório – diziam – pois entravam e saíam da fábrica de fato e gravata. Ainda na Escola Industrial, um dia foi almoçar de fato-macaco, pois no 5º ano e num dia tinha no horário semanal aula de Oficina de Serralharia de manhã e de tarde. Ao voltar, deu de caras com o Director: - Posso saber porque é foste almoçar de fato-macaco? - Foi para ganhar uma aposta, senhor Director. - Bom, se foi só por isso, ganhaste a aposta. Vai lá para a oficina. Se os colegas estavam à espera de ver o rapaz a levar porrada, saiu-lhes o cão cadela. Fazendo o supradito exame, outra coisa não era de esperar que não fosse uma encorpadinha raposa, pois a única preocupação era ir bebendo, em vez de se ir concentrando na prova, conseguindo até sair da escola durante os exames práticos para matar a sede no Café da Praça. Estávamos em 1967. Pouco tempo antes de fazer dezoito anos, pensou em ir para o Exército, como voluntário. O pai não lhe abençoou a nóia, por causa da Guerra Colonial. No entanto, o Manuel insistiu, argumentando que era para se despachar mais cedo daquele serviço e o pai lá o deixou ir assentar praça. Por não ter ainda 18 anos, teve que ser emancipado. Na verdade, o que o rapaz pretendia era mesmo livrar-se daquele atraso de vida, por já ter ouvido dizer que a inteligência não é a favor da guerra. Foi à inspecção militar na Escola Prática de Engenharia, de Tancos e nunca pensou que lhe saísse a sorte grande de ficar livre. De regresso parou nos Telheiros em casa da namorada para lhe dar a escolher, livre ou apurado, pois trazia nas lapelas do casaco as respectivas fitas branca e vermelha e a Lurdes logo viu que o rapaz não vinha sozinho, já vinha aos hic’s como era hábito e não esteve para o aturar, só que o moço não se incomodou com o arrufo, já era normal e sempre que tal acontecia dava azo a retomar a estúrdia mais cedo e foi o que aconteceu, não foi para casa, foi comemorar o acontecimento com o maralhal copofónico, de onde resultou uma daquelas bebedeiras que ele sabia agarrar e que demoravam, pelo menos, quinze dias a “curar”. 20
  • 21. Porém, todavia, contudo ao requerer o montante da taxa militar – devida por isenção do serviço militar obrigatório – responderam-lhe que ainda não estava livre, aos vinte anos tinha que voltar à inspecção. Guardou a informação. Porque fossem responsáveis membros praticantes, efectivos e militantes da Irmandade local de S. Baco, os colegas da fábrica incentivaram-no a procurar outro tipo de emprego e o próprio senhor Amaro chegou a dizer-lhe que aquilo ali não era para ele, era para os que lá estavam como ele, Amaro, que já não tinham para onde ir, incentivando o moço de dezoito anos, livre do serviço militar, a sair dali, o futuro do rapaz estava lá fora, ele que fosse prègar para outra freguesia. E assim foi. Nunca mais quis saber da fábrica. Gostando dos colegas, tinha no entanto à sua frente a oportunidade de se livrar de um patrão que não sabia trabalhar e quem não sabe trabalhar não sabe mandar. Foi o que aprendeu aos 17 anos, quando uma vez estava na secção dos teares a limar ferro fundido com a lima apropriada, a lima bastarda e o encarregado-geral, um tal Espiga, ao passar por ele tirou-lhe a lima, pôs-lhe giz e foi uma espiga: - Assim limas melhor… -Assim lima o senhor, porque eu não limo mais. Virando-lhe as costas, foi para a serralharia, pedindo aí ao senhor Eduardo que o mandasse para outro serviço, pois não ia mais para os teares. O encarregado da serralharia já se tinha habituado a este tipo de comportamento por parte dos rapazes vindos da Escola Industrial. O que lhe custava a mascar era ter que concordar com os moços, que sabiam trabalhar e ao mesmo tempo ter que render homenagem ao outro capataz. Danado, mandou o Manuel para a vala de que já falámos. Disse ao senhor Amaro que, quando se fosse embora, lhe deixaria o fato-macaco e uma camisa, amabilidade que o colega agradeceu. Pensando em sair dali, nunca mais se lembrou que tinha o exame de Aptidão Profissional por fazer. Passando a andar à procura, sem saber muito bem de quê, um dia recordou-se do bom do Director da Escola Industrial. Foi-lhe lá falar, encontrando-o a descer a escadaria e de imediato o mesmo lhe indicou dois ou três estabelecimentos de ensino industrial, com vagas de Contramestre de Oficinas de Serralharia, optando o Manuel por uma no Porto, concorrendo para a Escola Industrial Infante D. Henrique, onde ensinou no ano lectivo de 67/68. 21
  • 22. No dia em que chegou à capital do norte almoçou na Rua da Torrinha onde, de conversa com estudantes, conseguiu arranjar quarto logo ali ao virar da esquina da Rua Aníbal Cunha. No mesmo apartamento estavam dois agentes da P.S.P., que o receberam secamente, por ser um simples civil com a suspeitosa agravante de ser desconhecido. Portalegre – Casa apalaçada do lavrador Senhor José Elias Martins. No entanto o gelo depressa se quebrou, quando descobriram que o Manuel não era nenhum emproado e partilhava com ambos uma característica religiosa especial: a comunhão fervorosa do culto de S. Baco e nessa mesma noite o rapaz foi fazer o giro com um dos polícias, o Sequeira, até às baiucas de S. Bento e quando regressaram, ficou a saber que outro santo se venerava no culto doméstico do quarto, cujo instrumento litúrgico principal era o garrafão de cinco litros, verde branco, nunca vazio, como mandam os preceitos da reverência sacral e a quem o esvaziasse assistia-lhe a misericordiosa obra de o trocar por outro cheio, porque o paroquiano que viesse a seguir podia vir com zelo litúrgico, cuja sede é sagrada e por esta mesma secura o Sequeira (do mesmo campo semântico da dita secura) foi o cúmplice que mais o acompanhou nas noitadas directas, com o qual passou por polícia no Palácio de Cristal, onde viram à borla o mundial de hóquei em patins. Algumas noites, depois de jantar e quando não lhes agradava a sobremesa, os três confessavam-se, comungavam e ajoelhavam frente ao orago de cinco litros, santo protector do quarto, que de imediato era substituído, antes que fechasse o tasco do outro lado da rua. 22
  • 23. Neste ano lectivo, o Manuel só se recorda de ter apanhado uma bebedeira no dia em que chegou, para a deixar no dia em que se foi embora. Assim como nunca hesitou em apifar, também não hesita em dizer que foi, de todos, o melhor tempo de estúrdia que teve na vida de solteiro. Foi no Porto que o Manuel tirou a recruta, a especialidade e passou a pronto, em tudo o que foram festas e festanças, farras e folias, que fizeram dele o maior estroina de todos os tempos, até ao dia em que deixou de beber (doze anos mais tarde). Ainda hoje recorda aquele S. João de 68. Saiu de casa às nove da noite, começou a dançar no Jardim de S. Lázaro com a Amélia – uma das paixões pluralistas que alimentou em tão pouco tempo – e acabou a cabriolar nas Fontainhas, para voltar a casa às nove da manhã, sem saber muito bem por onde foi porque, sempre que regressava ao quarto, vindo de onde viesse, regressava embriagado, cada vez mais bêbedo do que nas noites anteriores. Não era vaidoso, todavia, tinha apresentação, vestia-se a preceito, fato e gravata e aos sábados de manhã arranjava o cabelo e as unhas na Rua das Carmelitas, para à tarde se apresentar em casa de gente de linhagem. Jovem na flor da idade, com 18 anos na flor da vida, um metro e setenta na flor da altura e sessenta quilos na flor do peso, trajava fino de acordo com a época, permitindo-lhe o cargo que ocupava frequentar qualquer lugar, desde os bares esconsos da Rua Escura, até aos bailes particulares em casa de gente da fina-flor da sociedade, sabendo entabular amizade com a família Freitas e a família Vasconcelos, cujas benquerenças se tornaram sólidas e o livraram do tribunal, por ter virado costas à Fábrica de Lanifícios, sem mais nem menos, porque nunca se despediu, apenas ofereceu a roupa de trabalho ao senhor Amaro. O bem-querer que estabeleceu naquelas casas durou anos e só terminou, porque o tempo e a ausência o fizeram perder. Os namoros enfiaram uns nos outros e perdeu-lhes a conta. No entanto, deixou-se conquistar pela Amélia, transmontana que conheceu através do Sequeira numa ida ao circo no Palácio de Cristal, com a qual namoriscou por pouco tempo, pois a moça depressa descobriu o pielas que o Manuel era e – cachopa com vistas para o casamento – o Manuel não estava para aí virado nem um bocadinho, mandou-o e muito bem, apanhar patas de burro para a terra dele. A simpatia da Eduarda, aluna da escola onde leccionava, hipnotizou-o, desde que o Freitas, seu discípulo, lha apresentou, até ao dia em que virou costas ao Porto. 23
  • 24. Com ela bailava nos chás dançantes de sábado à tarde nas ditas casas de gente de estirpe, a cuja frequência o Manuel era tão assíduo como assíduo era nas tascas, sendo porém que – como qualquer cavalheiro de impecável finesse – nestas reuniões sabia beber, nunca se embebedava Noblesse oblige. Pretendendo dançar sem parar – fosse com uma ou com todas as moças – sabendo dançar com todas e todas, sem excepção, lhe merecendo o maior respeito, nunca em parte alguma deixou de ser estimado, voltando sempre aos locais onde já tinha estado. Durante este ano lectivo andou de braço dado com as noitadas e a estroinice, as únicas cúmplices que o fizeram gastar tudo, mesmo tudo, o que ganhou. O vencimento era razoável, no entanto, se mais tivesse – e gostaria de ter – mais tinha estrapaceado. Nunca teve amor ao dinheiro e nem podia ter, porque o caroço para ele era excremento do Diabo e – bem apresentado como sempre andava – não podia andar com os bolsos cheios de diabólico estrume. Só porque a mãe lhe mandou, pelas duas vezes, o dinheiro para a viagem, as férias escolares do Natal e da Páscoa foi passá-las a Portalegre, caso contrário tinha ficado na sacramental estúrdia tripeira. Em condições normais, a viagem de comboio demorava doze horas. O Manuel demorou sempre mais. Quando chegava ao Entroncamento, mudava para o comboio errado e em vez de apanhar o trem do Leste, quando se apercebia dava consigo a caminho do Oeste. Ou então tinha-se metido numa carruagem, cujo trem o levava para Lisboa. Desfazia o engano, junto do chefe da estação, que o autorizava a voltar para trás no próximo comboio, para se voltar a enganar e sair em Belver, já sem dinheiro e à chegada a Portalegre ia direitinho à tasca do tio Chico pedir cacau emprestado para pagar o bilhete ao revisor do transporte que o tinha trazido. Até porque ganhavam menos, os colegas de quarto tinham que ser mais orientados do que ele. No entanto, o Manuel andava sempre a pedir-lhes pilim emprestado, que pagava prontamente logo que recebia. O Sequeira e o Teixeira foram, sem sombra de pestanejo, os melhores amigos que o Manuel teve no Porto. Nunca se desentenderam durante os meses em que co-habitaram no apartamento. Das noitadas partilhadas do Carnaval ao S. João e das festas aos casamentos, deram brado na vizinhança as serenatas às moças da frente, que religiosamente os escutavam até que, de manhã, os passarinhos substituíam os cantores da noite. 24
  • 25. Salvaguardando a posição dos agentes, o Manuel punha o casaco e o boné policiais, mantendo-se calado enquanto o Teixeira acompanhava à guitarra o passarinho do Sequeira, os dois à civil, para que quem os visse, pensasse que era o Manuel que cantava e os polícias assistiam. Este cuidado prudencial era fundamentado na forte probabilidade de que os vizinhos acabassem por não achar muita piada às cantorias, o que, efectivamente, veio a acontecer: um dia batem à porta. Estavam os três no quarto. Era um polícia da 12ª Esquadra, à qual pertenciam o fadista e o guitarrista. Mal ouviram a voz do colega – que reconheceram – precipitaram-se em direcção à entrada e chamando-o ao aposento, indagaram se vinha por eles, que até estavam de folga. Para alívio de todos, o agente nem chegou a falar com a senhoria. Estava ali por causa de uma queixa recebida na Esquadra sobre cantorias nocturnas, que incomodavam o merecido descanso dos vizinhos. Riram e contaram ao colega inquiridor o motivo da risota, cujo, depois de esclarecido, de tal modo se prontificou a alinhar na comezaina comemorativa do acontecimento, que saíu dali a trocar o passo: - E agora, hic, o que é que eu digo ao chefe, hic? - Diz-lhe que falaste, com a dona da casa, hic, e que finalmente tem um bom motivo, hic, para pôr o civil Manuel no olho da rua, hic. E lá foi, hic, sem nunca mais ter voltado. Pouco tempo depois deixou de se cantar o fado naquele retiro avinhado, não por este incidente, por outro bem mais sensível e que quebrou o que de mais terno havia na vida afectiva daqueles três personagens: o Teixeira foi- se embora! Viu-se obrigado a deixar a Polícia, por ser colocado em Lisboa, para onde efectivamente tinha concorrido anos antes. Entretanto, casara, a família estava em Cabeceiras de Basto e não podia aceitar tal colocação. Voltou para a agricultura e nunca mais o viram. Enquanto estiveram juntos naquele quarto, o Manuel e a Sequeira recordaram sempre o amigo apartado. Puseram-lhe a cama de luto. Sobre a almofada, o pano de um guarda-chuva, um livro aberto a meio da cama e o terço pendurado no garrafão, que se equilibrava sobre a cabeceira e encostado à parede. A empregada de quartos, quando viu aquilo, deu meia volta e nunca mais entrou no aposento, negando-se a arrumar tal alcova. A funestação manteve-se, porque dos hóspedes que chegavam nenhum se interessou por aquele quarto, ou melhor, os residentes é que espantavam a clientela. 25
  • 26. Uma vez o pai do Manuel foi numa excursão ao Porto. À parte do passeio, queria saber como era a vida do filho e o rapaz levou-o à Rua Aníbal Cunha para lhe mostrar o quarto onde acabou por dormir. Os polícias também lá estavam nessa noite. Estava tudo combinado. Depois dos cumprimentos da praxe, viraram-se todos para o oratório do quarto, propositadamente cheio e o recém-chegado, que não estava habituado ao berde, depressa ficou bermelho, adormecendo angelicalmente nas cores da bandeira nacional. No dia seguinte e antes de sair, despediu-se dos presentes e do orago protector daquele aposento, desceu as escadas de marcha-atrás, agarrado ao corrimão, para não cair nos degraus que outros desceram de gatas e lá foi, trocando o passo, apanhar a camioneta que o tinha trazido no dia anterior, sem ter gozado o passeio. O senhor Domingos não podia saber a vida que o filho levava no Porto, nem ir para a terra contar o que não devia, pois seria um desgosto para ele e outro para a mãe, que se iria benzer à canhota, por à direita ser pecado, se soubessem que o rapaz conhecia todas as Baiucas de S. Bento, todos os Bares Nocturnos da Boavista e arrabaldes, todos os Botequins que o Augusto lhe ensinou em Matosinhos e Leixões, com o qual, no final do mês, derretiam, numa noite, parte do ordenado recebido nesse dia. Ao chegar a Portalegre, a D. Maria – naturalmente e ansiosamente – logo quis saber: - Então, como é que está o Manuel? -Acho que está bem. -Achas? Então não estiveste com ele? - Estive, levou-me ao quarto onde está hospedado. Para lá fui bem, para cá é que já não me lembro por onde vim. - Então o que é que foste lá fazer? - Apanhar uma bebedeira. Mais nada. - Só para isso não precisavas de ir tão longe, apanhava-la cá, que te ficava mais barata. Por mais vergonhosa que ela seja, na vida tudo tem uma explicação e, nesta conformidade, o comportamento do Manuel não faz excepção à regra. O ambiente sacana que se respirava nas oficinas de serralharia foi sempre nojento desde o primeiro ao último dia. Porém, em oposição a esta atmosfera, o Manuel saboreava com os alunos um relacionamento desemparelhado. O mestre geral das Oficinas, um tal Santos, era um déspota como o Manuel nunca conheceu outro, com mais poder que o Director da Escola – por sinal, uma jóia de pessoa – só que o Santos tinha o nome invertido, 26
  • 27. era um opressor da pior espécie e – dito por ele próprio – não permitia ao filho que comesse à mesa com o pai. Porquê? Apenas e só porque o rapaz não trazia para casa as classificações que o pai queria e o moço já andava no Instituto Industrial, não sendo, pois, nenhum catraio, indo nas férias trabalhar para a oficina da escola sob o olhar – por detrás dos óculos – esgazeado do pai. Quando um ditador é assim com a família, imagine-se como será no emprego com os colegas. Naquele ano o opressor exonerou um contramestre, por este se ter negado a serrar à mão um cilindro de aço, com vinte centímetros de diâmetro, estando ali á mesma mão, o serrote mecânico. O Manuel não teve este azar, porque nunca se negou a malhar ferro à forja com o camarada Serrano, um rapaz de Monforte que o Manuel chamou, por ainda haver uma vaga de contramestre e com o qual o rapaz só jogou uma vez à lerpa, pois teve que pedir ao colega que lhe emprestasse os vinte paus que lhe ganhou, tendo o sucesso deste fracasso ensinado ao moço a nunca mais se sentar a jogar fosse o que fosse. Nem a feijões. Entretanto, cedo descobriu que não seria reconduzido no cargo que ocupava. Quem o tinha colocado fora o Director. A recondução, por sua vez, estava a cargo daquele mestre zangão, a quem o rapaz não engraxava os sapatos, por ser coisa que nunca fez nem aprendeu a fazer em lado nenhum. Assim e perante um ambiente de trabalho hediondo como este, o rapaz tinha que saber distrair-se ou então virar costas ao Porto. Não o fez e fez ele muito bem. A vingança serve-se fria. As paixões femininas fizeram-no ficar e estas, não aceitando muito bem os seus devaneios, souberam-lhe, porém, perdoar a maior paixão da sua vida: o briol e só o briol! No entanto venceu sempre por capacidade própria. Sabia trabalhar, já o sabemos. O que fazia fazia-o bem feito. Aprendeu a ser assim na qualidade de aluno – ainda hoje se recorda o que era trabalhar uma peça ao centésimo de milímetro, quando rebaixou, com 15 anos, a cabeça de um motor na fresadora da Escola, sob a orientação do Mestre António – e, como tal, não era nenhum parasita. Embora defensor da teoria quem-gosta-do-trabalho-não-sabe-escolher-amizades-é- burro, o mesmo nunca o atrapalhou. Estávamos em 1968. Os lugares de poder e de chefia eram ocupados por escumalha humana, que os usava como arma ruim e perigosa em prejuízo dos que trabalhavam. Quem não era lambe-botas não se safava. O Manuel cedo descobriu que não faria outro ano lectivo no mesmo lugar. Como tal e sabedor de que um dia deixaria o Porto, dedicou-se a amar perdidamente, sem nunca a considerar inútil, a tão bem aventurada e avinhada vida nocturna, da qual nunca 27
  • 28. se arrependeu e voltaria a fazer o triplo, hoje no estado sóbrio, se a vida o bafejasse com tal ventura, tais são as nostalgias desse tempo único… Confraternizou com as figuras mais notáveis da época nos cafés da Boa Vista, de entre os quais nunca se cansa de recordar o culto, ilustre e distinto Senhor, com Dom, Dr. Pedro Homem de Mello, que teve a amabilidade de dar ao Manuel a honra de colega de profissão na mesma Escola, ao ensinar-lhe a ser condiscípulo no meio dos alunos, pois tinha- os lá mais velhos do que ele. Naquele tempo, um rapaz ia para o serviço militar em cabo miliciano, com o quinto ano (actual nono ano). O Manuel tinha turmas onde leccionava sozinho, sem a indesejável presença do retrodito abelhão, que tinha reprovado no ano transacto, a oficinas de serralharia, alunos que agora eram discípulos do Manuel. Outro chumbo e adeus Curso de Cabos Milicianos. Os rapazes souberam falar com o Mestre sobre o assunto logo no início do primeiro período. Assim, acertaram de imediato as seguintes notas: 10 - 9 - 10. Era o indispensável para fazer a disciplina e para não levantar suspeitas (29 valores nos três períodos, como já sabemos). Ao longo do ano lectivo os rapazes foram de uma impecabilidade extraordinária, em termos de comportamento, agradecendo ao mestre Fragoso – era assim que era conhecido – a humanidade acordada e ao proporcionarem ao Manuel a felicidade de se entrosar nas tais famílias de linhagem, assim como nos chás dançantes, aos quais, como já sabemos, nunca faltou. Volvidos quarenta anos, o rapaz ainda hoje recorda com a saudade que lhe é devida e que só ele sabe, as amizades sadias criadas num período tão mortal de ditadura, como este que o Manuel viveu no Porto. Um dia, quase sem dar por isso, o ano lectivo acabou. Só lhe restava partir. Foi numa quarta-feira, às nove horas. O Sequeira acompanhou-o até à Estação de Campanhã, onde o esperava a última surpresa, que o deixou estupefacto: a Florinda foi-lhe desejar boa viagem. Era uma mulher da idade do Manuel, mas com mais idoneidade que ele. Foi uma das várias labaredas resplandecentes e amorosas que se lhe acenderam e que o vinho – sem dó nem piedade de espécie alguma – apagou. Conheceu-a numa daquelas tardes de sábado sem, no entanto, a moça ter ligado aos galanteios do rapaz. Por isso mesmo estava ali como a amiga que sempre se mostrou, para lhe almejar felicidades. Uma lágrima atrevida, um abraço de adeus, um apito de comboio, uma partida sem regresso… 28
  • 29. CLAVE DE FÁ (DO) De volta a Portalegre e depois de acreditar que não ia mais para onde tinha saudades, começou a andar aos bonés, sem nunca lhe ter passado pelo toutiço quanto a falta de trabalho isso lhe ia ser difícil e mesmo impossível, por ser demasiado conhecido como religioso militante de S. Baco. Não querendo voltar às fábricas onde trabalhara, por se ir apercebendo de que aquelas indústrias eram uma exploração de mão-de-obra barata, o trabalho do campo era ainda menor gratificante e os pais tinham feito o sacrifício de o pôr a estudar, precisamente para o libertar dessas profissões, às quais o escolarizado e ao longo da história nunca soube dar valor, nem acreditamos que o venha a fazer. Procurando por Seca e Meca e concorrendo para França e Aragança, nicles- batatóides. Viu-se à brocha durante oito meses, sem dinheiro, com uma alcoolemia galopante para sustentar. A mãe não o tinha para lhe dar e ao pai não tinha à vontade para lho pedir. Havendo, no entanto, sempre amigos, através das temáticas copológicas, estes lá lhe iam apoiando a carência, como diria o Zeca Afonso, Venham mais cinco/duma assentada/que eu pago já/do branco ao tinto (…) Decorrido aquele tempo e desatinado de todo, chegou a pedir serventia ao tio João e iria trabalhar para as obras naquela segunda-feira, se não tivesse na caixa do correio um postal para se apresentar na Repartição de Finanças de Évora, onde compareceu no dia seguinte e ali, durante sete meses desempenharia o cargo de escriturário das Execuções Fiscais. Um colega arranjou-lhe quarto na Rua do Cano, não por muito tempo. Um dia ao almoço encabeçou um levantamento de rancho, por os bifes estarem mais duros que as solas dos sapatos, o arroz, se atirado à parede, ficaria lá colado e – como se isto já não bastasse – no final do mês debandaram todos os hóspedes menos um, que era militar, até porque assentou praça, como voluntário, naquela casa. O colega Caldeira arranjou-lhe outro quarto na Rua Cândido dos Reis, onde só dormiu uma noite, ou melhor, a mala da roupa é que lá dormiu. Depois de apalavrar o aposento, saiu para jantar e regressou no outro dia, ao romper da bela aurora e a trocar o passo. Quem não gostou da entrada e daquela figura àquela hora foi a senhora da casa, que refilou: - Olhe lá: o senhor acha que isto são horas de entrar em casa de uma senhora viúva?! Pague-me o quarto e vá-se embora, ou quer que me vá queixar às Finanças? 29
  • 30. - Como funcionário que sou da Fazenda Pública, hic, tenho muito gosto em a atender, minha senhora, hic, explicando-lhe o melhor que puder e souber que não fui eu quem cá dormiu, hic, foi a mala, ela é que lhe deve a dormida, eu não lhe devo nada, hic. - Pegue na mala e saia já! Imediatamente! Rua! Rua! Já ontem era tarde. Sem mais palavras, o Manuel pegou na mala, desceu as escadas, deu corda aos sapatos e só parou nas Portas de Almeirim, aí se hospedando na casa da Dona Cidália, cujo marido, o senhor Vicente, também gostava de virar uns canecos e quando saíam juntos, aos fins de semana, a Dona Cidália já sabia que na volta iam sempre duas bebedeiras para casa e, em consequência, o almoço de segunda-feira era a única refeição semanal que aquela senhora sabia o que havia de fazer, sem reclamação do marido ou do hóspede: açorda alentejana en su sitio. Compreende-se porquê: as noites de sexta, sábado e domingo deixavam-lhes a boca a saber a papéis de música e só aquele prato aligeirava a melodiosa papelada. A função de escriturário das Execuções Fiscais permitiu-lhe conhecer os circuitos pedonais de todas as chafaricas da cidade e depois, em circuitos motorizados, passou a saber onde ficavam as capelinhas nos bairros limítrofes até à Torre de Coelheiros. O trabalho era propício para este tipo de conhecimento, pelas Execuções Fiscais que lhe mandavam fazer. Nunca deixou de realizar nenhuma. Assistia-lhe a finura de saber encontrar o contribuinte, para lhe assinar o documento, mesmo que isso implicasse permanecer numa esplanada duas horas a beber cerveja, como trabalho complementar, à espera que o tributário saísse de casa, porque sabia que ele estava lá. Uma vez um deles negou-se a assinar o testemunho e o Manuel teve a amabilidade profissional de o informar: - Não se preocupe, o polícia vai assinar comigo, já falei com ele. - Dê cá o papel! Você só é maçarico, de parvo não tem nada… E assinou imediatamente o documento. Quando entregou o serviço ao superior hierárquico, este deixou escapar o comentário “O quê? Você conseguiu caçar a assinatura a este indivíduo? A notificação já vem de Lisboa. Como é que você o apanhou?” O rapaz contou-lhe o sucedido e o subchefe – a quem já tinham tido a gentileza de contar que o funcionário passava as tardes nas esplanadas dos cafés do Bairro de Almeirim e não só – ignorou a repreensão que tinha para lhe dar e recolheu, com agrado, o trabalho que lhe acabava de entregar. 30
  • 31. Na mesma Repartição de Finanças trabalhava uma escriturária de Vila Viçosa, através da qual o Manuel conheceu a Ana Maria, uma cachopa extraordinária, com uma postura que o rapaz muito admirava e por quem alimentou uma paixão enquanto namorados, o que lhe ia apagando a vida, quando a moça extinguiu aquela chama que iluminava o rapaz. Quem gostava dele era a colega de trabalho, sem no entanto nunca lho ter declarado. Como tal, ele não sabia e quando começou a acompanhar com a namorada, a colega disse à Ana: “Ele pediu-te namoro, não é porque goste de ti, é para andar comigo, porque sabe que nós não saímos uma sem a outra”. Terão mesmo as mulheres um pacto com o Diabo? Só anos mais tarde é que o moço veio a saber desta trapalhice. A Ana certamente acreditou e aliando esta aleivosia ao comportamento do jovem, um dia, no Jardim do Templo de Diana, pôs fim ao amorio. O desventurado bem se esforçou para que tal não acontecesse. Não lhe valeu de nada. A Ana não se demoveu, nem lhe deu nenhuma explicação. Acabou mesmo. Ficando o infeliz a bater mal das válvulas, pois gostava mesmo da Ana, nunca mais, até hoje, se esqueceu de que foi beber para as Alcáçovas onde não era conhecido e ali ingurgitou briol que chegasse para ficar encharcado até aos olhos. A motorizada é que o trouxe de volta. Como já era da praxe. Não sabe qual o caminho que pisou. No regresso, recorda-se de ter passado por cima de qualquer coisa, à entrada de Évora. Mesmo perdido bêbedo, ficou intrigado e voltou atrás, para ver o que era. Nada de especial. Apenas uma passagem de nível, que, por acaso, estava aberta... Um dia ao almoço ouviu na Rádio uma notícia sobre trabalho, o que lhe adoçou a bisbilhotice. Foi ao Serviço Nacional de Emprego indagar sobre aquele anúncio e onde, após várias entrevistas, não hesitou em deixar o trabalho que tinha. Fê-lo, porque nunca lhe explicaram que, embora fosse provisório na ocupação do lugar de um funcionário que estava no cumprimento do serviço de Deus-Pátria-Família, não seria despedido quando o José Maria regressasse do Ultramar. Iria para outra Repartição onde houvesse vaga. O segredo é a alma do negócio. Não sabendo disso, aceitou o lugar de controlador fabril na firma sueca Melka Confecções, Lda., também em Évora. De tudo o que até aqui tinha feito, foi a faina de que mais gostou. Não, não era propriamente por se encontrar no meio de trezentas mulheres. 31
  • 32. A Organização e Métodos de Trabalho fascinaram-no, de cuja aprendizagem ainda hoje sabe fazer uso: uma folha de papel, por exemplo, ou tinha lugar na pasta correspondente, ou na 5ª Secção (cesto dos papeis). Já sabemos que o rapaz, embora muito beberrão, sabia trabalhar e desde que entrou no mundo laboral, aquilo que fazia, fazia-o bem feito, o que lhe abonava a favor dos erros, que, é claro, também os cometia. Chegou a fazer o Relatório Semanal de Produção e enviá-lo para a Suécia. A primeira vez que o fez, exportou mais camisas do que as que a fábrica produziu. Imediatamente a sede pergunta, por telex, como é que estava a trabalhar aquela Unidade de Produção. Ficou à rasca e à espera de ser castigado, porque foi o próprio responsável pela produção, senhor Nigren, presente em Portugal na fábrica do Cacém, que lhe chamou à atenção para aquela incorrecção. O incidente não se repetiu e o caso ficou pelo reparo. Talvez por isso, o rapaz depressa se esqueceu do caso e tempos mais tarde deu origem a outro. Passou a imitar aquele sueco na fala, quando pedia a linha telefónica à menina do escritório, dizendo “Menina, dar-me linha, fazer favor”. Um dia é o próprio senhor Nigren que, estando em Évora, pede a linha telefónica e a menina responde-lhe: - Lá está o senhor Graça sempre com as suas gracinhas… - Porquê dizer “senhor Graça”? Daqui falar senhor Nigren… A menina fica à rasca, mas logo sacode a água do capote, acusando sem mais nem menos o controlador de imitar na perfeição aquele responsável, cujo lhe ordena: - Senhor Graça imitar minha fala? Mandar vir senhor Graça ao meu gabinete. “Desta vez é que vou passear” pensou o moço. O sueco só quis ouvi-lo e o rapaz, que o imitava sem pestanejar, pela primeira vez teve dificuldade em articular o arremedo. - Muito bem, fazer uma coisa – disse-lhe o nórdico – imitar minha fala só quando eu não estar na fábrica, O.K? -Está bem, senhor Nigren! E o incidente nunca mais se repetiu. Só uma vez é que foi mandado dormir para casa, pelo gerente português, o senhor Arménio, porque a sua apresentação não deixava margem para dúvidas: estava bêbedo como um cacho e, como tal, não se tinha deitado para não esmagar as uvas. De facto aquela noite tinha sido muito longa e no caminho Portalegre-Évora, deixou-se ficar esquecido num baile em S. Miguel de Machede, de onde saiu às seis da manhã. 32
  • 33. Como sempre, quando não havia moças disponíveis para dançar, bebia uns copos, neste caso com o Zé Ferreiro. Passou pelo quarto, mudou de roupa, chegou à fábrica e voltou para trás. Às duas da tarde já estava de volta ao trabalho, o que surpreendeu o gerente, que só o esperava no dia seguinte. Correndo o ano de 1969, com 20 anos de idade o Manuel, tendo que voltar obrigatoriamente à inspecção dos magalas – ó milagre dos milagres – em pleníssima guerra colonial, voltou a ficar não só livre da tropa, como também do eventual perigo de passar o serviço militar no Forte da Graça, posto que o Manuel da Graça não achava muita graça à doutrina católico-salazarista sobre os conceitos de Deus-Pátria-Familia. Definitivamente livre do serviço militar, o rapaz esmerou-se com toda a pompa e circunstância na comemoração do acontecimento. O pobre do Rosendo, tendo tido o previsível azar de ser apurado nas “sortes”, decidiu afogar o desgosto antipatriótico na alegria igualmente antipatriótica do sortudo do Manuel e ambos, patrioticamente, foram-se enfrascando com o tal produto líquido que patrioticamente dava de comer a um milhão de portugueses, ficando aquele dia preenchido de acordo com a familiar divisão dos dias em três partes, divinalmente seguida pelos dois devotos de S. Baco: alambazaram-se com três bebedeiras, uma de manhã, outra à tarde e outra à noite. Quando – já bêbedos que nem um quartel – se apresentaram no recém-dito, vinham do Mercado Municipal, onde foram dando a volta às capelinhas todas, nas quais fizeram uma explosiva combinação de aguardente, vinho e cerveja. Almoçando numa tasca do Rossio continuaram a visita às grinaldas, acabando a noite num baile no Salão Frio, para onde foram e vieram a pé, embora houvesse bailes noutros sítios mais longe, onde o Manuel gostava de ir, só que neste dia estava tão bêbedo, tão bêbedo, que não se atreveu a apanhar a motorizada, nem mesmo a bicicleta, porque tinha amor à vida, já o sabemos e – embora soubesse muito bem que ser estúpido em Portugal é um Dom Divino e por via disso é que vai muita gente para o Céu – só era bêbedo, não era estúpido. Certo dia o rapaz soube que a fábrica ia admitir uma escriturária. Comunicou com a Lurdes, que estava desempregada e é assim que esta vai trabalhar para a mesma terra e local onde ele laborava. Embora coubessem perfeitamente os dois no mesmo quarto, teve, porém, a atenção de lhe dispensar o quarto em casa da Dona Cidália e arranjou outro ao cimo da rua. Perante tudo isto, a moça e a família chegaram mesmo a pensar que o rapaz se queria casar. Ficou deveras labiríntico das ideias, porque nunca tal lhe tinha passado pela cachola. 33
  • 34. Estando livre da obrigação militar – a maior dor de cabeça dos rapazes na época – no entanto tinha uma leve noção – já sabemos que a cabeça avinagrada não lhe permitia ter muita – de que o matrimónio seria o enjoo e o entorpecimento atrofiantes da idolatrada vida boémia, à qual não tinha coragem de virar as costas, o que lhe causava o embaraço tremendo de explicar à sua estimada porque é que não se casava, até porque à Lurdes não era nada favorável continuar solteira e em Évora, por isso, decidiu e muito bem, voltar para Portalegre onde e em boa hora, fez o exame de admissão ao Magistério Primário, formando-se como professora do ensino primário. Nesta altura, o Manuel ainda não sabia que o casamento era uma prisão, à qual, uns anos mais tarde, porém, veio a ser condenado. De forma inconsciente, o que ele mais gostava era de ser livre como um passarinho, principalmente naqueles fins-de-semana em que se dava ao luxo de os passar em Lisboa. Para lá ia de comboio e de volta, vinha de táxi. Na tarde de sábado fazia a vistoria aos bares do Intendente e à noite ia para o Bairro Alto ouvir cantar o fado – à mistura com umas cervejas – no Arroz Doce. A tarde e a noite de domingo serviam para fazer a revista aos bares do Cais do Sodré e como os botequins eram muitos e o tempo era pouco, sentia-se na obrigação de fazer o fim- de-semana numa directa. Na madrugada de segunda, todo torcido e a abanar sem vento, escolhia o carro que o havia de levar a Évora. Consumidor vinícola profissional que se agraciava de ser, regressava à cidade-museu de Mercedes, com uma condição eliminatória a este referente: só com rádio. Porém, todavia, contudo antes de partir, bebia a última cerveja com o taxista, pagando-lhe os quinhentos paus da praxe e só depois é que se iniciava a viagem. Dormindo as duas horas do trajecto e chegando regularmente a Évora já de dia, passava pelo quarto para mudar de roupa e lá ia para o trabalho, cambaleando, meio a dormir – meio acordado, meio borracho – meio sério. Enquanto esteve em Évora – aqui com mais tempo e à semelhança do Porto – o Manuel continuou a fazer o que mais amamentava: depois de um dia de trabalho, mamar a noite com o enlevo que a mesma lhe proporcionava, só se desmamando ao raiar do dia. Sozinho ou acompanhado, o ponto de encontro para a estúrdia era cronicamente a Praça do Geraldo, onde tomava conhecimento do que lhe interessava: festas, bailes e tudo o que fosse propício à noitada, por vezes muito curta, pois a noite tinha obrigação de ser maior que o dia. 34
  • 35. Depois da amada lhe ter virado as costas, o Manuel continuou por mais algum tempo trabalhando para os suecos, lastimando que a sua mais bem-querida tenha chegado a professora e ele ficasse simples trabalhador. Não podia ser. Sentindo-se desequilibrado – embora continuasse a gostar do que fazia e os suecos também gostavam do trabalho dele – um dia não deu rendimento nenhum na firma, passando-o a escrever para as Escolas Preparatórias do distrito de Portalegre. Pouco tempo depois é chamado para a Escola Preparatória de Campo Maior. Quando se despediu da Melka, foi o próprio senhor Nigren que veio do Cacém, de propósito, saber porque é que o rapaz se ia embora. Gostando do que estava fazendo, era bem provável que continuasse a trabalhar para os suecos, se as ordens viessem directas daquele senhor, em vez de passarem por um tal Carvalho, com quem o Manuel não ia a lado nenhum e assim sendo – com todo o respeito que o nórdico lhe merecia – despediu-se dele e disse adeus a Évora. Pela mão do doutor António Raimundo, é chamado para a Escola Preparatória de Campo Maior como professor provisório de Trabalhos Manuais no ano lectivo de 71/72. Uma vez mais e nesta vila alentejana muda de patrão e de actividade profissional. Era uma posição diferente e como tal – passando a fazer parte de uma classe mais privilegiada – só por isto devia ter mudado de postura, mas, porém, todavia, contudo o comportamento perante o álcool não parou, piorou e a carreira de bebedor progredia em galope cavalar, cujo na linguagem do alcoolismo se chama “tolerância” – agora com um garrafão obtinha os mesmos efeitos que antes eram produzidos por uma garrafa ou por uma garrafinha. Foi num baile de finalistas do Colégio de Campo Maior que conheceu a mulher com quem viria a casar. Para a Lurdes foi um desgosto. Sem o saber, o Manuel fez o pior que se pode fazer a uma mulher: trocá-la por outra e neste caso, depois de sete anos de namoro, pior ainda. O certo – tão certo como aqui e agora, estar a dizê-lo – é que ambos casaram mal. Como seria se tivessem casado um com o outro, ninguém sabe, nem sábios da Natura, nem mestres da Escritura. Namorou um ano com a Catarina, amorio desalinhado e também esta mulher esteve para deixar o Manuel, pela conduta que sempre acarretou perante a bebida, não sabendo ninguém – nem os ditos sábios e mestres – porque raio de carga d’água a rapariga não deu com os pés no bebedolas, como outras o fizeram e, sem saber como nem porquê, um belo dia o rapaz estava a falar com o padre Soares, que o condenaria com 24 anos de idade, a uns longos, intermináveis e agressivos 13 anos de xelindró matrimonial. 35
  • 36. O casamento não o fez mudar coisíssima nenhuma, continuando devoto incondicional da agência local da Irmandade de S. Baco. Uma vez a cabra foi internacional. Sabe com quem foi para Espanha, não sabe como foi, nem como de lá veio. Três dias sem saberem dele. Meteram-lhe a porta da alcova adentro, por a motorizada estar à entrada. Ele não estava lá. Quando se apresentou na escola surpreendeu o Director. Humildemente lhe pediu desculpa, pedindo-lhe também que o castigasse, por ser a única coisa que merecia. Em vez disso, aquele dirigente mandou-o ao Dr. João Maria, para lhe passar um atestado médico, a fim de justificar, por doença, os três dias de moina. E que doença… já tão enraizada… No entanto, ainda respondeu assim ao Director: - Já lá vão quatro dias e o médico não me passa o atestado. - Vá lá, que eu falo daqui com ele – apontou para o telefone. Portalegre – Taberna da Tia Inês do Cuco, hoje Casa Morais. O Dr. António Raimundo – seu director – e o Dr. João Maria – seu médico – eram boas pessoas e uma vez mais o saber ser humilde abonou a favor do rapaz, nesta altura já um prestigiado galdério, cuja formação – como sabemos – iniciou no Porto. De um modo geral os rapazes quando casavam mudavam para melhor. Este piorou. Cada vez mais pingalho, passou a acompanhar com todo o fel farrapo, com todo o tipo de gentalha bebedanas, frequentando lugares menos próprios para um professor casado. 36
  • 37. As luzes da noite continuavam a encandeá-lo, iluminando-lhe a estúrdia, a sua cônjuge preferida. Quando sozinho, distanciava-se para qualquer lado, dormindo trevas sem conta na valeta da estrada, por não ser capaz de conduzir a motorizada. O casamento esteve prestes a desmoronar-se. O aparecimento do primeiro filho, ao fim de um ano, não veio equilibrar o que esteve sempre a desabar. O bagacinho passou a ser o forte-fraco das bebidas que consumia. Gradualmente foi-se habituando à girgolina e a bica servia para aconchegar meia dúzia de mata-bichos. Um ano o senhor seu pai – em vez de doar as uvas aos pardais como sempre fazia – lembrou-se de fabricar uma pinga de aguardente. Fez dez litros com a graduação de 35º, mas, porém, todavia, contudo mal a provou, porque o senhor seu filho engorjitou-a toda numa semana, enchendo-lhe as garrafas de água e dando à sola por três meses, sem voltar a casa dos pais. Desconfiando da fartura, a mãe, quando descobriu a marosca, apressou-se a pôr outra branquinha nas garrafas, antes que o pai dissesse que a cachaça se tinha estragado, o que veio a acontecer, pois quando lhe apeteceu molhar a goela, pareceu-lhe que o bagaço não era o mesmo e o senhor Domingos acabaria por morrer na dúvida, partindo sem nunca o saber, pois o Manuel nunca teve coragem de lhe confessar a verdade. Este rapaz nunca se devia ter casado, ou melhor, a Catarina é que nunca devia tê-lo feito, porque o moço andava a leste do paraíso matrimonial, pois continuava a praticar a bigamia vinícola-conjugal e – como toda a gente sabe – o adultério é pecado mortal. A rapariga tinha plena consciência que namorava um ébrio. Dois dias de trabalho alternavam regularmente com uma noitada mais agradável que a outra. A vocação do moço aliada à devoção por Baco, durante os primeiros seis anos de casado, fizeram dele veterano beato de um deus milagreiro que dá pernas aos coxos, vista aos cegos e fala aos mudos. Porque eles obrigam aos consequentes deveres conjugais – quando alguém como este jovem está enraizado em tal vida – não devia ter quaisquer direitos matrimoniais. Há quem diga que este encadeamento é uma prisão, onde se pagam os pecados de solteiro e – se isto é verdade – o Manuel, como já sabemos, apanhou 13 anos de pildra em regime aberto, o que lhe permitiu continuar a ser cada vez mais perfeito valdevino. Leccionou em Campo Maior de 71 a 74 e é neste período que faz o exame de Aptidão Profissional, quase por imposição do Dr. Raimundo, que lhe disse não o poder reconduzir, se não completasse o Curso que o credenciasse com habilitação própria. 37
  • 38. Foi então para a Escola Industrial e Comercial de Elvas em revisão da matéria dada, como aluno da noite de Desenho de Máquinas e de Oficina de Serralharia, preparando-se para os exames destas disciplinas. Soubera ele, nunca lá tinha posto os calcantes, porque nesta escola o manajeiro era um tal mestre Laranjo, primo-irmão do abelhão do Porto, ambos unha com carne. Tinha assistido a meia dúzia de aulas, quando uma noite os companheiros o aconselharam “Se queres fazer o exame, vai para Estremoz ou para Portalegre, porque aqui não o fazes. Tu não foste aluno deste mestre e se o ano passado ele chumbou o filho, tu nem sequer chegas a ir às provas”. Como se vê, uma vez mais, os amigos são para as ocasiões. Nessa mesma noite estava a ampliar um desenho de peças de máquinas. Os colegas tinham acabado de falar com ele. Ao olhar para a legenda do mesmo projecto, reconheceu a assinatura: era do déspota do Porto. Nem pensar em continuar. Foi tudo muito rápido. Impulsionado por uma mola invisível, mas real, levantou-se, arrumou as coisas e ao entregar o que estava a fazer, anunciou ao mestre “Diga ao seu amigo Santos que faça ele o desenho, porque eu não lho faço nem a peso de ouro”. O mestre esbugalhou os olhos, espumou de raiva, ficou verde-amarelo, azul-às-riscas, o rapaz abandonou a sala de aula sem uma palavra e nunca mais lá apareceu. Ainda foi a tempo de ir para Portalegre. Voltou à escola onde estudou, ao convívio sadio dos bons professores que ainda lá estavam, de entre eles o sempre amigo e senhor Director. Dos que precisou – desde o senhor mestre José Carvalho, ao sempre saudoso senhor engenheiro Malcata – todos lhe facultaram a revisão da matéria para a realização do exame – recordando, de entre outros, o desenho de rodas cremalheiras, cujo traçado parecia ter movimento – que fez à risca, à rasca e às roscas, com a classificação de 10,8 valores. Como nunca foi ambicioso, trabalhou apenas para a média tangencial, porque teve que voltar a fazer o circuito Escola – Café da Praça – Escola, do qual ainda se lembrava, quando, anos atrás, se apresentou a fazer aquela prova. Entretanto, é colocado em Portalegre, onde permanece de 74 a 78 e nestes quatro anos o Manuel, de uma forma lenta e progressiva, entrou em declínio, mas, porém, todavia, contudo passou a ser um respeitoso e notável avinhado, conhecido em todas as chafaricas da cidade e subúrbios num raio de 20 quilómetros ao redor, de onde não arredava. 38
  • 39. Todos os anos adoecia. Passou a andar de médico para médico. A uns queixava-se do estômago, a outros dizia que tinha nervos. Não enganava ninguém, ele, de facto é que não sabia, no entanto, todos lhe conheciam a doença. A Dra. Lisdália chegou a dizer-lhe que só internado é que teria salvação. No verão de 79 assim aconteceria. O pequeno-almoço era constituído por um bagaço em cada tasca do caminho casa- escola com a matéria líquida. O intervalo das aulas servia para fazer a revisão da matéria dada na taberna mais próxima. Todas as manhãs transportava, transpirava e tresandava a bagaceira. Instala-se na comunidade escolar um certo mal-estar, tornando-se intolerável o estado alcoólico a que chegou, incompatível com as aulas. As queixas eram tantas, que um dia o Presidente do Conselho Directivo – o Caldeira – não teve outra saída: participar a ocorrência. No entanto, a queixa não chegou a sair da Escola. Uma vez mais o rapaz foi protegido. Desta vez, valeu-lhe o senhor funcionário Manuel Milhinhos, que soube apelar àquele dirigente e a participação, já redigida, não seguiu para o correio. No último ano que leccionou naquela escola o Manuel não se livrou de mais apuros. No final do ano lectivo, numa reunião de encarregados de educação, houve um que se insurgiu com firmeza: - Para o ano, se o meu filho for aluno do professor Graça, não vem às aulas. - Esse problema está resolvido – explicou o Caldeira – para o ano esse professor já cá não está. Foi colocado noutra Escola. Problema resolvido. O Manuel foi prègar para outra freguesia. No ano lectivo de 78/79 regressou a Campo Maior, onde continuou a fazer aquilo de que mais gostava: beber, dias a fio, sem conta, sem peso e sem medida. É ao voltar para a terra onde sempre residiu que a devoção por S. Baco atinge o pináculo do apogeu. Já não ia em seis bagaços, ia em dez e em balão. Algumas vezes era o primeiro cliente – logo ao abrir da porta, às seis da manhã – da taberna do João Vinagre, não só por ser a primeira a abrir e a que ficava mais perto de casa, mas também pelo condizente apelido do proprietário. Quando extraviava para a cerveja, nunca era uma, nem duas, nem sequer a conta que dizem ser sagrada – aquela que Deus fez, três – era às dúzias, não só porque à dúzia é mais barato, mas também porque havia o lucro adicional das apostas na capacidade de engorjitação volumétrica, tendo-as ganho todas a todos, assim subindo ao pódio da medalha de ouro das olimpíadas do campeonato copofónico local. 39
  • 40. Vinho? Era raro beber pelo copo. Bebia-o pela garrafa, garrafinha e garrafão, quando este era apanhado a jeito em casa do sogro, cujo, muitas vezes teve que beber água à refeição, pois o vinho, por obra e graça divina – misteriosamente – tinha evaporado. O vício crónico conduziu-o às consultas clínicas crónicas. O dr. João Maria matutava “Mas o que é que lhe hei-de receitar? Ponho-o a dormir? Quando acordar volta a beber… O que é quer que eu lhe faça? …” Em Elvas, numa consulta ao dr. Barbas, o médico apanhou-lhe a vesícula “Segura aí”. Ele segurou com facilidade. “Sabes do que é isso? É do bagaço. A continuares assim, não chegas a velho…” Isto o rapaz não sabia. Só soube que continuou a beber. Em casa, já há muito que não havia bebidas alcoólicas. No entanto, o Manuel – como todo o bêbedo que se preza – também era manhoso. Escondia a garrafa da aguardente sob o capô do automóvel, acamada em duas tábuas pregadas em ângulo recto e agasalhada com um bocado de desperdício. Podia fazer uma travagem brusca, que a botelha não se mexia. Um outro da mesma laia do rapaz escondia a botija de bagaço no autoclismo da casa de banho, para ficar mais fresquinha. A do Manuel estava sempre morninha. São gostos. Gostos não se discutem. Para quem não sabe, fica sabendo que isto são truques defensivos de manholas, como é a regra, sem excepção, de qualquer bebedor excessivo: ter no sítio estratégico operacionalmente apropriado o paiol das munições preparadas para o combate à sede aguda, quando esta aperta com a mesma premência, a mesma insistência e a mesma frequência de qualquer ruminante. O Manuel não chegou a ter o rosto cor de marisco, os olhos inchados e remelados, o nariz cor de cenoura e em forma de torneira – até porque torneira já ele era – no entanto, tinha alcançado o píncaro do êxtase, como virtuoso e elegante profissional da ciência e das artes enófilas. Embrenhando-se nesta senda, sem nunca o ter desejado e fazendo-o a bebida passar por muitos vexames, por incrível que pareça ele tinha consciência disto e não era isso que ele queria ser. O espeque do problema estava em não saber parar e, sozinho, nunca foi capaz de o fazer. Um dia procurou a Maria do Carmo, sua cunhada, residente em Elvas, por quem tinha respeito e admiração. 40
  • 41. Esta Dona algumas vezes o quisera ajudar, mas nicles-bitocles batatóides. Desta vez foi o Manuel que lhe pediu socorro. A Senhora falou-lhe de um indivíduo que tinha feito tratamento em Coimbra e nunca mais bebera. No que diz respeito ao alcoolismo, o Manuel nunca tinha falado com ninguém que tivesse feito terapêutica e, muito menos, tinha ouvido alguém falar de si próprio, como fez o Mário. Era como se estivesse na frente de um espelho: o Manuel reflectido nas palavras do Mário. A postura, aliada à franqueza de uma individualidade própria, nada teriam a ver com a figura, se não fosse a própria pessoa a dizer que chegou a transformar um litro de azeite em dinheiro, para poder ir beber. A sobriedade alcançada, ligada a uma sinceridade única, juntas numa revelação excepcional do que uma criatura foi e deixou de ser, foi o que mais impressionou o Manuel. O Mário contou-lhe que esteve internado no Centro de Recuperação de Alcoólicos de Coimbra do Hospital Sobral Cid e disse-lhe que em Lisboa, no Hospital Júlio de Matos, havia também o Centro de Recuperação António Flores, optando o rapaz por este, em virtude de lhe ser mais fácil a deslocação e ter família na capital. A conversa com o Mário resumiu-a o Manuel numa feliz e promissora conclusão “Se este homem, que é feito da mesma massa que eu, deixou de beber, eu também deixo”. Foi o Ti Júlio que lhe marcou a consulta para a inesquecível data de 30 de Maio de 1979. Pela primeira vez na vida, o Manuel falava com alguém que o podia ajudar a pôr fim a um mistério que o torturou em duas décadas de consecutiva alcoolidade, ou seja – em boa verdade – dois terços da idade que constava do seu bilhete de identidade, assistindo-lhe durante uma hora a graça e a felicidade de ser examinado por um GRANDE médico, o Dr. Leitão de Barros. A este contando e nunca aldrabando, o rapaz desbobinou toda a vida rocambolesca que ia levando. No final da conversa, o médico diagnosticou: - Perante o que me acaba de dizer, só vejo uma solução: interná-lo. Quer ser internado? - Quero sim, senhor doutor. - Então fica já cá hoje. - Eu não sabia que podia ficar e não venho preparado para isso. Conversaram mais um pouco para acertar pormenores e encontrar data para o regresso do paciente. De volta a Campo Maior pediu aos colegas do conselho de turma, de que era o director, para fazer mais cedo a reunião final do 3º Período. 41
  • 42. Todos concordaram, excepto o Presidente do Conselho Directivo, que não autorizou a antecipação, por já ter dado uma nega a um outro professor que lhe tinha feito o mesmo pedido. O Manuel tinha o internamento agendado. Entregou o dossier de turma àquele dirigente, sugerindo-lhe que presidisse ele próprio à reunião porque no dia xis pê tê ó foi mesmo para Lisboa. P’ra vilão, vilão e meio. Tendo um mês para fazer as despedidas, as bebedeiras pegaram umas nas outras, ou melhor, foi só uma, como no Porto. Boémia perpétua. Rambóia que se prezava de ser e bom consumidor da Vinhataria Portucalense, durante duas décadas, naqueles trinta dias fez uma despedida endeusada ao vinho e à aguardente, à cerveja e ao brandy, dizendo: “Adeus, garrafas, garrafinhas e garrafões, hic! Acreditem, porque é verdade, hic! Vou ter saudades vossas, hic!”. Decidiu-se. Já tinha tresmalhado a conta às vezes que prometera a si próprio deixar de beber, sem, no entanto, ter sido capaz de cumprir a promessa, sabendo que estava doente e os médicos já há muito que não lhe rezavam pela pele. Viria um dia em que perderia o emprego, ou até a própria vida antes do prazo normal de validade. Havia dois filhos, de quem sempre gostou. O casamento já há muito que se tinha tornado rude, sem carácter. A figura do professor que gostava de ser tornou-se denegrida aos olhos da sociedade e em particular, no seio da comunidade escolar. Todos tinham pena dele, ao mesmo tempo que comungavam da opinião é-bom-rapaz-mas-o-triste-é-gostar-tanto-da-bebida. Tinha agora nas mãos – e pela primeira vez – a oportunidade soberana de ser o homem que nunca foi. Não a deixou escapar. Sabia o que queria. Aceitou o internamento, na espectativa de ver resolvidas todas as adversidades gratuitamente infligidas. Porque terá um tipo assaz bom rapaz, como o Manuel da Graça, deixado estatelar-se neste tipo de desgraça voraz? Ao certo, ao certo, não o sabemos. O que sabemos é que – como qualquer outro animal – o animal autodito racional, sendo produtor do meio ambiente também por ele é produzido (aliás, como qualquer planta) mas, porém, todavia, contudo como produtor consegue muitas vezes – contra tudo e contra todos – afirmar a verdade da sua vontade individual. Que o diga Galileu “Ai vocês pensam que a Terra está parada? Pois fiquem sabendo que gira sobre si própria”. E como disse o intelectual analfabeto António Aleixo: 42
  • 43. Não sou esperto nem bruto, nem bem nem mal educado. Sou simplesmente o produto, do meio em que fui criado. Portalegre – Fábrica Robinson Bros. Laborou século e meio. Nunca um bebedor de 1ª categoria – como este rapaz o foi – deixa de consumir contra a vontade própria e não há nenhum tratamento que resulte nesse sentido. Atrás desse milagre costuma andar a família do doente, sem resultado nenhum. Acontece que o Manuel não acredita em milagres. O Manuel era, em exclusivo, um consumidor militantemente profissionalíssimo da Vinicultura Portuguesa. Isto, ele sabia-o. O que talvez não soubesse é que sofria de uma doença permanentemente progressiva, tendencialmente definitiva e insuportavelmente excessiva na perda de controlo. Para atingir o estado doentio a que chegou percorreu, como tantos outros, este caminho: começou por uma fase pré-alcoólica; nunca foi um bebedor ocasional, ou esporádico; rapidamente se tornou num bebedor regular, de consumo elevado, habituando-se a grandes quantidades de álcool sem, no entanto, manifestar sinais visíveis de embriagues. Fez parte da maioria dos bebedores habituados ao consumo desmesurado, cujo hábito em geral é de origem familiar ou social. Teve perdas de memória por não conseguir lembrar-se no dia seguinte do modo como chegou a casa, nem do que disse, nem do que fez. 43
  • 44. Apesar de não muito embriagado e – muito menos – em estado comatoso, mantendo-se até em plena actividade, além desta amnésia temporária lhe ser muito desagradável, o não alcoólico, de um modo geral, não a aceita nem a compreende. Intermitentemente tomava a resolução de não mais beber. No entanto, sem renunciar às suas boas intenções, arriscava beber o suficiente, até chegar à embriaguês completa. Algumas vezes teve tentações de abstinência, experimentando beber moderadamente, conseguindo deixar de beber durante uns dias, sonhando que podia deleitar-se com um copo, para ficar rapidamente desapontado quando constata, a curto prazo, que não consegue ser um bebedor moderado. Arranjou pretextos para beber desmedidamente, autojustificando os excessos, arranjando sempre desculpas para a embriaguês. Bebeu muitas vezes isolado, duma forma anti-social, abandonando os amigos e – a sós ou com desconhecidos – não parou de beber. Sofrendo de um complexo de culpa, acumulou remorsos e agravou a situação quando começou a beber logo pela manhã, “para acalmar os nervos”, dizia. Passou a ter uma saúde precária. Vergando sem partir, nunca abandonou o emprego nem foi convidado a ir para o olho da rua. Porém, quando o trabalho lhe estorvava o encanto da possibilidade de beber como ele queria, sempre que a secura o apertava, dava folga ao patrão. Desenvolveu alcoolemias elevadas, aprendeu a controlar os efeitos da embriaguês, exercendo um controlo e uma vigilância do próprio comportamento. Ao atingir a fase crónica bebeu dias inteiros sem conta, peso e medida, semanas a fio. Aprisionou-se em si próprio e – assim sozinho – nunca foi capaz de se libertar. A sua única preocupação estava concentrada – apenas e só – na bebida. A existência era uma desistência. Não estupidificou. Não passou de rico a mendigo. Não roubou o pão aos filhos. No entanto, para mal dos seus pecados, foi escravo do álcool. Por incrível que pareça, nunca teve qualquer tipo de acidente de trabalho nem de viação. Tinha uma noção de tudo isto, ao mesmo tempo que gostava de o não ser. Sofria de desdobramento de personalidade, arriscando a própria identidade. Uma coisa o rapaz nunca alimentou: o sonho do alcoólico – todo o bebedor excessivo, sem excepção – pensa que depois do tratamento pode beber moderadamente. Não pode. A Medicina ainda não fez esse milagre e aliás – como já se disse – o Manuel não acredita em milagres. 44