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Filosofia 2006/2
I - Introdução: colocação do problema
A toda hora, os meios de comunicação anunciam que é preciso “mais ética” nas relações
humanas, na política, na ciência, nas empresas e em todos os âmbitos da vida. Mas o que
significa “ética”? É difícil responder a essa pergunta com exatidão. Para respondê-la, deve-se
lembrar a etimologia da palavra e ressaltar que a ética só existe após o surgimento da filosofia,
primeira forma racional de se explicar a realidade. Após essa introdução, será feito um percurso
pela história da filosofia para que se possa acompanhar as principais transformações éticas do
ocidente: a Grécia antiga, o helenismo, a idade média, a modernidade e o século XX.
Esse percurso oferece a base histórica e filosófica para o segundo momento do curso, que trata
especificamente da ética profissional. Neste segundo momento, serão apresentadas algumas noções
sobre ética nas empresas e realizados debates e análises de casos onde alguns dos conceitos
oferecidos ao longo do curso serão aplicados. A finalidade dessa divisão é revelar que teoria e prática
não são distantes, mas complementares e indissociáveis, embora algumas vezes não coincidentes.
Comecemos, então, com a definição de ética.
I.1- Ética – pequenas considerações:
Antes de qualquer coisa, é preciso distinguir ética e moral. Embora se confundam, há um
acordo entre os estudiosos de que essas palavras têm significados distintos. A moral é
constituída pelos juízos de valor, costumes e crenças de um povo, enquanto a ética é o estudo
da ação humana e de suas conseqüências. A moral é orientada pela tradição; a ética pela razão,
pela reflexão. A moral é “praticada”, “vivida”, e varia de acordo com os povos (coisas que são
moralmente condenáveis em determinadas culturas, não o são em outras); a ética é uma
ciência que estuda, entre outras coisas, a moral. Nesse sentido, pode-se afirmar que a ética é a
“ciência da moral”. Para esclarecer essa questão, vale observar a etimologia das palavras moral
e ética.
A palavra moral deriva do latim “mores”, que significa “costumes”. Isso indica que a moral
é formada pelos hábitos, pela forma de encarar a vida e pelos costumes de um povo. Por isso,
como já foi dito, a moral pode variar: o que é moralmente correto para um povo, pode não ser
para outro.
A palavra “ética”, por sua vez, é oriunda da palavra grega ethos, que possui duas
acepções: 1- como significado de morada do homem e 2- como indicação de um
comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos.
O primeiro significado, “morada do homem”, indica que é justamente por meio do ethos
que o mundo se torna habitável para o homem ou, mais ainda, que o mundo se constitui. A
necessidade da natureza (physis) é rompida pela abertura do espaço humano do ethos, no qual
se inscrevem os costumes, os hábitos, os valores e as ações, ou seja, no qual a moral de um
povo se constitui. O espaço humano do ethos não é dado ao homem (como o é o espaço da
natureza), mas é incessantemente construído. A morada do homem nunca está pronta: sempre é
possível melhorá-la e aproximá-la da perfeição. Isso revela a existência de um ideal ético ou do
Bem, capaz de mostrar quais partes de nossa “morada” ainda podem ser reformadas,
melhoradas. O eterno construir da vida moral revela que há princípios éticos ideais perseguidos
pelo homem e que podem se aprimorar ao longo da história. Usando a metáfora da casa, pode -
se afirmar que a nossa vontade de aperfeiçoá-la mostra que temos, em nossa mente, uma idéia
do que seja uma casa ideal. E mostra também que, se os tempos trazem novidades, elas são
incorporadas a esse modelo ideal de casa na medida em que surgem. Para um homem das
cavernas, por exemplo, uma ampla gruta de frente para o mar e bem protegida era o exemplo de
2
casa ideal; já para o homem moderno, uma casa de vi dro, concreto e madeira, com varanda,
piscina, churrasqueira e sauna, constitui o modelo ideal de casa. Mas, para ambos, a casa é um
lugar de refúgio, de proteção e conforto.
O mesmo ocorre com a ética: ela evolui, é aperfeiçoada ao longo do tempo. Com as
transformações históricas, surge a necessidade de transformações éticas. Sabemos que uma
ação é injusta porque temos uma idéia de justiça construída e aperfeiçoada ao longo da história
que nos habilita a julgá-la como tal. A escravidão foi considerada normal entre os gregos e entre
os nossos colonizadores. Foram precisos séculos para que a escravidão fosse definitivamente
abolida do planeta (ou, pelo menos, universalmente considerada como repugnante). Hoje em
dia, não há país que defenda pública e oficialmente a escravidão: todos os povos sabem que a
liberdade alheia deve ser respeitada. Isso mostra que o nosso ideal ético evolui ao longo da
história.
O mesmo ocorre com a moral, que também se modifica com o tempo. Muitos valores morais
do início do século mudaram radicalmente: a virgindade, por exemplo, já não é um valor como foi
outrora. É interessante perceber que, geralmente, as mudanças nas leis ocorrem após as mudanças
morais. A virgindade, mesmo que não mais praticada e valorizada como outrora, continuou presente no
código civil por muitos anos como motivo para dissolução do matrimônio: se o marido descobrisse que
a noiva não era mais virgem, poderia, amparado pela lei, dissolver o casamento. Há, no entanto,
valores que devem permanecer, pois são fundamentais para a sobrevivência da sociedade. A liberdade,
o respeito à diferença e a preservação ambiental são exemplos de valores fundamentais para o nosso
tempo, sem os quais colocamos o mundo em risco.
Já o segundo significado da palavra ethos diz respeito ao comportamento que resulta de
um constante repetir-se dos mesmos atos. Aqui ethos se relaciona com os costumes, com o
hábito de agir de acordo com as exigências de realização do bem. Há mais de 2.500 anos, os
gregos afirmavam que a repetição de bons hábitos era capaz de tornar um homem virtuoso. A
educação grega, a Paidéia, era um longo processo educativo que visava formar um cidadão que
fizesse da vida pública um exercício das virtudes humanas capaz de conduzir a cidade rumo ao
bem.
Dessa maneira, antes de existir a ética enquanto ciência, já existia o ethos enquanto
morada do homem e enquanto hábito. Era, pois, por meio da sabedoria, e não da ciência do
ethos (a ética), que os primeiros homens adquiriam critérios para orientar o seu agir. Somente
com o surgimento da filosofia, a ética enquanto ciência, enquanto reflexão racional sobre o
agir humano, aparece. Se compararmos a ética com a engenharia, percebemos que a morada
do homem surgiu antes da ciência que lhe é relativa. A casa veio antes do engenheiro. Em
outras palavras: o ethos é anterior à ciência do ethos. Sendo assim, será que podemos
dispensar o engenheiro, uma vez que as casas são construídas antes de seu aparecimento? Ou
seja: podemos dispensar a ética enquanto ciência e nos guiar apenas p ela sabedoria, pelos
costumes e pelos hábitos, que já orientavam os homens desde sua origem? É claro que não.
As casas construídas pelos primeiros seres humanos eram simples e podiam dispensar os
engenheiros. Hoje as moradas são mais elaboradas e é o engenheiro que pode evitar o
desmoronamento dessas construções. É por essa razão que há uma crescente necessidade da
ética enquanto ciência: nossa morada se tornou tão complexa que, se dispensarmos a
engenharia (a ética) ao construí-la, ela pode cair. A ciência e a tecnologia transformaram o
mundo e trouxeram novos e graves problemas éticos. A miséria da maioria dos seres humanos,
o lixo atômico, a poluição das águas, a escassez dos recursos naturais e várias ameaças atuais
provam que o planeta não é imperecível. Nossa casa precisa de bons engenheiros ou poderá
ruir. Sem a elaboração de uma nova ética, pós-convencional e universal, a vida no planeta pode
acabar. A ética tradicional, que versa sobre a regulação sexual e que prescreve valores e regras
morais convencionais, já não é mais capaz de preservar o equilíbrio mundial. Hoje, mais do que
nunca, não faz sentido admirar uma pessoa de bons modos, boa família, que segue os valores
tradicionais da nobreza, mas que tem uma fábrica que polui uma cidade inteira. Cons iderando
3
ainda a instabilidade política do mundo, a miséria de dois terços do planeta, a conduta
irresponsável das grandes potências, a atual crise ecológica, e vários outros fatores
preocupantes, pode-se perceber que a ética, mais do que nunca, é essencial.1 Mais ainda: é
possível notar que uma ética universal, capaz de garantir uma existência digna às futuras
gerações, é uma exigência de nosso tempo.
O mesmo se dá com as profissões. Ser um profissional ético é um dever e uma necessidade do
mercado. Empresas, jornais, escolas e governos valorizam, cada vez mais, o profissional que sabe
lidar com os conflitos de maneira ética. Muitas vezes um código de ética bem formulado garante uma
conduta adequada na empresa, mas há situações que podem transcender o âmbito da prática
profissional e exigir um grau maior de reflexão ética. Para ilustrar essas duas dimensões da ética
profissional, uma “imediata” e a outra mais “complexa”, vale citar um exemplo: um profissional da
genética tem seu código de ética, que pode, entre outras coisas, exigir o bom trato com os pacientes, a
divulgação dos resultados de suas pesquisas e outros comportamentos que ele segue sem maiores
problemas. Mas, ao se deparar com a possibilidade de enriquecer com a escolha de fenótipos de bebês
por parte de pais obcecados pela perfeição, este cientista lida com um problema ético bem maior do
que os problemas freqüentemente gerados pelo exercício de sua profissão. O grau de reflexão, de
conhecimentos históricos e de consciência que lhe é exigido nessa situação certamente extrapola o
código de ética de sua profissão. Todos esses são assuntos e problemas tratados pela ciência do
ethos: a ética.
A ética é, portanto, um ramo do saber que reflete sobre a ação humana e que tenta
identificar os princípios práticos que regulam essa ação. É, no entanto, somente com o
surgimento da filosofia que se pode falar de ética enquanto uma reflexão racional sobre o agir
humano. Mas, como foi visto, isso não significa que o homem não refletia sobre sua ação ou que
ele não seguia princípios éticos. Ao contrário, o homem se distinguiu dos animais por meio de
um radical afastamento da natureza (da physis) e de um ingresso no mundo humano (no ethos).
Com o desenvolvimento dos costumes, da sabedoria e da moral, foram erguida s as primeiras
grandes civilizações. Uma dessas civilizações, a grega, criou a filosofia, forma de saber que deu
origem a todas as ciências existentes, inclusive a ética.
II – Grécia antiga: a invenção da ética
II.1 - O nascimento da filosofia - do mito ao logos: há milhares de anos, admirado pelo
poder e pelos mistérios da natureza, o homem tentou compreender porque ocorriam fenômenos
naturais tão devastadores e procurou saber de onde vieram todas as coisas que existem. Como
surgiam as tempestades, a seca, as erupções vulcânicas, os terremotos, os raios, as enchentes
e tantas outras mudanças da natureza? Como surgiram as montanhas, as plantas, a água, os
seres vivos, o homem? Por quê o sol desaparecia todos os dias? O que hoje parece simples era
surpreendente; o mundo era um grande enigma a ser decifrado.
Para responder a tantos mistérios, o ser humano formula a sua primeira explicação da
realidade: quem governa todas as coisas são entidades ocultas, forças sobrenaturais, deuses
diversos. As primeiras explicações sobre a origem e o funcionamento do universo foram dadas
por meio de histórias fantásticas ou mitos. O mito é a primeira manifestação da consciência
humana, que tentava desvencilhar-se das tarefas imediatas e instintivas da vida para “colocar
1 Por um tempo, o ser humano acreditou que a ciência era a chave para todos os enigmas, o bálsamo para todos os males. Semdúvida, ela
melhorou e transformou radicalmente o mundo em seu curto tempo de existência, mas trouxe problemas muito graves. Pela primeira vez
na história, o homem tem o poder de destruir o globo terrestre. Por isso, muitos filósofos, pensadores e cientistas atuais estão procurando
estabelecer normas, princípios e diálogos universais. A declaração dos direitos humanos é umexemplo de busca por universalid ade ética.
Mas há outros exemplos: o tratado de Kyoto, recusado pelos EUA, foi uma outra tentativa (também fracassada) de aplicação de uma
legislação universal de preservação do planeta.
4
ordem no mundo”, explicá-lo, entendê-lo. Ele faz com que o homem se sinta mais confortável
no espantoso universo que o cerca.
Embora o mito seja uma explicação fantástica da origem do universo, ele não é uma
mentira, ou uma história falsa. Em sua acepção original, a palavra mito não significa fábula,
lenda, invenção, mas sim o relato verdadeiro de uma história ocorrida no tempo dos princípios,
quando, com interferência do sobrenatural, algo passou a existir. Esse relato confere ao homem
uma sensação de conforto, de poder sobre a natureza. Afinal, quando sabemos como algo
funciona, perdemos o medo dessa coisa.
Quanto mais sofisticada se torna a explicação mitológica da realidade, maior é a sensação
de poder e domínio sobre a natureza que o homem experimenta. Por isso, com os mitos, surgem
os ritos, que são uma tentativa de interferir no curso da vida e da natureza. O ritual é a
atualização do mito: ele torna presente o tempo mágico das origens de alguma coisa e, com
isso, interfere no curso da realidade. Por meio dele, o homem se incorpora ao mito e se
beneficia com as energias das origens. Sacrifícios, oferendas, danças, alucinações, preces,
enigmas, etc., fizeram parte de rituais que foram celebrados nos quatro cantos do mundo, seja
para pedir chuva, sol, poder na guerra ou para agradecer as bênçãos recebidas. Um exemplo de
rito era o das Bacantes2, que saíam em procissão, possuídas por Dionísio, deus do vinho e da
loucura, e que não podiam ser observadas ou interrompidas por nenhum mortal. Quem tentasse
chegar perto delas durante a procissão era devorado. Baseando -se nesse ritual, Eurípedes
escreveu As Bacantes, onde narra a história de uma mãe que, possuída pelo deus, rasgou as
carnes de seu próprio filho.
Mas o mito não é apenas uma tentativa de domínio da natureza. Ele também transmite os
valores, a cultura, a sabedoria e a psyché de um povo. Junito Brandão afirma:
“O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente uma representação
coletiva, que chegou até nós através de várias gerações. E, na medida em que pretende explicar o mundo
e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode ser lógico: ao revés, é ilógico e irracional.
Abre-se como uma janela a todos os ventos; presta-se a todas as interpretações. Decifrar o mito é, pois
decifrar-se”.3
Ao expressar a consciência coletiva, o mito é um rico e indispensável material para aquele que
se propõe a compreender um povo, uma época ou a sua própria alma. Os mitos gregos expressam
essa importância: tão grande é a sabedoria coletiva contida na mitologia grega, que vários autores se
serviram dela para formular as suas teorias. O primeiro a se servir do mito de forma mais sistemática foi
Platão, mas há autores modernos que beberam das águas da mitologia grega para formular as suas
teorias. Freud é um deles: o mito de Édipo, de Electra, de Narciso e vários outros dão corpo à
psicanálise. Jung é outro autor que tinha os mitos como matéria prima de seu trabalho, na medida em
que os considerava como elos entre o consciente e o inconsciente coletivo.
Para ilustrar a riqueza dos mitos, narramos um, o do Minotauro4: Minos, filho de Zeus e Europa
(que Zeus raptou na forma de Touro), disputava o poder de Creta com seus irmãos, Sarpédon e
Radamanto. Para vencer a disputa, pediu ajuda a Posídon, que logo atendeu as suas súplicas: um
touro, belíssimo e enorme, saiu do mar e foi entregue a Minos para deixar claro a sua privilegiada
posição perante os deuses. Após esse episódio, Minos passou a governar Creta. Minos, no entanto,
prometera ao Deus que sacrificaria o touro e não cumpriu sua promessa. Para castigá-lo, Posídon fez
Pasífae (esposa de Minos e filha de Hélio, o Deus do sol) se apaixonar pelo animal. Desesperada,
2 Todos os povos tinham seus mitos, seus ritos e, é claro, seus Deuses. Geralmente esses Deuses eram identificados com o
poder, os fenômenos e os elementos da natureza (como no Egito, onde o poderoso Deus Rá coincidia com o sol). A mitologia
que aqui interessa, no entanto, é a grega, que é peculiar justamente porque não identifica seus deuses com as forças da
natureza. O Deus grego do sol, Hélio, não é o sol, mas re-presenta essa força da natureza, assim como Eros re-presenta o
amor, etc. Essa peculiaridade faz da mitologia grega um processo de abstração que a difere da maioria das mitologias antigas.
Esse caráter “abstrativo” será ainda mais desenvolvido por causa de uma grande dádiva grega: a escrita alfabética.
3 BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2001, v. 1.
4 Trata-se de um mito de origem cretense,narrado aqui porque Creta exerceu grande influência na cultura e na religião grega.
5
Pasífae pediu a Dédalo5 , o grande arquiteto e escultor, que a ajudasse. O artista fabricou uma novilha
de bronze tão perfeita que enganou o touro: entrando nela, Pasífae conseguiu ser possuída pelo
animal.
Foi dessa união que nasceu o Minotauro, um ser monstruoso, metade homem, metade
touro, que foi confinado por Minos em um grande labirinto construído por Dédalo. Esse monstro
causava pânico e indignação entre os atenienses, pois Minos, após derrotar Atenas numa longa
guerra, exigia, de nove em nove anos, que sete moças e sete rapazes partissem de Atenas para
alimentar o monstro de Creta. Para acabar com os sacrifícios, o herói ateniense Teseu parte
para a ilha de Creta entre os jovens que seriam sacrificados. Ao chegar lá, Teseu exerce
fascínio sobre Ariadne, filha de Minos que, apaixonada, resolve ajudá -lo em sua empreitada.
Mais difícil do que matar o Minotauro, no entanto, era sair do labirinto onde esse monstro vivia.
Ciente disso, Ariadne, a conselho de Dédalo, dá a Teseu um novelo de lã (um “fio condutor”).
Após matar a besta, Teseu segue o fio e retorna são e salvo do labirinto. Foge, então, com seus
companheiros e com Ariadne para logo depois abandoná-la na ilha de Naxos e partir para novas
aventuras.
Furioso com Dédalo por ter ajudado Pasífae e Ariadne, Minos prende o arquiteto com seu
filho, Ícaro, no labirinto. Dédalo, que era o construtor do labirinto, acha facilmente a saída e, com
dois pares de asas que havia fabricado, foge com seu filho recomendando que ele não subisse
muito em direção ao sol. Ícaro não resiste à tentação e sobe em direção ao céu. A cera de suas
asas derrete e ele cai no mar de Egeu, que passa a se chamar mar de Ícaro. Dédalo, então, é
acolhido por Cócalo, rei de Cumas, mas Minos não desiste de persegui -lo. Acuado em sua
própria cidade, Cócalo pede para suas filhas resolverem a situação. Durante o banho, Minos é
escaldado com água fervente.
Várias interpretações foram dadas a esse mito e a seus personagens: alguns afirmam que
o labirinto representa o útero, Teseu o feto e o fio de Ariadne o cordão umbilical, que permite a
saída para a luz. Outros vêem na união de Teseu com Ariadne um hieròs gámos, isto é, um
casamento sagrado com vistas à fecundidade da terra. Dédalo pode ser visto como o símbolo da
engenhosidade, do talento, da sutileza, mas também como o intelecto que, ao perder sua
direção, se torna prisioneiro de sua própria construção, o inconsciente. Ícaro, por sua vez, é o
símbolo da hýbris, da desmedida, pois ultrapassa o meio termo entre o mar e o céu, isto é,
ultrapassa o métron, a medida. Ao tentar ir além de seus limites, ele se torna o símbolo da
temeridade, a personificação da megalomania. Além disso, Ícaro revela que as asas, símbolos
da liberdade, não podem ser colocadas em nossos ombros, mas devem ser conquistadas por
meio de um grande esforço ou de uma iniciação. Ícaro erra porque usa as asas sem observar o
necessário preceito “conhece-te a ti mesmo”.6
Finalmente, uma outra interpretação possível para esse mito, especialmente à tríade
Minotauro-Teseu-Ariadne, é já impregnada pela razão filosófica: nessa ótica pode -se considerar
o labirinto como a mente humana, o Minotauro como nosso lado bestial e o fio de lã como a
nossa razão, nossa inteligência. A moral da história seria a seguinte: abandonado à própria
sorte, sem o uso da inteligência, da razão (do logos, que aparece junto com a filosofia), o
homem é dominado (devorado) por seu lado bestial, instintivo, irracional, desmedido.
Outro fragmento interessante da mitologia grega é o episódio do bandido Procusto, mais
um personagem derrotado por Teseu7. Este malfeitor tinha em seu esconderijo um leito de ferro
onde colocava todos os viajantes que raptava. Quando eram menores que o leito, ele lhes
5 Dédalo era ateniense, da família real de Cécrops, e é considerado como o maior arquiteto, escultor, inventor e artista de todos os tempo s.
As estátuas animadas que Platão cita no Mênon são foram feitas por Dédalo. Dédalo era mestre de seu sobrinho, Talos, e começou a
invejar-lhe o talento, quando ele, inspirado na queixada de uma serpente, inventou a serra. Sentindo -se ofuscado, Dédalo empurrou o
sobrinho da Acrópole. Foi esse assassinato que levou Dédalo ao exílio emCreta, onde foi acolhido por Minos, que o nomeou seu arquiteto
oficial. Foi Dédalo que construiu o famoso labirinto onde o Minotauro, como veremos logo a seguir, habitava.
6 Cf. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. 15º ed. Petrópolis: Vozes, 2000. vol. I, p. 61-65
7 Fato que “ocorreu” quando Teseu partia de Trezena para assumir o seu posto de hereiro do rei de Atenas.
6
esticava as pernas; quando eram maiores, cortava a parte que sobrava. Teseu o venceu e o fez
provar de seu próprio remédio, colocando-o na cama e repetindo sua fúnebre tortura. Moral da
história (adaptada aos tempos modernos): não procure pessoas que caibam em seus sonhos,
não tente colocar as pessoas em uma cama de ferro, pois todos são diferentes e o castigo pode
vir sob a forma do delito cometido. Lição sobre o ciúme e o amor. Todos os mitos trazem lições
valiosas sobre a vida. Os relatos de Pandora e de Cupido e Psique, por exemplo, são boas
lições sobre a curiosidade, a falta de confiança e a arrogância humana.
Como se vê, o mito é um discurso que admite contradições e incoerências lógicas, mas
isso não significa que ele é desprovido de sentido e significado. Ao contrário, os mitos eram
vividos como verdades e, por isso, eram distintos das fábulas. Para ouvir o mito e para viver o
rito, a pessoa deveria ser iniciada; já as fábulas poderiam ser contadas a qualquer um, até
mesmo a crianças, uma vez que não eram verdades sagradas. Na Grécia Antiga quem narrava
o mito era o poeta, considerado como uma ponte entre o divino e o humano, como o detentor
das verdades mais profundas. Dois poetas gregos merecem destaque: Homero e Hesíodo, que
foram os primeiros a sistematizar toda essa sabedoria mitológica em obras como a Ilíada, a
Odisséia e Os Trabalhos e os Dias. A partir daí os mitos gregos estavam registrados para
sempre. A escrita eterniza o mito e abre o horizonte da história.
Mas se a escrita eterniza o mito, ela também o racionaliza e extrai um pouco de seu
dinamismo. Depois de escrito, o mito gradualmente perde a sua força e passa a ser considerado
como uma fábula ou como um manancial de alegorias e sabedoria popular, e não mais como
uma verdade que deveria ser vivida com a prática dos ritos. A partir de Homero e Hesíodo, a
explicação mitológica da realidade começa a ser questionada e o poeta deixa de ser uma ponte
entre o divino e o humano, um portador da verdade e passa a ser visto como um defensor da
tradição e da sabedoria ou simplesmente como um poeta. É nesse momento de desconfiança em
relação à explicação mitológica da realidade que ocorre o fenômeno mais importante da cultura
ocidental, o nascimento da filosofia, episódio também conhecido como “passagem do mito ao
logos”8. A partir desse momento, quem ocupa a cena não é mais o poeta ou o sábio, mas o
filósofo que, ao contrário das duas figuras anteriores, não se afirma como o portador da verdade,
mas como aquele que a persegue mesmo sem ter a certeza de encontrá -la.
Os primeiros filósofos eram chamados de pré-socráticos, filósofos cosmológicos ou filósofos da
natureza (físicos): pré-socráticos porque antecedem a Sócrates, um marco na filosofia; cosmológicos
porque a filosofia nasceu da admiração do homem diante do cosmos, que o leva a indagar sobre o
movimento dos astros, o funcionamento do universo e a origem de todas as coisas; e filósofos da
physis (físicos) porque buscavam a resposta sobre a origem das coisas na natureza (na physis).
Como pretendiam entender a ordem de toda a realidade, esses primeiros filósofos concentravam
suas investigações na busca pelas causas do universo. Se na explicação mítica a origem das coisas
era determinada pelas ações dos deuses, com o surgimento da filosofia esse tipo de resposta não é
mais convincente. É preciso, então, encontrar a verdadeira causa de todas as coisas. É por isso que a
maioria dos pré-socráticos se concentra na busca do “primeiro princípio”, da arché. A arché (o primeiro
princípio) significa: 1- a fonte de todas as coisas, 2- a foz ou termo último de todas as coisas e 3- o
sustentáculo permanente que mantém as coisas existindo. Trata-se de algo semelhante à nossa
concepção de deus, mas impessoal e natural.
Na busca da arché muitas respostas foram encontradas: para Tales de Mileto, o “pai” da filosofia,
o “primeiro princípio” era a água. Tales afirmou que a “Terra flutua na água” porque acreditava que
todas as coisas têm uma natureza úmida e dependem da água para existir. As sementes, as plantas, os
animais, os homens; tudo precisa de água para viver. E a vida, quando se extingue, perde a água. Já
8 Como dissemos, os deuses gregos re-presentavam as forças da natureza, ou seja, favoreciam mais a abstração, o pensamento. Com a
escrita, esses mitos, de certa maneira, se “cristalizam” e, com isso, abrem espaço para sua “racionalização” e, posteriormente, para o
nascimento da filosofia. Além desses, no entanto, outros fatores também contribuiram para que a filosofia surgisse na Grécia, a saber: a
liberdade religiosa e política, o uso da moeda, as navegações, que desmitificavam o mundo, etc.
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para Anaxímenes, outro “pré-socrático”, a arché era o ar, que é infinito, dá combustível ao fogo, forma
à água e a todas as coisas.
A despeito do aparente exotismo de seu conhecimento, os pré-socráticos fizeram muitas
descobertas e tiveram grandes intuições. Anaximandro, que afirmava o infinito como “primeiro
princípio”, disse que “os primeiros animais nasceram no elemento líqüido, cobertos por uma capa espinhosa;
tendo crescido de idade deixaram a água e vieram para o seco e, tendo-se rompido a capa que os cobria, pouco
depois mudaram seu modo de viver.”9 É curioso perceber que duas idéias da ciência moderna estão
presentes nessa afirmação de Anaximandro: que a vida surgiu na água e que a vida evoluiu.
Três outros filósofos pré-socráticos merecem atenção: Empédocles, Heráclito e Parmênides. O
primeiro porque era um “físico pluralista” que disse que o mundo não era constituído por um único
princípio, mas por quatro: água, terra, fogo e ar. Esses elementos, combinados, separados ou unidos,
deram origem à vida. E aquilo que os une ou os separa é o amor ou o ódio, que se tornam forças
cósmicas causadoras da união e a separação dos elementos. Empédocles, à sua maneira, percebeu
que os físicos não davam uma explicação suficiente para a origem das coisas. Os dois outros filósofos,
Heráclito e Parmênides, merecem destaque porque são representantes de duas visões que se opõem e
que influenciaram toda a filosofia.
Heráclito afirmava que “não se pode entrar no mesmo rio duas vezes”. Tudo está em
permanente mutação; nós mesmos já não somos o que éramos a dez minutos atrás. Com essa
máxima, o primeiro princípio de Heráclito só poderia ser o fogo, o elemento mais mutável da natureza.
Heráclito é também o primeiro a falar do “logos” como “aquilo que governa todas as coisas”.
Parmênides, por sua vez, é portador de uma visão de mundo diametralmente oposta a de
Heráclito. Para ele as coisas permanecem sempre as mesmas. De acordo com ele, “o ser é e não pode
não ser; o não ser não é e não pode ser de modo algum”. Para Parmênides o ser era uno, ingênito,
imóvel, incorruptível e imperecível. Segundo essa visão, as coisas seguem os seus cursos sem
alteração, o ciclo da vida é sempre o mesmo, tudo permanece sempre como está. A mudança é uma
ilusão.
Heráclito e Parmênides representam duas visões que orientaram grandes filósofos ao longo dos
séculos. Sempre existiram e existirão os que acreditam no eterno devir de todas as coisas e os que
crêem na permanência absoluta da ordem das coisas. Na filosofia moderna e contemporânea há os que
afirmam que a história segue um curso definido, uma evolução inevitável, e os que afirmam que a
história não é constituída por uma linha racional, por uma evolução natural, mas que ela é, ao contrário,
inusitada, surpreendente, constituída por eventos imprevisíveis. Platão, como será visto mais tarde,
tenta unificar essas visões, dando privilégio a Parmênides.
Sobre os pré-socráticos, não é necessário dizer muita coisa. Basta perceber que eles forneceram
as primeiras explicações racionais sobre a origem e o funcionamento do universo. E que chegaram a
descobertas surpreendentes usando apenas a razão (o logos), ou seja, sem nenhum instrumento,
tecnologia ou método científico. Eles representam, é bom sublinhar, aquilo que os estudiosos chamam
de “passagem do mito ao logos”: a partir deles é inaugurada uma nova maneira de explicar a
realidade, que logo será definida como filosofia (das palavras gregas philo=amizade e
sophia=sabedoria). O filósofo, então, é o amigo da sabedoria, e não o sábio. Ele sabe que a sabedoria
é, como o manto de Penélope10, interminável. Diferencia-se, pois, do poeta, que se apresentava como o
portador definitivo da verdade.
Os pré-socráticos foram os primeiros a substituir a explicação mítica da realidade pela explicação
filosófica. Mas as discussões sobre a arché são insolúveis. Talvez Empédocles soubesse disso quando
tentou resolver definitivamente as querelas entre os físicos afirmando não um, mas quatro princípios da
vida. O certo é que a “filosofia da physis” logo se esgota. É com o surgimento de novos personagens
9 REALE, G. História da filosofia antiga. 9º ed. São Paulo: Loyola1993 , p.57
10 Penélope era a esposa de Ulisses que ficou vinte anos fora de casa, perdido em inúmeras aventuras. Belíssima, Pen élope foi cada vez
mais pressionada para se casar novamente. Para continuar fiel a seu marido, Penélope disse que se casaria depois de tecer um manto.
Todas as noites, no entanto, ela desfazia seu trabalho, para recomeçá-lo infinitamente.
8
que a filosofia se estabelece definitivamente como a “ciência primeira”. Dentre esses personagens,
serão vistos os mais importantes da Grécia antiga: os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles.
Curiosidades & Dicas de Consulta e Reflexão:
=> O mito de Prometeu e Pandora narram episódios sobre o início da história humana. Pesquise sobre
Prometeu e Pandora e veja se encontra alguma semelhança com crenças cristãs. Reflita sobre o
significado dessas semelhanças.
=> Muitos acham que a doutrina da reencarnação foi desenvolvida por A. Kardec. Na verdade, o
orfismo e o pitagorismo já falavam de reencarnação como um caminho para a libertação da alma,
embora de forma distinta. Procure saber sobre Pitágoras e sua teoria da reencarnação (dica de
consulta: REALE, Giovanni, História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola).
=> Parmênides acreditava que a mudança é uma ilusão, que tudo permanece sempre o mesmo. Seu
discípulo Zenão é ainda mais radical. Procure na internet os famosos “paradoxos de Zenão”.
=> Um clássico para ser lido: A Odisséia, de Homero.
=> Dois excelentes manuais sobre a Grécia antiga: JAEGGER, W. Paidéia, a formação do homem
grego. São Paulo: Martins Fontes e REALE, Giovanni, História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola.
II.2 – O impasse sofista: o relativismo - ao procurar uma explicação para a origem do universo,
os pré-socráticos não reflete sobre a vida humana. A filosofia da physis não trata do homem e de suas
relações. Foram os sofistas os primeiros a abandonar a filosofia cosmológica e a refletir sobre o ser
humano; foram eles que deslocaram o eixo da reflexão filosófica da physis (natureza) e do cosmos
(universo) para o antropo (homem) e aquilo que lhe diz respeito enquanto membro de uma comunidade.
Os temas da sofística são a ética, a política, a religião, a retórica, a arte, a educação e tudo aquilo que
hoje se chama “cultura”.
Originalmente o “sofista” era o “sábio” ou o “especialista do saber”. Com o passar do tempo,
especialmente depois das críticas de Sócrates e Platão, a palavra “sofista” adquire um significado
pejorativo e passa a designar aquelas pessoas que usam raciocínios maldosos para a pura e simples
persuasão, sem preocupação com a verdade. De acordo com Xenofonte, “se alguém vende sua beleza
por dinheiro a qualquer um que o deseje, chamam-no prostituto..., analogamente, os que vendem a sabedoria a
qualquer um, são chamados sofistas, que é o mesmo que dizer prostitutos.”11
Essa má fama dos sofistas se
perpetuou ao longo da história por alguns motivos: 1 - pelo desprezo que lhes relegou Platão e
Aristóteles, os dois maiores filósofos da antiguidade; 2- pela venda de conhecimentos e sabedoria a
qualquer um que pagasse, fato que era condenado por muitos gregos, que possuíam uma concepção
aristocrática da educação (só os nobres e bem nascidos podiam ser educados). Essa “democratização
do saber” ameaçava a nobreza, que era a detentora do poder e do conhecimento12. 3- Um terceiro
motivo da má fama do sofista foi a sua peregrinação pela Grécia, que não era bem vista pelos gregos,
que tinham em mais alta conta a sua cidade. 4- Finalmente, a principal razão pela qual os sofistas não
eram bem quistos é o relativismo moral que eles trouxeram para a Grécia de seu tempo. Questionando
valores estabelecidos, oferecendo a todos a possibilidade de bem argumentar e de, com isso, se
destacar na sociedade, os sofistas incomodaram a Grécia antiga.
Por que viviam num tempo de crise, quando a democracia substituiu a aristocracia, os sofistas
foram adorados e odiados ao mesmo tempo: adorados porque na democracia quem melhor argumenta
se destaca na pólis. E eles ensinavam justamente a arte da retórica, da persuasão, que era
fundamental para as pessoas que desejavam se destacar na política. Odiados por que, como será visto,
11 Ibidem, p.190
12 Atualmente todos sabemque uma das melhores maneiras de se preservar um sistema político excludente é privar o povo de educaç ão.
9
eles questionaram valores estabelecidos e representaram um tempo de profundas transformações.
Para compreender melhor o impacto causado pelos sofistas, é preciso observar a sua filosofia mais de
perto. Para isso, destacamos os dois mais conhecidos: Protágoras e Górgias.
Protágoras (Abdera, 491-481 a.c ao final do século): talvez o mais famoso dos sofistas,
Protágoras, viajou por toda a Grécia e foi para Atenas várias vezes, onde fez muito sucesso. As
Antilogias constituem a sua principal obra.
O princípio que constitui a base da filosofia de Protágoras é o axioma “o homem é a medida de
todas as coisas, daquelas que são por aquilo que são, e das que não são por aquilo que não são”. Esse
princípio nega a existência de um critério absoluto ou de uma base segura que distinga o ser do
não ser, o verdadeiro do falso. O único critério que temos para dizer se uma coisa é falsa ou
verdadeira é o homem individual. No Teeteto, 151e-152a, Platão explica a filosofia de Protágoras:
“E não quer dizer com isso que, tal como as coisas individuais me aparecem, tais são para mim, e tais a ti,
tais para ti, porque és, como eu sou, homem? [...] mas não acontece às vezes que, soprando o mesmo
vento, um de nós sente frio e o outro não? E um sente pouquíssimo, e o outro muito? [...] E então, como
chamaremos este vento: frio ou não-frio? Ou devemos acreditar em Protágoras, que para quem sente frio,
é frio, para quem não sente, não é?”13
A ausência de um critério universal que distinga o que é ou não uma coisa verdadeira, revela que
não há uma verdade absoluta e que todos estão com a verdade, com a sua verdade. Se não existe “o
verdadeiro”, também não existem valores morais absolutos. O verdadeiro e os valores não são
universais, mas apenas aquilo que é mais útil, mais conveniente. O sábio deixa de ser o portador da
verdade e passa a ser aquele que percebe esse “relativo mais útil” e que consegue convencer as
pessoas a reconhecê-lo e colocá-lo em prática. O verdadeiro e o falso, o bem e o mal perdem a sua
universalidade e passam a indicar o útil e o prejudicial, o melhor e o pior. Diante disso, pode-se dizer
que o agricultor é sábio enquanto conhece o bem e o útil nas plantas; os médicos enquanto sabem o
que são o bem e o útil para os corpos; e o sofista é sábio enquanto conhece o bem e o útil para a
cidade e convence, com argumentos, os cidadãos desse “mais útil”.
O problema dessa posição é o seguinte: o útil nas plantas é definido pelo agricultor com relação
aos critérios de sua saúde, de seu correto crescimento e de sua maturação; o útil do corpo humano é
concebido pelo médico em cima do critério da saúde. Mas e o útil para o homem? Ou, mais ainda, o útil
para a cidade? Quem o determina? Em relação a quê? Protágoras afirma que quem deve determinar
isso é o sofista, mas não diz quais critérios o sofista deve utilizar para fazer essas determinações.14 Isso
gera alguns problemas: de onde vem a autoridade do sofista para determinar o que é “mais útil” para a
cidade? Como ele sabe o que é “mais útil” para a cidade? Como garantir que aquilo que o sofista pensa
ser mais útil para a cidade não seja, na verdade, mais útil apenas para ele mesmo?
Dessa maneira, ao afirmar que não existem valores absolutos, que a verdade é “aquilo que é
mais útil” e que o sábio é aquele que convence as pessoas a reconhecer a sua verdade, Protágoras
instaura o relativismo moral e/ou o utilitarismo15, que podem ser perigosos à sociedade se
radicalizados. Afinal, se cada um tem a sua verdade, se não há critérios absolutos que julguem se uma
coisa ou ação é verdadeira, os valores se tornam relativos e a noção de justiça é ameaçada. O
convencimento da correção ou da incorreção da ação ou a utilidade da ação substituem a justiça
e/ou a tradição como critério para o agir. Moralmente correto não é mais aquilo que era determinado
pela tradição, mas aquilo que é decidido com base no convencimento, no argumento.
É por isso que Protágoras abalou seu tempo: ao afirmar a inexistência de uma verdade absoluta,
ele fulmina a tradição. Nesse processo, o poeta, os sábios e os primeiros filósofos perdem a autoridade
e a função de portadores da verdade. O sólido terreno da tradição vira um pântano no qual os principais
13 Ibidem, p.201
14 Ibidem, p. 208
15 O relativismo e o utilitarismo, embora se pareçam muito, são concepções distintas. O relativismo afirma que os valores são relativos,
variam de acordo com a época, a cultura, a situação, etc.; já o utilitarismo afirma que a verdade é “aquilo que é mais útil” . É bom dizer
que o utilitarismo, cujas sementes foram lançadas pelos sofistas, se des envolve na modernidade com Jeremiah Bentham, que enuncia a
seguinte regra: “a máxima felicidade possível para o maior número possível de pessoas”. A maioria políticos se guia por este princípio
utilitarista.
10
pilares da sociedade grega perdem a sua força de sustentação. E, quando uma sociedade tem seus
pilares questionados, ocorre um momento de crise, de transformação16. São compreensíveis, portanto,
as críticas que foram direcionadas aos sofistas eles são os principais agentes de uma avassaladora
crise moral e espiritual na Grécia antiga.17
Além disso, o relativismo pode gerar sérios problemas: se não há um conceito absoluto de
justiça, como é possível saber se uma ação é ou não legítima? Se cada um tem a sua verdade, isso
significa que cada um pode agir da maneira que lhe convém? Se na democracia a verdade é aquilo que
é mais útil e o bom político é aquele que consegue convencer as pessoas desse “relativo mais útil”, isso
não significa dizer que o regime democrático é puramente retórico, afastado do compromisso com a
verdade? A democracia deve se orientar pelo critério daquilo que é mais útil para o seu povo? Quem
decide o que é mais útil num país democrático deve ser aquele que tem maior persuasão? Se assim
for, o que parece ser mais útil para um povo, mesmo que prejudicando o resto do mundo, deve ser
sempre perseguido? Como, afinal, uma democracia deve decidir aquilo que é mais útil? Apenas pelo
critério da persuasão? Um regime político baseado na pura retórica não corre riscos demais? O Tirano
não pode começar o seu governo convencendo as massas, por exemplo, de que é preciso perseguir
algum extrato da sociedade ou vizinho? Se cada país do mundo atual adotar a máxima de Protágoras e
tiver a sua própria verdade, a sua própria justiça, não será tão razoável adotar a máxima nazista do
extermínio da diferença quanto a máxima cristã do amor ao próximo? Como se vê, vários problemas
éticos e políticos se colocam a partir dos sofistas.
Até então, mostramos os lados “negativos” desse grupo de filósofos. É preciso ressaltar os
pontos “positivos”: sendo precursora da democracia, a sofística contribuiu para a inclusão de todas as
pessoas nas mais altas discussões18. Para os sofistas, todos poderiam participar com sucesso da vida
política, desde que fossem bem preparados na arte do diálogo. A democratização do saber foi outra
lição dessa escola: os sofistas acreditavam que qualquer um, desde que bem conduzido, poderia
aprender coisas sobre todos os assuntos e áreas. Para mostrar a importância disso, vale lembrar que
muitos modernos acreditavam que os índios e os negros não poderiam se tornar “civilizados”, isto é,
detentores de direitos iguais (e de voz) na sociedade.
Quanto ao relativismo instaurado por Protágoras, apesar de perigoso, também é saudável para a
filosofia, na medida em que desmascara falsos absolutos, idéias antiquadas e dogmatismos colocados
pela tradição. Submeter os seus valores à crítica e à discussão é um ato necessário em todas as
sociedades saudáveis (embora isso não deva corresponder à negação absoluta e não-crítica da
tradição). Enfim, a filosofia de Protágoras colocou problemas e questões que até hoje persistem. Outro
sofista famoso é Górgias, o primeiro representante do niilismo ocidental.
Górgias (Leontinos, 485/480 a.c até 380-370 a.c): Sua principal obra intitula-se Sobre a
natureza ou sobre o não ser e representa o niilismo ocidental. Esta obra apresenta três teses
principais, a saber: 1- O ser não existe, ou seja, existe apenas o nada, 2- se o ser existisse, ele não
poderia ser conhecido, e 3- mesmo que pudéssemos pensá-lo, o ser permaneceria inexprimível.
Assim como Protágoras, Górgias afirma que o homem não pode alcançar a verdade absoluta
(aletheia). De nada adianta o esforço da fé ou da razão para encontrar verdades absolutas. Diante
dessa impossibilidade será que o homem deve renunciar à sua razão? Não é o que pensa o filósofo
de Leontinos: para ele, o homem deve usar a sua capacidade racional, mas de outra forma, sem que
isso implique na busca por uma verdade absoluta. A razão que ele segue é a que ilumina as
16 A crise instaurada pelos sofistas será um estímulo para o posterior desenvolvimento da filosofia. O pensamento de Sócrates e Platão,
por exemplo, é uma espécie de “resposta” aos sofistas. Por isso, seria mais interessante considerar a palavra “crise” como fa zem os
chineses: a palavra que eles usam para designar “crise” é wei-ji, que é composta pelos caracteres “perigo” e “oportunidade”. Uma crise é
perigosa, mas traz sempre a “oportunidade” de uma mudança, que pode ser para melhor.
17 Uma das mudanças da época é a instauração da democracia, muito criticada por Platão e pelas classes dominantes. Ao substituir a
aristocracia (ou a oligarquia), a democracia inaugura um período de transformações e questionamentos, característicos de uma época de
crise.
18 Essa é uma das principais razões da difamação histórica dos sofistas: em geral os gregos (como Platão, o maior filósofo da Grécia)
tinham uma visão aristocrática da vida política, e não viamcombons olhos a participação de qualquer cidadão na educação e n os destinos
da polis.
11
circunstâncias da vida dos homens e da cidade. Somente pela análise de cada situação, diz
Górgias, é que se pode decidir o que fazer ou deixar de fazer. Não há uma fórmula pronta para guiar o
agir humano; cada situação exige a sua solução específica. E, se cada situação demanda uma solução
específica, isso também significa que os direitos e deveres variam de acordo com o momento, a
idade, a posição social, o sexo, etc. Ao questionar a verdade, Górgias se torna o primeiro
representante do que hoje se chama “ética da situação”.
Com pensamentos como esses, os sofistas tocam em problemas fundamentais da filosofia e da
ética: o que é e como é a verdade? Eterna ou produto dos homens? Se a verdade é um produto dos
homens, ela pode variar? Se a verdade varia, isso não significa que ela simplesmente não existe? E, se
as verdades podem variar, os valores também podem? Isso significa que não há valores ou princípios
éticos absolutos e universais? E a justiça? Deve ser única ou varia de acordo com as situações? Se a
justiça varia de acordo com as situações, não se pode ter dois pesos e duas medidas em casos
similares? Se isso ocorre, um mesmo crime pode gerar uma condenação para um indivíduo e a
absolvição para outro? Isso não é injusto? Se isso é injusto, não significa que deve existir, sim, uma
noção única de justiça, válida para todos os homens? Como chegar a essa noção universal de justiça?
Uma noção única de justiça, no entanto, não seria uma agressão à diversidade cultural? Cada povo
deve ter a sua própria noção de justiça? Cada povo pode distribuir direitos e deveres da forma que
desejar? A variação dos direitos conforme o sexo, a posição social ou o momento é justa? Se for, tudo
é válido e os sofistas estão corretos quando dizem que o mais importante é o poder de persuasão?
Como, afinal, podemos saber se um determinado valor moral deve ou não ser superado ou adotado?
Apenas por meio da retórica? Como se vê, inúmeras questões e problemas foram colocados pelos
sofistas, que deram o definitivo impulso para que a filosofia mudasse a face da civilização ocidental.
Sócrates, um dos pilares da filosofia, fez de seu pensamento uma resposta aos sofistas.
II.3 – Sócrates e a resposta aos sofistas: Sócrates nasceu aproximadamente em 470/469 a.c
e morreu em 390 a.c., condenado à morte por corromper a cidade e os costumes. Seu pai, Sofronisco,
era escultor; sua mãe, Fenarete, lavadeira e parteira. Casou-se com Xantipa, descrita por Antístenes, o
cínico, como a mais insuportável das mulheres que existem, existiram e existirão. A não ser pelas
campanhas militares em Potidéia, Anfipoli e Delio, Sócrates nunca saiu de Atenas. Porque não deixou
nada escrito, as principais fontes que temos dele são Aristófanes, Aristóteles, Xenofonte e seu discípulo
Platão, que é seu principal “porta-voz”.
Assim como os sofistas, Sócrates viveu num momento de crise, quando a antiga aristocracia
perdeu o poder e a democracia passou a vigorar. Mesmo que alguns já o tenham chamado de “o maior
dos sofistas”, Sócrates é um adversário histórico da sofística, que combateu o relativismo moral e as
indefinições por ela colocadas.
Para responder aos impasses gerados pelo relativismo dos sofistas, Sócrates começa a sua
reflexão com uma célebre pergunta, “o que é o homem?” A resposta a essa pergunta é direta: o
homem é a sua alma. A alma, no entanto, não deveria ser considerada como um “fantasma” que
abandonava o corpo na morte para vagar no Hades, mas sim como a nossa razão, como a sede da
nossa atividade pensante e eticamente operante. A alma socrática é o eu consciente, a
personalidade intelectual e moral. Para provar a existência da alma, ele oferece o seguinte argumento:
a alma se serve do corpo. Uma coisa é o que se serve e outra o que é servido. O homem, portanto, é
aquilo que se serve do corpo: a alma. Com isso, é fácil compreender as duas máximas mais famosas
de Sócrates: “conhecer a si mesmo” e “cuidar de si mesmo”. Para conhecer a si mesmo, o homem
deve examinar-se interiormente e conhecer a própria alma e, para cuidar de si mesmo, ele deve cuidar
em primeiro lugar da alma. Dessa maneira, o critério para julgar se uma ação é ou não justa não
deve ser a sua utilidade ou a retórica daquele que a defende, mas a sua conformidade com a
essência humana: a alma, a consciência, que é o local onde se encontram as idéias do belo, do bom,
do justo, etc.19 A resposta aos sofistas está dada: o homem não deve agir conforme aquilo que é mais
19 Muitos filósofos acreditaram que algumas idéias estavam, de alguma forma, impressas em nossa alma. Isso explicaria, por exemplo, o
fato de que todos os povos têm a idéia de Deus ou de que todos os homens sabem o que é mau e o que é bom(mesmo que pratique mo
12
útil, mas conforme a sua essência: a alma. O homem não deve se guiar pela retórica de um pretenso
“sábio”, mas pela voz de sua própria consciência.
Esses pensamentos invertem o quadro de valores da Grécia. Antes de Sócrates, a virtude (areté)
era relacionada aos valores corporais e materiais, como a saúde, o vigor físico, a beleza, a fama, a
nobreza, o poder, a habilidade de guerrear, etc. Depois dele, a virtude passa a ter relação com os
valores ligados à alma, como o conhecimento ou a ciência. É por isso que Sócrates considera o
autodomínio (enkráteia) como a maior virtude que o homem pode almejar: o homem virtuoso não é o
guerreiro, o belo ou o rico, mas aquele que é capaz de dominar as suas paixões, a sua dor, a sua
fadiga ou o seu prazer, ou seja, aquele que domina a sua própria animalidade e exerce a sua natureza
racional. A liberdade, que para os gregos tinha um sentido político (livre era o cidadão, que
participava dos destinos da polis, isto é, que fazia política), passa a ter também um sentido moral
(livre é quem consegue dominar a si próprio). Com isso, todos os valores mudam: o verdadeiro amigo
não é mais o que traz honra ou poder, mas o que tem domínio sobre si mesmo; a felicidade se
interioriza, deixa de corresponder a uma vida rica e cheia de honrarias, e passa a ser ligada ao
autodomínio e à correção moral. Não é a sorte que faz um homem feliz, mas o autocontrole, a razão.
Platão, como será visto a seguir, transfere esse raciocínio para a política: justo e feliz é o Estado
governado pelo filósofo, isto é, pela razão. Além disso, as pessoa não devem escutar os políticos ou os
poderosos para saber o que é certo ou errado. Para isso, diz sócrates, fomos dotados de alma, de
consciência.
Essa completa inversão de valores foi a responsável pela condenação de Sócrates à morte: o
novo quadro de valores por ele instaurado ameaçou a velha ordem e o levou a ser condenado como
“corruptor dos costumes”. Outro fator que o indispôs com a sua cidade foi seu método, constituído pela
ironia e pela maiêutica: Sócrates partia da afirmação de nada saber, colocando-se diante do interlocutor
como quem deseja aprender. Esse “fingimento” provocava um choque sobre o ouvinte e o levava ao
diálogo. Daí sua ironia: ele se mostra como amigo e admirador do interlocutor para, por meio do
diálogo, levá-lo à consciência de sua própria ignorância. Quanto ao termo “maiêutica”, indica que
Sócrates inspirava-se na profissão de sua mãe e fazia o trabalho de “parteiro espiritual”. Com
sucessivas perguntas, ele trazia à tona a verdade escondida na alma de seus interlocutores20.
Sócrates acreditou tanto em suas idéias, que morreu por elas sem pestanejar. Poderia ter fugido
ou escolhido o exílio, mas preferiu aceitar sua condenação para não violentar a lei de Atenas, que tanto
prezava. Morreu pela pólis. Na Apologia de Sócrates, Platão narra a defesa filósofo de Atenas:
“Mas a vós que haveis me condenado, quero fazer uma predição e dizer aquilo que acontecerá depois.
Eu já estou naquele limite no qual mais facilmente os homens fazem predições, quando estão para
morrer. Eu digo, ó cidadãos que me matais, uma vingança recairá sobre vós logo depois da minha morte,
muito mais grave do que aquela que cometeis ao matar-me. Hoje fazeis isso na esperança de vos
libertardes do dever de dar conta da própria vida e, ao invés, passar-vos-á todo o contrário: eu vo-lo digo
antecipadamente. Não mais apenas eu, mas muitos vos pedirão contas: todos aqueles que até hoje eu
moderava, e vós não percebestes. E serão tanto mais obstinados quanto mais jovens; e a vossa irritação
será tanto maior. Pois se pensais que, matando homens, impedis que alguém vos repreenda pela vossa
vida não reta, estais enganados. Não, não é este o modo de se libertar deles; e nem é possível nem belo;
mas há outro modo belíssimo e muito fácil, em vez de caçar ao outro a palavra, esforçar-se por ser
sempre mais virtuosos e melhores. Este é o meu vaticínio para vós que haveis me condenado; e aqui
termino.”21
mal). Sócrates acreditava que as idéias do belo, do bom, do justo, etc., estavam impressas em nossa alma, e que bastaria consultá-la para
sabermos como agir diante de um impasse ético.
20 Como foi dito na nota anterior, Sócrates acreditava que a verdade estava presente na alma das pessoas, mesmo que encoberta pela vida
sensível, pelo mundo da doxa (opinião). Muitos autores verão o mundo sensível como a causa dos desvios humanos; verão o afastamento
do homem da vida mundana como a solução para a “cegueira da verdade”. Seja na vida do filósofo contemplativo, do santo ou do
cínico, o afastamento dos prazeres carnais será perseguido por muitos pensadores ao longo da história. Diversos filósofos, ma s especial e
primeiramente Pitágoras e Platão, ajudaram a construir essa visão. Por outro lado, há os que enxergam nessa concepção uma das
principais causas da alienação humana e a combatem veementemente.
21 Ibidem, p.329
13
A predição de Sócrates vingou e outros questionadores surgiram na Grécia. Entre eles estava
um jovem discípulo seu, que se tornaria o maior vulto da civilização ocidental: Platão.
PARA PENSAR
1- Na administração de uma empresa é melhor ser relativista ou se guiar por princípios éticos bem
definidos? Por quê? O que você faria na seguinte situação: é dono de uma empresa e coíbe qualquer
desonestidade, inclusive em relação aos concorrentes. Um empregado seu obtém, por meios ilícitos,
uma informação privilegiada da concorrência e consegue, com isso, fechar um grande negócio. Depois
de fechar o negócio, ele volta para a sua empresa e te conta tudo o que fez. Como você agiria?
2- Existem princípios éticos universais, ou são todos contingentes?
3- Muitos afirmam que não existem princípios éticos universais, e que a diferença entre as culturas
prova isso. Diante desse quadro, devemos abandonar as tentativas de impor um ethos universal e
respeitar a diferença cultural e ética dos povos. É tão legítima a vida moral americana como a dos
esquimós ou a dos índios. Qualquer tentativa de elaboração de uma ética universal significa
autoritarismo ou tentativa de domínio cultural. Se isso é verdade, como a diversidade cultural pode ser
garantida? Um povo, por exemplo, pode ter a ambição de subjugar o outro e falar que isso faz parte de
sua constituição moral? Não parece, então, que a diversidade só pode ser garantida através do
princípio ético universal do respeito à diferença ou da não agressão entre os povos? Se assim é,
existem ou não princípios éticos universais? Se existem, pense em pelo menos três princípios éticos
universais.
5- Se você encontrou três princípios éticos universais, como fez para identificá-los?
6- Os valores morais mudam ao longo do tempo. Como, por quê e a partir de que eles mudam?
II.4 – Platão (Atenas, 427 a.c a 347 a.c): a justiça do todo e a das partes
Quando nasceu, Platão ganhou o nome do avô: Aristocles. Não se sabe se o seu o apelido
(Platão = ombros largos) veio de seu mestre de ginástica, o lutador Aristo, ou dele mesmo, querendo
indicar a dimensão do seu estilo. Seu pai orgulhava-se do parentesco com o rei Crodo e do de sua
esposa com Sólon, e é por isso que Platão talvez tivesse, desde a juventude, a vida política como o seu
ideal de vida.
O jovem Aristocles encontrou-se com Sócrates quando tinha aproximadamente 20 anos. Num
primeiro momento, conviveu com Sócrates para preparar-se para a vida política, mas o destino e a
grande vocação o levaram a uma dedicação exclusiva para com a filosofia. Teve, no entanto, algumas
experiências políticas, todas decepcionantes: em 404-403 a aristocracia tomou o poder e dois parentes
de Platão (Cármides e Crítias), que foram destaques no governo, usaram métodos violentos e facciosos
para governar. Em 399, presenciou a morte de Sócrates pelos democratas e decidiu se afastar da vida
política. Ainda assim, em Siracusa, na Sicília, ele tentou, em vão, transformar o tirano Dionísio I em um
rei filósofo. Essa interferência indireta na política, por meio da paidéia (formação, educação), também
não deu certo: desentendeu-se com o tirano e foi vendido como escravo em Egina, tendo sido
resgatado por Anicérides de Cirene, que lá se encontrava. Ao retornar, fundou a “Academia”, que se
tornou um marco na história do pensamento humano, num ginásio situado no parque dedicado ao herói
Academo. Depois disso tudo, tentou educar mais um governante, Dionísio II, a pedido de seu amigo
Díon, e novamente correu risco de vida. Finalmente, em 360 a.c, retorna para Atenas e dirige a
Academia até sua morte, em 347 a.c. Talvez sejam por esses dados biográficos que Platão, como será
mostrado, não gostava da democracia e achava que a corrupção do Estado só poderia ser sanada
quando a filosofia chegasse ao poder. Trinta e seis escritos platônicos ficaram intactos, o suficiente
14
para influenciar toda a filosofia. A seguir, tem-se uma apresentação superficial de alguns conceitos
platônicos.
Ao perceber a insuficiência da filosofia dos pré-socráticos e querer dar uma reposta aos
impasses sofistas, Platão afirma que a filosofia deveria realizar uma “segunda navegação”, capaz de
superar a “primeira grande navegação” realizada pelos físicos (pré-scocráticos). Essa segunda
navegação ocorre quando há a descoberta do supra-sensível, do ser inteligível, ou seja, quando há o
reconhecimento da existência de dois planos do ser ou da realidade: um fenomênico, visível e
sensível, ou seja, passível de ser conhecido pelos sentidos; e outro invisível, metafenomênico e
inteligível, ou seja, captado apenas por meio da mente. A afirmação desses dois planos era quase uma
exigência lógica para Platão, que não aceitava que as causas de todas as coisas sensíveis e
contingentes, sempre sujeitas a variações e transformações, também fossem passíveis de mudanças,
caso contrário elas não seriam as causas verdadeiras. Ao afirmar a existência de dois níveis da
realidade, Platão une Heráclito e Parmênides: o sensível, que muda o tempo todo, é representado por
Heráclito; o inteligível, que é sempre o mesmo, é representado por Parmênides. Quando reconhece a
existência desses dois planos e afirma a superioridade do plano inteligível sobre o sensível (portanto,
de Parmênides sobre Heráclito), Platão elabora a sua famosa teoria do “mundo das idéias”.
Para compreender o “mundo da idéias” de Platão, é necessário saber o que ele entendia por
“idéia”. Para ele, as idéias não são apenas pensamentos, mas sim aquilo que o pensamento pensa
enquanto está liberto do sensível. Uma idéia platônica corresponde à essência de algo, ou seja, é
aquilo que faz com que uma coisa seja o que é. As idéias existem em si e por si, isto é, elas não
variam de pessoa para pessoa, mas são impostas aos sujeitos de modo absoluto. Uma idéia é sempre
e universalmente a mesma. Para Platão, por exemplo, se falássemos a palavra “árvore”, a idéia que
teríamos de uma árvore seria a árvore real e todas as árvores existentes seriam “cópias” dessa idéia.
Outra analogia seria a idéia do verdadeiro, igual para todos os homens.22 Entre as idéias platônicas,
destacam-se a do justo, a do belo e a maior de todas, que deve orientar as outras, a idéia do Bem.
O mundo, diz Platão, é uma cópia dessas idéias, mas que se corrompe por uma espécie de
esquecimento humano desse mundo ideal. Relembrar-se do mundo ideal e tentar realizá-lo no mundo
real seria a missão suprema do ser humano. Mas como é possível identificar as idéias, em especial a
idéia do Bem? A resposta para essa questão encontra-se na concepção platônica de conhecimento,
cujo centro está na idéia de anamnese: a alma pode se recordar da verdade que sempre possuiu.
É de si mesma que a alma extrai o conhecimento das idéias (do Bem, do Belo, do Bom, do Justo, etc.).
A presença de todos os conceitos que possuem “algo a mais” do que a simples experiência sensorial
não podem ser explicados senão pela presença na alma desse algo a mais, que pode ser lembrado
como reminiscência. Para Platão, há uma marca impressa na alma pela idéia que sempre permanece,
mesmo que escondida, em cada ser humano. Essa recordação pode ser feita por meio da filosofia. Por
isso, para falar de Platão, é preciso observar algumas linhas centrais de sua “teoria do conhecimento”.
Na República há o famoso “mito da caverna”, onde Platão expõe a sua teoria do conhecimento23
e a sua concepção do “mundo das idéias”. Prisioneiros acorrentados e criados numa caverna vêem,
num muro, somente as sombras de estátuas que passavam do lado de fora. Criados assim desde que
nasceram, acreditam que essas sombras constituem a verdadeira realidade. Quando um deles escapa
e sai da caverna, fica assustado e, por um instante, cego. Logo que a sua visão se acostuma com a luz,
ele vê os objetos reais, percebe que tudo o que via na caverna não passava de sombras da realidade e
descobre que o sol era a fonte de luz que permitia a visão e a existência desses objetos. Depois de
vislumbrar as coisas como elas realmente são, o prisioneiro retorna à caverna para tentar libertar os
seus antigos companheiros, que se recusam em subir em direção ao sol e que podem matá-lo caso ele
22 A verdade pode variar: para mim a verdade é Cristo, para Fulano é Alá, para Beltrano é a ausência de verdade, e assimp or diante. Mas
a idéia do verdadeiro (e a do falso) é igual para todos os homens: é aquilo que se conforma ou não comas suas convicções.
23 Há vários ramos da filosofia, que tratam de diferentes aspectos da realidade: a ética estuda o agir humano, a estét ica estuda o belo, a
ontologia estuda o ser, etc. A “Teoria do conhecimento” é uma “especialidade” da filosofia que pretende responder algumas qu estões
básicas sobre o conhecimento, tais como “de onde vem o conhecimento?”, “como conhecemos as coisas?”, “é possível conhecer as
coisas?”, etc.
15
insista nessa ascensão. Esse mito tem pelo menos quatro possíveis significados: 1) traduz os graus
em que se divide a realidade: as sombras simbolizam as aparências sensíveis, as estátuas, as próprias
coisas; o muro, a linha divisória entre as coisas sensíveis e as supra-sensíveis; e o sol simboliza a idéia
do Bem, 2) traduz os graus do conhecimento: sombras = eikasía (imaginação), estátuas = pistis
(crença, objetos sensíveis), objetos e sol = graus da dialética, do conhecimento filosófico, 3) aspecto
ascético, místico e teológico: vida dos sentidos = sombras, vida na pureza = vida do espírito, 4) aspecto
político: o rei filósofo, contemplativo, que desce ao mundo das sombras para orientar os homens em
vez de ficar contemplando a idéia. Simboliza também o risco que o rei filósofo corre ao tentar governar
os homens (o que pode ser um “desabafo pessoal”).
O certo é que o “mundo das idéias” de Platão é um todo hierarquicamente organizado, no qual o
vértice, o fundamento último, é a mais importante de todas as idéias: a do Bem, que produz o ser e a
substância. Somente por meio da filosofia, é possível ascender ao mundo das idéias; apenas o rei
filósofo pode plasmar o mundo ideal no real. É a partir dessa visão do conhecimento e da realidade que
Platão elabora sua teoria política, que é uma resposta aos sofistas e, ao mesmo tempo, constitui a
elaboração de um estado perfeito, governado pela justiça ideal. Trata-se da primeira utopia da história,
cheia de sugestões estranhas aos homens modernos, mas plena de críticas ainda atuais e instigantes.
Vejamos:
Como foi visto nas páginas anteriores, os sofistas afirmaram a relatividade dos valores e da idéia
de justiça, que passa a se basear na prova argumentativa: se eu provar que Alfredo é justo, ele é; se
não, não é. Os sofistas pensavam, acertadamente, que a capacidade de argumentação era
fundamental para a vida política e que os bons oradores, que ofereciam justificativas racionais para as
suas propostas, seriam bons políticos. Mas os sofistas não formularam um conceito mais amplo de
justiça, que contemplasse toda a pólis e se orientasse pela idéia suprema do Bem. Para Platão, isso é
inconcebível: a justiça não pode ser um mero convencer ou uma coisa relativa e deve se dirigir ao todo,
e não apenas às situações específicas. Qual será, então, a definição platônica de justiça?
Em primeiro lugar, como já foi sugerido, ele afirma que o conceito de justiça deve se orientar pela
idéia universal do Bem. Como Platão era um grego e via na pólis o espaço por excelência de realização
do homem, ele acreditava que, se o homem é a sua alma, o estado é uma projeção ampliada dessa
alma. Dessa maneira, o Bem coletivo é superior ao individual, ou seja, a justiça do estado é superior
à justiça dos homens individuais.
Por sua vez, a justiça do Estado significa que cada um exerça uma só função na sociedade,
aquela para a qual, por natureza, ele for mais bem dotado. O argumento de Platão é o seguinte: o
Estado surge porque os seres humanos não são autárquicos, isto é, não se bastam a si mesmos,
precisam de outros homens para sobreviver. O Estado se origina, então, das múltiplas necessidades
que os homens têm. Dessa multiplicidade de necessidades nascem as profissões, que só podem ser
exercidas por pessoas diversas.Os homens não nascem em tudo semelhante aos outros, mas com
diferenças naturais e de aptidões que devem ser aproveitadas para a formação do Estado, para a
realização do Bem. Em outras palavras: se o homem não vive só e se os homens são diferentes, a
justiça do todo é superior à das partes e só pode ser efetivada por meio da justa adequação de
cada um à tarefa que lhe cabe na sociedade. A partir dessa noção de justiça, Platão constrói o seu
Estado ideal, a sua famosa República.
Na “República”, as castas têm os seus papéis bem definidos e, por vezes, subdivididos. Entre os
guardiões do Estado, por exemplo, há os que obedecem e os que mandam. Aos primeiros,
camponeses, artesãos e comerciantes, será permitida a posse de bens e riquezas, mas nem em
excesso e nem em escassez (para que a preguiça ou a cobiça não os influenciem); aos segundos,
defensores do Estado (guerreiros), não serão concedidos bens, terão habitação e mesa comuns e
receberão víveres de outros cidadãos para seu sustento. A abnegação exigida desses segundos é total:
nem mesmo a posse de uma família é permitida, e a única coisa que podem possuir é seu próprio
corpo. Os filhos dos guardiões não devem reconhecer os pais e precisam ser retirados imediatamente
das mães para serem criados em comum. Todos aqueles que nasceram em um determinado período
deverão se tratar como irmãos. Até mesmo a seleção dos casais deve ser controlada pelo Estado, ou
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seja, deve ser feita de maneira que só os melhores homens e mulheres se juntem. Para isso, aliás,
Platão oferece uma solução nada ortodoxa: controlar a reprodução por meio de sorteios que devem ser
manipulados de tal modo que somente as melhores mães e os melhores pais se encontrem. Isso foi
motivo de muitas críticas à filosofia platônica, pois é, de certa maneira, a primeira “sugestão filosófica”
de eugenia de que se tem notícia24.
Para manter o estado saudável e a justiça funcionando, a educação deve ser exemplar (os
gregos usavam a palavra paidéia, que tem um sentido mais amplo do que “educação”. Para traduzi-la,
pode-se tentar a palavra formação). Aqui entra uma grande novidade entre os pensadores gregos:
Platão afirma que homens e mulheres devem ser educados da mesma maneira e podem ocupar os
mesmo cargos, se tiverem aptidão para isso. Na educação platônica, os guardiões são educados com
música e ginástica para que sofram os efeitos do Bem. Já os governantes precisam mais do que dos
efeitos do bem; precisam do conhecimento do bem. Quais são, então, os homens e as mulheres que
devem governar? Quais homens e mulheres têm o conhecimento do bem que lhes permite governar
com justiça? A resposta de Platão é direta: os governantes são os filósofos e os filósofos são os
governantes.
De acordo com Platão, colocar o filósofo no governo equivale a colocar o divino e o absoluto
como medida suprema, como fundamento do Estado. O filósofo, depois de ter alcançado o divino, o
contempla e o imita e, por isso, é capaz de plasmar o Estado segundo a mesma medida. No Estado
platônico é extremamente importante a seleção de jovens dotados de vocação filosófica. Afinal, como
foi dito, a Paidéia ginástico-musical produz os efeitos do Bem, mas não o conhecimento do Bem. Para
chegar a esse conhecimento não há atalhos, somente o longo caminho da “segunda navegação”, que
passa pela aritmética, geometria, astronomia, ciência da harmonia e culmina na dialética, isto é, na
segunda navegação, na contemplação do sol ou da idéia do Bem que Platão simboliza no mito da
caverna.
Para obter governantes filósofos, após longa observação, os que chegarem aos trinta anos e
tiverem vocação dialética serão colocados à prova para verificar se, prescindindo de olhos e sentidos,
são capazes de subir à verdade. Aqueles que passarem nesse teste serão educados na dialética por
cinco anos. Dos trinta e cinco anos aos cinqüenta, deverão ainda se submeter a atividades empíricas,
assumindo o comando de guerras e vários cargos. Somente aos cinqüenta anos termina a Paidéia dos
governantes: se sobreviverem, estarão aptos a governar. É interessante perceber que, apesar de
Platão desenhar uma sociedade dividida em castas, nessa sociedade ainda há o espaço para a
mobilidade social: se um filho de artesão tivesse habilidade filosófica, ele poderia ser governante. Além
disso, cada casta tinha a sua compensação e os seus sacrifícios; os que obedecem podem ter algum
dinheiro, os que mandam nada possuem, e assim por diante.
Trata-se, então, de uma aristocracia no sentido forte do termo: o governo dos melhores por
natureza e educação. Esse Estado ideal é o parâmetro para as construções reais: todas as
constituições reais são imitações da constituição ideal. Quando é um só que governa imitando o político
ideal, tem-se uma monarquia; quando é a classe dos ricos que governa idealmente, tem-se uma
aristocracia; quando é o povo, tem-se uma democracia. Existem, no entanto, as formas corrompidas
de Estado. A monarquia pode se degenerar em Tirania, a aristocracia em oligarquia e a democracia em
demagogia.
A respeito da corrupção do Estado, há uma ordem, que pode ser historicamente rompida, mas
que é determinante: o primeiro passo da corrupção do Estado é a timocracia, governo que substitui a
virtude pela honra como valor supremo. Fazendo isso, a sede de honras (a ambição) substitui o Bem
público e torna-se a mola mestra da vida pública. Na vida privada já se esconde o desejo por riquezas
e, portanto, a próxima forma de Estado corrompido: a oligarquia, forma de governo fundada na
riqueza. Após a oligarquia, que é o governo cujo valor fundamental é a riqueza, temos a democracia,
que Platão entendia pejorativamente por demagogia. É notória a antipatia platônica pela democracia,
24 Essa crítica, no entanto,não parece correta, pois Platão não desejava uma “raça superior” como o nazismo desejou no século XX.
17
que condenou Sócrates e que pode tender a um forte caráter demagógico. Muitas críticas foram
feitas a Platão por leitores modernos,25 mas seu argumento á instigante:
“A insaciabilidade de riqueza e dinheiro leva, pouco a pouco, na oligarquia, a não se cuidar de outra coisa
a não ser de riqueza. Os jovens, crescendo sem uma educação moral, começam a gastar sem medida... e
se abandonam indiscriminadamente a todo o gênero de prazer [...] Dessa maneira, os ricos detentores do
poder se enfraquecem, mesmo fisicamente, até o momento em que os súditos pobres tomam consciência
do que está acontecendo e, na primeira ocasião propícia, tomam o poder e instauram o poder do povo,
proclamando a igualdade dos cidadãos (distribuindo a igualdade seja entre os iguais, seja aos desiguais,
diz Platão), e distribuindo magistraturas com o sistema do sorteio. O Estado fica cheio de “liberdade”, mas
é uma liberdade que, desvinculada de valores, degenera em licenciosidade. Cada um vive como lhe apraz
e, se quiser, pode participar também da vida pública. [...] quem quiser fazer carreira política não necessita
ter natureza adequada, educação e competência: basta que afirme ser “amigo do povo.””26
Como se vê, o principal motivo da antipatia platônica para com a democracia era a “distribuição
de igualdade entre os desiguais” e o sistema de “sorteio” das magistraturas, que substituía o critério da
competência. Se as pessoas não são iguais, tratá-las igualmente significa ferir a justiça do todo. Justo é
saber dar a cada um a parte que lhe cabe, por aptidão, na sociedade (e isso só é possível no governo
do rei filósofo). Depois da democracia, pensava Platão, só restava a tirania, onde o desejo de um só
substituía a justiça e a razão. Da total liberdade para a total escravidão: é esse o passo final da
corrupção do Estado na teoria platônica. Assim como qualquer grego (até mesmo os sofistas, quando
preparavam as pessoas para a vida política), Platão colocava o Estado e a política acima do indivíduo e
da vida privada.
Para resumir, pode-se dizer que a filosofia platônica responde aos sofistas de maneira
semelhante a que vimos em Sócrates: no lugar da relatividade dos valores, ele oferece a orientação
pelas idéias universais que estão impressas em nossa alma, em especial a do Bem. Orientando-se por
essa idéia suprema, ele elabora o Estado ideal, onde a justiça é colocar cada peça em seu lugar.
PARA PENSAR:
1- Pense se o conceito de justiça de Platão, dar a cada pessoa uma função na sociedade por
mérito, não pode ser associado à prática do administrador (como deve ser feita a distribuição dos
talentos dentro de uma empresa?).
2- Existe alma? Se existe, o que é a alma?
3- O conhecimento do bem e do mal está “impresso na alma” ou é fruto da “cultura”? Justifique a
sua resposta.
4- A atual democracia mundial é excludente ou oferece oportunidades iguais a todos os cidadãos?
Se você acha que ela é excludente, quais são os excluídos? E como ocorre o processo de
exclusão na atual democracia?
5- Você enxerga algum outro regime político como sendo melhor do que a democracia? Justifique e
fundamente a sua resposta.
5- Sugestão de pesquisa e de reflexão: sociedades bem distintas das “civilizadas”,
como os canibais de Papua, na Nova Guiné (tribos Korowai e Asmat) e as seis tribos americanas
que se situavam na região de nova York e da Pensilvânia e que formavam as chamadas “Nações
Iroquesas”. Sobre os canibais, procurem saber e refletir: quem pode ser a sua vítima? Como e por
quê eles comem as suas vítimas? O que se deve fazer a respeito disso? O que é o bem e o mal
para um canibal de Nova Guiné? E para você? Sobre os índios iroqueses dos Estados Unidos,
procure saber e refletir: como eles se organizavam? Como eram tomadas as suas decisões? Como
25 A hermenêutica revelou que esse tipo de crítica é injusto, pois quando lemos um texto , devemos tomar consciência de sua
historicidade, dos pré-juízos, pré-conceitos e pré-suposições de sua época. Compreender o tempo histórico de Platão é essencial antes de
criticá-lo. Mesmo assim, as teorias gregas continuamassustadoramente atuais.
26 Ibidem, vol II, p.265
18
eles tiveram seus territórios tomados? Com quem eles lutaram? O que ganharam em troca? Qual
importante documento histórico é inspirado nas nações iroquesas?
II.5 – Aristóteles (Estagira, 384/83 a 322 a.c): a divisão do conhecimento e a ética – Seu pai,
Nicômaco, foi médico do rei Amintas, da Macedônia. Com 18 anos, Aristóteles foi para Atenas e
ingressou na Academia, onde permaneceu por 20 anos, até a morte de Platão. Saiu porque, após a
morte de Platão, o “acadêmico” Espêusipo, seu mais forte opositor, assumiu a direção da Academia.
Foi, então, para a Ásia menor.
Passou por Assos onde fundou uma escola com os platônicos Erasto e Corisco, e lá permaneceu
por três anos. Depois foi para Mitilene, na ilha de Lesbos, para lecionar. Em 343/342, Felipe, o
macedônio, confia-lhe a educação de seu filho, Alexandre, então com 13 anos. Deve ter ficado na corte
Macedônia até Alexandre assumir o trono, em 336. Retorna à Atenas em 335/334 e abre uma escola
em alguns edifícios próximos a um pequeno templo dedicado a Apolo Lício, de onde vem o nome
“Liceu”. Como dava aulas passeando no jardim, a sua escola (o Liceu) também era conhecida como
perípato (peripatos=passeio), e seus seguidores como peripatéticos.
Em 323, com a morte de Alexandre, ocorre em Atenas uma forte reação antimacedônia.
Temendo um novo “atentado contra a filosofia” (o primeiro foi a morte de Sócrates), Aristóteles foge
para Calcídia, onde a sua mãe possuía bens, e deixa Teofrasto na direção do Liceu. Morre em 322,
com poucos meses de exílio.
Aristóteles é o responsável pela primeira e mais famosa divisão do conhecimento, a saber: 1-
ciências teoréticas, que buscam o saber por si mesmas. São a metafísica ou a “filosofia primeira”, que
é a mais elevada das ciências, a física ou “filosofia segunda” (onde se inscreve a psicologia), e a
matemática. 2- o segundo grande ramo do conhecimento é constituído pelas ciências práticas, que
buscam o saber para alcançar a perfeição moral. Esse ramo inclui a política e, subordinada a ela, a
ética. 3- o terceiro ramo é constituído pelas ciências poiéticas ou produtivas, que buscam o saber em
vista do fazer, com a finalidade de produzir objetos.
Como se vê, a ética era subordinada à política; a perfeição moral estava indissoluvelmente ligada
à perfeição do Estado. A saúde da comunidade era mais almejada do que a do indivíduo. Essa
prioridade grega da política sobre a ética nos parece estranha, pois nosso tempo, por diversas e justas
razões, considera o indivíduo como anterior ao Estado. Hoje em dia consideramos a liberdade individual
como um valor fundamental e inquestionável da democracia. Os povos que ainda não conquistaram a
sua liberdade individual estão em procura dela, seja por meio de protestos e argumentos ou de
violência e desordem. O Estado ocidental atual (atualmente “encarnado” na forma da democracia) só
tem sentido se garantir a liberdade individual. Na Grécia antiga, ao contrário, o todo (o Estado) era
anterior ao indivíduo, ou seja, a liberdade individual não se sobrepunha à liberdade política. Para os
gregos, livre era o cidadão, isto é, aquele que pode cuidar das tarefas da “pólis”. Um grego certamente
veria a nossa ânsia pela “liberdade individual”, freqüentemente identificada com uma alienante busca
por dinheiro e bens materiais, como um sintoma de alguma demência ou como falta de caráter. Quem
está certo? O cidadão grego ou o cidadão moderno? Nem um nem outro.
Cada visão de mundo representa o seu tempo e deve ser compreendida em seu contexto.
Gadamer, um filósofo do século XX, dizia que todos os tempos e todas as culturas têm diferentes pré-
supostos, pré-conceitos e maneiras de interpretar a realidade. Assim, por exemplo, na década de 1960
predominava a interpretação marxista da realidade. Todos interpretavam a história como uma luta de
classes, como uma peleja entre proletários e capitalistas e com inúmeros conceitos marxistas.
Atualmente há outras formas de se encarar a história, e poucos são os que continuam a interpretá-la de
maneira puramente marxista. Todos nós temos pré-conceitos e maneiras de ver a história, que variam
com o tempo. Procurar compreender os pré-conceitos do tempo e do povo que estamos a estudar
(assim como os nossos), ajuda a compreender melhor o passado. Um exemplo: é preciso ter
consciência de que estamos, agora, a aplicar conceitos da hermenêutica, que dizem para termos
19
consciência de nossos pré-juízos. Outro exemplo: um cientista, que encara a realidade de maneira
objetiva, isenta de valores, pela ótica da pura ciência, deveria ter consciência de que a isenção
valorativa é, ela mesma, um valor. Fazendo isso, ele ampliaria as suas convicções e perceberia que
não há isenção no mundo: só posicionamento. E que todo o posicionamento da comunidade científica
gera amplas e graves conseqüências para o mundo atual. Armas biológicas, químicas e/ou de
destruição em massa são alguns exemplos do que a “isenção valorativa” da comunidade científica pode
ajudar a construir. Não é à toa que os cientistas do século XXI estão cada vez mais preocupados com a
ética: eles sabem que a “ciência pela ciência” já não é mais possível porque o mundo está na beira do
colapso e exige responsabilidade, paz e diálogo. Todo cientista atual sabe que é essa mesma ciência,
que nos deu as ferramentas para cavar esse abismo, que pode nos dar os instrumentos para superá-lo
e seguir em frente.
É por isso, então, que devemos ter sempre consciência de nossos “pré-conceitos” quando
interpretamos a realidade: isso aumenta a nossa capacidade de compreender os outros povos, as
outras formas de vida, as outras épocas. Por isso, a ética de Aristóteles deve ser encarada sob a
perspectiva grega, que considerava a pólis como superior ao indivíduo. Para ele, a ética era
subordinada à política, era um caminho, um pré-requisito para a política. O cidadão moralmente
equilibrado seria um bom político. Por outro lado, os gregos, de maneira geral, viam o cidadão que não
participava dos destinos da pólis como um idiota, por mais honesto que fosse. É nesse contexto que
Aristóteles elabora a sua ética.
Na Ética à Nicômaco27, Aristóteles desenvolve o seguinte raciocínio: em todas as suas ações, o
homem tende a precisos fins, que se configuram como bens. E todos os bens e fins que o homem
almeja estão em função de um fim ou bem último: a eudaimonia (felicidade). A partir daí, Aristóteles
ergue uma argumentação que até hoje fascina os leitores.
Para definir a felicidade, Aristóteles diz o que ela não é. Começa pela definição que a maioria
das pessoas têm: a felicidade consiste no prazer e no gozo. E afirma que essa felicidade corresponde a
uma “existência digna dos animais”. Os mais evoluídos acreditam que a felicidade consiste na honra e
na fama. Mas a honra é fugaz e depende de alguém para conferi-la. Piores ainda são os que crêem que
a felicidade consiste no acúmulo de riquezas, pois o dinheiro é apenas um meio, e não um fim. Se a
felicidade não é oriunda do prazer, da fama ou da riqueza, de onde ela vem?
Aristóteles acreditava que a felicidade não vinha do exterior, mas de dentro do ser humano (vale
aqui perceber como a inversão socrática dos valores influenciou toda a nossa cultura). Para ele, a
felicidade, tal como era para Sócrates, significava viver conforme aquilo que distingue o ser humano
das bestas: a razão. Afinal, a felicidade é uma atividade da alma, e a alma é racional. Levar uma vida
conforme a razão significa, por sua vez, levar uma vida de acordo com as virtudes.
E, se o homem possui diversas funções, assim ocorre com a sua alma. Para cada função da
alma é exigida uma virtude. Por isso, Aristóteles divide as virtudes em éticas e dianoéticas. As virtudes
éticas são as relativas à parte sensitiva e concupscível da alma. Essas virtudes consistem no domínio
dos impulsos instintivos, no domínio da desmedida, e são adquiridas através do habitus. Realizando
ações justas, adquirimos o habitus da justiça; realizando atos corajosos, adquirimos o habitus da
coragem, e assim por diante. Mas isso informa apenas como adquirimos as virtudes, e não qual é a
natureza das virtudes. O que define uma virtude? Qual é a essência comum a todas as virtudes éticas?
O justo meio, responde Aristóteles. A coragem é o justo meio entre a covardia e a temeridade, a
amabilidade é o justo meio entre a hostilidade e a adulação, e assim por diante. A virtude é, enfim, a
justa medida com a qual repartimos os bens, as vantagens e os ganhos.
Por sua vez, as virtudes dianoéticas são aquelas que correspondem à parte mais elevada da
alma, a racional. Conhecidas como “virtudes da razão”, elas se dividem em dois grupos, que
correspondem às duas partes da alma racional, a razão prática, que conhece as coisas contingentes,
27 Trata-se da primeira obra de ética da história do ocidente. A partir daí firma-se a “ciência do ethos”.
20
e a razão teorética, que conhece as coisas necessárias e imutáveis28. Essas virtudes são a
sabedoria (phrónesis) e a sapiência (sophia).
A sabedoria, virtude da razão prática, consiste em dirigir corretamente a vida do homem, em
saber deliberar sobre o que é bom ou ruim para o homem. E a sapiência, virtude da razão teorética,
consiste na captação intuitiva dos princípios por meio do intelecto. Essa é, segundo Aristóteles, a
virtude mais elevada da alma, porque diz respeito ao que está acima do homem. Dessa maneira, a
felicidade consiste em viver de acordo com as virtudes: em primeiro lugar na atividade do intelecto, em
segundo na vida de acordo com as virtudes éticas. Aqueles, no entanto, que não vivem conforme as
virtudes éticas, não são capazes de chegar às virtudes dianoéticas. Desde Aristóteles, a contemplação
de Deus exige o equilíbrio moral, o exercício das virtudes éticas. Por mais diferente que o deus
Aristótélico fosse do Deus cristão, do Deus judaico ou do Deus muçulmano, ele exigia perfeição moral
para poder ser compreendido. Desde sempre os pensadores, em sua maioria, afirmam que a ausência
de uma alma equilibrada impede a contemplação do divino, do sumo bem.
De todas as ciências, portanto, a metafísica é a mais elevada e foi chamada por Aristóteles de
filosofia primeira ou teologia, em oposição à filosofia segunda ou física.29 Ela é uma ciência que trata
das realidades que estão acima do mundo físico, isto é, das realidades supra-sensíveis. Aristóteles
definiu a metafísica de várias maneiras: como a ciência que indaga sobre as causas e os princípios
primeiros; como a ciência que indaga sobre o ser enquanto ser, ou como a ciência que indaga sobre
Deus ou sobre a substância supra-sensível. Trata-se de uma ciência que vale em si e para si, pois tem
em si mesma seu fim, ou seja, sua razão de ser é uma só: satisfazer a curiosidade humana por um puro
conhecimento. Ela nasce da admiração do homem diante do mundo, da radical necessidade que o
homem tem de conhecer o porquê último.30 Para Aristóteles, todas as outras ciências são mais
necessárias do que a metafísica, mas nenhuma é superior a ela. Para ele, todo o saber que tem uma
porção intelectual é superior àqueles saberes que são meramente manuais:
“Todos os homens, por natureza tendem ao saber. (...) com efeito, os homens adquirem ciência e arte por
meio de experiência. A experiência, como diz Polo, produz a arte, enquanto a inexperiência produz o
acaso. A arte se produz quando, de muitas observações da experiência, forma-se um juízo geral e único
passível de ser referido a todos os casos semelhantes. Ora, em vista da atividade prática, a experiência
em nada parece diferir da arte; antes, os empíricos têm mais sucesso do que os que possuem a teoria
sem a prática. E a razão disso é a seguinte: a experiência é conhecimento dos particulares, enquanto a
arte é o conhecimento dos universais; ora, todas as ações e as produções referem-se ao particular. (...)
Todavia, consideramos que o saber e o entender sejam mais próprios da arte do que da experiência, e
julgamos os que possuem a arte mais sábios do que os que possuem só a experiência, na medida em
que estamos convencidos de que a sapiência, em cada um dos homens, corresponda à sua capacidade
de conhecer. E isso porque (...) os empíricos conhecem o puro dado de fato, mas não o seu porquê; ao
contrário, os outros conhecem o porquê e a causa. (...) Por isso consideramos os que têm a direção nas
diferentes artes mais dignos de honra e possuidores de maior conhecimento e mais sábios do que os
trabalhadores manuais, na medida em que aqueles conhecem as causas das coisas que são feitas; ao
contrário, os trabalhadores manuais agem, mas sem saber o que fazem, assim como agem alguns dos
seres inanimados, por exemplo, como o fogo queima: cada um desses seres inanimados age por certo
impulso natural, enquanto os trabalhadores manuais agem por hábito.”31
Aqui, no entanto, Aristóteles ainda fala da techné,ou seja, de um saber que ainda não é o mais
elevado, pois conserva uma certa dose de “empirismo”. Para ele,
“quem deseja a ciência por si mesma deseja acima de tudo a que é ciência em máximo grau, e esta é a
ciência do que é maximamente congnoscível. E a mais elevada das ciências, a que mais autoridade tem
sobre as dependentes é a que conhece o fim para o qual é feita cada coisa; e o fim em todas as coisas é
28 Aqui vale perceber uma semelhança com a divisão platônica da realidade, proposta emsua “segunda navegação”: Platão diz que h á um
plano da realidade onde se encontram as coisas sensíveis, fenomênicas, contingentes, e outro onde se situam as coisas intelig íveis,
matafenomênicas, necessárias. E afirma que o verdadeiro conhecimento é o daquelas coisas que não mudam. Ou seja: por mais q ue tenha
se afastado do platonismo, Aristóteles carrega a herança dos ensinamentos de seu mestre por toda a vida.
29 O termo metafísica foi criado posteriormente para designar os livros que vinham depois da física.
30 REALE, op.cit., p.337-339.
31 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002, p.9.
21
o bem e, de modo geral, em toda a natureza o fim é o sumo bem. (...) Do que foi dito, resulta que o
nome do objeto de nossa investigação refere-se a uma única ciência; esta deve se ocupar sobre os
princípios primeiros e as causas, pois o bem e o fim das coisas é uma causa.”
Essa ciência das causas primeiras, da qual fala Aristóteles, é a metafísica. E o sumo Bem é
Deus, que Aristóteles define da seguinte maneira:
“...dado que o que é movimento e move é um termo intermediário, deve haver, consequentemente, algo
que mova sem ser movido e que seja substância eterna e ato. (...) dado existir algo que move sendo, ele
mesmo imóvel e em ato,não pode ser diferente do que é em nenhum sentido. (...) Portanto ele é um ser
que existe necessariamente; e enquanto existe necessariamente, existe como Bem, e desse modo é
Princípio. (...) Desse princípio...dependem o céu e a natureza. (...) Portanto, do que foi dito, é evidente
que existe uma substância imóvel, eterna e separada das coisas sensíveis. E também fica claro que essa
substância não pode ter nenhuma grandeza, mas é sem partes e indivisível.”32
O conhecimento de Deus (ou do “primeiro princípio”) é o mais elevado que um homem pode
possuir. Esse conhecimento só pode ser atingido pela filosofia, pelo pensamento. Nesse sentido,
Aristóteles afirma que a “atividade contemplativa é o que há de mais prazeroso e mais excelente”33
. Por isso,
a felicidade suprema consistia em levar uma vida de acordo com a virtude e, além disso, dedicar-se a
mais elevada de todas as atividades: a contemplação.
Aqui termina a parte sobre a Grécia clássica. Há muito mais para se estudar sobre o assunto.
Aqui foram delimitadas algumas das figuras mais importantes desse período apenas para estimular a
curiosidade e mostrar que muitos dos problemas e questionamentos atuais foram “descobertos” na
Grécia antiga. A próxima unidade trata, muito superficialmente, de três períodos da história: o
helenismo, a idade média e o renascimento. Esses períodos formam a ponte para a modernidade, onde
o mundo que conhecemos começa a se formar.
PARA PENSAR:
1- Você concorda com Aristóteles quando ele afirma que os conhecimentos técnicos são superiores
aos manuais, mas inferiores aos “contemplativos” ou puramente teóricos? Por quê?
2- Imagine um mundo onde fossem expulsos todos os técnicos e trabalhadores manuais e fossem
mantidos apenas os teóricos. Você acha que esse mundo é possível? Por quê? E o contrário
(um mundo onde os teóricos fossem expulsos e permanecessem só os trabalhadores manuais),
é possível? Por quê?
3- Qual é a importância do trabalhador manual, do técnico, do gerente/coordenador e do diretor
geral na sua empresa? O que ela faz por cada um deles? Como é a comunicação entre cada um
desses colaboradores dentro de sua empresa? Há políticas bem definidas para esses
colaboradores em sua empresa?
III - Helenismo, Idade Média e Renascimento
III.1 O helenismo: a expedição de Alexandre Magno (334-232 a.c) é um marco no período de
decadência da pólis que, gradualmente, perde a sua autonomia, a sua liberdade e o seu papel histórico.
Alexandre morre cedo e não concretiza o seu sonho de formar um grande império. Surgem, no entanto,
monarquias que, embora instáveis, abalam definitivamente os valores gregos clássicos como os
defendidos na República de Platão. O grego, antes cidadão, se torna um súdito; as virtudes civis dão
lugar aos conhecimentos técnicos, e o administrador da coisa pública (da res pública) deixa de ser o
cidadão e passa a ser o funcionário, o soldado ou o mercenário. A antiga divisão entre gregos e
bárbaros desmorona.34 Finalmente, em 146 a.c, a Grécia perde a sua liberdade e se torna uma
32 Idem, ps.565-567
33 Idem, p.565
34 Com isso, antigos pré-conceitos são eliminados. Alexandre estava disposto a acabar com a noção racista de mundo que os gregos
possuíam. Para isso, estabelecia medidas para estimular a miscigenação: vários oficiais macedônios casaram-se com mulheres persas. Ele
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Introdução à ética: definição e evolução histórica

  • 1. 1 Filosofia 2006/2 I - Introdução: colocação do problema A toda hora, os meios de comunicação anunciam que é preciso “mais ética” nas relações humanas, na política, na ciência, nas empresas e em todos os âmbitos da vida. Mas o que significa “ética”? É difícil responder a essa pergunta com exatidão. Para respondê-la, deve-se lembrar a etimologia da palavra e ressaltar que a ética só existe após o surgimento da filosofia, primeira forma racional de se explicar a realidade. Após essa introdução, será feito um percurso pela história da filosofia para que se possa acompanhar as principais transformações éticas do ocidente: a Grécia antiga, o helenismo, a idade média, a modernidade e o século XX. Esse percurso oferece a base histórica e filosófica para o segundo momento do curso, que trata especificamente da ética profissional. Neste segundo momento, serão apresentadas algumas noções sobre ética nas empresas e realizados debates e análises de casos onde alguns dos conceitos oferecidos ao longo do curso serão aplicados. A finalidade dessa divisão é revelar que teoria e prática não são distantes, mas complementares e indissociáveis, embora algumas vezes não coincidentes. Comecemos, então, com a definição de ética. I.1- Ética – pequenas considerações: Antes de qualquer coisa, é preciso distinguir ética e moral. Embora se confundam, há um acordo entre os estudiosos de que essas palavras têm significados distintos. A moral é constituída pelos juízos de valor, costumes e crenças de um povo, enquanto a ética é o estudo da ação humana e de suas conseqüências. A moral é orientada pela tradição; a ética pela razão, pela reflexão. A moral é “praticada”, “vivida”, e varia de acordo com os povos (coisas que são moralmente condenáveis em determinadas culturas, não o são em outras); a ética é uma ciência que estuda, entre outras coisas, a moral. Nesse sentido, pode-se afirmar que a ética é a “ciência da moral”. Para esclarecer essa questão, vale observar a etimologia das palavras moral e ética. A palavra moral deriva do latim “mores”, que significa “costumes”. Isso indica que a moral é formada pelos hábitos, pela forma de encarar a vida e pelos costumes de um povo. Por isso, como já foi dito, a moral pode variar: o que é moralmente correto para um povo, pode não ser para outro. A palavra “ética”, por sua vez, é oriunda da palavra grega ethos, que possui duas acepções: 1- como significado de morada do homem e 2- como indicação de um comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos. O primeiro significado, “morada do homem”, indica que é justamente por meio do ethos que o mundo se torna habitável para o homem ou, mais ainda, que o mundo se constitui. A necessidade da natureza (physis) é rompida pela abertura do espaço humano do ethos, no qual se inscrevem os costumes, os hábitos, os valores e as ações, ou seja, no qual a moral de um povo se constitui. O espaço humano do ethos não é dado ao homem (como o é o espaço da natureza), mas é incessantemente construído. A morada do homem nunca está pronta: sempre é possível melhorá-la e aproximá-la da perfeição. Isso revela a existência de um ideal ético ou do Bem, capaz de mostrar quais partes de nossa “morada” ainda podem ser reformadas, melhoradas. O eterno construir da vida moral revela que há princípios éticos ideais perseguidos pelo homem e que podem se aprimorar ao longo da história. Usando a metáfora da casa, pode - se afirmar que a nossa vontade de aperfeiçoá-la mostra que temos, em nossa mente, uma idéia do que seja uma casa ideal. E mostra também que, se os tempos trazem novidades, elas são incorporadas a esse modelo ideal de casa na medida em que surgem. Para um homem das cavernas, por exemplo, uma ampla gruta de frente para o mar e bem protegida era o exemplo de
  • 2. 2 casa ideal; já para o homem moderno, uma casa de vi dro, concreto e madeira, com varanda, piscina, churrasqueira e sauna, constitui o modelo ideal de casa. Mas, para ambos, a casa é um lugar de refúgio, de proteção e conforto. O mesmo ocorre com a ética: ela evolui, é aperfeiçoada ao longo do tempo. Com as transformações históricas, surge a necessidade de transformações éticas. Sabemos que uma ação é injusta porque temos uma idéia de justiça construída e aperfeiçoada ao longo da história que nos habilita a julgá-la como tal. A escravidão foi considerada normal entre os gregos e entre os nossos colonizadores. Foram precisos séculos para que a escravidão fosse definitivamente abolida do planeta (ou, pelo menos, universalmente considerada como repugnante). Hoje em dia, não há país que defenda pública e oficialmente a escravidão: todos os povos sabem que a liberdade alheia deve ser respeitada. Isso mostra que o nosso ideal ético evolui ao longo da história. O mesmo ocorre com a moral, que também se modifica com o tempo. Muitos valores morais do início do século mudaram radicalmente: a virgindade, por exemplo, já não é um valor como foi outrora. É interessante perceber que, geralmente, as mudanças nas leis ocorrem após as mudanças morais. A virgindade, mesmo que não mais praticada e valorizada como outrora, continuou presente no código civil por muitos anos como motivo para dissolução do matrimônio: se o marido descobrisse que a noiva não era mais virgem, poderia, amparado pela lei, dissolver o casamento. Há, no entanto, valores que devem permanecer, pois são fundamentais para a sobrevivência da sociedade. A liberdade, o respeito à diferença e a preservação ambiental são exemplos de valores fundamentais para o nosso tempo, sem os quais colocamos o mundo em risco. Já o segundo significado da palavra ethos diz respeito ao comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos. Aqui ethos se relaciona com os costumes, com o hábito de agir de acordo com as exigências de realização do bem. Há mais de 2.500 anos, os gregos afirmavam que a repetição de bons hábitos era capaz de tornar um homem virtuoso. A educação grega, a Paidéia, era um longo processo educativo que visava formar um cidadão que fizesse da vida pública um exercício das virtudes humanas capaz de conduzir a cidade rumo ao bem. Dessa maneira, antes de existir a ética enquanto ciência, já existia o ethos enquanto morada do homem e enquanto hábito. Era, pois, por meio da sabedoria, e não da ciência do ethos (a ética), que os primeiros homens adquiriam critérios para orientar o seu agir. Somente com o surgimento da filosofia, a ética enquanto ciência, enquanto reflexão racional sobre o agir humano, aparece. Se compararmos a ética com a engenharia, percebemos que a morada do homem surgiu antes da ciência que lhe é relativa. A casa veio antes do engenheiro. Em outras palavras: o ethos é anterior à ciência do ethos. Sendo assim, será que podemos dispensar o engenheiro, uma vez que as casas são construídas antes de seu aparecimento? Ou seja: podemos dispensar a ética enquanto ciência e nos guiar apenas p ela sabedoria, pelos costumes e pelos hábitos, que já orientavam os homens desde sua origem? É claro que não. As casas construídas pelos primeiros seres humanos eram simples e podiam dispensar os engenheiros. Hoje as moradas são mais elaboradas e é o engenheiro que pode evitar o desmoronamento dessas construções. É por essa razão que há uma crescente necessidade da ética enquanto ciência: nossa morada se tornou tão complexa que, se dispensarmos a engenharia (a ética) ao construí-la, ela pode cair. A ciência e a tecnologia transformaram o mundo e trouxeram novos e graves problemas éticos. A miséria da maioria dos seres humanos, o lixo atômico, a poluição das águas, a escassez dos recursos naturais e várias ameaças atuais provam que o planeta não é imperecível. Nossa casa precisa de bons engenheiros ou poderá ruir. Sem a elaboração de uma nova ética, pós-convencional e universal, a vida no planeta pode acabar. A ética tradicional, que versa sobre a regulação sexual e que prescreve valores e regras morais convencionais, já não é mais capaz de preservar o equilíbrio mundial. Hoje, mais do que nunca, não faz sentido admirar uma pessoa de bons modos, boa família, que segue os valores tradicionais da nobreza, mas que tem uma fábrica que polui uma cidade inteira. Cons iderando
  • 3. 3 ainda a instabilidade política do mundo, a miséria de dois terços do planeta, a conduta irresponsável das grandes potências, a atual crise ecológica, e vários outros fatores preocupantes, pode-se perceber que a ética, mais do que nunca, é essencial.1 Mais ainda: é possível notar que uma ética universal, capaz de garantir uma existência digna às futuras gerações, é uma exigência de nosso tempo. O mesmo se dá com as profissões. Ser um profissional ético é um dever e uma necessidade do mercado. Empresas, jornais, escolas e governos valorizam, cada vez mais, o profissional que sabe lidar com os conflitos de maneira ética. Muitas vezes um código de ética bem formulado garante uma conduta adequada na empresa, mas há situações que podem transcender o âmbito da prática profissional e exigir um grau maior de reflexão ética. Para ilustrar essas duas dimensões da ética profissional, uma “imediata” e a outra mais “complexa”, vale citar um exemplo: um profissional da genética tem seu código de ética, que pode, entre outras coisas, exigir o bom trato com os pacientes, a divulgação dos resultados de suas pesquisas e outros comportamentos que ele segue sem maiores problemas. Mas, ao se deparar com a possibilidade de enriquecer com a escolha de fenótipos de bebês por parte de pais obcecados pela perfeição, este cientista lida com um problema ético bem maior do que os problemas freqüentemente gerados pelo exercício de sua profissão. O grau de reflexão, de conhecimentos históricos e de consciência que lhe é exigido nessa situação certamente extrapola o código de ética de sua profissão. Todos esses são assuntos e problemas tratados pela ciência do ethos: a ética. A ética é, portanto, um ramo do saber que reflete sobre a ação humana e que tenta identificar os princípios práticos que regulam essa ação. É, no entanto, somente com o surgimento da filosofia que se pode falar de ética enquanto uma reflexão racional sobre o agir humano. Mas, como foi visto, isso não significa que o homem não refletia sobre sua ação ou que ele não seguia princípios éticos. Ao contrário, o homem se distinguiu dos animais por meio de um radical afastamento da natureza (da physis) e de um ingresso no mundo humano (no ethos). Com o desenvolvimento dos costumes, da sabedoria e da moral, foram erguida s as primeiras grandes civilizações. Uma dessas civilizações, a grega, criou a filosofia, forma de saber que deu origem a todas as ciências existentes, inclusive a ética. II – Grécia antiga: a invenção da ética II.1 - O nascimento da filosofia - do mito ao logos: há milhares de anos, admirado pelo poder e pelos mistérios da natureza, o homem tentou compreender porque ocorriam fenômenos naturais tão devastadores e procurou saber de onde vieram todas as coisas que existem. Como surgiam as tempestades, a seca, as erupções vulcânicas, os terremotos, os raios, as enchentes e tantas outras mudanças da natureza? Como surgiram as montanhas, as plantas, a água, os seres vivos, o homem? Por quê o sol desaparecia todos os dias? O que hoje parece simples era surpreendente; o mundo era um grande enigma a ser decifrado. Para responder a tantos mistérios, o ser humano formula a sua primeira explicação da realidade: quem governa todas as coisas são entidades ocultas, forças sobrenaturais, deuses diversos. As primeiras explicações sobre a origem e o funcionamento do universo foram dadas por meio de histórias fantásticas ou mitos. O mito é a primeira manifestação da consciência humana, que tentava desvencilhar-se das tarefas imediatas e instintivas da vida para “colocar 1 Por um tempo, o ser humano acreditou que a ciência era a chave para todos os enigmas, o bálsamo para todos os males. Semdúvida, ela melhorou e transformou radicalmente o mundo em seu curto tempo de existência, mas trouxe problemas muito graves. Pela primeira vez na história, o homem tem o poder de destruir o globo terrestre. Por isso, muitos filósofos, pensadores e cientistas atuais estão procurando estabelecer normas, princípios e diálogos universais. A declaração dos direitos humanos é umexemplo de busca por universalid ade ética. Mas há outros exemplos: o tratado de Kyoto, recusado pelos EUA, foi uma outra tentativa (também fracassada) de aplicação de uma legislação universal de preservação do planeta.
  • 4. 4 ordem no mundo”, explicá-lo, entendê-lo. Ele faz com que o homem se sinta mais confortável no espantoso universo que o cerca. Embora o mito seja uma explicação fantástica da origem do universo, ele não é uma mentira, ou uma história falsa. Em sua acepção original, a palavra mito não significa fábula, lenda, invenção, mas sim o relato verdadeiro de uma história ocorrida no tempo dos princípios, quando, com interferência do sobrenatural, algo passou a existir. Esse relato confere ao homem uma sensação de conforto, de poder sobre a natureza. Afinal, quando sabemos como algo funciona, perdemos o medo dessa coisa. Quanto mais sofisticada se torna a explicação mitológica da realidade, maior é a sensação de poder e domínio sobre a natureza que o homem experimenta. Por isso, com os mitos, surgem os ritos, que são uma tentativa de interferir no curso da vida e da natureza. O ritual é a atualização do mito: ele torna presente o tempo mágico das origens de alguma coisa e, com isso, interfere no curso da realidade. Por meio dele, o homem se incorpora ao mito e se beneficia com as energias das origens. Sacrifícios, oferendas, danças, alucinações, preces, enigmas, etc., fizeram parte de rituais que foram celebrados nos quatro cantos do mundo, seja para pedir chuva, sol, poder na guerra ou para agradecer as bênçãos recebidas. Um exemplo de rito era o das Bacantes2, que saíam em procissão, possuídas por Dionísio, deus do vinho e da loucura, e que não podiam ser observadas ou interrompidas por nenhum mortal. Quem tentasse chegar perto delas durante a procissão era devorado. Baseando -se nesse ritual, Eurípedes escreveu As Bacantes, onde narra a história de uma mãe que, possuída pelo deus, rasgou as carnes de seu próprio filho. Mas o mito não é apenas uma tentativa de domínio da natureza. Ele também transmite os valores, a cultura, a sabedoria e a psyché de um povo. Junito Brandão afirma: “O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações. E, na medida em que pretende explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode ser lógico: ao revés, é ilógico e irracional. Abre-se como uma janela a todos os ventos; presta-se a todas as interpretações. Decifrar o mito é, pois decifrar-se”.3 Ao expressar a consciência coletiva, o mito é um rico e indispensável material para aquele que se propõe a compreender um povo, uma época ou a sua própria alma. Os mitos gregos expressam essa importância: tão grande é a sabedoria coletiva contida na mitologia grega, que vários autores se serviram dela para formular as suas teorias. O primeiro a se servir do mito de forma mais sistemática foi Platão, mas há autores modernos que beberam das águas da mitologia grega para formular as suas teorias. Freud é um deles: o mito de Édipo, de Electra, de Narciso e vários outros dão corpo à psicanálise. Jung é outro autor que tinha os mitos como matéria prima de seu trabalho, na medida em que os considerava como elos entre o consciente e o inconsciente coletivo. Para ilustrar a riqueza dos mitos, narramos um, o do Minotauro4: Minos, filho de Zeus e Europa (que Zeus raptou na forma de Touro), disputava o poder de Creta com seus irmãos, Sarpédon e Radamanto. Para vencer a disputa, pediu ajuda a Posídon, que logo atendeu as suas súplicas: um touro, belíssimo e enorme, saiu do mar e foi entregue a Minos para deixar claro a sua privilegiada posição perante os deuses. Após esse episódio, Minos passou a governar Creta. Minos, no entanto, prometera ao Deus que sacrificaria o touro e não cumpriu sua promessa. Para castigá-lo, Posídon fez Pasífae (esposa de Minos e filha de Hélio, o Deus do sol) se apaixonar pelo animal. Desesperada, 2 Todos os povos tinham seus mitos, seus ritos e, é claro, seus Deuses. Geralmente esses Deuses eram identificados com o poder, os fenômenos e os elementos da natureza (como no Egito, onde o poderoso Deus Rá coincidia com o sol). A mitologia que aqui interessa, no entanto, é a grega, que é peculiar justamente porque não identifica seus deuses com as forças da natureza. O Deus grego do sol, Hélio, não é o sol, mas re-presenta essa força da natureza, assim como Eros re-presenta o amor, etc. Essa peculiaridade faz da mitologia grega um processo de abstração que a difere da maioria das mitologias antigas. Esse caráter “abstrativo” será ainda mais desenvolvido por causa de uma grande dádiva grega: a escrita alfabética. 3 BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2001, v. 1. 4 Trata-se de um mito de origem cretense,narrado aqui porque Creta exerceu grande influência na cultura e na religião grega.
  • 5. 5 Pasífae pediu a Dédalo5 , o grande arquiteto e escultor, que a ajudasse. O artista fabricou uma novilha de bronze tão perfeita que enganou o touro: entrando nela, Pasífae conseguiu ser possuída pelo animal. Foi dessa união que nasceu o Minotauro, um ser monstruoso, metade homem, metade touro, que foi confinado por Minos em um grande labirinto construído por Dédalo. Esse monstro causava pânico e indignação entre os atenienses, pois Minos, após derrotar Atenas numa longa guerra, exigia, de nove em nove anos, que sete moças e sete rapazes partissem de Atenas para alimentar o monstro de Creta. Para acabar com os sacrifícios, o herói ateniense Teseu parte para a ilha de Creta entre os jovens que seriam sacrificados. Ao chegar lá, Teseu exerce fascínio sobre Ariadne, filha de Minos que, apaixonada, resolve ajudá -lo em sua empreitada. Mais difícil do que matar o Minotauro, no entanto, era sair do labirinto onde esse monstro vivia. Ciente disso, Ariadne, a conselho de Dédalo, dá a Teseu um novelo de lã (um “fio condutor”). Após matar a besta, Teseu segue o fio e retorna são e salvo do labirinto. Foge, então, com seus companheiros e com Ariadne para logo depois abandoná-la na ilha de Naxos e partir para novas aventuras. Furioso com Dédalo por ter ajudado Pasífae e Ariadne, Minos prende o arquiteto com seu filho, Ícaro, no labirinto. Dédalo, que era o construtor do labirinto, acha facilmente a saída e, com dois pares de asas que havia fabricado, foge com seu filho recomendando que ele não subisse muito em direção ao sol. Ícaro não resiste à tentação e sobe em direção ao céu. A cera de suas asas derrete e ele cai no mar de Egeu, que passa a se chamar mar de Ícaro. Dédalo, então, é acolhido por Cócalo, rei de Cumas, mas Minos não desiste de persegui -lo. Acuado em sua própria cidade, Cócalo pede para suas filhas resolverem a situação. Durante o banho, Minos é escaldado com água fervente. Várias interpretações foram dadas a esse mito e a seus personagens: alguns afirmam que o labirinto representa o útero, Teseu o feto e o fio de Ariadne o cordão umbilical, que permite a saída para a luz. Outros vêem na união de Teseu com Ariadne um hieròs gámos, isto é, um casamento sagrado com vistas à fecundidade da terra. Dédalo pode ser visto como o símbolo da engenhosidade, do talento, da sutileza, mas também como o intelecto que, ao perder sua direção, se torna prisioneiro de sua própria construção, o inconsciente. Ícaro, por sua vez, é o símbolo da hýbris, da desmedida, pois ultrapassa o meio termo entre o mar e o céu, isto é, ultrapassa o métron, a medida. Ao tentar ir além de seus limites, ele se torna o símbolo da temeridade, a personificação da megalomania. Além disso, Ícaro revela que as asas, símbolos da liberdade, não podem ser colocadas em nossos ombros, mas devem ser conquistadas por meio de um grande esforço ou de uma iniciação. Ícaro erra porque usa as asas sem observar o necessário preceito “conhece-te a ti mesmo”.6 Finalmente, uma outra interpretação possível para esse mito, especialmente à tríade Minotauro-Teseu-Ariadne, é já impregnada pela razão filosófica: nessa ótica pode -se considerar o labirinto como a mente humana, o Minotauro como nosso lado bestial e o fio de lã como a nossa razão, nossa inteligência. A moral da história seria a seguinte: abandonado à própria sorte, sem o uso da inteligência, da razão (do logos, que aparece junto com a filosofia), o homem é dominado (devorado) por seu lado bestial, instintivo, irracional, desmedido. Outro fragmento interessante da mitologia grega é o episódio do bandido Procusto, mais um personagem derrotado por Teseu7. Este malfeitor tinha em seu esconderijo um leito de ferro onde colocava todos os viajantes que raptava. Quando eram menores que o leito, ele lhes 5 Dédalo era ateniense, da família real de Cécrops, e é considerado como o maior arquiteto, escultor, inventor e artista de todos os tempo s. As estátuas animadas que Platão cita no Mênon são foram feitas por Dédalo. Dédalo era mestre de seu sobrinho, Talos, e começou a invejar-lhe o talento, quando ele, inspirado na queixada de uma serpente, inventou a serra. Sentindo -se ofuscado, Dédalo empurrou o sobrinho da Acrópole. Foi esse assassinato que levou Dédalo ao exílio emCreta, onde foi acolhido por Minos, que o nomeou seu arquiteto oficial. Foi Dédalo que construiu o famoso labirinto onde o Minotauro, como veremos logo a seguir, habitava. 6 Cf. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. 15º ed. Petrópolis: Vozes, 2000. vol. I, p. 61-65 7 Fato que “ocorreu” quando Teseu partia de Trezena para assumir o seu posto de hereiro do rei de Atenas.
  • 6. 6 esticava as pernas; quando eram maiores, cortava a parte que sobrava. Teseu o venceu e o fez provar de seu próprio remédio, colocando-o na cama e repetindo sua fúnebre tortura. Moral da história (adaptada aos tempos modernos): não procure pessoas que caibam em seus sonhos, não tente colocar as pessoas em uma cama de ferro, pois todos são diferentes e o castigo pode vir sob a forma do delito cometido. Lição sobre o ciúme e o amor. Todos os mitos trazem lições valiosas sobre a vida. Os relatos de Pandora e de Cupido e Psique, por exemplo, são boas lições sobre a curiosidade, a falta de confiança e a arrogância humana. Como se vê, o mito é um discurso que admite contradições e incoerências lógicas, mas isso não significa que ele é desprovido de sentido e significado. Ao contrário, os mitos eram vividos como verdades e, por isso, eram distintos das fábulas. Para ouvir o mito e para viver o rito, a pessoa deveria ser iniciada; já as fábulas poderiam ser contadas a qualquer um, até mesmo a crianças, uma vez que não eram verdades sagradas. Na Grécia Antiga quem narrava o mito era o poeta, considerado como uma ponte entre o divino e o humano, como o detentor das verdades mais profundas. Dois poetas gregos merecem destaque: Homero e Hesíodo, que foram os primeiros a sistematizar toda essa sabedoria mitológica em obras como a Ilíada, a Odisséia e Os Trabalhos e os Dias. A partir daí os mitos gregos estavam registrados para sempre. A escrita eterniza o mito e abre o horizonte da história. Mas se a escrita eterniza o mito, ela também o racionaliza e extrai um pouco de seu dinamismo. Depois de escrito, o mito gradualmente perde a sua força e passa a ser considerado como uma fábula ou como um manancial de alegorias e sabedoria popular, e não mais como uma verdade que deveria ser vivida com a prática dos ritos. A partir de Homero e Hesíodo, a explicação mitológica da realidade começa a ser questionada e o poeta deixa de ser uma ponte entre o divino e o humano, um portador da verdade e passa a ser visto como um defensor da tradição e da sabedoria ou simplesmente como um poeta. É nesse momento de desconfiança em relação à explicação mitológica da realidade que ocorre o fenômeno mais importante da cultura ocidental, o nascimento da filosofia, episódio também conhecido como “passagem do mito ao logos”8. A partir desse momento, quem ocupa a cena não é mais o poeta ou o sábio, mas o filósofo que, ao contrário das duas figuras anteriores, não se afirma como o portador da verdade, mas como aquele que a persegue mesmo sem ter a certeza de encontrá -la. Os primeiros filósofos eram chamados de pré-socráticos, filósofos cosmológicos ou filósofos da natureza (físicos): pré-socráticos porque antecedem a Sócrates, um marco na filosofia; cosmológicos porque a filosofia nasceu da admiração do homem diante do cosmos, que o leva a indagar sobre o movimento dos astros, o funcionamento do universo e a origem de todas as coisas; e filósofos da physis (físicos) porque buscavam a resposta sobre a origem das coisas na natureza (na physis). Como pretendiam entender a ordem de toda a realidade, esses primeiros filósofos concentravam suas investigações na busca pelas causas do universo. Se na explicação mítica a origem das coisas era determinada pelas ações dos deuses, com o surgimento da filosofia esse tipo de resposta não é mais convincente. É preciso, então, encontrar a verdadeira causa de todas as coisas. É por isso que a maioria dos pré-socráticos se concentra na busca do “primeiro princípio”, da arché. A arché (o primeiro princípio) significa: 1- a fonte de todas as coisas, 2- a foz ou termo último de todas as coisas e 3- o sustentáculo permanente que mantém as coisas existindo. Trata-se de algo semelhante à nossa concepção de deus, mas impessoal e natural. Na busca da arché muitas respostas foram encontradas: para Tales de Mileto, o “pai” da filosofia, o “primeiro princípio” era a água. Tales afirmou que a “Terra flutua na água” porque acreditava que todas as coisas têm uma natureza úmida e dependem da água para existir. As sementes, as plantas, os animais, os homens; tudo precisa de água para viver. E a vida, quando se extingue, perde a água. Já 8 Como dissemos, os deuses gregos re-presentavam as forças da natureza, ou seja, favoreciam mais a abstração, o pensamento. Com a escrita, esses mitos, de certa maneira, se “cristalizam” e, com isso, abrem espaço para sua “racionalização” e, posteriormente, para o nascimento da filosofia. Além desses, no entanto, outros fatores também contribuiram para que a filosofia surgisse na Grécia, a saber: a liberdade religiosa e política, o uso da moeda, as navegações, que desmitificavam o mundo, etc.
  • 7. 7 para Anaxímenes, outro “pré-socrático”, a arché era o ar, que é infinito, dá combustível ao fogo, forma à água e a todas as coisas. A despeito do aparente exotismo de seu conhecimento, os pré-socráticos fizeram muitas descobertas e tiveram grandes intuições. Anaximandro, que afirmava o infinito como “primeiro princípio”, disse que “os primeiros animais nasceram no elemento líqüido, cobertos por uma capa espinhosa; tendo crescido de idade deixaram a água e vieram para o seco e, tendo-se rompido a capa que os cobria, pouco depois mudaram seu modo de viver.”9 É curioso perceber que duas idéias da ciência moderna estão presentes nessa afirmação de Anaximandro: que a vida surgiu na água e que a vida evoluiu. Três outros filósofos pré-socráticos merecem atenção: Empédocles, Heráclito e Parmênides. O primeiro porque era um “físico pluralista” que disse que o mundo não era constituído por um único princípio, mas por quatro: água, terra, fogo e ar. Esses elementos, combinados, separados ou unidos, deram origem à vida. E aquilo que os une ou os separa é o amor ou o ódio, que se tornam forças cósmicas causadoras da união e a separação dos elementos. Empédocles, à sua maneira, percebeu que os físicos não davam uma explicação suficiente para a origem das coisas. Os dois outros filósofos, Heráclito e Parmênides, merecem destaque porque são representantes de duas visões que se opõem e que influenciaram toda a filosofia. Heráclito afirmava que “não se pode entrar no mesmo rio duas vezes”. Tudo está em permanente mutação; nós mesmos já não somos o que éramos a dez minutos atrás. Com essa máxima, o primeiro princípio de Heráclito só poderia ser o fogo, o elemento mais mutável da natureza. Heráclito é também o primeiro a falar do “logos” como “aquilo que governa todas as coisas”. Parmênides, por sua vez, é portador de uma visão de mundo diametralmente oposta a de Heráclito. Para ele as coisas permanecem sempre as mesmas. De acordo com ele, “o ser é e não pode não ser; o não ser não é e não pode ser de modo algum”. Para Parmênides o ser era uno, ingênito, imóvel, incorruptível e imperecível. Segundo essa visão, as coisas seguem os seus cursos sem alteração, o ciclo da vida é sempre o mesmo, tudo permanece sempre como está. A mudança é uma ilusão. Heráclito e Parmênides representam duas visões que orientaram grandes filósofos ao longo dos séculos. Sempre existiram e existirão os que acreditam no eterno devir de todas as coisas e os que crêem na permanência absoluta da ordem das coisas. Na filosofia moderna e contemporânea há os que afirmam que a história segue um curso definido, uma evolução inevitável, e os que afirmam que a história não é constituída por uma linha racional, por uma evolução natural, mas que ela é, ao contrário, inusitada, surpreendente, constituída por eventos imprevisíveis. Platão, como será visto mais tarde, tenta unificar essas visões, dando privilégio a Parmênides. Sobre os pré-socráticos, não é necessário dizer muita coisa. Basta perceber que eles forneceram as primeiras explicações racionais sobre a origem e o funcionamento do universo. E que chegaram a descobertas surpreendentes usando apenas a razão (o logos), ou seja, sem nenhum instrumento, tecnologia ou método científico. Eles representam, é bom sublinhar, aquilo que os estudiosos chamam de “passagem do mito ao logos”: a partir deles é inaugurada uma nova maneira de explicar a realidade, que logo será definida como filosofia (das palavras gregas philo=amizade e sophia=sabedoria). O filósofo, então, é o amigo da sabedoria, e não o sábio. Ele sabe que a sabedoria é, como o manto de Penélope10, interminável. Diferencia-se, pois, do poeta, que se apresentava como o portador definitivo da verdade. Os pré-socráticos foram os primeiros a substituir a explicação mítica da realidade pela explicação filosófica. Mas as discussões sobre a arché são insolúveis. Talvez Empédocles soubesse disso quando tentou resolver definitivamente as querelas entre os físicos afirmando não um, mas quatro princípios da vida. O certo é que a “filosofia da physis” logo se esgota. É com o surgimento de novos personagens 9 REALE, G. História da filosofia antiga. 9º ed. São Paulo: Loyola1993 , p.57 10 Penélope era a esposa de Ulisses que ficou vinte anos fora de casa, perdido em inúmeras aventuras. Belíssima, Pen élope foi cada vez mais pressionada para se casar novamente. Para continuar fiel a seu marido, Penélope disse que se casaria depois de tecer um manto. Todas as noites, no entanto, ela desfazia seu trabalho, para recomeçá-lo infinitamente.
  • 8. 8 que a filosofia se estabelece definitivamente como a “ciência primeira”. Dentre esses personagens, serão vistos os mais importantes da Grécia antiga: os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles. Curiosidades & Dicas de Consulta e Reflexão: => O mito de Prometeu e Pandora narram episódios sobre o início da história humana. Pesquise sobre Prometeu e Pandora e veja se encontra alguma semelhança com crenças cristãs. Reflita sobre o significado dessas semelhanças. => Muitos acham que a doutrina da reencarnação foi desenvolvida por A. Kardec. Na verdade, o orfismo e o pitagorismo já falavam de reencarnação como um caminho para a libertação da alma, embora de forma distinta. Procure saber sobre Pitágoras e sua teoria da reencarnação (dica de consulta: REALE, Giovanni, História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola). => Parmênides acreditava que a mudança é uma ilusão, que tudo permanece sempre o mesmo. Seu discípulo Zenão é ainda mais radical. Procure na internet os famosos “paradoxos de Zenão”. => Um clássico para ser lido: A Odisséia, de Homero. => Dois excelentes manuais sobre a Grécia antiga: JAEGGER, W. Paidéia, a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes e REALE, Giovanni, História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola. II.2 – O impasse sofista: o relativismo - ao procurar uma explicação para a origem do universo, os pré-socráticos não reflete sobre a vida humana. A filosofia da physis não trata do homem e de suas relações. Foram os sofistas os primeiros a abandonar a filosofia cosmológica e a refletir sobre o ser humano; foram eles que deslocaram o eixo da reflexão filosófica da physis (natureza) e do cosmos (universo) para o antropo (homem) e aquilo que lhe diz respeito enquanto membro de uma comunidade. Os temas da sofística são a ética, a política, a religião, a retórica, a arte, a educação e tudo aquilo que hoje se chama “cultura”. Originalmente o “sofista” era o “sábio” ou o “especialista do saber”. Com o passar do tempo, especialmente depois das críticas de Sócrates e Platão, a palavra “sofista” adquire um significado pejorativo e passa a designar aquelas pessoas que usam raciocínios maldosos para a pura e simples persuasão, sem preocupação com a verdade. De acordo com Xenofonte, “se alguém vende sua beleza por dinheiro a qualquer um que o deseje, chamam-no prostituto..., analogamente, os que vendem a sabedoria a qualquer um, são chamados sofistas, que é o mesmo que dizer prostitutos.”11 Essa má fama dos sofistas se perpetuou ao longo da história por alguns motivos: 1 - pelo desprezo que lhes relegou Platão e Aristóteles, os dois maiores filósofos da antiguidade; 2- pela venda de conhecimentos e sabedoria a qualquer um que pagasse, fato que era condenado por muitos gregos, que possuíam uma concepção aristocrática da educação (só os nobres e bem nascidos podiam ser educados). Essa “democratização do saber” ameaçava a nobreza, que era a detentora do poder e do conhecimento12. 3- Um terceiro motivo da má fama do sofista foi a sua peregrinação pela Grécia, que não era bem vista pelos gregos, que tinham em mais alta conta a sua cidade. 4- Finalmente, a principal razão pela qual os sofistas não eram bem quistos é o relativismo moral que eles trouxeram para a Grécia de seu tempo. Questionando valores estabelecidos, oferecendo a todos a possibilidade de bem argumentar e de, com isso, se destacar na sociedade, os sofistas incomodaram a Grécia antiga. Por que viviam num tempo de crise, quando a democracia substituiu a aristocracia, os sofistas foram adorados e odiados ao mesmo tempo: adorados porque na democracia quem melhor argumenta se destaca na pólis. E eles ensinavam justamente a arte da retórica, da persuasão, que era fundamental para as pessoas que desejavam se destacar na política. Odiados por que, como será visto, 11 Ibidem, p.190 12 Atualmente todos sabemque uma das melhores maneiras de se preservar um sistema político excludente é privar o povo de educaç ão.
  • 9. 9 eles questionaram valores estabelecidos e representaram um tempo de profundas transformações. Para compreender melhor o impacto causado pelos sofistas, é preciso observar a sua filosofia mais de perto. Para isso, destacamos os dois mais conhecidos: Protágoras e Górgias. Protágoras (Abdera, 491-481 a.c ao final do século): talvez o mais famoso dos sofistas, Protágoras, viajou por toda a Grécia e foi para Atenas várias vezes, onde fez muito sucesso. As Antilogias constituem a sua principal obra. O princípio que constitui a base da filosofia de Protágoras é o axioma “o homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são por aquilo que são, e das que não são por aquilo que não são”. Esse princípio nega a existência de um critério absoluto ou de uma base segura que distinga o ser do não ser, o verdadeiro do falso. O único critério que temos para dizer se uma coisa é falsa ou verdadeira é o homem individual. No Teeteto, 151e-152a, Platão explica a filosofia de Protágoras: “E não quer dizer com isso que, tal como as coisas individuais me aparecem, tais são para mim, e tais a ti, tais para ti, porque és, como eu sou, homem? [...] mas não acontece às vezes que, soprando o mesmo vento, um de nós sente frio e o outro não? E um sente pouquíssimo, e o outro muito? [...] E então, como chamaremos este vento: frio ou não-frio? Ou devemos acreditar em Protágoras, que para quem sente frio, é frio, para quem não sente, não é?”13 A ausência de um critério universal que distinga o que é ou não uma coisa verdadeira, revela que não há uma verdade absoluta e que todos estão com a verdade, com a sua verdade. Se não existe “o verdadeiro”, também não existem valores morais absolutos. O verdadeiro e os valores não são universais, mas apenas aquilo que é mais útil, mais conveniente. O sábio deixa de ser o portador da verdade e passa a ser aquele que percebe esse “relativo mais útil” e que consegue convencer as pessoas a reconhecê-lo e colocá-lo em prática. O verdadeiro e o falso, o bem e o mal perdem a sua universalidade e passam a indicar o útil e o prejudicial, o melhor e o pior. Diante disso, pode-se dizer que o agricultor é sábio enquanto conhece o bem e o útil nas plantas; os médicos enquanto sabem o que são o bem e o útil para os corpos; e o sofista é sábio enquanto conhece o bem e o útil para a cidade e convence, com argumentos, os cidadãos desse “mais útil”. O problema dessa posição é o seguinte: o útil nas plantas é definido pelo agricultor com relação aos critérios de sua saúde, de seu correto crescimento e de sua maturação; o útil do corpo humano é concebido pelo médico em cima do critério da saúde. Mas e o útil para o homem? Ou, mais ainda, o útil para a cidade? Quem o determina? Em relação a quê? Protágoras afirma que quem deve determinar isso é o sofista, mas não diz quais critérios o sofista deve utilizar para fazer essas determinações.14 Isso gera alguns problemas: de onde vem a autoridade do sofista para determinar o que é “mais útil” para a cidade? Como ele sabe o que é “mais útil” para a cidade? Como garantir que aquilo que o sofista pensa ser mais útil para a cidade não seja, na verdade, mais útil apenas para ele mesmo? Dessa maneira, ao afirmar que não existem valores absolutos, que a verdade é “aquilo que é mais útil” e que o sábio é aquele que convence as pessoas a reconhecer a sua verdade, Protágoras instaura o relativismo moral e/ou o utilitarismo15, que podem ser perigosos à sociedade se radicalizados. Afinal, se cada um tem a sua verdade, se não há critérios absolutos que julguem se uma coisa ou ação é verdadeira, os valores se tornam relativos e a noção de justiça é ameaçada. O convencimento da correção ou da incorreção da ação ou a utilidade da ação substituem a justiça e/ou a tradição como critério para o agir. Moralmente correto não é mais aquilo que era determinado pela tradição, mas aquilo que é decidido com base no convencimento, no argumento. É por isso que Protágoras abalou seu tempo: ao afirmar a inexistência de uma verdade absoluta, ele fulmina a tradição. Nesse processo, o poeta, os sábios e os primeiros filósofos perdem a autoridade e a função de portadores da verdade. O sólido terreno da tradição vira um pântano no qual os principais 13 Ibidem, p.201 14 Ibidem, p. 208 15 O relativismo e o utilitarismo, embora se pareçam muito, são concepções distintas. O relativismo afirma que os valores são relativos, variam de acordo com a época, a cultura, a situação, etc.; já o utilitarismo afirma que a verdade é “aquilo que é mais útil” . É bom dizer que o utilitarismo, cujas sementes foram lançadas pelos sofistas, se des envolve na modernidade com Jeremiah Bentham, que enuncia a seguinte regra: “a máxima felicidade possível para o maior número possível de pessoas”. A maioria políticos se guia por este princípio utilitarista.
  • 10. 10 pilares da sociedade grega perdem a sua força de sustentação. E, quando uma sociedade tem seus pilares questionados, ocorre um momento de crise, de transformação16. São compreensíveis, portanto, as críticas que foram direcionadas aos sofistas eles são os principais agentes de uma avassaladora crise moral e espiritual na Grécia antiga.17 Além disso, o relativismo pode gerar sérios problemas: se não há um conceito absoluto de justiça, como é possível saber se uma ação é ou não legítima? Se cada um tem a sua verdade, isso significa que cada um pode agir da maneira que lhe convém? Se na democracia a verdade é aquilo que é mais útil e o bom político é aquele que consegue convencer as pessoas desse “relativo mais útil”, isso não significa dizer que o regime democrático é puramente retórico, afastado do compromisso com a verdade? A democracia deve se orientar pelo critério daquilo que é mais útil para o seu povo? Quem decide o que é mais útil num país democrático deve ser aquele que tem maior persuasão? Se assim for, o que parece ser mais útil para um povo, mesmo que prejudicando o resto do mundo, deve ser sempre perseguido? Como, afinal, uma democracia deve decidir aquilo que é mais útil? Apenas pelo critério da persuasão? Um regime político baseado na pura retórica não corre riscos demais? O Tirano não pode começar o seu governo convencendo as massas, por exemplo, de que é preciso perseguir algum extrato da sociedade ou vizinho? Se cada país do mundo atual adotar a máxima de Protágoras e tiver a sua própria verdade, a sua própria justiça, não será tão razoável adotar a máxima nazista do extermínio da diferença quanto a máxima cristã do amor ao próximo? Como se vê, vários problemas éticos e políticos se colocam a partir dos sofistas. Até então, mostramos os lados “negativos” desse grupo de filósofos. É preciso ressaltar os pontos “positivos”: sendo precursora da democracia, a sofística contribuiu para a inclusão de todas as pessoas nas mais altas discussões18. Para os sofistas, todos poderiam participar com sucesso da vida política, desde que fossem bem preparados na arte do diálogo. A democratização do saber foi outra lição dessa escola: os sofistas acreditavam que qualquer um, desde que bem conduzido, poderia aprender coisas sobre todos os assuntos e áreas. Para mostrar a importância disso, vale lembrar que muitos modernos acreditavam que os índios e os negros não poderiam se tornar “civilizados”, isto é, detentores de direitos iguais (e de voz) na sociedade. Quanto ao relativismo instaurado por Protágoras, apesar de perigoso, também é saudável para a filosofia, na medida em que desmascara falsos absolutos, idéias antiquadas e dogmatismos colocados pela tradição. Submeter os seus valores à crítica e à discussão é um ato necessário em todas as sociedades saudáveis (embora isso não deva corresponder à negação absoluta e não-crítica da tradição). Enfim, a filosofia de Protágoras colocou problemas e questões que até hoje persistem. Outro sofista famoso é Górgias, o primeiro representante do niilismo ocidental. Górgias (Leontinos, 485/480 a.c até 380-370 a.c): Sua principal obra intitula-se Sobre a natureza ou sobre o não ser e representa o niilismo ocidental. Esta obra apresenta três teses principais, a saber: 1- O ser não existe, ou seja, existe apenas o nada, 2- se o ser existisse, ele não poderia ser conhecido, e 3- mesmo que pudéssemos pensá-lo, o ser permaneceria inexprimível. Assim como Protágoras, Górgias afirma que o homem não pode alcançar a verdade absoluta (aletheia). De nada adianta o esforço da fé ou da razão para encontrar verdades absolutas. Diante dessa impossibilidade será que o homem deve renunciar à sua razão? Não é o que pensa o filósofo de Leontinos: para ele, o homem deve usar a sua capacidade racional, mas de outra forma, sem que isso implique na busca por uma verdade absoluta. A razão que ele segue é a que ilumina as 16 A crise instaurada pelos sofistas será um estímulo para o posterior desenvolvimento da filosofia. O pensamento de Sócrates e Platão, por exemplo, é uma espécie de “resposta” aos sofistas. Por isso, seria mais interessante considerar a palavra “crise” como fa zem os chineses: a palavra que eles usam para designar “crise” é wei-ji, que é composta pelos caracteres “perigo” e “oportunidade”. Uma crise é perigosa, mas traz sempre a “oportunidade” de uma mudança, que pode ser para melhor. 17 Uma das mudanças da época é a instauração da democracia, muito criticada por Platão e pelas classes dominantes. Ao substituir a aristocracia (ou a oligarquia), a democracia inaugura um período de transformações e questionamentos, característicos de uma época de crise. 18 Essa é uma das principais razões da difamação histórica dos sofistas: em geral os gregos (como Platão, o maior filósofo da Grécia) tinham uma visão aristocrática da vida política, e não viamcombons olhos a participação de qualquer cidadão na educação e n os destinos da polis.
  • 11. 11 circunstâncias da vida dos homens e da cidade. Somente pela análise de cada situação, diz Górgias, é que se pode decidir o que fazer ou deixar de fazer. Não há uma fórmula pronta para guiar o agir humano; cada situação exige a sua solução específica. E, se cada situação demanda uma solução específica, isso também significa que os direitos e deveres variam de acordo com o momento, a idade, a posição social, o sexo, etc. Ao questionar a verdade, Górgias se torna o primeiro representante do que hoje se chama “ética da situação”. Com pensamentos como esses, os sofistas tocam em problemas fundamentais da filosofia e da ética: o que é e como é a verdade? Eterna ou produto dos homens? Se a verdade é um produto dos homens, ela pode variar? Se a verdade varia, isso não significa que ela simplesmente não existe? E, se as verdades podem variar, os valores também podem? Isso significa que não há valores ou princípios éticos absolutos e universais? E a justiça? Deve ser única ou varia de acordo com as situações? Se a justiça varia de acordo com as situações, não se pode ter dois pesos e duas medidas em casos similares? Se isso ocorre, um mesmo crime pode gerar uma condenação para um indivíduo e a absolvição para outro? Isso não é injusto? Se isso é injusto, não significa que deve existir, sim, uma noção única de justiça, válida para todos os homens? Como chegar a essa noção universal de justiça? Uma noção única de justiça, no entanto, não seria uma agressão à diversidade cultural? Cada povo deve ter a sua própria noção de justiça? Cada povo pode distribuir direitos e deveres da forma que desejar? A variação dos direitos conforme o sexo, a posição social ou o momento é justa? Se for, tudo é válido e os sofistas estão corretos quando dizem que o mais importante é o poder de persuasão? Como, afinal, podemos saber se um determinado valor moral deve ou não ser superado ou adotado? Apenas por meio da retórica? Como se vê, inúmeras questões e problemas foram colocados pelos sofistas, que deram o definitivo impulso para que a filosofia mudasse a face da civilização ocidental. Sócrates, um dos pilares da filosofia, fez de seu pensamento uma resposta aos sofistas. II.3 – Sócrates e a resposta aos sofistas: Sócrates nasceu aproximadamente em 470/469 a.c e morreu em 390 a.c., condenado à morte por corromper a cidade e os costumes. Seu pai, Sofronisco, era escultor; sua mãe, Fenarete, lavadeira e parteira. Casou-se com Xantipa, descrita por Antístenes, o cínico, como a mais insuportável das mulheres que existem, existiram e existirão. A não ser pelas campanhas militares em Potidéia, Anfipoli e Delio, Sócrates nunca saiu de Atenas. Porque não deixou nada escrito, as principais fontes que temos dele são Aristófanes, Aristóteles, Xenofonte e seu discípulo Platão, que é seu principal “porta-voz”. Assim como os sofistas, Sócrates viveu num momento de crise, quando a antiga aristocracia perdeu o poder e a democracia passou a vigorar. Mesmo que alguns já o tenham chamado de “o maior dos sofistas”, Sócrates é um adversário histórico da sofística, que combateu o relativismo moral e as indefinições por ela colocadas. Para responder aos impasses gerados pelo relativismo dos sofistas, Sócrates começa a sua reflexão com uma célebre pergunta, “o que é o homem?” A resposta a essa pergunta é direta: o homem é a sua alma. A alma, no entanto, não deveria ser considerada como um “fantasma” que abandonava o corpo na morte para vagar no Hades, mas sim como a nossa razão, como a sede da nossa atividade pensante e eticamente operante. A alma socrática é o eu consciente, a personalidade intelectual e moral. Para provar a existência da alma, ele oferece o seguinte argumento: a alma se serve do corpo. Uma coisa é o que se serve e outra o que é servido. O homem, portanto, é aquilo que se serve do corpo: a alma. Com isso, é fácil compreender as duas máximas mais famosas de Sócrates: “conhecer a si mesmo” e “cuidar de si mesmo”. Para conhecer a si mesmo, o homem deve examinar-se interiormente e conhecer a própria alma e, para cuidar de si mesmo, ele deve cuidar em primeiro lugar da alma. Dessa maneira, o critério para julgar se uma ação é ou não justa não deve ser a sua utilidade ou a retórica daquele que a defende, mas a sua conformidade com a essência humana: a alma, a consciência, que é o local onde se encontram as idéias do belo, do bom, do justo, etc.19 A resposta aos sofistas está dada: o homem não deve agir conforme aquilo que é mais 19 Muitos filósofos acreditaram que algumas idéias estavam, de alguma forma, impressas em nossa alma. Isso explicaria, por exemplo, o fato de que todos os povos têm a idéia de Deus ou de que todos os homens sabem o que é mau e o que é bom(mesmo que pratique mo
  • 12. 12 útil, mas conforme a sua essência: a alma. O homem não deve se guiar pela retórica de um pretenso “sábio”, mas pela voz de sua própria consciência. Esses pensamentos invertem o quadro de valores da Grécia. Antes de Sócrates, a virtude (areté) era relacionada aos valores corporais e materiais, como a saúde, o vigor físico, a beleza, a fama, a nobreza, o poder, a habilidade de guerrear, etc. Depois dele, a virtude passa a ter relação com os valores ligados à alma, como o conhecimento ou a ciência. É por isso que Sócrates considera o autodomínio (enkráteia) como a maior virtude que o homem pode almejar: o homem virtuoso não é o guerreiro, o belo ou o rico, mas aquele que é capaz de dominar as suas paixões, a sua dor, a sua fadiga ou o seu prazer, ou seja, aquele que domina a sua própria animalidade e exerce a sua natureza racional. A liberdade, que para os gregos tinha um sentido político (livre era o cidadão, que participava dos destinos da polis, isto é, que fazia política), passa a ter também um sentido moral (livre é quem consegue dominar a si próprio). Com isso, todos os valores mudam: o verdadeiro amigo não é mais o que traz honra ou poder, mas o que tem domínio sobre si mesmo; a felicidade se interioriza, deixa de corresponder a uma vida rica e cheia de honrarias, e passa a ser ligada ao autodomínio e à correção moral. Não é a sorte que faz um homem feliz, mas o autocontrole, a razão. Platão, como será visto a seguir, transfere esse raciocínio para a política: justo e feliz é o Estado governado pelo filósofo, isto é, pela razão. Além disso, as pessoa não devem escutar os políticos ou os poderosos para saber o que é certo ou errado. Para isso, diz sócrates, fomos dotados de alma, de consciência. Essa completa inversão de valores foi a responsável pela condenação de Sócrates à morte: o novo quadro de valores por ele instaurado ameaçou a velha ordem e o levou a ser condenado como “corruptor dos costumes”. Outro fator que o indispôs com a sua cidade foi seu método, constituído pela ironia e pela maiêutica: Sócrates partia da afirmação de nada saber, colocando-se diante do interlocutor como quem deseja aprender. Esse “fingimento” provocava um choque sobre o ouvinte e o levava ao diálogo. Daí sua ironia: ele se mostra como amigo e admirador do interlocutor para, por meio do diálogo, levá-lo à consciência de sua própria ignorância. Quanto ao termo “maiêutica”, indica que Sócrates inspirava-se na profissão de sua mãe e fazia o trabalho de “parteiro espiritual”. Com sucessivas perguntas, ele trazia à tona a verdade escondida na alma de seus interlocutores20. Sócrates acreditou tanto em suas idéias, que morreu por elas sem pestanejar. Poderia ter fugido ou escolhido o exílio, mas preferiu aceitar sua condenação para não violentar a lei de Atenas, que tanto prezava. Morreu pela pólis. Na Apologia de Sócrates, Platão narra a defesa filósofo de Atenas: “Mas a vós que haveis me condenado, quero fazer uma predição e dizer aquilo que acontecerá depois. Eu já estou naquele limite no qual mais facilmente os homens fazem predições, quando estão para morrer. Eu digo, ó cidadãos que me matais, uma vingança recairá sobre vós logo depois da minha morte, muito mais grave do que aquela que cometeis ao matar-me. Hoje fazeis isso na esperança de vos libertardes do dever de dar conta da própria vida e, ao invés, passar-vos-á todo o contrário: eu vo-lo digo antecipadamente. Não mais apenas eu, mas muitos vos pedirão contas: todos aqueles que até hoje eu moderava, e vós não percebestes. E serão tanto mais obstinados quanto mais jovens; e a vossa irritação será tanto maior. Pois se pensais que, matando homens, impedis que alguém vos repreenda pela vossa vida não reta, estais enganados. Não, não é este o modo de se libertar deles; e nem é possível nem belo; mas há outro modo belíssimo e muito fácil, em vez de caçar ao outro a palavra, esforçar-se por ser sempre mais virtuosos e melhores. Este é o meu vaticínio para vós que haveis me condenado; e aqui termino.”21 mal). Sócrates acreditava que as idéias do belo, do bom, do justo, etc., estavam impressas em nossa alma, e que bastaria consultá-la para sabermos como agir diante de um impasse ético. 20 Como foi dito na nota anterior, Sócrates acreditava que a verdade estava presente na alma das pessoas, mesmo que encoberta pela vida sensível, pelo mundo da doxa (opinião). Muitos autores verão o mundo sensível como a causa dos desvios humanos; verão o afastamento do homem da vida mundana como a solução para a “cegueira da verdade”. Seja na vida do filósofo contemplativo, do santo ou do cínico, o afastamento dos prazeres carnais será perseguido por muitos pensadores ao longo da história. Diversos filósofos, ma s especial e primeiramente Pitágoras e Platão, ajudaram a construir essa visão. Por outro lado, há os que enxergam nessa concepção uma das principais causas da alienação humana e a combatem veementemente. 21 Ibidem, p.329
  • 13. 13 A predição de Sócrates vingou e outros questionadores surgiram na Grécia. Entre eles estava um jovem discípulo seu, que se tornaria o maior vulto da civilização ocidental: Platão. PARA PENSAR 1- Na administração de uma empresa é melhor ser relativista ou se guiar por princípios éticos bem definidos? Por quê? O que você faria na seguinte situação: é dono de uma empresa e coíbe qualquer desonestidade, inclusive em relação aos concorrentes. Um empregado seu obtém, por meios ilícitos, uma informação privilegiada da concorrência e consegue, com isso, fechar um grande negócio. Depois de fechar o negócio, ele volta para a sua empresa e te conta tudo o que fez. Como você agiria? 2- Existem princípios éticos universais, ou são todos contingentes? 3- Muitos afirmam que não existem princípios éticos universais, e que a diferença entre as culturas prova isso. Diante desse quadro, devemos abandonar as tentativas de impor um ethos universal e respeitar a diferença cultural e ética dos povos. É tão legítima a vida moral americana como a dos esquimós ou a dos índios. Qualquer tentativa de elaboração de uma ética universal significa autoritarismo ou tentativa de domínio cultural. Se isso é verdade, como a diversidade cultural pode ser garantida? Um povo, por exemplo, pode ter a ambição de subjugar o outro e falar que isso faz parte de sua constituição moral? Não parece, então, que a diversidade só pode ser garantida através do princípio ético universal do respeito à diferença ou da não agressão entre os povos? Se assim é, existem ou não princípios éticos universais? Se existem, pense em pelo menos três princípios éticos universais. 5- Se você encontrou três princípios éticos universais, como fez para identificá-los? 6- Os valores morais mudam ao longo do tempo. Como, por quê e a partir de que eles mudam? II.4 – Platão (Atenas, 427 a.c a 347 a.c): a justiça do todo e a das partes Quando nasceu, Platão ganhou o nome do avô: Aristocles. Não se sabe se o seu o apelido (Platão = ombros largos) veio de seu mestre de ginástica, o lutador Aristo, ou dele mesmo, querendo indicar a dimensão do seu estilo. Seu pai orgulhava-se do parentesco com o rei Crodo e do de sua esposa com Sólon, e é por isso que Platão talvez tivesse, desde a juventude, a vida política como o seu ideal de vida. O jovem Aristocles encontrou-se com Sócrates quando tinha aproximadamente 20 anos. Num primeiro momento, conviveu com Sócrates para preparar-se para a vida política, mas o destino e a grande vocação o levaram a uma dedicação exclusiva para com a filosofia. Teve, no entanto, algumas experiências políticas, todas decepcionantes: em 404-403 a aristocracia tomou o poder e dois parentes de Platão (Cármides e Crítias), que foram destaques no governo, usaram métodos violentos e facciosos para governar. Em 399, presenciou a morte de Sócrates pelos democratas e decidiu se afastar da vida política. Ainda assim, em Siracusa, na Sicília, ele tentou, em vão, transformar o tirano Dionísio I em um rei filósofo. Essa interferência indireta na política, por meio da paidéia (formação, educação), também não deu certo: desentendeu-se com o tirano e foi vendido como escravo em Egina, tendo sido resgatado por Anicérides de Cirene, que lá se encontrava. Ao retornar, fundou a “Academia”, que se tornou um marco na história do pensamento humano, num ginásio situado no parque dedicado ao herói Academo. Depois disso tudo, tentou educar mais um governante, Dionísio II, a pedido de seu amigo Díon, e novamente correu risco de vida. Finalmente, em 360 a.c, retorna para Atenas e dirige a Academia até sua morte, em 347 a.c. Talvez sejam por esses dados biográficos que Platão, como será mostrado, não gostava da democracia e achava que a corrupção do Estado só poderia ser sanada quando a filosofia chegasse ao poder. Trinta e seis escritos platônicos ficaram intactos, o suficiente
  • 14. 14 para influenciar toda a filosofia. A seguir, tem-se uma apresentação superficial de alguns conceitos platônicos. Ao perceber a insuficiência da filosofia dos pré-socráticos e querer dar uma reposta aos impasses sofistas, Platão afirma que a filosofia deveria realizar uma “segunda navegação”, capaz de superar a “primeira grande navegação” realizada pelos físicos (pré-scocráticos). Essa segunda navegação ocorre quando há a descoberta do supra-sensível, do ser inteligível, ou seja, quando há o reconhecimento da existência de dois planos do ser ou da realidade: um fenomênico, visível e sensível, ou seja, passível de ser conhecido pelos sentidos; e outro invisível, metafenomênico e inteligível, ou seja, captado apenas por meio da mente. A afirmação desses dois planos era quase uma exigência lógica para Platão, que não aceitava que as causas de todas as coisas sensíveis e contingentes, sempre sujeitas a variações e transformações, também fossem passíveis de mudanças, caso contrário elas não seriam as causas verdadeiras. Ao afirmar a existência de dois níveis da realidade, Platão une Heráclito e Parmênides: o sensível, que muda o tempo todo, é representado por Heráclito; o inteligível, que é sempre o mesmo, é representado por Parmênides. Quando reconhece a existência desses dois planos e afirma a superioridade do plano inteligível sobre o sensível (portanto, de Parmênides sobre Heráclito), Platão elabora a sua famosa teoria do “mundo das idéias”. Para compreender o “mundo da idéias” de Platão, é necessário saber o que ele entendia por “idéia”. Para ele, as idéias não são apenas pensamentos, mas sim aquilo que o pensamento pensa enquanto está liberto do sensível. Uma idéia platônica corresponde à essência de algo, ou seja, é aquilo que faz com que uma coisa seja o que é. As idéias existem em si e por si, isto é, elas não variam de pessoa para pessoa, mas são impostas aos sujeitos de modo absoluto. Uma idéia é sempre e universalmente a mesma. Para Platão, por exemplo, se falássemos a palavra “árvore”, a idéia que teríamos de uma árvore seria a árvore real e todas as árvores existentes seriam “cópias” dessa idéia. Outra analogia seria a idéia do verdadeiro, igual para todos os homens.22 Entre as idéias platônicas, destacam-se a do justo, a do belo e a maior de todas, que deve orientar as outras, a idéia do Bem. O mundo, diz Platão, é uma cópia dessas idéias, mas que se corrompe por uma espécie de esquecimento humano desse mundo ideal. Relembrar-se do mundo ideal e tentar realizá-lo no mundo real seria a missão suprema do ser humano. Mas como é possível identificar as idéias, em especial a idéia do Bem? A resposta para essa questão encontra-se na concepção platônica de conhecimento, cujo centro está na idéia de anamnese: a alma pode se recordar da verdade que sempre possuiu. É de si mesma que a alma extrai o conhecimento das idéias (do Bem, do Belo, do Bom, do Justo, etc.). A presença de todos os conceitos que possuem “algo a mais” do que a simples experiência sensorial não podem ser explicados senão pela presença na alma desse algo a mais, que pode ser lembrado como reminiscência. Para Platão, há uma marca impressa na alma pela idéia que sempre permanece, mesmo que escondida, em cada ser humano. Essa recordação pode ser feita por meio da filosofia. Por isso, para falar de Platão, é preciso observar algumas linhas centrais de sua “teoria do conhecimento”. Na República há o famoso “mito da caverna”, onde Platão expõe a sua teoria do conhecimento23 e a sua concepção do “mundo das idéias”. Prisioneiros acorrentados e criados numa caverna vêem, num muro, somente as sombras de estátuas que passavam do lado de fora. Criados assim desde que nasceram, acreditam que essas sombras constituem a verdadeira realidade. Quando um deles escapa e sai da caverna, fica assustado e, por um instante, cego. Logo que a sua visão se acostuma com a luz, ele vê os objetos reais, percebe que tudo o que via na caverna não passava de sombras da realidade e descobre que o sol era a fonte de luz que permitia a visão e a existência desses objetos. Depois de vislumbrar as coisas como elas realmente são, o prisioneiro retorna à caverna para tentar libertar os seus antigos companheiros, que se recusam em subir em direção ao sol e que podem matá-lo caso ele 22 A verdade pode variar: para mim a verdade é Cristo, para Fulano é Alá, para Beltrano é a ausência de verdade, e assimp or diante. Mas a idéia do verdadeiro (e a do falso) é igual para todos os homens: é aquilo que se conforma ou não comas suas convicções. 23 Há vários ramos da filosofia, que tratam de diferentes aspectos da realidade: a ética estuda o agir humano, a estét ica estuda o belo, a ontologia estuda o ser, etc. A “Teoria do conhecimento” é uma “especialidade” da filosofia que pretende responder algumas qu estões básicas sobre o conhecimento, tais como “de onde vem o conhecimento?”, “como conhecemos as coisas?”, “é possível conhecer as coisas?”, etc.
  • 15. 15 insista nessa ascensão. Esse mito tem pelo menos quatro possíveis significados: 1) traduz os graus em que se divide a realidade: as sombras simbolizam as aparências sensíveis, as estátuas, as próprias coisas; o muro, a linha divisória entre as coisas sensíveis e as supra-sensíveis; e o sol simboliza a idéia do Bem, 2) traduz os graus do conhecimento: sombras = eikasía (imaginação), estátuas = pistis (crença, objetos sensíveis), objetos e sol = graus da dialética, do conhecimento filosófico, 3) aspecto ascético, místico e teológico: vida dos sentidos = sombras, vida na pureza = vida do espírito, 4) aspecto político: o rei filósofo, contemplativo, que desce ao mundo das sombras para orientar os homens em vez de ficar contemplando a idéia. Simboliza também o risco que o rei filósofo corre ao tentar governar os homens (o que pode ser um “desabafo pessoal”). O certo é que o “mundo das idéias” de Platão é um todo hierarquicamente organizado, no qual o vértice, o fundamento último, é a mais importante de todas as idéias: a do Bem, que produz o ser e a substância. Somente por meio da filosofia, é possível ascender ao mundo das idéias; apenas o rei filósofo pode plasmar o mundo ideal no real. É a partir dessa visão do conhecimento e da realidade que Platão elabora sua teoria política, que é uma resposta aos sofistas e, ao mesmo tempo, constitui a elaboração de um estado perfeito, governado pela justiça ideal. Trata-se da primeira utopia da história, cheia de sugestões estranhas aos homens modernos, mas plena de críticas ainda atuais e instigantes. Vejamos: Como foi visto nas páginas anteriores, os sofistas afirmaram a relatividade dos valores e da idéia de justiça, que passa a se basear na prova argumentativa: se eu provar que Alfredo é justo, ele é; se não, não é. Os sofistas pensavam, acertadamente, que a capacidade de argumentação era fundamental para a vida política e que os bons oradores, que ofereciam justificativas racionais para as suas propostas, seriam bons políticos. Mas os sofistas não formularam um conceito mais amplo de justiça, que contemplasse toda a pólis e se orientasse pela idéia suprema do Bem. Para Platão, isso é inconcebível: a justiça não pode ser um mero convencer ou uma coisa relativa e deve se dirigir ao todo, e não apenas às situações específicas. Qual será, então, a definição platônica de justiça? Em primeiro lugar, como já foi sugerido, ele afirma que o conceito de justiça deve se orientar pela idéia universal do Bem. Como Platão era um grego e via na pólis o espaço por excelência de realização do homem, ele acreditava que, se o homem é a sua alma, o estado é uma projeção ampliada dessa alma. Dessa maneira, o Bem coletivo é superior ao individual, ou seja, a justiça do estado é superior à justiça dos homens individuais. Por sua vez, a justiça do Estado significa que cada um exerça uma só função na sociedade, aquela para a qual, por natureza, ele for mais bem dotado. O argumento de Platão é o seguinte: o Estado surge porque os seres humanos não são autárquicos, isto é, não se bastam a si mesmos, precisam de outros homens para sobreviver. O Estado se origina, então, das múltiplas necessidades que os homens têm. Dessa multiplicidade de necessidades nascem as profissões, que só podem ser exercidas por pessoas diversas.Os homens não nascem em tudo semelhante aos outros, mas com diferenças naturais e de aptidões que devem ser aproveitadas para a formação do Estado, para a realização do Bem. Em outras palavras: se o homem não vive só e se os homens são diferentes, a justiça do todo é superior à das partes e só pode ser efetivada por meio da justa adequação de cada um à tarefa que lhe cabe na sociedade. A partir dessa noção de justiça, Platão constrói o seu Estado ideal, a sua famosa República. Na “República”, as castas têm os seus papéis bem definidos e, por vezes, subdivididos. Entre os guardiões do Estado, por exemplo, há os que obedecem e os que mandam. Aos primeiros, camponeses, artesãos e comerciantes, será permitida a posse de bens e riquezas, mas nem em excesso e nem em escassez (para que a preguiça ou a cobiça não os influenciem); aos segundos, defensores do Estado (guerreiros), não serão concedidos bens, terão habitação e mesa comuns e receberão víveres de outros cidadãos para seu sustento. A abnegação exigida desses segundos é total: nem mesmo a posse de uma família é permitida, e a única coisa que podem possuir é seu próprio corpo. Os filhos dos guardiões não devem reconhecer os pais e precisam ser retirados imediatamente das mães para serem criados em comum. Todos aqueles que nasceram em um determinado período deverão se tratar como irmãos. Até mesmo a seleção dos casais deve ser controlada pelo Estado, ou
  • 16. 16 seja, deve ser feita de maneira que só os melhores homens e mulheres se juntem. Para isso, aliás, Platão oferece uma solução nada ortodoxa: controlar a reprodução por meio de sorteios que devem ser manipulados de tal modo que somente as melhores mães e os melhores pais se encontrem. Isso foi motivo de muitas críticas à filosofia platônica, pois é, de certa maneira, a primeira “sugestão filosófica” de eugenia de que se tem notícia24. Para manter o estado saudável e a justiça funcionando, a educação deve ser exemplar (os gregos usavam a palavra paidéia, que tem um sentido mais amplo do que “educação”. Para traduzi-la, pode-se tentar a palavra formação). Aqui entra uma grande novidade entre os pensadores gregos: Platão afirma que homens e mulheres devem ser educados da mesma maneira e podem ocupar os mesmo cargos, se tiverem aptidão para isso. Na educação platônica, os guardiões são educados com música e ginástica para que sofram os efeitos do Bem. Já os governantes precisam mais do que dos efeitos do bem; precisam do conhecimento do bem. Quais são, então, os homens e as mulheres que devem governar? Quais homens e mulheres têm o conhecimento do bem que lhes permite governar com justiça? A resposta de Platão é direta: os governantes são os filósofos e os filósofos são os governantes. De acordo com Platão, colocar o filósofo no governo equivale a colocar o divino e o absoluto como medida suprema, como fundamento do Estado. O filósofo, depois de ter alcançado o divino, o contempla e o imita e, por isso, é capaz de plasmar o Estado segundo a mesma medida. No Estado platônico é extremamente importante a seleção de jovens dotados de vocação filosófica. Afinal, como foi dito, a Paidéia ginástico-musical produz os efeitos do Bem, mas não o conhecimento do Bem. Para chegar a esse conhecimento não há atalhos, somente o longo caminho da “segunda navegação”, que passa pela aritmética, geometria, astronomia, ciência da harmonia e culmina na dialética, isto é, na segunda navegação, na contemplação do sol ou da idéia do Bem que Platão simboliza no mito da caverna. Para obter governantes filósofos, após longa observação, os que chegarem aos trinta anos e tiverem vocação dialética serão colocados à prova para verificar se, prescindindo de olhos e sentidos, são capazes de subir à verdade. Aqueles que passarem nesse teste serão educados na dialética por cinco anos. Dos trinta e cinco anos aos cinqüenta, deverão ainda se submeter a atividades empíricas, assumindo o comando de guerras e vários cargos. Somente aos cinqüenta anos termina a Paidéia dos governantes: se sobreviverem, estarão aptos a governar. É interessante perceber que, apesar de Platão desenhar uma sociedade dividida em castas, nessa sociedade ainda há o espaço para a mobilidade social: se um filho de artesão tivesse habilidade filosófica, ele poderia ser governante. Além disso, cada casta tinha a sua compensação e os seus sacrifícios; os que obedecem podem ter algum dinheiro, os que mandam nada possuem, e assim por diante. Trata-se, então, de uma aristocracia no sentido forte do termo: o governo dos melhores por natureza e educação. Esse Estado ideal é o parâmetro para as construções reais: todas as constituições reais são imitações da constituição ideal. Quando é um só que governa imitando o político ideal, tem-se uma monarquia; quando é a classe dos ricos que governa idealmente, tem-se uma aristocracia; quando é o povo, tem-se uma democracia. Existem, no entanto, as formas corrompidas de Estado. A monarquia pode se degenerar em Tirania, a aristocracia em oligarquia e a democracia em demagogia. A respeito da corrupção do Estado, há uma ordem, que pode ser historicamente rompida, mas que é determinante: o primeiro passo da corrupção do Estado é a timocracia, governo que substitui a virtude pela honra como valor supremo. Fazendo isso, a sede de honras (a ambição) substitui o Bem público e torna-se a mola mestra da vida pública. Na vida privada já se esconde o desejo por riquezas e, portanto, a próxima forma de Estado corrompido: a oligarquia, forma de governo fundada na riqueza. Após a oligarquia, que é o governo cujo valor fundamental é a riqueza, temos a democracia, que Platão entendia pejorativamente por demagogia. É notória a antipatia platônica pela democracia, 24 Essa crítica, no entanto,não parece correta, pois Platão não desejava uma “raça superior” como o nazismo desejou no século XX.
  • 17. 17 que condenou Sócrates e que pode tender a um forte caráter demagógico. Muitas críticas foram feitas a Platão por leitores modernos,25 mas seu argumento á instigante: “A insaciabilidade de riqueza e dinheiro leva, pouco a pouco, na oligarquia, a não se cuidar de outra coisa a não ser de riqueza. Os jovens, crescendo sem uma educação moral, começam a gastar sem medida... e se abandonam indiscriminadamente a todo o gênero de prazer [...] Dessa maneira, os ricos detentores do poder se enfraquecem, mesmo fisicamente, até o momento em que os súditos pobres tomam consciência do que está acontecendo e, na primeira ocasião propícia, tomam o poder e instauram o poder do povo, proclamando a igualdade dos cidadãos (distribuindo a igualdade seja entre os iguais, seja aos desiguais, diz Platão), e distribuindo magistraturas com o sistema do sorteio. O Estado fica cheio de “liberdade”, mas é uma liberdade que, desvinculada de valores, degenera em licenciosidade. Cada um vive como lhe apraz e, se quiser, pode participar também da vida pública. [...] quem quiser fazer carreira política não necessita ter natureza adequada, educação e competência: basta que afirme ser “amigo do povo.””26 Como se vê, o principal motivo da antipatia platônica para com a democracia era a “distribuição de igualdade entre os desiguais” e o sistema de “sorteio” das magistraturas, que substituía o critério da competência. Se as pessoas não são iguais, tratá-las igualmente significa ferir a justiça do todo. Justo é saber dar a cada um a parte que lhe cabe, por aptidão, na sociedade (e isso só é possível no governo do rei filósofo). Depois da democracia, pensava Platão, só restava a tirania, onde o desejo de um só substituía a justiça e a razão. Da total liberdade para a total escravidão: é esse o passo final da corrupção do Estado na teoria platônica. Assim como qualquer grego (até mesmo os sofistas, quando preparavam as pessoas para a vida política), Platão colocava o Estado e a política acima do indivíduo e da vida privada. Para resumir, pode-se dizer que a filosofia platônica responde aos sofistas de maneira semelhante a que vimos em Sócrates: no lugar da relatividade dos valores, ele oferece a orientação pelas idéias universais que estão impressas em nossa alma, em especial a do Bem. Orientando-se por essa idéia suprema, ele elabora o Estado ideal, onde a justiça é colocar cada peça em seu lugar. PARA PENSAR: 1- Pense se o conceito de justiça de Platão, dar a cada pessoa uma função na sociedade por mérito, não pode ser associado à prática do administrador (como deve ser feita a distribuição dos talentos dentro de uma empresa?). 2- Existe alma? Se existe, o que é a alma? 3- O conhecimento do bem e do mal está “impresso na alma” ou é fruto da “cultura”? Justifique a sua resposta. 4- A atual democracia mundial é excludente ou oferece oportunidades iguais a todos os cidadãos? Se você acha que ela é excludente, quais são os excluídos? E como ocorre o processo de exclusão na atual democracia? 5- Você enxerga algum outro regime político como sendo melhor do que a democracia? Justifique e fundamente a sua resposta. 5- Sugestão de pesquisa e de reflexão: sociedades bem distintas das “civilizadas”, como os canibais de Papua, na Nova Guiné (tribos Korowai e Asmat) e as seis tribos americanas que se situavam na região de nova York e da Pensilvânia e que formavam as chamadas “Nações Iroquesas”. Sobre os canibais, procurem saber e refletir: quem pode ser a sua vítima? Como e por quê eles comem as suas vítimas? O que se deve fazer a respeito disso? O que é o bem e o mal para um canibal de Nova Guiné? E para você? Sobre os índios iroqueses dos Estados Unidos, procure saber e refletir: como eles se organizavam? Como eram tomadas as suas decisões? Como 25 A hermenêutica revelou que esse tipo de crítica é injusto, pois quando lemos um texto , devemos tomar consciência de sua historicidade, dos pré-juízos, pré-conceitos e pré-suposições de sua época. Compreender o tempo histórico de Platão é essencial antes de criticá-lo. Mesmo assim, as teorias gregas continuamassustadoramente atuais. 26 Ibidem, vol II, p.265
  • 18. 18 eles tiveram seus territórios tomados? Com quem eles lutaram? O que ganharam em troca? Qual importante documento histórico é inspirado nas nações iroquesas? II.5 – Aristóteles (Estagira, 384/83 a 322 a.c): a divisão do conhecimento e a ética – Seu pai, Nicômaco, foi médico do rei Amintas, da Macedônia. Com 18 anos, Aristóteles foi para Atenas e ingressou na Academia, onde permaneceu por 20 anos, até a morte de Platão. Saiu porque, após a morte de Platão, o “acadêmico” Espêusipo, seu mais forte opositor, assumiu a direção da Academia. Foi, então, para a Ásia menor. Passou por Assos onde fundou uma escola com os platônicos Erasto e Corisco, e lá permaneceu por três anos. Depois foi para Mitilene, na ilha de Lesbos, para lecionar. Em 343/342, Felipe, o macedônio, confia-lhe a educação de seu filho, Alexandre, então com 13 anos. Deve ter ficado na corte Macedônia até Alexandre assumir o trono, em 336. Retorna à Atenas em 335/334 e abre uma escola em alguns edifícios próximos a um pequeno templo dedicado a Apolo Lício, de onde vem o nome “Liceu”. Como dava aulas passeando no jardim, a sua escola (o Liceu) também era conhecida como perípato (peripatos=passeio), e seus seguidores como peripatéticos. Em 323, com a morte de Alexandre, ocorre em Atenas uma forte reação antimacedônia. Temendo um novo “atentado contra a filosofia” (o primeiro foi a morte de Sócrates), Aristóteles foge para Calcídia, onde a sua mãe possuía bens, e deixa Teofrasto na direção do Liceu. Morre em 322, com poucos meses de exílio. Aristóteles é o responsável pela primeira e mais famosa divisão do conhecimento, a saber: 1- ciências teoréticas, que buscam o saber por si mesmas. São a metafísica ou a “filosofia primeira”, que é a mais elevada das ciências, a física ou “filosofia segunda” (onde se inscreve a psicologia), e a matemática. 2- o segundo grande ramo do conhecimento é constituído pelas ciências práticas, que buscam o saber para alcançar a perfeição moral. Esse ramo inclui a política e, subordinada a ela, a ética. 3- o terceiro ramo é constituído pelas ciências poiéticas ou produtivas, que buscam o saber em vista do fazer, com a finalidade de produzir objetos. Como se vê, a ética era subordinada à política; a perfeição moral estava indissoluvelmente ligada à perfeição do Estado. A saúde da comunidade era mais almejada do que a do indivíduo. Essa prioridade grega da política sobre a ética nos parece estranha, pois nosso tempo, por diversas e justas razões, considera o indivíduo como anterior ao Estado. Hoje em dia consideramos a liberdade individual como um valor fundamental e inquestionável da democracia. Os povos que ainda não conquistaram a sua liberdade individual estão em procura dela, seja por meio de protestos e argumentos ou de violência e desordem. O Estado ocidental atual (atualmente “encarnado” na forma da democracia) só tem sentido se garantir a liberdade individual. Na Grécia antiga, ao contrário, o todo (o Estado) era anterior ao indivíduo, ou seja, a liberdade individual não se sobrepunha à liberdade política. Para os gregos, livre era o cidadão, isto é, aquele que pode cuidar das tarefas da “pólis”. Um grego certamente veria a nossa ânsia pela “liberdade individual”, freqüentemente identificada com uma alienante busca por dinheiro e bens materiais, como um sintoma de alguma demência ou como falta de caráter. Quem está certo? O cidadão grego ou o cidadão moderno? Nem um nem outro. Cada visão de mundo representa o seu tempo e deve ser compreendida em seu contexto. Gadamer, um filósofo do século XX, dizia que todos os tempos e todas as culturas têm diferentes pré- supostos, pré-conceitos e maneiras de interpretar a realidade. Assim, por exemplo, na década de 1960 predominava a interpretação marxista da realidade. Todos interpretavam a história como uma luta de classes, como uma peleja entre proletários e capitalistas e com inúmeros conceitos marxistas. Atualmente há outras formas de se encarar a história, e poucos são os que continuam a interpretá-la de maneira puramente marxista. Todos nós temos pré-conceitos e maneiras de ver a história, que variam com o tempo. Procurar compreender os pré-conceitos do tempo e do povo que estamos a estudar (assim como os nossos), ajuda a compreender melhor o passado. Um exemplo: é preciso ter consciência de que estamos, agora, a aplicar conceitos da hermenêutica, que dizem para termos
  • 19. 19 consciência de nossos pré-juízos. Outro exemplo: um cientista, que encara a realidade de maneira objetiva, isenta de valores, pela ótica da pura ciência, deveria ter consciência de que a isenção valorativa é, ela mesma, um valor. Fazendo isso, ele ampliaria as suas convicções e perceberia que não há isenção no mundo: só posicionamento. E que todo o posicionamento da comunidade científica gera amplas e graves conseqüências para o mundo atual. Armas biológicas, químicas e/ou de destruição em massa são alguns exemplos do que a “isenção valorativa” da comunidade científica pode ajudar a construir. Não é à toa que os cientistas do século XXI estão cada vez mais preocupados com a ética: eles sabem que a “ciência pela ciência” já não é mais possível porque o mundo está na beira do colapso e exige responsabilidade, paz e diálogo. Todo cientista atual sabe que é essa mesma ciência, que nos deu as ferramentas para cavar esse abismo, que pode nos dar os instrumentos para superá-lo e seguir em frente. É por isso, então, que devemos ter sempre consciência de nossos “pré-conceitos” quando interpretamos a realidade: isso aumenta a nossa capacidade de compreender os outros povos, as outras formas de vida, as outras épocas. Por isso, a ética de Aristóteles deve ser encarada sob a perspectiva grega, que considerava a pólis como superior ao indivíduo. Para ele, a ética era subordinada à política, era um caminho, um pré-requisito para a política. O cidadão moralmente equilibrado seria um bom político. Por outro lado, os gregos, de maneira geral, viam o cidadão que não participava dos destinos da pólis como um idiota, por mais honesto que fosse. É nesse contexto que Aristóteles elabora a sua ética. Na Ética à Nicômaco27, Aristóteles desenvolve o seguinte raciocínio: em todas as suas ações, o homem tende a precisos fins, que se configuram como bens. E todos os bens e fins que o homem almeja estão em função de um fim ou bem último: a eudaimonia (felicidade). A partir daí, Aristóteles ergue uma argumentação que até hoje fascina os leitores. Para definir a felicidade, Aristóteles diz o que ela não é. Começa pela definição que a maioria das pessoas têm: a felicidade consiste no prazer e no gozo. E afirma que essa felicidade corresponde a uma “existência digna dos animais”. Os mais evoluídos acreditam que a felicidade consiste na honra e na fama. Mas a honra é fugaz e depende de alguém para conferi-la. Piores ainda são os que crêem que a felicidade consiste no acúmulo de riquezas, pois o dinheiro é apenas um meio, e não um fim. Se a felicidade não é oriunda do prazer, da fama ou da riqueza, de onde ela vem? Aristóteles acreditava que a felicidade não vinha do exterior, mas de dentro do ser humano (vale aqui perceber como a inversão socrática dos valores influenciou toda a nossa cultura). Para ele, a felicidade, tal como era para Sócrates, significava viver conforme aquilo que distingue o ser humano das bestas: a razão. Afinal, a felicidade é uma atividade da alma, e a alma é racional. Levar uma vida conforme a razão significa, por sua vez, levar uma vida de acordo com as virtudes. E, se o homem possui diversas funções, assim ocorre com a sua alma. Para cada função da alma é exigida uma virtude. Por isso, Aristóteles divide as virtudes em éticas e dianoéticas. As virtudes éticas são as relativas à parte sensitiva e concupscível da alma. Essas virtudes consistem no domínio dos impulsos instintivos, no domínio da desmedida, e são adquiridas através do habitus. Realizando ações justas, adquirimos o habitus da justiça; realizando atos corajosos, adquirimos o habitus da coragem, e assim por diante. Mas isso informa apenas como adquirimos as virtudes, e não qual é a natureza das virtudes. O que define uma virtude? Qual é a essência comum a todas as virtudes éticas? O justo meio, responde Aristóteles. A coragem é o justo meio entre a covardia e a temeridade, a amabilidade é o justo meio entre a hostilidade e a adulação, e assim por diante. A virtude é, enfim, a justa medida com a qual repartimos os bens, as vantagens e os ganhos. Por sua vez, as virtudes dianoéticas são aquelas que correspondem à parte mais elevada da alma, a racional. Conhecidas como “virtudes da razão”, elas se dividem em dois grupos, que correspondem às duas partes da alma racional, a razão prática, que conhece as coisas contingentes, 27 Trata-se da primeira obra de ética da história do ocidente. A partir daí firma-se a “ciência do ethos”.
  • 20. 20 e a razão teorética, que conhece as coisas necessárias e imutáveis28. Essas virtudes são a sabedoria (phrónesis) e a sapiência (sophia). A sabedoria, virtude da razão prática, consiste em dirigir corretamente a vida do homem, em saber deliberar sobre o que é bom ou ruim para o homem. E a sapiência, virtude da razão teorética, consiste na captação intuitiva dos princípios por meio do intelecto. Essa é, segundo Aristóteles, a virtude mais elevada da alma, porque diz respeito ao que está acima do homem. Dessa maneira, a felicidade consiste em viver de acordo com as virtudes: em primeiro lugar na atividade do intelecto, em segundo na vida de acordo com as virtudes éticas. Aqueles, no entanto, que não vivem conforme as virtudes éticas, não são capazes de chegar às virtudes dianoéticas. Desde Aristóteles, a contemplação de Deus exige o equilíbrio moral, o exercício das virtudes éticas. Por mais diferente que o deus Aristótélico fosse do Deus cristão, do Deus judaico ou do Deus muçulmano, ele exigia perfeição moral para poder ser compreendido. Desde sempre os pensadores, em sua maioria, afirmam que a ausência de uma alma equilibrada impede a contemplação do divino, do sumo bem. De todas as ciências, portanto, a metafísica é a mais elevada e foi chamada por Aristóteles de filosofia primeira ou teologia, em oposição à filosofia segunda ou física.29 Ela é uma ciência que trata das realidades que estão acima do mundo físico, isto é, das realidades supra-sensíveis. Aristóteles definiu a metafísica de várias maneiras: como a ciência que indaga sobre as causas e os princípios primeiros; como a ciência que indaga sobre o ser enquanto ser, ou como a ciência que indaga sobre Deus ou sobre a substância supra-sensível. Trata-se de uma ciência que vale em si e para si, pois tem em si mesma seu fim, ou seja, sua razão de ser é uma só: satisfazer a curiosidade humana por um puro conhecimento. Ela nasce da admiração do homem diante do mundo, da radical necessidade que o homem tem de conhecer o porquê último.30 Para Aristóteles, todas as outras ciências são mais necessárias do que a metafísica, mas nenhuma é superior a ela. Para ele, todo o saber que tem uma porção intelectual é superior àqueles saberes que são meramente manuais: “Todos os homens, por natureza tendem ao saber. (...) com efeito, os homens adquirem ciência e arte por meio de experiência. A experiência, como diz Polo, produz a arte, enquanto a inexperiência produz o acaso. A arte se produz quando, de muitas observações da experiência, forma-se um juízo geral e único passível de ser referido a todos os casos semelhantes. Ora, em vista da atividade prática, a experiência em nada parece diferir da arte; antes, os empíricos têm mais sucesso do que os que possuem a teoria sem a prática. E a razão disso é a seguinte: a experiência é conhecimento dos particulares, enquanto a arte é o conhecimento dos universais; ora, todas as ações e as produções referem-se ao particular. (...) Todavia, consideramos que o saber e o entender sejam mais próprios da arte do que da experiência, e julgamos os que possuem a arte mais sábios do que os que possuem só a experiência, na medida em que estamos convencidos de que a sapiência, em cada um dos homens, corresponda à sua capacidade de conhecer. E isso porque (...) os empíricos conhecem o puro dado de fato, mas não o seu porquê; ao contrário, os outros conhecem o porquê e a causa. (...) Por isso consideramos os que têm a direção nas diferentes artes mais dignos de honra e possuidores de maior conhecimento e mais sábios do que os trabalhadores manuais, na medida em que aqueles conhecem as causas das coisas que são feitas; ao contrário, os trabalhadores manuais agem, mas sem saber o que fazem, assim como agem alguns dos seres inanimados, por exemplo, como o fogo queima: cada um desses seres inanimados age por certo impulso natural, enquanto os trabalhadores manuais agem por hábito.”31 Aqui, no entanto, Aristóteles ainda fala da techné,ou seja, de um saber que ainda não é o mais elevado, pois conserva uma certa dose de “empirismo”. Para ele, “quem deseja a ciência por si mesma deseja acima de tudo a que é ciência em máximo grau, e esta é a ciência do que é maximamente congnoscível. E a mais elevada das ciências, a que mais autoridade tem sobre as dependentes é a que conhece o fim para o qual é feita cada coisa; e o fim em todas as coisas é 28 Aqui vale perceber uma semelhança com a divisão platônica da realidade, proposta emsua “segunda navegação”: Platão diz que h á um plano da realidade onde se encontram as coisas sensíveis, fenomênicas, contingentes, e outro onde se situam as coisas intelig íveis, matafenomênicas, necessárias. E afirma que o verdadeiro conhecimento é o daquelas coisas que não mudam. Ou seja: por mais q ue tenha se afastado do platonismo, Aristóteles carrega a herança dos ensinamentos de seu mestre por toda a vida. 29 O termo metafísica foi criado posteriormente para designar os livros que vinham depois da física. 30 REALE, op.cit., p.337-339. 31 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002, p.9.
  • 21. 21 o bem e, de modo geral, em toda a natureza o fim é o sumo bem. (...) Do que foi dito, resulta que o nome do objeto de nossa investigação refere-se a uma única ciência; esta deve se ocupar sobre os princípios primeiros e as causas, pois o bem e o fim das coisas é uma causa.” Essa ciência das causas primeiras, da qual fala Aristóteles, é a metafísica. E o sumo Bem é Deus, que Aristóteles define da seguinte maneira: “...dado que o que é movimento e move é um termo intermediário, deve haver, consequentemente, algo que mova sem ser movido e que seja substância eterna e ato. (...) dado existir algo que move sendo, ele mesmo imóvel e em ato,não pode ser diferente do que é em nenhum sentido. (...) Portanto ele é um ser que existe necessariamente; e enquanto existe necessariamente, existe como Bem, e desse modo é Princípio. (...) Desse princípio...dependem o céu e a natureza. (...) Portanto, do que foi dito, é evidente que existe uma substância imóvel, eterna e separada das coisas sensíveis. E também fica claro que essa substância não pode ter nenhuma grandeza, mas é sem partes e indivisível.”32 O conhecimento de Deus (ou do “primeiro princípio”) é o mais elevado que um homem pode possuir. Esse conhecimento só pode ser atingido pela filosofia, pelo pensamento. Nesse sentido, Aristóteles afirma que a “atividade contemplativa é o que há de mais prazeroso e mais excelente”33 . Por isso, a felicidade suprema consistia em levar uma vida de acordo com a virtude e, além disso, dedicar-se a mais elevada de todas as atividades: a contemplação. Aqui termina a parte sobre a Grécia clássica. Há muito mais para se estudar sobre o assunto. Aqui foram delimitadas algumas das figuras mais importantes desse período apenas para estimular a curiosidade e mostrar que muitos dos problemas e questionamentos atuais foram “descobertos” na Grécia antiga. A próxima unidade trata, muito superficialmente, de três períodos da história: o helenismo, a idade média e o renascimento. Esses períodos formam a ponte para a modernidade, onde o mundo que conhecemos começa a se formar. PARA PENSAR: 1- Você concorda com Aristóteles quando ele afirma que os conhecimentos técnicos são superiores aos manuais, mas inferiores aos “contemplativos” ou puramente teóricos? Por quê? 2- Imagine um mundo onde fossem expulsos todos os técnicos e trabalhadores manuais e fossem mantidos apenas os teóricos. Você acha que esse mundo é possível? Por quê? E o contrário (um mundo onde os teóricos fossem expulsos e permanecessem só os trabalhadores manuais), é possível? Por quê? 3- Qual é a importância do trabalhador manual, do técnico, do gerente/coordenador e do diretor geral na sua empresa? O que ela faz por cada um deles? Como é a comunicação entre cada um desses colaboradores dentro de sua empresa? Há políticas bem definidas para esses colaboradores em sua empresa? III - Helenismo, Idade Média e Renascimento III.1 O helenismo: a expedição de Alexandre Magno (334-232 a.c) é um marco no período de decadência da pólis que, gradualmente, perde a sua autonomia, a sua liberdade e o seu papel histórico. Alexandre morre cedo e não concretiza o seu sonho de formar um grande império. Surgem, no entanto, monarquias que, embora instáveis, abalam definitivamente os valores gregos clássicos como os defendidos na República de Platão. O grego, antes cidadão, se torna um súdito; as virtudes civis dão lugar aos conhecimentos técnicos, e o administrador da coisa pública (da res pública) deixa de ser o cidadão e passa a ser o funcionário, o soldado ou o mercenário. A antiga divisão entre gregos e bárbaros desmorona.34 Finalmente, em 146 a.c, a Grécia perde a sua liberdade e se torna uma 32 Idem, ps.565-567 33 Idem, p.565 34 Com isso, antigos pré-conceitos são eliminados. Alexandre estava disposto a acabar com a noção racista de mundo que os gregos possuíam. Para isso, estabelecia medidas para estimular a miscigenação: vários oficiais macedônios casaram-se com mulheres persas. Ele