1. Eória
O retorno da guerreira
Julianna S. Santos
Dezembro de 2011
Permitida a cópia e distribuição. Autora: Julianna Santana Santos
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2. SUMÁRIO
A tutora Leonor..................................................................................................... 3
Elizabeth e o espelho.............................................................................................. 9
O testamento de Billie Grant................................................................................. 15
Memórias de Liz.................................................................................................. 21
O terrível pesadelo............................................................................................... 28
Surpresa do passado............................................................................................. 32
O casamento........................................................................................................ 40
O caçador de encarnados....................................................................................... 44
Eória um mundo novo.......................................................................................... 52
As respostas......................................................................................................... 58
A marca do guerreiro............................................................................................ 66
O encontro com o rei............................................................................................ 71
O presságio de Semíramis..................................................................................... 79
Recordações de uma vampira................................................................................ 84
O amor do passado............................................................................................... 91
O soldado injustiçado........................................................................................... 98
A arena............................................................................................................. 110
Julgamento precipitado....................................................................................... 117
Desfazendo desenganos....................................................................................... 122
Acusações dolorosas........................................................................................... 130
A morte do rei.................................................................................................... 135
O vampiro sombrio............................................................................................. 142
O traidor............................................................................................................ 149
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3. Capítulo 1
A tutora Leonor
Momento de angústia... Ele me encontrou... Na verdade, não sei se ele realmente me
encontrou ou se eu o atraí de alguma forma. Algumas pessoas acreditam em coincidências,
mas eu não faço parte delas.
Quem sou eu? Apenas alguém que já enfrentou a morte algumas vezes, o bastante para
saber a diferença entre, encarar o pior de frente ou fugir para lutar amanhã, e garanto que
qualquer que seja a decisão nunca será fácil.
Cidade de Clayton, Condado de Rabun, Georgia. 15 de junho de 2008, 07:00 AM.
-Elizabeth, abra a porta!
O barulho era ensurdecedor do lado de fora, minha tutora parecia querer entrar com porta
e tudo dentro do meu quarto.
-Elizabeth querida, tem um assunto importante o qual quero conversar com você, abra a
porta!
Bammm! Bammm! Bam!
Bem, isso era a novidade e era o que me fazia relutar em abrir, “conversar”, não me
lembro quando foi a última vez ou se houve alguma vez depois da morte do Bill, que ela tenha
tido necessidade de conversar qualquer coisa comigo e usado um tom tão preocupado e suave
como agora. Essa não era a “dona Leonor” que eu conheço. A não ser que o seu cérebro
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4. tivesse sido sugado e com ele toda a frieza, regras e impaciência que faziam da minha..., da
“Leoa” uma das pessoas mais irritantes que eu já conheci.
- Querida eu entendo que você tenha sua privacidade..., mas será que poderia abrir a
porta, é algo importante e do seu interesse eu garanto. Gostaríamos de conversar em particular
com você, está bem, querida!?
- “Gostaríamos”, ela disse isso? Sussurrei. Não soava mais suave e sim apelativo o que
era ainda mais estranho.
Eu sussurrei ainda mais baixo me certificando que somente eu ouvisse:
–“Eu entendo”, “importante”, “do seu interesse”, “querida”, eram muitas palavras
estranhas para mim vindas da boca da Leonor e de uma só vez.
“O que diabos estava acontecendo afinal?”
Eu acabara de acordar, com um barulho louco e ainda pensava estar dormindo quando
ouvi essas palavras e ao invés de me animar e pensar que enfim um pouco de humanidade
havia se apossado da minha tutora, vi-me preocupada, sem saber se abria ou não aquela
maldita porta, naquela hora tão indecente.
Leonor era simplesmente a tutora legal que o meu avô deixou para mim, caso
acontecesse alguma coisa a ele. “Leoa”, era assim que eu pensava nela, como uma leoa no
pior sentido da comparação; foi casada com o Bill por estúpidos quinze anos, além disso ela
era vinte anos mais jovem que ele o que a qualificava para o cargo de tutora... Bill supôs que
ela teria uma vida mais longa que a dele, no entanto, o Bill também achou que o grande
Jhonny, viveria mais tempo, e se enganou. E por falar em engano a “Leoa” não supriu as
expectativas do Bill quanto a mim, não após sua morte. Se ele achou que ela me amaria como
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5. uma “neta”, ou melhor, “filha”, ele se enganou. A vida na mansão era cada dia mais incômoda
e fria, embora nos respeitássemos. Por pura falta de sorte, ela era o parente mais próximo que
eu conhecia.
Meu pai era filho único e minha mãe cresceu num orfanato, ela não sabia nada sobre os
próprios pais ou parentes. Quando Leonor se casou com o Bill, o meu pai já tinha se formado,
casado com a minha mãe e eu tinha acabado de nascer na mansão. Nós morávamos em
Athens, Georgia. O meu pai decidiu ficar lá após ter cursado a universidade. Embora essa
distância sempre fosse motivo de discussão entre o Bill e o Jhonny, para a Leonor era um
tanto satisfatório. Meu pai, o “grande Johnny” como o Bill costumava chamá-lo, e, sua bela
esposa Margaret, eram visitantes toleráveis de tempos em tempos, para Leonor. Já que as idas
do Jhon a mansão dos Grants eram intercaladas, ano sim ano não. O que deixava o velho
bastante aborrecido. Como ele mesmo costumava dizer, nós éramos (vovô e neta), uma dupla
imbatível. Eu adorava as férias com ele. Ele era incrível.
Com o tempo descobri, que a “Leoa” era o tipo de mulher a qual se devia ter cautela em
chatear, caso contrário, como minha tutora, ela cortaria o pouco de regalias que eu ainda
possuía aquela altura. Ela tinha um filho, que não vejo desde o enterro do velho Grant, há dois
anos e meio. Não, ele não era filho do Bill Grant, mas sempre tinha tudo o que queria com ele,
o Bill simplesmente amava aquele garoto e a sua mãe, apesar de ter casado com ela em
regime de separação total de bens e com isso ter ganhado o apelido de “velha raposa”. Era
assim que ela o chamava. Então ele morre e nós descobrimos que a “velha raposa”, também
se esqueceu dela e do seu filho no testamento. Um casamento de quinze anos é um bom
tempo para se mudar de idéia quanto a bens; ou não.
Pelas minhas contas acho que ela está na faixa dos cinqüenta anos, mas nunca perguntei.
Com certeza, teria sido um crime interrogá-la sobre sua idade. Caso fizesse, certamente eu
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6. seria levada para um reformatório e esquecida lá até apodrecer, sem direito a visitas. Mulheres
vaidosas ficam ofendidíssimas quando o assunto é idade, por isso quando quero mantê-la
ocupada, às vezes, com cautela, dou a entender que ela está com uma aparência cansada e saiu
de fininho para que ela possa se intumescer de cremes anti-idade e aliviar sua rasa consciência
me deixando em paz.
A senhora Grant tinha se tornado uma mulher dura, mas apesar do jeito sisudo que ela
adquiriu com a viuvez, notava-se que ela ainda era bastante bonita. Certamente não parecia
nada ter a idade que eu desconfiava que ela tivesse. Ela simplesmente parecia ser pelo menos
dez anos mais nova do que qualquer idade que eu pudesse imaginar para ela. Fisicamente
tinha mais ou menos, um metro e oitenta de altura, cabelos loiros dourados, corte Chanel,
olhos escuros e questionadores, sorriso irônico nos lábios, daqueles meio sorrisos frios que
não pede muito esforço para ser dado, era dona de um corpo esguio e bem cuidado,
incrivelmente elegante.
Quando o Bill era vivo, ela parecia ser bem mais agradável, mas depois tudo mudou.
-Ok, se você não abrir, eu vou chamar um chaveiro e as coisas ficarão bastante difíceis
pra você mocinha!
Palavras mágicas, chaveiro e difíceis.
Olha lá a Leonor que eu conheço isso significa que eu não estava sonhando, e que
também algo muito estranho estava acontecendo.
-Ok, ok, Já estou indo...
Ao abrir a porta, quase imediatamente, ela se aproximou do meu rosto e com aqueles
olhos escuros, deu seu sorriso pouco agradável e disse:
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7. -Aí está você!
Aquele olhar de cima a baixo me fez gelar, mas eu raramente perdia minha máscara de
durona na frente daquela mulher. Antes que ela continuasse, eu disse:
-Posso ajudar em alguma coisa Leonor? Posso saber por que queria derrubar a porta do
meu quarto em pleno dia de domingo e a essa hora da manhã?
-Meu bem!
Ela disse pausadamente em tom docemente assustador.
-Você entendeu errado, eu apenas gostaria que você se juntasse a nós, a mim e ao senhor
Trevor, aqui, para uma conversa em particular no escritório. Tudo bem para você querida?
Vejo que sua noite deve ter sido difícil. Não precisa se apressar, estaremos a sua espera o
tempo que for preciso.
Deve ter sido um grande esforço para ela dizer aquilo tudo, suponho já que sua voz soava
um tanto nervosa.
“Então era isso, o advogado da família tinha algo a me dizer, com certeza deveria ser sobre a
herança que finalmente passaria para as minhas mãos daqui há seis meses, quando eu faria
dezoito anos e conquistaria minha maior idade, minha IN-DE-PEN-DÊN-CI-A. Sim, isso
explica a suavidade e nervosismo na voz da minha tutora.”
- Já vou descer, só preciso lavar o rosto, desço num minuto.
Não perderia isso por nada... antes de bater a porta deixei escapar as palavras mais alto
do que gostaria:
- Não comecem sem mim!
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8. E ouvi por trás da porta um sorriso nervoso e palavras inseguras dizerem.
- Jamais começaríamos sem você.
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9. Capítulo 2
Elizabeth e o espelho
Eu estava horrível, dois anos e meio haviam se passado após a morte do Bill, e não havia
uma só noite que eu não chorasse ou tivesse pesadelos. Estava tão diferente daquela ocasião,
que já tinha até me esquecido que espelhos existiam. Fazia tanto tempo que eu não prestava
atenção em mim mesma, que quando olhei para o espelho quase perguntei, “quem é você?”. O
que faria o Bill gritar: “Não seja ridícula quem mais teria olhos como esses?”. Olhos grandes
e esverdeados, cabelos castanhos, lisos ondulados, que agora estava medindo um pouco mais
abaixo que o meio das costas. O cabelo! A parte favorita do velho Bill. Ele sempre dizia que
os cabelos compridos são sempre mais bonitos e eu os conservei assim em homenagem a ele.
Lábios carnudos e nariz pequeno, pele clara. Se ele estivesse aqui diria: “Você me lembra
tanto uma princesa indiana!”. Eu não parecia nada com uma indiana. O Bill era descendente
de ingleses. Mas ele sabia que eu morria de inveja da cor de canela que elas possuem e diria
qualquer coisa pra me agradar. Eu tinha uma foto da minha mãe colada no espelho e tenho
que admitir, a semelhança entre nós duas era grande, principalmente fisica. Margaret era
linda, corpo curvilíneo e harmônico, a altura dela? Bem, dessa parte eu não sei muito, mas eu
media pouco mais que um metro e setenta, nesse momento.
O meu reflexo não era dos melhores. Pálida e cheia de olheiras, vestida em uma camisa
grande que me servia de pijama. Sem pensar muito, Tirei a roupa e me joguei debaixo de uma
ducha quente e tomei um banho revigorante... de jeito nenhum desceria com uma cara abatida
e apática, demonstrando fraqueza diante dos meus inimigos. Sim porque, o senhor Robert
Trevor não poderia ser classificado propriamente como meu aliado nessa batalha, embora
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10. fosse sempre muito educado e disponível para esclarecer minhas dúvidas ele,
indisfarçavelmente, tinha uma queda pela senhora Grant. Por esse motivo a “Leoa” sabia tudo
que fôra conversado entre eu e o “meu advogado”. Bastante constrangedor para mim, eu
nunca podia perguntar abertamente o que queria já que sabia o que aconteceria assim que eu
saísse do escritório.
Mas eis que eu estava a incríveis seis meses do meu aniversário, minha maior idade...
Não havia nada que a “Leoa” e o senhor Trevor poderiam fazer para mudar essa situação.
Fora quando os meus pais estavam vivos, esse seria o primeiro aniversário realmente feliz
após anos de culpa. Esse seria o aniversário da liberdade.
Com certeza a primeira coisa que eu faria seria deixar aquela mansão, e saíria por aí,
daria a volta ao mundo e começaria pela África do Sul, acho que duas ou três semanas lá, me
fariam muito bem.
Eu ria para mim mesma com meus devaneios. Quando esses pensamentos me enchiam
de força e excitação, um outro sentimento tomava conta de mim ao mesmo tempo, nostalgia,
aquela mansão era dos Grants há mais de um século, quando eu penso Grants, penso em
descendência e não em laços contratuais. E depois a casa não era sombria e velha como um
mausoléu. É verdade que ficava um pouco afastada da cidade. Mas era moderna, graças ao
bom gosto em decoração da atual senhora Grant, isso eu não tenho como negar. Era também
espaçosa, tanto por dentro, quanto por fora, com seu imenso terreno e jardins. Porém sua
atmosfera se tornou insuportável com a presença da Leonor, como se fosse um fantasma, a
espreita pelos cantos, como se tramasse algo sempre... Mas de uma coisa eu tinha certeza, não
havia nada que ela pudesse fazer contra mim. Não que eu pensasse que ela fosse capaz disso.
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11. Uma vez o Bill, me disse que aquela mansão foi palco de muitas alegrias, meu pai
nasceu num dos quartos e por mais estranho que pareça, apesar de todo avanço da medicina,
parece que minha mãe optou pela tradição, assim, eu mesma nasci naquela casa.
Não sei por que, mas eu tinha a sensação que ao sair rumo a liberdade, aquele lugar
jamais seria meu novamente. Pensamento estranho já que ela, como todos os bens do Bill,
todo dinheiro guardado e tudo o mais pertenciam a mim.
A fortuna dos Grants,vem da indústria madeireira. As Indústrias Grant estão entre as
líderes nacionais na confecção de produtos de madeira.
Apesar da senhora Grant e seu filho não herdarem nada, ela ficou como minha tutora
legal e seu filho como presidente da empresa até que eu fosse capaz de dirigí-la legalmente e
correspondesse as exigências para o cargo. O período em que eu estivesse na universidade, o
Anthony, permaneceria lá até minha volta e certamente sua mãe permaneceria na casa por
tempo indeterminado.
Há dois anos atrás ela me fez assinar um documento cedendo a casa para ela, mas eu era
menor, por lei incapaz, portanto, inapta para isso. Mesmo que ela tivesse uma procuração
para cuidar de tudo para mim, ela não podia gastar os meus bens de forma que prejudicasse o
meu patrimônio futuro. Além disso, aquela mansão agora não era só minha... o que a irritava
ainda mais. Leonor não tinha muita opção a não ser o pouco de poder que ela exercia sobre
mim, o que a agradava muito, principalmente no primeiro ano de seu reinado.
Alimentação, vestuário, vigilância, privacidade, quase tudo em mim tinha dono e não era
eu, era a “Leoa”.
Às vezes, eu passava horas e horas trancada no quarto imaginando uma vida simples,
com pais, irmãos, vizinhos, amigos e festas. Quando eu tinha quinze anos tudo que eu queria
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12. era ser normal. Palavra impossível no momento em que eu passei a ser dona de um império,
eu tinha aulas em casa com professores particulares, a Leonor dizia que era para minha
própria segurança, por causa de seqüestros e tal. Compras? Eu fazia geralmente quando íamos
a Atlanta, quando o shopping estava fechando ,e, no final de expediente do comércio em
grifes preferidas por Leonor. Geralmente, as lojas eram fechadas para que eu pudesse escolher
à vontade. Roupas e roupas, acessórios e sapatos que, em sua maioria, eu jamais teria chance
ou ocasião para usar.
Era uma prisioneira em minha própria casa.
Mas ao invés de ajudar no plano da minha querida tutora, e não ter em quem confiar a
não ser nela, eu percebi a tempo tudo o que acontecia de errado na casa e nunca me deixei
enganar. Com o tempo nossa relação se tornou cada vez mais desconfortável a ponto de quase
não mais existir. O que me ajudava a não perder a cabeça era a minha amizade com o
Andrew, o Bill colocou esse nome nele e ele se orgulhava de seu nome, não admitia apelidos.
Mas eu sempre o chamei de Drew.
O Drew e eu nascemos quase no mesmo dia, ele era um dia mais velho que eu e só por
isso se sentia no direito de exigir ser respeitado por ser mais velho. Ele morava na propriedade
com sua mãe, na residência dos empregados, desde que o velho se casara com Leonor. Sally,
esse era o nome de sua mãe, ela cozinhou para o senhor Grant todo esse tempo e em seu
testamento ela herdara parte da casa. Porém, continuava trabalhando de cozinheira para nós,
como se não soubesse o que fazer com o que tinha ganho.
Ela era doce como os pêssegos da Georgia, e devia ter no máximo, trinta e oito anos, e
apesar de não se cuidar tanto quanto sua patroa era bem mais bonita que a desagradável
Leonor.
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13. A Sal, como meu velho a chamava, cheirava a rosas, sua pele era de um branco dourado,
seu sorriso era espontâneo e seus abraços calorosos. Como eu gostava dela e do Drew! Os
cabelos da Sal eram vermelhos ondulados e os olhos azul celeste. Eu quase não lembrava do
jeito da minha mãe, mas acho que se ela fosse viva teria que ser como a Sally.
O Drew era alto, corpo mediano, rosto simples de traços suaves como o de sua mãe,
olhar acolhedor castanho, cabelo de fogo, e bem mais branco que a Sal, ele nunca conheceu
seu pai e a Sal nunca falou dele, mas o Drew parecia muito tranquilo quanto a isso. E acima
de tudo, ele era o meu melhor amigo desde que eu me conhecia por gente. Crescemos em
volta daquela mansão, brincando no bosque próximo a propriedade, subindo em árvores e
medindo forças como dois meninos quando brincam de luta. Eu o vencia todas às vezes, mas
conforme crescemos deixamos de brincar, o covarde dizia que não queria me machucar.
Quando eu falava com Drew sobre os planos que eu tinha após o meu aniversário, ele
não parecia gostar muito. Mas apesar de sua cara de “não estou certo se essa é a melhor
opção”, ele não me recriminava, apenas dizia:
- É melhor pensar em levar o necessário para você não ter que ligar pra casa chorando
feito um bebezinho e pedindo ajuda pra voltar.
Depois batia no meu ombro, sorrindo:
- Você deve saber o que está fazendo.
Eu sempre gostei disso nele e se eu não tivesse tanta certeza sobre ele nunca deixar a Sal
sozinha e sobre ela nunca deixar a casa, eu levaria os dois comigo.
Mas essa era uma preocupação para daqui a seis meses, tudo o que eu podia fazer agora
era me lavar, me vestir e descer para a tão importante conversa.
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14. Coloquei o meu jeans favorito, com uma camiseta branca, sequei um pouco os cabelos
com uma toalha, penteei e sacudi para deixá-los solto, pensando não haver tempo de secá-los
direito, em seguida calcei sandálias de dedos e sai do quarto.
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15. Capítulo 3
O testamento de Billie Grant
A mansão era um lugar confortável pra mim, era lá naquela casa que todas as minhas
lembranças pareciam vivas. Todas as vezes que eu descia aquelas escadas era como se em
seguida o velho Bill Grant surgisse e com seu olhar vivo e seu sorriso largo me apressasse
escada abaixo dizendo:
“- Pronta para mais uma batalha, minha pequena guerreira!”.
Ele sempre me chamava assim, ele sempre estava me lembrando que cada dia era uma
batalha na vida e ao final o que contava eram suas pequenas vitórias sobre si mesmo, sua
cautela e resignação para vencer a derrota e lutar no dia seguinte. E, acima de tudo, nunca
desistir. Ele nunca desistiu de nada, não que eu me lembre.
“Lutar e vencer ou recuar e planejar para a próxima batalha”. Esse era o seu lema.
Sem sentir que já havia se passado meia hora, ao chegar à porta do escritório que estava
aberta, pude ver a Leonor sentada em uma cadeira imponente de couro atrás de uma mesa de
aparência austera, pesada e escura. Aquele foi o único lugar em que ela não pode decorar, o
Bill a proibiu. Ela estava tensa e impaciente. Enquanto isso o senhor Trevor estava em sua
frente sentado em uma das duas cadeiras que ficava em frente ao móvel, estrategicamente
afastadas uma da outra, e, ambas, de frente a Leonor. O Sr. Trevor não parecia impaciente,
porém notava-se um nervosismo em seus olhos e suas mãos apertadas uma contra a outra.
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16. Quando me viram, automaticamente ela apontou para cadeira vazia em sua frente sem
dizer uma só palavra, me dando uma olhar lascivo. E virando-se em direção ao senhor Trevor
ela disparou:
- Agora podemos começar logo com isso senhor Trevor?
O que me fez deduzir que ela quis saber antecipadamente do que se tratava, mas que
dessa vez o senhor Trevor não pode ser conivente. Entrei, fechei a porta e caminhei em
direção a cadeira vazia.
-Bom dia senhorita Elizabeth!
-Bom dia senhor Trevor!
-Muito bem...
Ele fez uma pausa, olhou para mim e prosseguiu:
- Após a morte do seu avô, o senhor Billie Grant, o testamento foi lido parcialmente aos
interessados...
Antes que ele pudesse continuar Leonor cortou suas palavras.
- O que? Mas como é possível ter sido... de forma parcial... eu não entendo... isso não é
certo...
Eu também fiquei surpresa, não conseguia pensar no que poderia ser aquilo de parcial
que o Bill poderia ter feito.
- É o que eu gostaria de explicar senhora Grant.
Disse ele, dando uma pausa e olhando para ela, para ter certeza que não seria mais
interrompido.
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17. -Bem, o senhor Grant, deixou um testamento parcial após sua morte que deveria ser
apresentado imediatamente após todos os tramites legais aos familiares e interessados em
questão. Uma das cláusulas, porém do testamento definitivo impedia este de ser lido antes do
prazo, e isso só seria possível quando faltasse apenas seis meses antes da maior idade da
senhorita Grant, herdeira de todos ou quase todos os seus bens.
-Leia!
Impacientemente eu ordenei.
- Pois bem. Todos os bens, contas, ações, propriedades e inclusive essa casa...
Casa? Eu pensei e rapidamente falei.
-Espere senhor Trevor, se a casa está incluída nesse testamento definitivo, então a Sally
deveria estar aqui, não deveria?
-De fato sim.
-Vamos logo com isso senhor Trevor.
Leonor replicou.
Mas o senhor Trevor muito calmamente se fez ouvir:
-A senhorita Elizabeth de fato tem razão quanto à presença da outra parte interessada,
precisamos que ela esteja presente, não posso dar continuidade sem ela.
Insatisfeita, Leonor passou por nós e abriu a porta pesada a nossas costas, chamando uma
das empregadas bufou:
- Vá chamar a cozinheira! Diga para ela vir ao escritório rapidamente!
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18. A pequena só teve tempo de dizer um singelo, sim senhora. Ignorado por Leonor com
um balançar de mãos.
Em menos de cinco minutos a figura de Sally se fazia presente no escritório.
-Senhora, mandou me chamar?
Sally disse com simplicidade.
Leonor por sua vez a olhou desgostosamente dos pés a cabeça como era de seu costume
e disse:
-Sim, arranje um lugar para sentar-se e ouça.
Eu sorri para ela, ela retribuiu e sentou-se próxima a mim em uma cadeira esquecida no
canto da sala, sem nada dizer. Porém seu olhar me dizia que ela compreendia a urgência do
seu chamado até aquela sala e do que se tratava a pequena reunião.
-Bom...
Falou o senhor Trevor testando a garganta e bebendo um pouco da água de um copo que
estava próximo a ele na mesa.
- É melhor continuarmos de onde paramos.
E sem se preocupar em explicar nada a Sally ele continuou:
- O senhor Grant deixa a sua herdeira e neta senhorita Elizabeth Grant, todas as suas
posses e metade desta casa, juntamente com suas ações, contas em banco e tudo mais que lhe
pertencia definitivamente assim que esta atingir a maior idade.
-Isso já sabemos, qual é a novidade senhor Trevor, diga sem hesitação.
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19. Leonor esbravejou, quase não se contendo de tanto nervoso.
-Bem, a novidade em questão...
Ele disse dando uma pequena pausa:
- É que a senhorita Grant, somente herdará tudo, caso ela se case dentro de seis meses. E
isso inclui a parte da casa que pertence à senhora Sally Cupper. Se a menina não se casar,
tudo que pertenceu ao senhor Billie Grant, pertencerá automaticamente ao Estado.
“O queeeeeê? O quê? Como?”
Eu não conseguia parar de pensar nisso, não tive reação, não tive palavras, a saliva
sumiu da minha boca e garganta. E os pensamentos me atropelavam feito loucos, sem
controle.
“Casar? O velho estava louco? Eu só tenho dezessete anos, pelo amor de Deus, corrija esse
erro, isso só pode ser uma das piadas do Bill, só pode ser brincadeira.”
Sally encostou em mim com um copo com água que eu nem vi ela pegar, ela me deu com
sua calma habitual e me dizia palavras de consolo... só depois de beber a água entendi o que
ela estava dizendo.
-Vamos menina se acalme, você precisa respirar, precisa se acalmar está pálida.
Voltando a mim, eu gritei um pouco rouca e entre os dentes:
-Senhor Trevor, isso é um engano, um erro, meu avô jamais faria isso comigo.
O que eu ouvi em resposta remexeu meu estômago:
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20. -Criança, infelizmente, não há nenhum erro, seu avô estava inteiramente lúcido e sabia
muito bem o que estava fazendo quando impôs essa condição como cláusula do testamento,
eu mesmo fui testemunha.
Ao dizer isso, Leonor arregalou os olhos para ele, como se estivesse se perguntando; se
ele sabia disso esse tempo todo e porque diabo não contou nada a ela?
Mas ao encarar minha tutora vi seu rosto mudar suavemente do tom assustado, para o seu
meio sorriso e isso me fez pensar que ela pode ter pensado que desta vez tudo estava muito
melhor para ela. E me deixou ainda mais nervosa. Um olhar de triunfo naquela tempestade,
não era bem o que eu achei que veria mesmo na sisuda “Leoa”.
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21. Capítulo 4
Memórias de Liz
A mansão pela primeira vez parecia um lugar desconfortável pra mim, eu queria sumir
daquela casa, eu queria sumir daquele lugar e de todos, especialmente, eu queria matar o
velho biruta...
“Se eu pudesse fazer com que ele morresse uma segunda vez...”
Entrei no meu quarto completamente desorientada, bati a porta com força chorando
grossas lágrimas e pensando o quanto eu o odiava por ter tornado minha vida um inferno
desde de que ele decidiu morrer... e o quanto ele continuava a me punir mesmo após a sua
morte.
“Talvez ele me culpasse pela morte do papai, talvez...”
-Nãooooooo! Eu confiava em você...! Eu te odeio, seu velho sem juízo! Você quer
acabar com a minha vida?! Mas eu não vou deixar! Eu não me importo com sua fortuna!
Guarde-a no seu caixão! Eu vou embora daqui, vou fugir... e só!
Era um choro convulsivo, minha cabeça doía muito como se fosse explodir e eu tremia
de raiva e indignação com aquela traição.
Sally batia na porta pedindo para entrar, mas eu não queria ver ninguém, não queria.
Não havia nada a ser feito eu simplesmente estava condenada.
- Liz minha querida, Liz abra a porta...
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22. Não sei dizer quando eu apaguei, mas dormi pesado e sonhei com o velho Bill, rindo pra
mim, ou seria rindo de mim, não sei dizer. Porque mesmo ali, a raiva era imensa e eu não
conseguia pensar direito.
A escuridão tomou conta do sonho e uma névoa espessa se formou entre eu e o velho, a
raiva, deu lugar ao medo, eu não conseguia mais ver o sorriso dele, nem vê-lo. Eu estava lá
sozinha, só escuridão e neblina, nenhum pensamento ousava passar pela minha cabeça, a
expectativa era imensa, o medo do que eu podia encontrar fazia com que o meu coração
acelerasse mais rápido que o coração de um bebê. Eu costumava a ter pesadelos e geralmente
eram iguais, quase toda noite, um desconforto apertou meu estômago e eu os vi, olhos
brilhantes, vermelhos sangue dentro da névoa em minha direção, e se aproximavam cada vez
mais. Olhos, que eu não conhecia, olhos de ódio, profundos e frios.
- Bill é você? Vovôôô...
A medida que aqueles olhos se aproximavam as minhas palavras iam sumindo, até que
eu não consegui mais dizer nada e imediatamente eu quis fugir, mas não conseguia me mexer.
Percebi sua sombra na névoa, era mais alta do que eu e sua forma era forte e masculina, fechei
os olhos esperando acordar a tempo até que uma mão tocou meu antebraço com força eu gemi
de dor e desespero, suas mãos queimavam em mim. Logo em seguida, acordei suando muito,
coração batendo acelerado, boca seca e mil pensamentos invadindo minha cabeça, mas o que
era aquilo, quem era aquele...? Falando para mim mesma, eu repetia feito louca:
- Esquece isso, foi só um pesadelo, só um pesadelo...
Era tudo que eu podia fazer agora, tentar me controlar. Foi uma noite difícil pensei; dia
estranho. E quando olhei no relógio, marcavam onze horas da manhã? O quê? Ou eu dormi
22
23. um dia inteiro ou ainda nem era noite. Foi então que me lembrei o porquê me joguei na cama,
o porquê estava me sentindo quebrada e desejei voltar ao pesadelo a viver a minha realidade.
Mas uma vez alguém batia na porta do meu quarto, só que dessa vez era leve e uma voz
trêmula disse do outro lado:
- Senhorita, senhorita Liz, a senhora Leonor espera pela senhorita para servir o almoço.
De súbito gritei sem ao menos abrir a porta:
- Clarice, diga a Leonor que não tenho apetite, não quero ver ninguém e nem falar com
ninguém, entendido?
Clarice era quase da minha idade, seu pai era o nosso jardineiro, boa gente. Ela era
bastante tímida e um tanto simpática, eu não me relacionava muito com ela, e é verdade que
nem sempre notava sua presença de tão quieta que a menina era. A Sal é que vivia
conversando com a Clarice, dando conselhos e incentivando-a a estudar, a ir mais longe,
“quem sabe cursar a universidade”, a Sal dizia. Não via muito entusiasmo de sua parte, mas
com certeza respeito eu via. Era uma boa moça como diria o Bill.
- Sim, senhorita.
E logo passos apressados cruzaram a frente do meu quarto e sumiram pelo corredor,
descendo as escadas. Deitada na cama, deixei que diversas coisas passassem pela minha
cabeça, menos aquilo que me fez perder a fome.
“Não sei por que Leonor insistia tanto em viver como no século passado.”
Eu ironizei:
- Senhorita isso, senhora aquilo...
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24. “Não entendo porque ela fazia tanta questão em obrigar os empregados a aprenderem as
normas cultas e repetí-las o tempo todo. Quem fazia isso hoje em dia?”
- Por mim seria sempre Liz, Liz, Liz... Sem mais...
Olhei ao redor e dei uma boa observada em meu quarto. Espaçoso, minha cama no
centro, colchas grossas e bem trabalhadas, armários, um frigo-bar, um imenso closet e muitas
outras coisas que enchiam aquele ambiente de requinte e bom gosto, quase um quarto digno
de uma princesa ou seria inteiramente de uma princesa. A verdade é que ele não perdia para
nenhum outro em que eu estivera hospedada quando o Bill era vivo. Ele adorava conforto e
não economizou em nada com a minha pequena e luxuosa suíte cinco estrelas Grant. Na
verdade ele se esforçou ao máximo para que eu não sentisse tanta falta de casa quando os
meus pais se foram. Foi um choque para ele, seu filho único, sua nora... Foi um verdadeiro
milagre que a criança tivesse sobrevivido, foi isso que disseram a ele quando me entregaram
nos seus braços, após o resgate. Eu tinha cinco anos e ele era tudo que me restou.
Sentada ali, pude me lembrar o quanto ele era carinhoso, como se preocupava com os
detalhes da vida da sua pequena guerreira. Seus olhos fortes e seu sorriso fácil era o que eu
costumava receber todas as manhãs, pois era ele quem me acordava, era ele quem falava que
eu tinha o espírito de uma índia guerreira. Ele confiava na minha força, mas do que eu
mesma, e não desviava seu olhar de mim. O tempo em que passávamos juntos era tão grande,
que o Anthony, filho da Leonor e preferido do meu avô antes que eu chegasse, torcia o nariz
para mim e cutucava sua mãe, quando me via. Ele era muito chato, às escondidas, puxava
meu cabelo e gritava comigo, não só comigo, mas também com o Drew. Anthony era pelo
menos dez anos mais velho que eu e o Drew, o que dava a ele uma vantagem imensa sobre
nós. Nunca conseguimos revidar suas maldades.
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25. Desde que fui morar com o Bill, nenhum dos meus dias tinham sido iguais, ele sempre
inventava uma viagem, era um desbravador, um espírito livre, ele ouviu isso na África quando
fomos lá em certa ocasião. Um chefe de uma tribo, disse a ele que o seu espírito era livre,
desbravador, foi lá que nós ouvimos do mesmo senhor que eu tinha um espírito guerreiro e
indomável. Ele gostou tanto disso que depois desse dia ele nunca mais deixou de me chamar
de “minha pequena guerreira”.
As lembranças passavam diante dos meus olhos como se estivessem acontecendo
naquele momento.
O Bill apesar de nunca tirar seus olhos de mim, sempre deixou que eu resolvesse os meus
problemas sozinha. E sempre me alertou quanto a julgamentos. Ele dizia:
“- Julgamentos minha pequena guerreira, pertencem às almas precipitadas, lembre-se
disso. O homem sábio trava a batalha dentro de si e somente na exaustão o guerreiro vencedor
pode dominá-lo, assim, ele jamais nega a sua natureza, mas amadurece o seu espírito.”
De todos os lugares que ele mais gostou - sei disso por causa da intensidade do seu
entusiasmo quando visitávamos muitos lugares- A Índia, a África, a China e a Grécia, tocaram
seu coração como diamantes tocam os olhos das mulheres apaixonadas. Não pelas suas belas
paisagens, mas pelo povo. Meu avô gostava de gente e de conhecimento e esses lugares o
enfeitiçaram irremediavelmente.
É por isso que eu queria tanto viajar, queria viver um pouco disso tudo novamente,
terminar o que ele começou, dá a volta ao mundo e me tornar um espírito livre e desbravador.
Com todas essas viagens eu nunca pude ter uma vida normal, sempre tinha um professor
particular nos acompanhando, o vovô os escolhia pela coragem demonstrada e pelas charadas
decifradas que ele lançava como desafio, ele nunca escolhia pelo conhecimento acadêmico e
25
26. por seus belos currículos, o que era estranho, já que eu precisava aprender algo. O mais
estranho é que sempre dava certo e todo mundo saía ganhando. Eu aprendia, nós
desbravávamos, o professor ganhava muito bem e todos voltávamos felizes e seguros para
casa. A Leonor detestava as viagens do velho Bill, ele geralmente evitava os lugares
convencionais como Paris e Paris, não que ele não gostasse, mas é que ele era um homem
rústico, se escolhesse Paris, teria que levar sua jovem esposa, portanto, não poderia dizer não
ao tempo perdido com grifes e jantares que não matavam a fome de ninguém, segundo ele.
Eu por outro lado adoraria se ele variasse um pouco, e ajudasse a me sentir mais
feminina. A presença de uma mulher, não seria nada mal de vez em quando, mesmo que fosse
a “Leoa”.
A Leonor quase nunca me dirigia a palavra e depois de um tempo nem mesmo com o
Bill ela costumava a falar direito. Vivia pajeando seu tão precioso filho e ensinando-o a tirar
vantagens do coração bondoso do Bill.
No dia em que o desbravador fechou os olhos, eu tinha quinze anos, e tantos sonhos pra
realizar com ele ao meu lado. A pequena guerreira vacilou, parte de mim entristeceu tão
profundamente que eu pensei nunca mais ser possível gargalhar despreocupada e
naturalmente como antes. A dor não tinha fim. Os dias passaram. As coisas mudaram. Eu me
tornei prisioneira em minha própria casa e Leonor a cada dia que passava espalhava
vitoriosamente suas peças sobre o tabuleiro. Mas eu não me importava, eu só queria levar
adiante. E nem mesmo as conversas animadas e o coração entusiasmado do Drew,
conseguiam transpor a barreira de gelo ao redor do meu.
“ Por que ele fez isso? Por que ele pensou uma coisa dessas? Por que me prender assim, se eu
era sua pequena guerreira indomável?”
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28. Capítulo 5
O terrível pesadelo
- Vá chamá-la, e diga-lhe que não aceitarei recusas para o jantar. Diga-lhe também que
não se trata apenas de jantar, mas de uma conversa que precisamos ter.
Leonor falou tão mecanicamente, como se estivesse maquinando algo, e sem levantar a
cabeça, dispensou a criada com uma das mãos.
- Vá, vá, vá...
Quando Clarice bateu em minha porta novamente o relógio marcava 08:00 PM, quis dar
uma desculpa qualquer, ainda não queria ver ninguém. Porém, ela foi tão insistente com o
recado de sua senhora que eu resolvi descer para o “jantar”.
Como previ, Leonor estava sentada na cabeceira da mesa de jantar, não tocou em sua
comida até que eu sentasse e me servisse, no mais absoluto silêncio como sempre.
Foi então, que ela começou assim...
- Como está o jantar?
- ótimo!
Embora ela tenha percebido que eu brincava com a comida distraidamente.
- Espero que esteja do seu agrado, mandei fazer especialmente para você, imaginei que a
falta de apetite lhe sobreviesse depois da infortuna notícia.
“Por que ela estava tão preocupada comigo?”
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29. - Você adivinhou.
Respondi secamente.
- Minha criança, você precisa se alimentar. Afinal de contas você é nossa pequena
guerreira.
“O quê? Que merda é essa que eu acabei de ouvir?”
Meu apetite fugiu de vez ao som daquela afirmação. Meu primeiro impulso era de sair
dali para o mais longe possível daquela mesa. Mas eu não fiz.
- O que quer dizer com isso Leonor?
- Vou direto ao assunto, pois acho que conhecendo o Bill Grant como eu conhecia, tenho
certeza que o que vou dizer faz total e absoluto sentido.
E Continuou:
-Elizabeth, o seu avô se arrependeu do primeiro testamento, nós nos desentendemos por
um período, porém acho que ele se arrependeu de ter sido tão duro e resolveu dar uma
segunda chance criando esse testamento definitivo.
- O que quer dizer?
Eu não estava conseguindo entender o que ela dizia, eu achei que assim como eu, ela
estaria desesperada, pois, caso eu não me casasse o testamento era bem claro, todos
estaríamos na sarjeta. Então, me lembrei do seu olhar de triunfo e do seu meio sorriso na sala
do escritório pela manhã.
- É simples. Seu avô se aborreceu comigo e quis se vingar de mim, mas conhecendo ele
como eu conheço, deve ter se arrependido de não ter nos incluído, em seu testamento, o
29
30. Anthony e eu obviamente , portanto, criou este testamento definitivo, para garantir que nós
tivéssemos uma segunda chance minha querida! Pense comigo, o seu avô jamais admitiria ver
o suor do seu trabalho, nas mãos do Estado, ou de um desconhecido. E quem é o homem de
confiança hoje a frente dos nossos negócios? Por outro lado, ele saberia que eu jamais
permitiria deixar você solta, sem segurança se algo acontecesse com ele. Então, me
conhecendo como ele conhecia saberia que certamente eu assumiria a sua educação e a
manteria como sempre foi; sobre os nossos olhos. O que é um inconveniente, pois, não
permitiria a você conhecer outras pessoas. Levando-me a concluir que seis meses é muito
pouco tempo para se conhecer alguém e casar-se. Posso afirmar, com certeza, que a intenção
da minha raposa velha, era que tudo ficasse em família, dando a você apenas uma opção:
Anthony.
Isso tudo era tão absurdo que eu nem consegui piscar.
“Casar com o Anthony? Nãnãnão! Ele não faria isso comigo, não me armaria um golpe
desses, então além de casar, ele próprio se certificou de com quem seria? E logo o Anthony?”
- Você está falando do velho Bill, alguém que eu conheci alguém da minha inteira
confiança, ele não tiraria minha liberdade assim, ele não me deixaria sem alternativa.
-Não seja tola Elizabeth, o Anthony não é um fardo para nenhuma mulher com um
perfeito juízo em sua cabeça. Aliás, você está sendo egoísta mocinha, pois, ele também não
tem opção diante das circunstâncias e talvez ele esteja perdendo bem mais com esse
testamento do que você.
Essa foi boa, Anthony, o sonho de toda mulher com juízo perfeito. Eu estava cansada
demais para pensar em mais alguma coisa, apenas levantei e saí. Prometendo a mim mesma
30
31. que por hoje, não pensaria em mais nada que dissesse respeito a esse assunto, apenas recuar
para lutar amanhã, no momento era tudo o que eu podia fazer.
Entrei no quarto passavam das 09:00 PM, precisava descansar, liguei a TV em frente a
cama e deitei, meus olhos estavam tão pesados que não consegui me conter diante da exaustão
e me entreguei ao sono.
A lua estava linda, cheia e clareava parte de uma floresta. Eu sentia todas as sensações de
voar. Frio, um pouco de medo de altura, adrenalina, o cheiro da floresta. Podia ver tudo de
cima, percorrer distâncias imensas rapidamente. Adiante entre as árvores, vi uma mulher
deitada no chão, na terra, imóvel. Será que estava dormindo? Num impulso cheguei mais
perto e quando me aproximei, pude perceber que ela estava toda de branco, não dava para ver
direito, mas eu acho que...
“Ó meu Deus! Ó meu...”
-Não quero ver isso.
Vi manchas vermelhas e minha visão embaraçou, não podia acreditar no que via, mas
acho que ela estava ferida, estava m-o-r-t-a...?!
-Ó não, não...volte, preciso ajudá-la!
Eu não conseguia segurar o meu sonho, ele estava me puxando para fora da visão.
“Não acorde, não acorde, não acorde... NÃO ACORDEEEEEEEEEEEEE!!!”
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32. Capítulo 6
Surpresa do passado
Mal o dia clareou e eu pulei da cama, dois pesadelos num dia e todo o turbilhão de coisas
que estavam acontecendo ao meu redor, estavam sugando minhas forças e eu precisava reagir.
Tomei uma ducha, vesti um short que estava pendurado numa cadeira do quarto,
coloquei uma camiseta preta, sandálias e desci disposta a tomar um café da manhã completo
na cozinha de preferência, trocando conversa com a Sal e o Drew.
Mas quando me aproximei da sala de visitas vi que a Leonor conversava animada com
alguém, tentei me aproximar e gelei quando ela me viu. Mas, ao invés de me olhar duramente,
ela imediatamente sorriu e acenou com a mão me chamando.
-Mas um dia como o anterior e eu vou precisar de calmantes muito fortes.
-Elizabeth, venha até aqui. Tem uma pessoa que deseja ver você.
-Bom...dia!
Eu disse sem acreditar no que via.
-Bom dia! Ora, ora! Da última vez que a vi, era apenas uma menina e em pouco mais de
dois anos vejo que se tornou uma linda mulher.
-Meu Anthony sempre foi um cavalheiro!
Leonor dizia sem tirar os olhos dele.
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33. - Obrigada Anthony! Faz mesmo muito tempo desde a última vez que nos vimos, eu
acho.
Eu parecia uma segunda Leonor respondendo a ele. Não conseguia acreditar que ele
estava ali. Pensei que ao menos demoraria um mês para isso acontecer. Mas, o mais estranho
é que eu não estava chateada em vê-lo, mesmo sabendo que sua mãe nem ao menos esperou
eu me recuperar do susto. Mesmo desconfiada de que ele estava ali com o intuito de fazer
cumprir as bobagens que ela tinha empurrado pra cima de mim na noite anterior.
Os meus olhos não piscavam, ele estava mudado. Ele era dez anos mais velho que eu e
não, eu nunca tive paixões por homens mais velhos. Aliás eu nunca tive paixões por ninguém.
Não que eu me lembre.
Mas esse Anthony, esse... era mais bonito do que o que eu conhecia. Será que era ele
mesmo?
-Elizabeth?
Leonor olhava para minha cara de surpresa e seu meio sorriso se estampou no seu rosto
tão automaticamente que eu tive que inventar uma desculpa qualquer e correr até a cozinha.
-Eu tenho que ir.
Assim que eu entrei o Drew disparou:
-Você viu quem chegou? Anthon...iergs!
-Vi.
-O que você tem? Acordou mais cedo e tá com uma cara...
-Cara? Qual cara?
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34. Respondi assustada e corri para janela tentando ver o meu reflexo. Ó! Parecia horrível.
“Será que ele me viu desse jeito?”
-Por que está tão preocupada?
O Drew perguntou pegando uma maçã na fruteira, mordendo e mastigando continuou a
falar:
-A Sally, falou que vocês tiveram uma reunião ontem com o doutor gravata e a “Leoa”.
Ela disse também que você não estava nada bem. Mas eu acho que você está ótima.
Ele chamava a mãe pelo nome, assim como eu costumava chamar o vovô de Bill.
Desconfiada que ele soubesse o porquê eu o sondei:
- Estou ótima, porque ficaria mal com uma conversinha qualquer?
Não tinha certeza se ele sabia, mas se ele não soubesse, não tinha certeza se queria falar
sobre isso agora.
-Mulheres... dramáticas. Mães... pior ainda. Acredita que ela nem dormiu direito
preocupada com você? Eu disse que ela tinha que entender de uma vez por todas que você não
era mais uma menininha e que daqui a seis meses, seria dona do seu nariz. Mas quanto mais
eu falava, mas ela chorava.
“Chorava? A meu Deus, com toda essa confusão eu nem pensei em como a Sal estaria se
sentindo. Definitivamente ele não sabia de nada.”
-Onde está sua mãe?
-No quarto
- A Sal no quarto?
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35. -O mundo está louco, você madrugando e a Sally trancada no quarto. Vocês trocaram de
corpo?
-Drew, será que dá pra ser mais esperto? Quando foi que sua mãe ficou jogada nos
cantos?
-Nunca. Ela adora trabalho!
-O-ho! Então ela deve está se sentido mal ou doente talvez.
-Nããão... ela é forte.
-DREW!
-O que?
-Você viu? Foi lá? Perguntou a ela? Tentou conversar?
-Claro que eu tentei. Ela só pediu pra eu avisar a ela quando você descesse. Acho que ela
quer conversar não sei o que com você.
-Será que dá pra fazer isso quando eu descer pela segunda vez?
-Hãm?
-É que eu ainda estou com sono e só desci pra beliscar alguma coisa antes.
-Ok!
-Então quando você descer pela segunda vez e tiver conversado não sei o que com a
Sally, me procura quero te mostrar uma coisa.
-O que?
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36. -Depois.
-Fala...
-Vai insistir? Vou chamar a Sally!
-Ok!
Nós dois rimos ao mesmo tempo e eu me senti bem melhor, por um instante nem me
lembrei de toda a confusão instalada agora em minha vida. Peguei uma maçã e saí. Enquanto
estava indo em direção a escada, uma voz masculina me chamou no escritório. Quando entrei,
vi que o Anthony estava sorrindo pra mim, sentado na mesma cadeira que o senhor Trevor
estava no dia anterior.
-Liz!
Seus olhos brilhavam.
O Anthony nunca foi muito bonito, não antes. Mas agora ele parecia tão maduro. Não só
por sua idade. Leonor nunca fora a favor do amadurecimento do Anthony.
O Anthony que eu via agora na minha frente era sereno. Nunca percebi isso e acho até
que antes, isso não estava nos olhos dele. Só agora de perto percebi que os seus olhos eram
verdes e seu sorriso perfeitamente alvo.
Quando ele ficou de pé para se aproximar de mim, vi o quanto era alto, não era nem
sombra do adolescente magrela, espinhento e maldoso que um dia eu conheci.
Na morte do Bill, eu estava tão arrasada que não notei ninguém que estava lá. Me lembro
vagamente de ter visto o Anthony de relance, mas na ocasião não percebi a mudança.
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37. Porém agora eu via um homem na minha frente. Alto, forte, cabelos alourados, olhos
escuros, boca e nariz bonitos. Eu não queria admitir, mas ele estava lindo!
-Liz... Sente-se. Acho que precisamos conversar.
-Tony, eu não sei se é a melhor hora pra isso...
-Do que você está falando?
Ele parecia surpreso.
“Ó meu Deus será que sua mãe não disse nada a ele ainda?”
-Nada.
-Liz...
Ele pausou e olhou firme nos meus olhos e adivinhando o meu pensamento, falou:
- A minha mãe me contou sobre o testamento e também sobre o que ela acha disso tudo.
Se for a isso que você se referia. Quero que saiba que diferente da opinião dela, eu acho que
não devemos nos precipitar dessa forma. Podemos achar uma saída menos radical. O que
acha?
-Sssi, é.
Estava chocada, definitivamente não esperava essa atitude. Qual é? Ele é filho da Leonor
e até então ele era sua cópia fiel, o que está acontecendo? O Drew tem razão o mundo está
louco. E o pior eu fiquei ressentida por ele ter descartado tão facilmente a possibilidade de se
casar comigo.
-Tudo bem?
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38. Ele perguntou calmamente sorrindo.
-Eu só ia perguntar...
-Sim?
-O que andou fazendo todo esse tempo fora?
Mudei imediatamente de assunto. Mais nervosa do que devia.
-Tomando conta da empresa do Bill, você sabe, agora sou o presidente.
Não foi uma pergunta. Mas eu respondi mais rápido do que devia.
-Sim.
-E você? Você sai da mansão? Tem amigos na cidade? Um namorado?
-Eu? Namorado? Não, não tenho, não saio muito.
-Então continua de namorico com o Andrew?
“O queeeeeeeeeeee? Então ele achava que eu tinha um namorico com o Drew?”
- Eu não tenho nenhum namorico com o Drew, nunca tive e nunca vou ter. De onde você
tirou isso?
-Calma só estava descontraindo... você parecia tensa.
Parecia? Agora eu estava em brasa. Que vontade de sair correndo, ele percebeu que eu
fiquei nervosa.
“Ó merda!”
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39. -Não, não estou tensa. Tenho que ir para o meu quarto, depois falo com você. Você vai
ficar não é?
Ele riu descontraído.
-Sim, vou ficar. Até mais.
-Até...
Naquele dia eu não desci pela segunda vez, não procurei a Sally, nem o Drew. E quando
saí a Leonor estava a minha espera para o almoço e o Anthony estava lá. Desse dia em diante
ele passou a frequentar a mansão e nós nos tornamos mais íntimos, tanto que sua mãe logo lhe
ofereceu um quarto e ele se mudou para lá.
O Drew não gostou nada disso e desde que o Anthony e eu nos tornamos amigos ele
passou a me evitar.
Seis meses se passaram e no dia 15 de dezembro de 2008...
Eu estava lá nervosamente vestida de branco seguindo por um corredor com um lindo
tapete vermelho aos meus pés, convidados nas laterais, a área da mansão lindamente
ornamentada com rosas brancas e um noivo em minha frente a esperar no altar.
Há seis meses atrás eu estava completamente apavorada com a idéia de casamento. Hoje,
eu estou tão ansiosa por isso que nem me reconheço.
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40. Capítulo 7
O casamento
Foi tudo perfeito, a cerimônia, a festa, a alegria. Apesar de não conhecer nem a metade
das pessoas que estavam lá. Eu estava feliz e tudo isso era por causa dele, Anthony. O Bill
estava certo, como eu pude duvidar dele.
Sentada no jardim, com os pés ardendo de tanto dançar, tirei os sapatos e pisei na grama.
Foi quando ouvi um choro descontrolado intercalado por soluços e corri pra ver quem era.
-Drew?
-Liz? O que está fazendo aqui?
-Porque está chorando Drew?
-Não é da sua conta, volte para sua festa... Só não diz que eu não avisei.
-Avisou o quê?
-Ele vai se aproveitar de você, sua boba. O Anthony é como a mãe dele, você parece
estar cega.
-E você está com inveja da minha felicidade, agora que eu finalmente estou feliz você
vem me jogar um balde de água fria. Logo você...
-Logo eu o que ELIZABETH?
-Nada. Vou voltar pra minha festa, o meu esposo está me esperando.
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41. -Vai, volta pra sua festa, pra um bando de gente que você nem conhece, pra seu noivo
bundão e a madrasta-sogra megera.
-Você é RIDÍCULO ANDREW, o Tony tem razão quando diz que você é um criança...
-O queeee? Pois eu também vou dizer o que acho desse... Lizzzz, volte aqui.
Aaarrrrrrsss, merda!
Foi a última vez que falei com o Drew depois daquela noite.
Saindo dali, passei pelo jardim e antes de chegar a tenda da festa uma sensação estranha
ao meu redor, senti como se alguém me observasse.
-Que estranho!
O Anthony vinha em minha direção e me pegando no colo anunciou ali mesmo que
estávamos partindo para nossa noite de núpcias. Ele me pôs no chão e segurou a minha mão
até entrarmos na Limusine que nos levaria para o hotel.
Tudo estava programado, depois das núpcias, no dia seguinte pegaríamos um vôo sem
escalas para Paris, a Cidade Luz.
No caminho do hotel, a Limusine parou bruscamente na estrada, eu me assustei, mas o
Anthony me acalmou, dizendo não ser nada, me beijou e se consertou no banco.
Contudo, num minuto o motorista abriu a porta ao meu lado, a impressão que eu tive ao
olhar para ele foi a pior, ele era enorme, forte e desajeitado no uniforme de motorista, traços
pesados, cara mal humorada, os seus olhos pareciam com... pareciam com os olhos do meu
pesadelo...
“Não pode ser...”
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42. Bradando para mim, ele ordenou:
-Desce do carro.
-O que está acontecendo? Anthony?
Anthony sorriu, me olhou e disse:
-Ah querida quase me esqueci, feliz aniversário!
-Falei pra DESCER DO CARRO.
O homem esbravejou me puxou para fora e me carregou pra dentro da floresta a puxões,
o medo tomou conta de mim, eu não conseguia ver onde estava o Anthony. Meu Deus o que
estava acontecendo? Eu só conseguia gritar, gritava sem parar.
-NÃÃÃÃOOOOO!!! o que está acontecendo!? ME SOLTAAAA!!! Por favor, me
solta!!! Lágrimas desciam do meu rosto.
O homem era muito mais forte que eu, muito mais forte que qualquer um que eu já
conheci. A cada puxão que ele me dava eu tinha a impressão que o meu braço seria arrancado.
Eu não via o rosto dele direito, só que ele tinha uma cicatriz próxima ao pescoço.
-SOCOOOOORROOOOO!!! ALGUÉM ME AJUDEEE!!! Por favor! Não me
machuque! Por favor! Por favor! SOOOOCORROOOOO!!!
Eu tentava me soltar, mas não conseguia. E nem sinal do Anthony. Estávamos
embrenhados na floresta agora, não dava para ver a estrada e estava tudo muito escuro a não
ser pela lua cheia no céu que clareava alguns trechos.
-O QUE VAI FAZER? SEU DESGRAÇADO!!! ME SOOOOOLTAAAA!!!
Então ele parou e disse:
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43. -Ajoelha.
-Nãoooo! Por favoooor! Não!
O choro era quase convulsivo agora.
Ele me esbofeteou no rosto e me lançou no chão com tanta violência que quando eu caí,
bati a cabeça com força em uma pedra próxima e no mesmo instante fiquei tonta, passei a
mão pela cabeça e senti molhado e quente. Eu já não estava raciocinando direito com a
pancada. Quando ouvi ele dizer:
-Esses são os votos do noivo, para a noiva.
Ele gargalhou terrivelmente e disparou dois tiros em mim. A dor foi lacerante, meu peito
queimava.
A última coisa que me lembro daquele momento antes de cerrar os meus olhos foi a Lua
cheia sobre mim.
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44. Capítulo 8
O caçador de encarnado
Não sei quanto tempo fiquei sem consciência, mas assim que a minha cabeça começou a
funcionar, minha primeira sensação foi o medo de estar morta. Num impulso abri os olhos e
percebi minha vista embaçada, era um teto de um lugar estranho. Não havia muita luz ali.
Virei a cabeça de lado antes de tentar mexer o meu corpo e senti-la quase a estourar de dor.
Ao redor tudo parecia velho, abandonado e assustador. O cheiro era horrível, cheiro de coisa
podre, de carne podre e o calor que eu sentia... Meu Deus! Era dezembro, como podia estar
tão quente? Tentei virar o corpo para o outro lado e a dor foi terrível, então virei só a cabeça
novamente e muito dificilmente consegui enxergar, fogo? Fechei os olhos e...
-A merda...!!! Não acredito! Merda! Merda! Morri virgem e fui para o inferno!!! É muita
falta de sorte.
-Você não foi para o inferno.
Uma voz forte de homem falou perto de mim.
Levei um susto, tentei levantar, mas ele segurou os meus ombros me imobilizando para
que eu permanecesse onde estava. A dor do esforço me despedaçou por dentro. Então ele
disse:
-É melhor não fazer muito esforço, você ainda está se recuperando.
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45. -Quem é você? Que lugar é esse? Eu estou morta?
Ele riu alto e disse:
-Muitas perguntas. Mas vou responder estas e nenhuma a mais, ok?
Eu não entendi que graça tinha as minhas perguntas e que graça tem uma situação
daquelas, mas concordei.
-Sim.
-Meu nome é Maviael, eu sou um caçador de encarnados, você está num abrigo na
floresta de Chattahoochee e não! Você não morreu!
-Você me salvou? Você viu aquele homem? Você o conhece? O quê...?
-Xiiiii! Já disse que não responderei mais a nenhuma pergunta. Agora descanse. Precisa
se recuperar.
-Eu, não sei se posso confiar em você...
-Não tem escolha Ádria. Durma.
Não tive tempo para pensar, um cheiro de ervas surgiu ao meu redor e antes que eu
pudesse dizer qualquer coisa apaguei novamente.
A segunda vez que abri os olhos percebi que a minha visão estava ótima, meu corpo já
não doía mais, nem minha cabeça. Tudo parecia tão distante, como se tivesse sido um
pesadelo e só. Pensei ter sonhado com um homem chamado Maviael, que me salvou.
Enquanto pensava nisso permaneci olhando para o teto e foi então que reconheci o abrigo.
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46. Era verdade... eu estava num abrigo de caçador, não parecia tão ruim assim dessa vez.
Era escuro e bagunçado, tinha um cheiro ruim ainda, mas não mais de coisa podre, estava
mais para mofo. Mas nem sinal do tal Maviael.
Sentei na cama improvisada que estava ao lado de uma lareira e percebi que ainda estava
vestida com as roupas do casamento. O vestido estava rasgado, horrivelmente manchado de
marrom, aquilo era sangue, meu sangue. Ele estava tão coberto de sangue que não entendi
como pude ter escapado dessa com vida.
Fiquei de pé e mexi o corpo, eu estava ótima, abaixei a parte de cima do vestido para ver
meu ferimento e...o que? Não tinha nada lá, nem uma mancha, nem cicatriz.
“Não entendo. Aquele homem afirmou que eu não estava morta, então como pode ontem eu
ter levado dois tiros e hoje não haver marca alguma?”
Sem que eu percebesse Maviael entrou e falou:
-É tudo muito novo pra você. Entendo que esteja surpresa.
Droga eu estava nua, ou seminua, ele não devia ter entrado assim. Suspendi a roupa e
quando olhei para ele não pude acreditar no que vi.
Ele era o homem mais atraente que eu já conheci. Só de olhar, daria a ele vinte e poucos
anos, cabelo preto, liso, olhos castanhos, queixo quadrado, boca olhos e nariz perfeitos, forte,
mas como se fosse musculoso, não como se fosse gordo, alto mas não muito e sua voz agora
parecia tão firme e confiável. Estava vestido com calças pretas e sobretudo preto aberto, de
forma a deixar a mostra a blusa branca de botões.
“Será que ele também estava no casamento? Será que conhecia o Anthony? Será que estava
ali a mando dele?”
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47. Comecei a pirar... Quando ele me interrompeu.
-Ádria? Você está bem? Trouxe algo para você se alimentar.
-Meu nome é Liz, acho que você me confundiu com outra pessoa.
-Hahahahaha!
Ele riu um riso solto como da primeira vez e logo em seguida acrescentou:
-Eu sei que agora você se chama Elizabeth Grant. “Ádria” é uma longa história que no
tempo certo você vai saber. Agora, é melhor se apressar e se alimentar. Partiremos em
seguida.
-Ótimo preciso ir até a polícia e denunciar aquele cretino. Você pode me ajudar no
depoimento. Você sabe o que aconteceu com aquele homem horrível da floresta?
-Polícia? Homem da floresta? E o que você dirá no seu depoimento? Que levou tiros
ontem, mas que hoje está completamente curada por milagre? Não temos tempo para polícia.
Partiremos para a morada dos imortais hoje mesmo.
-Hahahaha!!!
Dessa vez fui eu quem não conseguiu se conter.
Repeti com um ar de graça ainda nos lábios. Imitando seu tom de voz.
- Partiremos para morada dos imortaaaais!!!
Ele me olhava fixamente e sem a menor graça no rosto. Perdi o riso no mesmo instante e
percebi que ele falava sério comigo.
-Quando você diz morada dos imortais, você quer dizer morada dos imortais?
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48. Foi a coisa mais estúpida que eu já perguntei na vida.
-Sim. Coma, vista-se, que em seguida partiremos.
Seu tom descontraído e respeitoso agora soava mais como ordens de um general.
-Desculpe, mas você não entendeu senhor Maviael, eu fui vítima de tentativa de
homicídio ontem à noite, a mando do meu próprio esposo, no dia do meu casamento. E ele
agora deve estar lá rindo de mim achando que eu estou morta, herdando o que é meu. Eu
tenho que pensar como organizar as coisas com toda essa confusão, eu...
-Ádria, você não pertence mais ao mundo dos humanos, suas preocupações de antes, não
servem mais de nada, você mudou.
E apontando para uma jarra na mesa, olhou para mim, sorriu e disse:
-Quando terminar me avise. Partiremos em seguida, e não se preocupe, suas dúvidas
serão esclarecidas ao chegar em casa...
Mundo dos mortais? Casa? Eu ia surtar naquele momento, mas, ao olhar para ele percebi
que ele estava tão seguro do que disse que decidi não discutir, supus que ele não me
responderia mais do que já respondeu. Parecia ansioso em sair logo dali.
Fui até a mesa e estava tão sedenta que nem procurei um copo, virei a jarra na boca e
senti um gosto delicioso. Nunca tomei uma bebida como essa, bebi até o fim e quando afastei
a vasilha da boca, olhei curiosa para dentro para ver com que se parecia. Tomei um susto tão
grande que deixei a jarra cair... era s-a-n-g-u-e!
-Ó MERDA!
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49. Gritei tão alto. A porta se abriu com um estrondo e Maviael estava de pé olhando pra
mim assustado, procurando por alguém no abrigo.
-Quem é você? O que fez comigo? Isso é sangueeee...
-Sim é. E eu também já respondi a você quem sou eu. Agora é melhor partimos.
Chegaremos em casa cedo se sairmos agora. Vista-se, está suja.
Ele falou apontando para uma mochila que estava junto a mesa. Parecia nervoso demais.
Eu olhei e assenti com a cabeça, decidi não fazer mais perguntas e me virei em direção
as roupas para vestí-las. Ele ficou ali e eu virei em direção a ele me perguntando se ele ficaria
olhando eu me trocar.
-Desculpe. Deixarei você à vontade. Qualquer coisa estarei aqui fora.
-Como se isso me acalmasse!
Resmunguei.
Abri a mochila e tirei as roupas. Jeans surrada, camiseta branca e tênis, pareciam com as
minhas roupas preferidas. Me despi do vestido e olhei o meu corpo nu, impressionante não
tinha marca alguma. Vesti as roupas limpas, depois abri a mochila e joguei o vestido dentro.
Estava resignada a guardá-lo até o momento certo de pedir contas pelo que me fizeram. Seria
o meu estímulo.
Abri a porta do abrigo coloquei a mochila nas costas e vi Maviael que estava bem em
frente, quando ele se virou eu assenti com a cabeça em sinal de que estava pronta. Sem dizer
nada mais, ele começou a andar em silêncio dando espaço para eu o seguir.
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50. Grandes árvores nos cercavam a medida que caminhávamos, devíamos estar muito longe
da estrada agora, o dia estava frio, mas eu não reclamei, apenas continuei seguindo Maviael
que agora andava a passos largos e rápidos. Caminhamos por horas sem descanso, mas eu não
sentia cansaço algum. Desde que saímos do abrigo não trocamos uma palavra, somente
quando eu vacilava em meus passos, ele se inclinava e me apoiava sem nada dizer e ao me
equilibrar seguíamos em frente.
Estava começando a escurecer quando paramos em frente a uma caverna, meu coração
batia acelerado, hesitei em entrar pensei que pudesse ter algum bicho, como urso ou algo pior
ali dentro. Maviael entrou sem medo e enquanto eu fiquei ali me perguntando se devia entrar
ou não, um braço saiu da escuridão da caverna e me puxou firmemente. Ele voltou para me
buscar. E sem dizer nada pegou minha mochila.
Ao entrar na caverna percebi que sem muito esforço, eu conseguia enxergar naquela
escuridão, Maviael passou a mão numa pedra no final do túnel e ela abriu imediatamente,
depois de passarmos ela se fechou atrás de mim e começamos uma descida por uma escadaria
de pedras.
Depois de muitas direitas e esquerdas cercada de pedra o corredor se alargou e no umbral
da abertura pude ler.
“Bem-vindos a Eória, lar dos guerreiros imortais!”
“Nunca vi nada igual. Como podia existir um lugar assim embaixo da terra?”
Passamos pela abertura e para minha surpresa o rústico deu lugar ao moderno, passamos
por um corredor de vidro imenso e entramos em um elevador, vi Maviael apertar um botão
com um símbolo estranho e imediatamente começamos a descer, não sei ao certo quanto
descemos, mas parecia uma eternidade. Quando o elevador parou e abriu suas portas, vi mais
50
51. um corredor de vidro. Ao redor rocha e em frente uma porta metálica que ao nos
aproximarmos se abriu.
Antes de seguirmos, Maviael olhou para mim e disse:
-Você está sendo esperada no conselho, haja o que houver não fale nada. Apenas escute.
Ele me olhou incisivamente até ter certeza que eu havia entendido o que ele tinha dito.
-Tudo bem.
Eu disse e olhei para ele tão firme quanto ele me olhou e assenti com a cabeça em sinal
de entendimento.
Entramos em outro corredor, mas este não era de vidro, era todo de metal com portas nas
laterais, viramos à direita e paramos em frente a uma grande porta escura com um brasão de
dois leões brigando.
Em tom de reverência e gestos que me lembravam um soldado com os dois punhos
fechados e erguidos para frente na altura da cintura, Maviael saudou a porta:
-Com sangue lutamos por Eória!
A porta se abriu e nós entramos.
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52. Capítulo 9
Eória um mundo novo
O lugar me lembrava uma arena de gladiadores só que menor, era uma sala redonda, com
arquibancadas ao redor. Em frente, um camarote com três tronos. O do meio se sobressaia
sobre os outros dois, estes estavam organizados um de cada lado do trono central. Também
dois lugares no centro do círculo. Que eu entendi ser ali que eu e Maviael deveríamos sentar.
Percebi também que a arquibancada estava completa e que havia muito mais homens do que
mulheres, e que todos os homens se vestiam exatamente como Maviael, com exceção de suas
camisas internas por serem da cor preta.
O chão e as arquibancadas, eram de mármore cinza, menos o púlpito e o trono que
pareciam ser de ouro maciço, as paredes eram da rocha do próprio lugar. Num ponto central
bem no alto, percebi uma espécie de marcador com o número 10.000 gravado nele. A
arquibancada parecia confortável, mas apesar disto eu não me sentia a vontade e enquanto
ainda estava distraída, um homem velho se levantou ao lado de destaque próximo ao camarote
e disse estar iniciada a sessão.
Me senti coagida como uma criminosa prestes a ser julgada. Todos estavam de pé,
inclusive nós. Um homem entrou no camarote e todos o saudaram, acenando ele assentiu que
todos sentassem.
Eu não conseguia vê-lo direito, estávamos num local muito claro, onde o homem estava
parecia ter uma sombra. Todos sentamos em nossos lugares e eu percebi que os dois tronos ao
seu lado estavam vazios. O silêncio tomou conta do lugar. O mesmo homem acenou para que
prosseguissem com a reunião.
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53. O homem velho que inicialmente havia aberto a sessão, levantou-se por detrás do púlpito
e sem demora tomou a palavra:
-Quando o marcador indicou a chegada de Ádria na terra a cerca de dezoito anos atrás,
nós enviamos o nosso melhor caçador de encarnados, o guerreiro imortal Maviael de Eória,
para que a encontra-se e a trouxesse para nós, porém...
Esse “porém” me fez gelar, o homem era frio e inquisidor.
-Porém, Maviael sumiu e a menos que o marcador retrocedesse em sua marca sabíamos
que ele não havia sido morto pelos malditos lobos, sua falta de comunicação conosco, feriu a
lealdade e o juramento dos caçadores e demonstrou seu imenso desrespeito ao seus
superiores, a esse conselho e ao seu rei.
-Que prova nos dá Maviael de que está é a Ádria?
Maviael levantou-se e olhando para o rei o saudou.
O rei assentiu com a cabeça e ele pôs-se a falar:
-Por lealdade ao meu rei e honra ao meu juramento de caçador, eu Maviael de Eória,
afirmo diante deste conselho que a jovem que trago comigo é o último espírito perdido dos
nossos guerreiros.
Maviael se fez pronunciar de maneira honrada e segura.
-Palavra? É só isso que nos traz? Ela tem a marca?
O ancião retrucou venenoso.
-Sim. Assim que nasceu no condado eu a identifiquei. Estive muito perto da jovem todos
esses anos. Por muitas vezes tive oportunidade de trazê-la, mas por uma série de desencontros
53
54. não pude, o humano que a criava a levava para longe muitas vezes, e quando reaparecia
estava sempre cercada de humanos. Além disso, eu não estava sozinho. O Bautox estava lá.
Nesse momento a assembléia se inquietou e todos falavam ao mesmo tempo, até que o
rei com um gesto fez todos se calarem.
-Você se certificou de não deixar vestígios Maviael?
O ancião o sondou.
-Sim senhor.
O ancião olhou em direção ao rei, fez sinal e se voltando para frente pronunciou o fim da
sessão.
O rei levantou-se e saiu pelo mesmo lugar que entrou. De relance vi que se vestia como
os outros, porém a cor de suas roupas eram brancas. Após sua saída, a assembléia começou a
esvaziar.
Me voltando para Maviael que continuava de pé, olhando para frente com os punhos
cerrados, eu indaguei:
-Agora posso perguntar?
Ele relaxou, se virou em minha direção e disse:
-Sim, você pode.
-Será que você pode me contar o que é tudo isso? Eu não estou entendendo nada.
Desabafei desanimada e mais assustada do que o normal.
-Tudo bem, mas antes vou levá-la até sua dependência.
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55. -Hum?
-É possível que o rei a chame ainda hoje. Venha e não faça essa cara eu vou responder
todas as suas perguntas... se eu conseguir...
E eu vi um sorriso em seu rosto. Não sei por que, mas eu confiava nele como se o
conhecesse a vida inteira.
Saímos por onde entramos e chegamos novamente em frente ao elevador, dessa vez uma
linda mulher negra e alta vestida como uma versão feminina dos trajes masculinos nos
cumprimentou. Seus olhos eram cor de amêndoas e seu rosto era tão cordial, que eu a
cumprimentei de volta com um sorriso, Maviael apenas acenou com a cabeça olhando-a
firmemente nos olhos. Cada um apertou um símbolo diferente no elevador e calados subimos
alguns andares.
A porta do elevador se abriu e nós saímos deixando a bela mulher para trás.
Desta vez não havia corredor e sim um vasto andar aberto, muito parecido com um
shopping. Jardins de inverno decoravam o lugar, bancos como se fosse uma praça e uma
estátua de um guerreiro de punhos cerrados na altura da cintura em reverência, assim como vi
Maviael fazer mais cedo, ela era imensa no centro do andar. Passamos pela estátua e seguimos
em frente, então comecei a perceber que ao redor daquele lugar, aos invés de galerias, haviam
portas, cada uma de uma cor, algumas com jardins em frente e outras sem nada, e enquanto
me perguntava o que era tudo aquilo? Paramos e Maviael se virou mais uma vez, passou por
trás de mim e me empurrou para frente, pensei que ia bater com o rosto na porta, fechei os
olhos e ela se abriu.
Ele sorriu e me explicou:
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56. -Normalmente precisamos de um pouco de sangue para nos registrar como proprietários,
mas achei que você já tinha sangue o suficiente para isso.
-Hummm?.
Ele sorriu e ao entrarmos vi o vestido pendurando por um cabide numa sala, que parecia
ser um pequeno apartamento.
Foi quando me dei conta, que ao entramos na caverna eu dei minha mochila a ele e não o
vi mais com ela, eu estava tão distraída que nem percebi que não carregava nada nas costas.
-Uau! Isso é lindo! É uma graça esse lugar! Me sinto em casa.
Não a casa em que eu vivi nos últimos treze anos. Mas meu espaço, como eu sempre
sonhei ter. O visual da sala era clean, arejado e moderno, com ventilação artificial e
inteiramente equipada com eletrônicos de última geração. Não parecia que estávamos debaixo
de toda aquela terra e rocha. Havia televisão e home theater. As paredes eram brancas, os
moveis de metal, menos o sofá vermelho bastante confortável na sala. Tela de Salvador Dali
na parede (A menina na janela), e...
-Eu sei. Essa será mesmo a sua casa de hoje em diante. Pelo menos até...Você deseja
alguma coisa em particular...Adri...Liz?
-Roupas, eu acho...ainda não sei se tenho tudo aqui. Não consigo acreditar que é meu
tudo isso.
-Tem roupas pra você no closet. Eu estou perguntando se você precisa de algo em
especial, particular. Vai ser difícil, mas acho que posso trazer para você.
-Você diz...ir até a mansão e pegar meus pertences?
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57. -Sim. Se for importante pra você.
Ele disse isso olhando nos meus olhos de uma forma que eu tive que desviar o olhar.
-Não, não precisa. Não quero me lembrar de nada da minha velha vida. Só preciso que
você me explique o que está acontecendo?
-Antes, você não deseja se alimentar, tomar banho, ficar a vontade?
-Sim. Mas se eu deixar você sair alguma coisa me diz que não vou ter essa oportunidade
novamente.
Ele riu e piscou pra mim. E levantando as mãos para o alto, disse:
-Agora você me pegou, era isso mesmo que eu iria fazer. Sair de fininho!
Gargalhamos juntos e ele continuou:
-Relaxe, eu espero por você. Prometo que não sairei daqui até que você tenha todas as
suas perguntas respondidas. Ok?
-Ok!
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58. Capítulo 10
As respostas
Refiz minhas forças ali naquele banho. Estava cansada, mas sem sono algum. Deixei a
água cair sobre a minha cabeça por um bom tempo, fechei os olhos, mas automaticamente vi a
imagem daquele homem grotesco da floresta, a raiva me invadiu e eu sacudi a cabeça
lançando para longe aqueles pensamentos. Sequei o cabelo e ao sair do banheiro fui em
direção ao closet e para minha surpresa, não encontrei um terno feminino, mas roupas
comuns, shorts, calças, blusas e vestidos para todas as ocasiões.
“O que mais poderia me surpreender naquele lugar?”
Escolhi um vestido simples longo, verde claro e muito bonito, sem surpresa alguma ele
se ajustou no meu corpo, fechei o zíper na parte superior e me olhei num grande espelho em
frente. Impressionante, meus olhos combinaram com a cor da roupa, os ombros ficaram a
mostra, o vestido contornava os meus seios e destacou minha cintura, nos quadris ele era solto
e se alongava até os pés. Fui até a penteadeira e em cima havia uma caixa de jóias, dentro
peças prateadas, douradas e trabalhadas. Escolhi uma tornozeleira prata com pingentes
diversos e dois braceletes pratas iguais, um para cada braço. Me olhei novamente e vi o meu
reflexo no espelho eu estava tão diferente, mas completamente à vontade. Estava faminta,
porém as respostas que eu precisava eram mais urgentes do que a fome.
-Liz, agora é a hora da verdade garota!
Estava tudo tão quieto, entrei na sala e olhei ao redor, não vi ninguém. Sorri para mim
mesma, balancei a cabeça e disse:
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59. -Saiu de fininho!
Antes que eu desse o próximo passo, Maviael falou:
-Procurando por alguém senhorita?
Ele estava atrás de mim, quando me virei o vi encostado na lateral da entrada de um
outro cômodo do apartamento. Ele me olhou surpreso e fixamente nos olhos, eu desviei o
olhar e ele disse:
-Com o tempo você vai perceber que a palavra dada por um vampiro é mais certa do que
a própria morte.
Vampiro, esse era o termo que eu temia. Embora eu já soubesse intimamente que ele
surgiria, todo esse tempo procurei fingir naturalidade. Ainda parecia um pouco absurdo pra
mim, apesar de todo esse novo mundo está bem na frente dos meus olhos, eu não sabia o que
pensar.
-Tem certeza que não quer se alimentar antes? Vai ser uma longa história.
-Não tenho certeza de nada.
-Venha até o estoque.
Ele me chamou com as mãos e entrou no cômodo. De frente a uma geladeira imensa, ele
me olhou e disse:
-Você vai se acostumar com tudo mais rápido do que imagina.
O eletrodoméstico tomava toda a parede lateral do lugar, eram quatro portas largas de
inox, uma ao lado da outra. E quando ele abriu havia tanto sangue dentro que eu fiquei tonta.
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60. Também percebi armários e uma pia, parecia uma cozinha mas não seria esse o termo
adequado. Talvez estoque fosse mesmo a descrição certa para o lugar.
Maviael pegou dois copos alongados, encheu com o líquido vermelho, estendeu a mão
para que eu pegasse um, levantou como se brindasse e tomou. Eu fiz o mesmo, a princípio
achei que não conseguiria, mas quando encostei nos lábios, o cheiro e o sabor me fizeram
perder os sentidos e senti novamente a ânsia de beber de forma incontrolável, o que fiz
prontamente.
O prazer daquele momento durou pouco, ao terminar olhei para o copo ainda em minhas
mãos distraidamente e quando voltei a mim, fiquei envergonhada ao perceber que o Maviael
me olhava com ar de entendimento.
-Por que tanto sangue para um só vampiro e de onde vem tudo isso?
-Nós precisamos nos alimentar com pelo menos três litros de sangue por dia.
Por isso estocamos 30 litros de sangue em cada dependência por semana. Sempre
colocamos a mais para caso de emergências. Todo esse sangue que você vê no estoque é
artificial. Beber sangue in natura é proibido e punido com pena de morte. Já que geralmente o
ato leva os humanos à óbito.
-É melhor sentarmos.
E passando por mim foi até a sala e sentou-se.
-Quem são todas aquelas pessoas daquela sala e o que elas fazem?
-Fazem parte do conselho. O conselho é composto de duzentos vampiros. Eles não se
reúnem sempre, apenas para tratar de assuntos importantes.
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61. - O homem de branco... quem é?
- É o nosso rei Irad.
-O que significa as cores das roupas?
Ele riu surpreso e respondeu:
-O conselho é composto pelos nobres. O título de nobreza é devido ao grau de
antiguidade das suas famílias, não aos membros delas. A cor branca pertence a instância
maior, ou seja, ao rei e aos seus herdeiros.
-Não dos membros delas?
-Nenhum lugar no conselho pode ser substituído, um lugar só pode ser preenchido
somente se tratando de reintegração. Por exemplo, um guerreiro encarnado encontrado,
mesmo tendo renascido a pouco tempo, toma parte no conselho, se pertencente a algumas
daquelas famílias, pois subentende-se que o lugar era dele anteriormente.
-Vampiros possuem famílias?
-Alguns, no início, foram transformados com toda sua família. Algumas delas existem há
séculos. Mas nem todos os transformados sobreviveram a mudança. Porém os que
sobreviveram instituíram ordem e liderança.
-Como a lei do consumo artificial de sangue?
-Sim.
-Se beber sangue diretamente de um humano é proibido, como conseguiu sobreviver
longe daqui?
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62. -Dos lobos (lobisomens), eles vivem na superfície e precisam tanto de sangue quanto
nós. Embora o Condado fique bem longe do nosso local de origem, a alguns séculos
começamos a perceber uma imigração de lobos para a região. Eles assim como nós precisam
de um estoque, o deles é vasto e sem muita vigilância, alguns atacam humanos sem
represálias de nossa parte, pois, eles acreditam que fomos eliminados na grande batalha. Uma
vez que o estoque não é vigiado, fica fácil de conseguir pegar o que precisa, mas eu nem
sempre recorri a esse meio, ora bebia do estoque dos lobos, ora bebia de animais da floresta, o
gosto é péssimo e o valor energético é menor, mas serve. Aliás, o sangue artificial foi
descoberta dos lobos, nós tínhamos um projeto antigo, antes da grande batalha acontecer. A
pedido do rei, lobos e vampiros trabalharam juntos para descobrir como desenvolver sangue,
um lobo cientista chamado Nesmut foi quem desvendou o processo primitivo. O povo estava
passando fome e o rei tinha pressa. Com grande esforço conseguimos chegar a um extrato
muito parecido com o que temos hoje. Daí quando tivemos que nos esconder, retomamos as
pesquisas de onde paramos, a princípio os eorianos saíam da caverna em grupos para se
alimentar mas era muito arriscado para nós, aceleramos as pesquisas e desenvolvemos o
sangue, a partir daí os vampiros não tiveram mais necessidade de ir até a superfície, a não ser
para resgatar os encarnados. E pelo visto os lobos também levaram adiante as suas pesquisas e
assim como nós tiveram êxito.
-Deve ter sido difícil.
-Sou um caçador, estou acostumado.
-Eu nunca vi um lobisomem em Clayton, nem nunca ouvi falar sobre isso.
-Existem muitas coisas que você nunca ouviu falar. Os lobos vivem em bandos, moram
como nós em sua própria reserva, mas agem como humanos e se misturam entre eles. Nós
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63. costumávamos fazer isso até a grande batalha, onde os lobos mataram muitos de nós e
tomaram o poder.
- É por isso que se escondem aqui?
-Sim.
-O que aconteceu nessa grande batalha?
Ele puxou o ar e continuou:
-Há mais de quatro mil anos atrás, Irad, nosso rei, governava as duas linhagens sobre a
Terra, vampiros e lobos. No seu governo nunca nos foi permitido massacres de humanos,
contudo, podíamos tirar proveito das guerras dos homens, pois, o rei entendia que nas guerras
as baixas humanas aconteciam sem a interferência de nenhuma das partes. Mas quando estas
passavam e os lobos ou os vampiros sentiam fome e se rebelavam, a matança era sem
controle. Então no ano de 522 d. C, o rei Irad tomou uma decisão extrema que mexeu com os
dois lados, ele restringiu o consumo exagerado de sangue e delimitou o seu uso para vampiros
e lobos. Cada vampiro e lobo só tinham direito a um humano a cada duas semanas. Estando
sob pena de morte aquele que desobedecesse a lei. Os lobos não ficaram satisfeitos, eles não
têm palavra, mentiram e burlaram a lei e muitos foram condenados. Mas o rei calculou que se
continuássemos daquela maneira extinguiríamos a raça humana desse planeta em pouco
tempo. Então, quando o rei decidiu que seria feito um senso entre vampiros e lobos e decretou
que o limite permitido de transformados tanto para vampiros como para lobos seria de 10.000
habitantes, houve rebelião, a aliança foi quebrada, o rei traído e caçado, e, com ele, todo o seu
povo. Como vingança, Sneferu, condenou a morte o filho do rei e sua esposa, com eles mais
de mil guerreiros vampiros de valor.
O reinado de Sneferu teve início e nosso povo fugiu da superfície.
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64. -Recuar hoje para lutar amanhã!
Pensei alto tentando entender.
-Sim isso mesmo.
Ele viu que eu estava acompanhando e continuou.
-Havia uma profetiza antiga em nosso reino, cem anos antes da batalha ela profetizou:
“O trono mais alto perecerá e um rio de lágrimas e sangue sobrevirá. Um rei será traído e todo
o seu povo pagará por isso, para que sejam purificados das maldades de seus corações”.
O rei não a ouviu. O conselho não a ouviu. Ninguém a ouviu.
Quando começamos a nos abrigar no subsolo, ao final de nossas primeiras construções,
outra profecia foi feita aos pés do guerreiro imortal.
“Quando duas mãos injustas tomarem o poder sobre a Terra, o sangue dos guerreiros
mortos retornarão a marca estabelecida, um povo esquecido retomará o poder pela mão de
uma guerreira renascida, ela trará a esperança; a ela será dada a força sem limites. Somente
ela poderá domar o filho selvagem do injusto e unificar os reinos. Então um trono será
erguido e a Terra será governada com paz e justiça para todos”.
-Dessa vez ouvimos a profetiza, e quando Jubal e Jabel, mataram seu próprio rei Sneferu,
por causa do trono, há quinhentos anos atrás, deu-se início a profecia. Nosso marcador do
senso, símbolo das nossas baixas na batalha, marcou um número a mais e entendemos que
deveríamos sair a procura, foi então instituída a ordem dos caçadores de encarnados e a nossa
última missão terminaria quando o marcador estivesse marcando 10.000.
Ele concluiu me olhando seriamente nos olhos.
64
65. -Dez mil? A mesma marca que eu vi num relógio no salão de conferência.
Eu disse.
-Sim, você foi nossa última guerreira encarnada.
65
66. Capítulo 11
A marca do guerreiro
Fiquei um bom tempo calada pensando em todas as informações que Maviael tinha me
dado, levantei e dei a volta no sofá, por trás eu caminhei um pouco para lá e para cá,
pensativa. Maviael permaneceu sentado, de costas pra mim. Retomei o meu lugar e com
coragem perguntei:
-Como pode ter certeza que sou eu a última guerreira a ser encontrada?
Ele disse simples e rápido.
-Você tem a marca, todos os renascidos tem a marca. E você foi a última guerreira a ser
contada no marcador, completou o número do senso e da profecia.
-Eu o ouvi dizer isso para o conselho, desculpe Maviael, mas eu não tenho marca
alguma.
-Todos tem. E continuou:
-Lembra do brasão na porta do salão de conferência do conselho?
-Sim.
-É o nosso símbolo guerreiro. Quando a ordem dos caçadores foi criada sobre magia
antiga, foi revelada aos seus membros que estes saberiam onde os guerreiros encarnados
estavam pelo grau de ligação que eles tinham com tais guerreiros mortos e suas marcas seriam
reconhecidas, pois todas seriam iguais e relacionadas com o símbolo dos guerreiros.
66
67. Maviael tirou seu sobretudo, levantou a manga da sua camisa e estirou o braço em minha
direção.
-Como essa aqui. Você reconhece?
Estiquei meu próprio braço e vi uma marca semelhante, quatro garras encravadas na
pele, como se fossem quatro tiras de uma cicatriz causada por um urso, ou...
-LEÃO? Desculpe, estava pensando alto, eu sempre achei que essa marca no braço tinha
sido por causa do acidente que matou os meus pais. Mas então você... como pode ser um
guerreiro encarnado e um caçador ao mesmo tempo?
-Como eu disse, os guerreiros são escolhidos pelo grau de ligação com os encarnados,
quando um encarnado nasce, geralmente o caçador recebe uma mensagem, ou em sonho ou
em visão, ou de qualquer forma que auxilie sua localização. Ele é inteiramente responsável
pelo êxito ou não da missão e deve ir sozinho. Não pode ser negado a ele o direito da missão
nem imposto o momento da partida, assim como no conselho nenhum membro pode ser
substituído, na ordem nenhuma missão pode ser delegada.
-Como se chamava antes vir para cá?
-William.
Ele parecia desconfortável com isso e eu mudei de assunto.
-Eu ouvi você dizer no conselho que teve inúmeras oportunidades de me resgatar e não o
fez. Ouvi também você citar um tal de Bautox, quem é ele?
-Bautox é o lobo de confiança do Jubal. Não sei porque ele estava lá, os lobos não
conhecem nossa profecia ou pelo menos achamos que não.
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68. -Como sabia que aquela noite na floresta seria a melhor hora para me resgatar e o que fez
com aquele homem horrível que atirou em mim?
-Não sabia. Apenas segui vocês e não fiz nada com o homem, apenas a transformei a
tempo quando ele partiu e deixou você no chão, inconsciente.
-Mas você podia ter evitado tudo aquilo? É um vampiro guerreiro!
-Não, não podia. Não com o Bautox por perto, eu não tinha certeza se os encarnados
ainda eram segredo para Jabel e Jubal, não entendi o que ele estava fazendo no casarão do seu
protetor.
Nunca tinha chamado o Bill de meu protetor, mas gostei ainda mais do Maviael quando
se referiu a ele de forma tão respeitosa e grata.
-Liz, se eu deixasse vestígios de que andava rondando o lugar colocaria você e todo
nosso povo em perigo e as minhas chances de tirá-la de lá seriam mínimas. Sabe-se lá quanto
tempo demoraria até você encarnar de novo e se isso seria possível uma segunda vez ou se
teríamos outra oportunidade de resgate.
Ele parecia precisar de que eu confiasse nele. Ele parecia sofrer ao lembrar-se daquela
noite. Mas o que ele não sabia é que não precisava se explicar, eu confiava nele e sabia que
estava sendo mesmo sincero. Não sei como e nem porque, porém eu confiaria minha vida a
ele em qualquer circunstância. E ele precisava saber disso.
-Não precisa se explicar Maviael, confio em você. Sei que fez o seu melhor e sei também
que nunca deixaria que nada de ruim acontecesse comigo.
68