1. A relação objetal abre caminho para a
linguagem
Logo após o nascimento o bebê vive
predominantemente dois tipos de experiência:
sossego e desagrado, ou nas palavras de
Winnicott, continuidade e ruptura. Supõe-se que
os momentos de desagrado sejam gerados por
estímulos internos e/ou externos para cuja
resposta o bebê ainda não dispõe de recursos
suficientes. Digamos que tais estímulos rompem a
experiência de continuidade e determinam uma
reação global sob forma de choro, numa ação
motora possível, face sua imaturidade física. O
choro seria uma expressão fisiológica de
desconforto, sem intenção de comunicar algo a
alguém, posto que “a criança, nesta época, é
incapaz de distinguir a si da própria mãe.”
No entanto, há na realidade um objeto
externo que através da empatia registra e
interpreta os indícios de desagrado da criança,
tentando modificá-lo a fim de recuperar a
homeostase, a continuidade. Ao longo do tempo a
repetição cíclica de tais acontecimentos permite
ao bebê construir, ainda que vagamente, a noção
mental de alguém que atende e satisfaz.
A partir daí, determinados comportamentos
passarão a ser dirigidos intencionalmente para
este alguém e de modo cada vez mais específico
quanto mais este alguém for ficando delimitado
em sua imagem mental separada da imagem
mental da própria criança. Nesta fase, podemos
considerar a existência de comunicação
propriamente dita.
Resumindo, para que haja comunicação
intencional, excluindo os fatores morfofisiológicos,
duas condições são necessárias:
1) somatória suficiente de
experiências de cuidado e satisfação com
determinado objeto
2) discriminação entre o tal objeto e o self
Usando o conceito de continente/contido de
Bion, digamos que estas condições foram
alcançadas graças à capacidade interna de conter
as vivências de desconforto da criança, modificá-la
e reapresentar-lhe a realidade, permitindo que tal
contenção seja aos poucos internalizada para que
certo grau de continência própria, discriminação e
autonomia seja adquirido pela criança.
Surge agora entre a dupla um novo tipo de
relação na qual sinais cada vez mais específicos e
depois as palavras serão necessárias.
O objetivo primordial (e primeiro) da
comunicação que é expelir e depois transferir ao
outro e compartilhar com o outro as vivências
emocionais mais significativas irá colorir
definitivamente o nascimento da linguagem verbal,
tanto do ponto de vista filogenético quanto
ontogenético.
“Suas (da criança) primeiras comunicações
de tipo discursivo são evidentemente tentativas de
comunicação de estados de ânimo complexos
(Meltzer, p.36)
É exatamente a partir de uma relação em
que as emoções puderam adquirir significado
através da continência1
, em que a separação for
sendo constituída paulatinamente levando ao
nascimento de um sujeito e de um objeto (ligados
pela possibilidade de real identificação) que será
viável a aquisição de uma linguagem verbal
comunicativa.
Caso tais processos sejam perturbados por
fatores maternos da criança ou da dupla, mantém-
se uma ligação fusional simbólica onde tal qual
gêmeos siameses, se houver separação há morte.
É no espaço criado pela separação que se
instalarão progressivamente as atividades
simbólicas e a palavra. Realmente há uma
coincidência entre os processos de formação de
símbolos e aquele de gênese das palavras. A
linguagem, como o símbolo na qual está fundada,
representa a reunião com o objeto ausente,
baseada na capacidade de tolerar a ausência e
nela recriar o objeto. Aqui está implícito a idéia de
um terceiro com o qual o objeto estaria ligado
quando ausente. Quando tal capacidade não pode
ainda ser desenvolvida, atividades proto-simbólicas
tentariam tamponar a percepção da ausência e a
linguagem, se existir, assume características de
extrema concretude.
Por fim, é legítimo supor que a aquisição da
linguagem determine mudanças significativas na
vida mental, incrementado a autonomia e a
capacidade de continência de organização do
mundo interno. Emoções nomeadas são menos
destrutivas que quando permanecem em estado
difuso, não passíveis de designação.
[Segundo Segal,(p.96)] “o bebê teve uma
experiência e a mãe fornece a palavra ou a frase
que liga esta experiência. Ela contém, abrange e
expressa o significado. Fornece um continente para
ele. O bebê pode então internalizar esta palavra ou
frase que contém o significado”.
Jornal de Psicanálise, editado pelo Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo – USP - São Paulo, jul.
1994
1
Capacidade de impedir a execução de um desejo, ou de uma
necessidade fisiológica, dada a impropriedade de conduta, de
ocasião, de local, etc.