1) A espiritualidade é uma disciplina teológica relativamente recente que visa ajudar a vivenciar a fé cristã na prática do dia a dia.
2) Existem desafios atuais na compreensão e vivência da espiritualidade, como sincretismos e a visão de que outras espiritualidades são igualmente válidas.
3) A espiritualidade consiste em viver segundo o Espírito de Deus, promovendo a vida como Jesus, através de frutos como paz, alegria e dignidade.
1. Espiritualidade Fundamental
Introdução
Entrando na sala da espiritualidade, logo nos damos conta de que nos
encontramos em piso movediço, não tão seguro quanto desejaríamos. Neste momento
histórico em que as ciências estão “dispensando” Deus, porquanto o homem pode
resolver todos os desafios antes atributos exclusivos dele, até os sociólogos constatam
um acentuado “retorno ao sagrado”, um “novo despertar da espiritualidade” nas massas
humanas, em todas as religiões, ao lado de uma desorientação generalizada das
pessoas neste campo. Observam-se ainda atitudes de “volta ao passado”, ao
tradicional, ao arcaico, ao ritualismo secular, ao mesmo tempo em que se ouvem
depoimentos de “desconforto”, porque o modo de viver a espiritualidade (mesmo se
tratando de uma espiritualidade renovada), já não reponde às necessidades profundas
das pessoas, sobretudo, as mais engajadas na transformação social e aquelas que
pleiteiam uma proposta de vida mais integrada e integradora, onde todas as dimensões
da vida estejam contempladas, superando a compartimentação da existência ou a
exclusão de algumas dimensões. Não bastasse isso, apela-se muitas vezes para
sincretismos (cristianismo e religiões africanas ou orientais) ou ainda para puros
esoterismos. Cresce em muitos a concepção de que a espiritualidade cristã é tão
somente uma espiritualidade entre outras igualmente válidas. Deduz-se, então, que são
muitos os desafios a serem abordados.
1 – A espiritualidade no quadro dos conhecimentos teológicos
Esta disciplina teológica é relativamente recente. Ela não existia, antes do
século XX, porque todo o estudo era feito a partir da Bíblia e da tradição cristã, tendo em
vista a vivência da fé. Ao longo da história predominava a compreensão do “intelligo ut
credam”, (entender para crer), compreender para melhor viver. São Boaventura dizia,
neste sentido, que todo o estudo da teologia tem por finalidade “tornar-nos melhores” (ut
boni fieri). No entanto, o avanço ininterrupto dos aspectos científico-racionais, aliado à
preocupação talvez bastante exagerada do cientificismo, (nos séculos XVIII e XIX
ocorreu um forte predomínio da ideologia racionalista e do desenvolvimento das ciências
experimentais), foi gerando uma teologia sempre mais compartimentada e com forte
tendência a distanciar-se da vida real, mormente da grande massa. Esta possibilitou
indubitavelmente maior avanço dos conhecimentos, mas carregou consigo o risco de
uma abordagem da teologia como mais em vista do conhecimento do que propriamente
da vivência ou prática do amor. Lentamente, o grito para não descuidar desta dimensão
suscitado pelo Espírito Santo, acabou sendo acolhido dentro dos estudos teológicos. Em
1931, o Papa Pio XI autorizou pela primeira vez na história a Universidade Gregoriana a
introduzir esta cadeira com o objetivo de que auxiliasse a todos quantos se dedicam à
teologia encontrarem resposta à pergunta: Como acessar à experiência da fé? Como
vivenciar a riqueza de dons que o Senhor sempre de novo entrega? Como percorrer um
caminho comprovado para uma vida de comunhão com Deus? E desde então esta
disciplina foi se consolidando rapidamente em todas as faculdades teológicas.
Atualmente vivemos uma profunda interrogação a respeito do tipo e relação que a
“Espiritualidade” deve sustentar em relação às disciplinas dogmáticas (até o momento
2. Espiritualidade Fundamental
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apenas vista como maneira de traduzir para a prática) e às bíblicas. Alguns autores
defendem uma sempre maior autonomia da “Espiritualidade” 1, porquanto ela lida mais
com a antropologia religiosa e num horizonte muito maior que o ambiente cristão ou
católico, do que propriamente com conteúdos teológicos e bíblicos, embora nunca deva
perder a comunhão com essas disciplinas, com risco de desvirtuar-se completamente.
Qual é o seu campo específico? Costumeiramente se diz que há três grupos de
disciplinas teológicas: a) Disciplinas Fontes: são as matérias que têm, prioritariamente,
um objeto preciso ou “dados concretos” a aprofundar. Pertencem a este grupo: a história
da Igreja, a Patrística, a exegese bíblica (subdivididas em muitas matérias), o direito
canônico; b) Disciplinas sistemáticas: São as disciplinas que, embora tenham uma ou
mais disciplinas fontes como ponto de partida, seu objetivo prioritário é aprofundar o
conteúdo da fé e traduzi-la para o novo contexto: a teologia fundamental, a Revelação, a
Cristologia, a Trindade, a Eclesiologia, os Sacramentos, a Mariologia, a Protologia e a
Escatologia, a Graça etc. c) Disciplinas prático-pastorais: Sua atenção prioritária está
voltada para a vivência prática atual da fé. Podem-se citar aqui a Catequese, a Liturgia,
a Pastoral, a Missiologia, a Espiritualidade e outras.
Assim sendo, esta nossa disciplina de Espiritualidade quer, acima de tudo,
auxiliar o(a) jovem teólogo(a) a passar para a vivência toda a riqueza de aspectos que
descobre ao estudar o mistério de Deus. Neste sentido, a espiritualidade tem um papel
imprescindível. Sua ausência ou deficiência pode acarretar danos irreparáveis à vida de
um agente de pastoral ou de um cristão. Nosso esforço, por isso, será ajudar a
entender, a dinâmica do Espírito. Buscaremos encontrar caminhos para traduzir para a
prática os dados da fé. Abriremos perspectivas de como avançar, deserto adentro,
(onde Deus fala ao coração Os 2,16)), em direção ao Horeb (lugar por excelência da
manifestação do coração de Deus (Ex 3,1: 1 Reis, 19,8), de como a tirar as sandálias
diante da sarça ardente (Ex 3,5), de como cair de joelhos e proclamar “Meu Senhor e
meu Deus” (Jo 20,28). Então, ainda que se aborde nesta disciplina aspectos bíblicos,
históricos... o enfoque será sempre vivencial, prático.
2 – Compreensão terminológica
Por vezes, mesmo entre nós que lidamos com o sagrado, o termo espiritualidade
é facilmente intercambiado com oração. Dizemos, por exemplo, “vamos fazer cinco
minutos de espiritualidade”, na suposição de que ambos são sinônimos. Todavia, ainda
que estejam profundamente relacionados não se equivalem. Há pessoas que, na prática
dedicam muito tempo à oração(?) e no entanto demonstram pouca espiritualidade,
enquanto que outras, aparentemente rezando menos, revelam possuir maior grandeza
de espírito, ou melhor, uma Espírito mais semelhante ao Espírito de Deus.
A espiritualidade não se vê, nem se toca, mas é facilmente comprovada. Assim
como a água na grama: se a água faltar, logo seca a grama, compara Segundo Galilea.
Quando o conjunto das ações de alguém produz vida, paz, alegria, dignidade... é sinal
que esta pessoa vive espiritualidade, isto é, tem dentro de si um “espírito” identificado
com o Espírito de Deus que gera vida, redime, resgata, restaura, renova, promove. Aí há
espiritualidade! Neste sentido, a espiritualidade pode ser entendida como “a
organização do tempo, interesses, engajamentos, práticas e dimensões do viver de uma
pessoa, de um grupo ou de um povo de tal forma que, a exemplo do Espírito de Deus,
promovam a vida”. Jesus é o exemplo máximo de homem com espiritualidade. Ele
1 C. A. BERNARD. Teologia Spirituale. Torino: San Paolo, 17-20.
3. Espiritualidade Fundamental
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gerou vida ao redor de si porque sua vida estava voltada para a construção do Reino. E
confessou claramente que o Espírito o conduzia (Lc 4, 1.14.18). Foi gerado por obra do
Espírito Santo (Lc 1,35). Prometeu enviar o Espírito (Jo 15,26). No alto da cruz entregou
o Espírito (Lc 23,46), assim como na tarde da Páscoa (Jo 20,22) e em Pentecostes (At
2,1-11). Neste sentido a espiritualidade pode ser descrita como vivência do Espírito (no
seguimento de Jesus de Nazaré). Paulo (Gl 5, 18-25) descreve os diversos frutos do
Espírito e os frutos da carne, opostos ao Espírito.
O Espírito de Deus vai comprometendo sempre mais a pessoa. Esse processo se
torna uma espécie de “caminho sem retorno”2, não por forças exteriores, mas pela
própria dinâmica interna fruto da mais genuína liberdade no amor. É o que se pode
deduzir do “quando eras jovem tu te cingias e ias para onde querias, mas quando
estiveres mais adentrado no mistério outros te cingirão e te conduzirão para onde tu não
queres (cruz, martírio, responsabilidades, renúncias...) Jo 21,18 e também de 1 Cor
9,163. De fato, o Espírito de Deus desencadeia na pessoa as potencialidades do amor,
da generosidade, da alegria, da “parresia” (coragem profética), da entrega total e
confiante, ao ponto de chegar ao martírio, dando a vida para salvar os outros, defender
a comunhão com Cristo (e salvar-se) e, parecendo, de certa maneira, um dopado, um
“bêbado” (At 2,13), um fanático... de tanta efusão e vitalidade.
Todas as pessoas, independentemente de religião, fé ou cultura podem “ter”
espiritualidade. Os frutos se constituem em critério último de discernimento: “Pelos
frutos os conhecereis” (Mt 7,16). Pedro Casaldáliga e José María Vigil4 dizem que a
diferença entre um cristão e um ateu engajado em favor da vida se situa somente no
campo da consciência, do conhecimento da força que os move. Enquanto o cristão sabe
que nele atua o Espírito de Deus, levando-o a dedicar-se e comprometer-se com os
irmãos menores, o ateu realiza a mesma ação sem esta consciência, o que o
empobrece existencialmente. É por isso que Ronaldo Mugnóz 5 disse que os ditadores
temem muito mais alguém que luta por causa de um Deus comprometido do que
simplesmente quem luta por decisão própria, pois no primeiro caso terão de lutar
também contra Deus. Isto permite aceitar o fato de que todos os povos, religiões,
culturas podem ser movidos pelo Espírito de Deus. O que pode impedi-Lo de atuar será
tão somente o pecado, quer dizer, a ofensa à vida, qualquer forma de vida e qualquer
tipo de ofensa, exatamente porque a dinâmica do Espírito é contrária à do pecado.
Tenha-se claro que o que se contrapõe a espiritualidade não é a materialidade ou
a carnalidade como por muitos séculos de história, influenciada pelo platonismo e por
correntes religiosas dualistas como os diversos ramos do maniqueísmo, sustentavam e
propunham. No lado oposto da espiritualidade está a morte, o espírito de morte. Se o
Espírito (dinamismo, energia) de Deus é vida, sua ausência e tudo quanto impede,
oprime, ofende, deturpa, denigre a vida é o espírito (dinamismo, energia) da morte, o
2 Este fator deixa muitas pessoas com forte receio de enveredar por uma espiritualidade mais intensa, pela sensação
infundada de “perder a liberdade” quando não a própria identidade. São João da Cruz chama esta sensação de
“abismo do infinito” que causa vertigem e faz que muitos recuem e emperrem. Urge abandonar-se e confiar n’Ele
para ultrapassar esta barreira bastante comum e natural, criada pelo falso conceito de liberdade e de espiritualidade.
3 “Anunciar o Evangelho é uma obrigação que se me impõe...” Também Paulo Apóstolo sentindo-se tão agraciado
de favores divinos passou a sentir-se “obrigado” a prosseguir o trabalho da evangelização para não ser ingrato e não
contradizer o Espírito de Deus que o inabitava.
4 Confira um belo esclarecimento sobre este assunto na introdução de sua obra A Espiritualidade da Libertação
Petrópolis, Vozes, 1993. 32-35.
5 Video “El Dios de los pobres”.
4. Espiritualidade Fundamental
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pecado, o oposto de espiritualidade. A pessoa humana será sempre uma carne
espiritualizada ou um espírito encarnado6. Aliás as próprias estruturas de vida podem
estar configuradas por qualquer um dos dois espíritos.
A espiritualidade é, pois, viver o Espírito de Deus, ou viver segundo o Espírito de
Deus. É deixar Deus ser Deus na vida da gente e ajudar para que ele seja Deus na
sociedade, como Jesus que não queria fazer outra coisa a não ser a vontade do Pai:
“Não vim fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou”(Jo,5,30).“Eis
que venho para fazer vossa vontade”, diz também Hebreus 10,7 falando de Jesus. É ser
um ramo alimentado pela mesma seiva que alimenta o tronco (Deus – Jo 15,1s). Esse
“permitir deixar Deus ser Deus” leva a ponderar dois aspectos importantes:
a) Um esforço para deixar espaço para Ele, assim como a mãe cria espaço,
primeiramente no seu corpo e, depois, no tempo, nas preocupações e nos cuidados
para o filho que vai crescendo em meio a muitos riscos e desafios. É muito mais que
algo simplesmente passivo. Esse espaço para Deus se consegue dar ao cabo de muita
atenção, busca e disponibilidade continuadas. Caminhar para Deus (“Ver Deus”, Jo
14,8) deveria ser assumido como objetivo máximo da vida, a opção fundamental de uma
pessoa, envolvendo todas as dimensões da existência em latitude e longitude, no tempo
e no espaço. Apenas essa possibilitará dar passos de transformação global.
b) Mas é bom lembrar que isso geralmente pode gerar medo nas pessoas. Medo
de que Deus tire a liberdade e não se possa mais fazer o que se fazia antes (cf Jo
21,18; Jr 20, 7s). Medo de que o ciúme de Deus tolha nossa grandeza. Ou ainda a
sensação de vertigem de que falam os místicos. Daí a necessidade de entregar-se,
confiar-se inúmeras vezes a Ele a fim de que lentamente nossa vontade consiga, de
fato, aderir a Ele. Somos feitos para viver essa relação de comunhão-entrega com Deus,
como dizia o grande santo Agostinho: “Fizeste-nos para Ti, Senhor, e nosso coração
está inquieto enquanto em ti não descansar”. É a vocação primeira de toda a pessoa.
Temos uma raiz contemplativa em nós, diz Galilea, e não nos realizaremos
profundamente sem desenvolvê-la7
3 – Dimensões básicas da espiritualidade
A tradição cristã da Igreja sempre considerou duas dimensões básicas da
espiritualidade que também poderiam ser chamadas de enfoques: o da ascese e o da
mística. Cada um dos dois abrangendo toda a realidade ou mesmo como duas partes da
mesma realidade. Alguns manuais de espiritualidade tinham como título “Tratado de
ascética e mística”. Mas a teologia da libertação trouxe à luz outra dimensão, a da
prática, ou melhor, da práxis, como veremos abaixo. Tentemos compreendê-las:
3.1 - A Mística: É a dimensão de comunhão com Deus, é o encontro de corações,
a comunhão de vida. Os mestres de espiritualidade chamam a isso de “mística”, palavra
grega (Mistikós, de mystes, donde também se origina mistério) que significa “realidade
inesgotável, secreta, escondida”(e não incompreensível). Quanto mais alguém vive
unido a Deus, mais profundidade de encontro terá, maior comunhão e maior satisfação
experimentará. Vai sentir-se plenificado(a) por Deus. Acontece mediante um processo
de enamoramento e apaixonamento por Deus e sua Causa ou, melhor dito, mediante
6 Esclarecedoras as páginas 62-83 de G. GUTIÉRREZ. Beber no próprio poço. Itinerário espiritual de um povo.
Petrópolis: Vozes, 1985.
7 “O homem apresenta uma raiz contemplativa que não deve ser sufocada nem frustrada, sob pena da desumanização
ou da mutilação de sua realização humana”. S. GALILEA, O caminho da Espiritualidade, 160.
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um deixar-se cativar ou seduzir por Deus (cf Jr 20,7: Gl 2,20), pois é Ele quem toma a
iniciativa.
A mística, por sua vez, também abrange três sub-aspectos concomitantes: a) O
cultivo do enamoramento, da oração contemplativa e afetiva, feita com a totalidade do
ser e não apenas com palavras e com a cabeça (O coração tem razões que a razão
desconhece). b) A busca da compreensão (estudo) das coisas de Deus. Sem um
conhecimento adequado de Deus, de Jesus Cristo, da Igreja, da Bíblia, dos
sacramentos, da missão... será difícil viver um relacionamento qualificado com Deus.
Daí a enorme importância do estudo da fé. c) A realização de experiências fortes: retiros
prolongados, momentos profundos de oração, devoção nos sacramentos, participação
em lutas sociais, etc. A experiência entra em nossa vida, rompendo muitas barreiras...
Participar de experiências fortes contribui muito para a caminhada na espiritualidade.
3.2 – A Ascese. Essa palavra significa exercício (militar e esportivo - provém do
verbo grego askeo, treinar). Quando aplicado à espiritualidade significa mortificação das
más tendências, penitência, cultivo das virtudes, esforço de convergência de todas as
dimensões da vida no objetivo fundamental do viver humano.
A dimensão ascética compreende todo o empenho que a pessoa precisa fazer para se
tornar um espaço acolhedor do Espírito de Deus. Esta tarefa não é tão simples como à
primeira vista parece. Implica em adequar-se ao seu jeito de ser. Implica deixar-se
moldar, remodelar como um vaso de barro ao ser construído (Jr 18,4-6). É tudo quanto
se faz em função de algo significativo na vida. É uma verdade que está sendo
redescoberta nestes nossos tempos.
São inerentes à ascese várias realidades: a) a Mortificação: Sempre temos
necessidade de mortificar nossas tendências e propensões, pois estamos inseridos em
uma ambiente existencial desregrado, marcado pelos desvios do pecado (“Eis que eu
nasci na culpa, minha mãe me concebeu no pecado”). (Sl 51,7). Combater toda a forma
de mal em nós e nos outros é uma urgência da espiritualidade: os vícios, as inclinações,
as propensões, as insinuações dos outros, o instinto de impor-se aos outros pelo
poder... São os “demônios” a expulsar. b) o Exercício das virtudes: as boas ações
precisam ser repetidas inúmeras vezes para formar um hábito em nós, assim como se
precisa refazer sempre uma determinada ginástica para adquirir certa agilidade.
Exercitar a humildade, a coragem, a doação, a acolhida, a paciência, etc. c) a
predisposição: Trata-se de atitudes internas que criam espaço para o novo,
antecedendo as pequenas decisões. Ex: viver o espírito de serviço à comunidade e aos
mais humildes, predispor-se a acolher o novo que vem dos outros, abrindo mão de suas
idéias, a perder tempo com os outros... Essas predisposições são o terreno onde podem
crescer as virtudes.
3.3 – A Prática: Nesse caso prática quer dizer uma atitude ou uma ação
constante, duradoura em favor dos outros para “gerar vida”. É um tipo de atividade
diferente da ascética, porquanto a “prática” aqui se refere à dimensão comunitário-social
e não a aspectos de conversão ou transformação pessoais. Trata-se, pois, dos
engajamentos concretos de caráter predominantemente comunitário. Existem ao menos
três níveis desses engajamentos: a) Engajamentos comunitários: são práticas e serviços
no interno da comunidade cristã. Por exemplo: participar da equipe de liturgia, de
promoções, da pastoral da criança, do clube de mães, ser catequista, etc. b)
Engajamentos sociais: São os compromissos na sociedade, independente da religião,
6. Espiritualidade Fundamental
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mas que nem por isso são menos dignos. Por exemplo: associação de moradores,
sindicatos, cooperativas, movimentos ecológicos etc. c) E, por fim, Engajamentos
expressamente políticos: Tudo quanto visa uma organização da “pólis”, da sociedade. O
cristão é igualmente responsável pela criação de estruturas justas, de leis adequadas
que levem à fraternidade, à partilha dos bens. Lembrar sempre que esta foi uma das
causas que mais pesou na condenação de Jesus. Não existe religião “a-política”, neutra.
Nossa fé está profundamente articulada e relacionada com todas as dimensões
de nosso viver, não se restringindo de forma alguma a apenas um determinado
compartimento estanque em nossa vida. Somos uma totalidade de vida, e a
espiritualidade há que permear todos os recantos do existir, por mais íntimos ou por
mais externos que pareçam ser. Agora podemos passar a descrever algumas
características de nossa espiritualidade cristã
4 – Principais características da espiritualidade cristã
Entre as características mais significativas da espiritualidade cristã podem ser
enumeradas as seguintes:
a) Trinitária. O Deus cristão é um Deus trinitário, formado pelas pessoas do Pai, do
Filho e do Espírito Santo, vivendo em perfeita comunhão de vida e missão, em
igualdade plena e identidade exclusiva. Como a “melhor Comunidade” é a “utopia” de
todo o grupo humano e de toda a forma de relação cósmica 8. Mantendo sua identidade
diversa, as Três pessoas vivem tanta comunicação, tanta comunicação, tanta doação e
generosidade, interpenetração e reciprocidade, transparência e unidade de vontade e
projeto, de sentimentos de acolhida e atitudes de inclusão que formam um único e
mesmo Deus. Onde está um estão os três. Os três participam, de modo diferente, da
mesma missão, de modo que o que se diz de um se poderia, embora impropriamente
dizer dos três. Do Pai se costuma dizer que é a nascividade; do Filho, a receptividade e
do Espírito Santo a reciprocidade. Formam a pericórese, uma inter-retro-relação9. O
Filho revela o rosto e o coração do Pai, cujo coração é constituído de entranhas de
misericórdia, se parece com uma mãe (Os 11,1-11; Ex 3,1ss). Por sua vez, o Espírito
Santo se torna o intérprete do Filho, depois de sua partida, levando à frente a “obra de
Jesus”, recordando tudo o que Ele disse, amparando como “advogado” e “consolador”
(Jo16)10.
Este primeiro dado leva a concluir que a pessoa humana, porque criada à
imagem e semelhança de Deus, é também fundamentalmente vocacionada à
comunhão, à comunicação, à partilha de vida, à doação total e irrestrita da vida, a
8 A ciência atualmente defende que o mundo não é mais uma grande máquina composta de partes formando uma
espécie de super engrenagem como pensava R. Déscartes. A teoria da física quântica revelou que os pósitrons e os
quartz podem ser matéria e podem ser simplesmente onda energética e que tudo depende das combinações. O
universo não passaria de um “evento de relações” que se estabelecem segundo probabilidades (daí a lei da
relatividade de Einstein). Veja-se, por exemplo, F. CAPRA. O Ponto de Mutação. S. Paulo: Cultrix, 1999, 19-91.
9 Muito feliz nesta perspetiva é o ícone de André Rublev, mostrando as três pessoas divinas formando um círculo, na
total diferença e semelhança ao mesmo tempo. Ver: V. TEPE, Nós somos um. Petrópolis: Vozes, 19957.
10 A Trindade é uma espécie de redescoberta da teologia hodierna. Até recentemente, a Trindade tinha pouca
significação porque se priorizava a explicação teológico-racional sempre árdua e insossa. Porém narrando-se os
“feitos da Trindade econômica” o estudo se torna apaixonante. Vejam-se, por exemplo: L. BOFF. A Trindade é a
Melhor Comunidade e A Trindade e a Sociedade. De Bruno FORTE. A Trindade na história e A Trindade para
Ateus. R. MUGNOZ. O Deus dos Cristãos, etc.
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estabelecer reais laços de proximidade com todos os outros sem a ninguém excluir. De
fato, a maior realização de alguém é sentida quando vivendo em profunda comunhão.
O contrário é igualmente significativo: quanto mais isolamento ou exclusão alguém vive,
maior experiência de frustração e de inferno.
b) Bíblica. A Bíblia é o livro que recolhe os grandes e paradigmáticos testemunhos da
experiência de Deus, sempre pluriforme e polifônica. Pessoas e grupos humanos ao
longo dos séculos foram descobrindo o “jeito de Deus ser e agir”. Melhor dito, ao longo
dos séculos, Deus foi se desvelando e mostrando seu rosto e coração ao povo que o
procurava. Estas experiências foram reunidas e tornadas “canônicas” pela comunidade.
Constituiu-se assim no livro “sagrado” por excelência, referencial para todos quantos
buscam a face do Deus vivo e verdadeiro. Para além dos grandes gêneros literários
(narrativas, orações, canções, reflexões sapienciais, escatologias...), através dos
inúmeros testemunhos de pessoas, emerge claro o rosto de Javé, o Deus de Jesus
Cristo e o seu projeto de salvação para todo o gênero humano e para o próprio planeta.
Uma vez que se busca sorver, não tanto os detalhes ou os pequenos aspectos
isoladamente, mas sim o grande fluido existencial qual sangue nas veias de um
organismo humano, a Bíblia se torna o referencial primeiro e insubstituível da
espiritualidade de um cristão. Importa, sobretudo, dar-se conta da direção da grande
correnteza de suas águas. Na Bíblia está manifesto o jeito de Deus ser e a maneira da
pessoa e dos povos responder-lhe existencialmente. Esta Palavra é qual Pão de Vida.
Uma espiritualidade em que predominam sobre a Bíblia as figuras (quando não
mistificadas e mitificadas) de santos e santas talvez se explique pela ausência de uma
sadia e correta presença e compreensão da Bíblia. Diz São Paulo que ninguém pode
pôr outro fundamento que “Nosso Senhor Jesus Cristo”. Ele é o Caminho, a Verdade e a
Vida (Jo14,6). Os santos são encarnações ou concreções do Evangelho, mas nunca a
globalidade e a profundidade do mesmo. Por isso a insubstituibilidade da palavra de
Deus que testemunha, discerne, conduz à fonte da vida.
c) Comunitária ou eclesial. O seguimento de Jesus Cristo não é feito individualmente.
Sempre será uma caminhada comunitária, coletiva. O próprio Deus salva como povo
(Lumen Gentium) e não individualmente, mesmo se valorizando a pessoa concreta. São
as comunidades nos seus diversos níveis que dão seguimento à prática de Jesus Cristo
– assim testemunha a Bíblia. Da mesma forma que a obra da salvação é feita
comunitariamente pelo Deus-Comunidade, assim também a resposta a esta proposta
salvífica deverá ser sempre dada comunitariamente.
A espiritualidade cristã supõe que a pessoa participe do processo salvífico
operado pelas comunidades. É, pois, fundamental que a pessoa, no seu processo de
seguimento de Jesus Cristo, esteja aberta ao sopro do Espírito que fala e age na
comunidade. Os apelos expressos pela comunidade-igreja (CNBB, CRB, Congregação,
província, comunidade religiosa local, etc) precisam se tornar nossos apelos. Porém,
importa aqui ter clareza de que o Espírito Santo, infelizmente, pode ser barrado no seu
agir pela instituição e pelas pessoas que a representam e, portanto, que a verdadeira
obediência não se confunde com a mera submissão à instituição. Os Profetas, Jesus,
Francisco de Assis, os mártires atuais são exemplos de pessoas subversivas.
Quem vive a espiritualidade de modo individualista ou isolado deveria se
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questionar se vive a espiritualidade cristã, de Jesus Cristo. É insuficiente dizer “eu rezo
em casa, sozinho...”
d) Conflitiva. Outra característica da espiritualidade cristã é o de “ser conflitiva”.
Exatamente na perspectiva do que se vinha dizendo acima. A fidelidade a Deus vai
gerar oposição daqueles que não o acolhem. “A vida de Jesus foi uma pauleira do
nascimento à morte”, disse jocosamente Frei Betto. A proposta de Jesus desinstala, cria
insegurança, questiona, revoluciona. No entanto, a maioria das pessoas não suporta
viver nesta condição. Gostam de sombra e água fresca, de viver pacificamente.
Mormente os poderosos passam a agir em forte oposição, com o apoio da opinião
pública pelo domínio que têm sobre ela. Como magistralmente disse D. Helder Câmara:
“Quando dou pão aos pobres sou considerado santo; quanto pergunto porque os pobres
têm fome, sou chamado de comunista”.
Muitos pensam que viver uma espiritualidade profunda signifique “viver numa paz
absoluta sem ser incomodado por ninguém nem por nada”. Ao contrário Jesus afirmou
que quem o segue terá o cêntuplo de bens, mas com perseguições. A paz de Deus não
é quietismo e sim a sensação de estar-em-casa, de estar no rumo certo, de viver uma
presença que sustenta e encoraja. Se a espiritualidade pode ser até definida como
“combate espiritual”, não pode de fato ser imaginada como uma tranqüilidade
imperturbável. Convém lembrar de que o seguidor de Jesus Cristo caminha na
contramão da história, nada contra a correnteza. E por isso o conflito se torna inerente.
Diz Jesus: “Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem e, por causa de mim,
disserem todo o tipo de injúria. Fiquem felizes e contentes...” (Mt 5,11-12).
Quando Jesus fala na necessidade de tomar a cruz e seguí-lo (Mt 16,24) está
afirmando exatamente esta dimensão: assumir as contrariedade e oposições que
surgem da nova prática que, por vezes, podem custar o preço da vida. São João da
Cruz fala da noite da fé, pois nestes momentos o próprio Deus parece silenciar. A oitava
bem-aventurança parece ser o critério da fidelidade a Deus: “Bem-aventurados vós
quando fordes perseguidos e caluniados por causa do meu nome...” (Mt 5,11)
Quem não vive conflitos por causa de sua fé em Jesus Cristo deveria se
questionar seriamente sobre a autenticidade de sua vivência espiritual.
e) Libertadora. Esta é a boa notícia que a espiritualidade traz consigo. Deus vai
elevando as pessoas e os povos. Nosso Deus é um “Go’el”, um padrinho que resgata da
escravidão. E Ele o faz dando até o seu Filho (Jo 3,16). O povo bíblico fez a grande
experiência de Deus no processo do Êxodo, “sentindo Javé o resgatando de todo poder
opressor e conduzindo-o a uma terra onde corre leite e mel”.
De fato, quando mais alguém avança e progride no caminho da espiritualidade,
quanto mais consegue dar espaço para o Espírito agir, mais forte experimentará a
liberdade, quer a nível interior (de seus conflitos internos) quer a nível comunitário e
social. O cêntuplo que é dado ao seguidor de Cristo também é vivido em forma de
liberdade/libertação. A espiritualidade genuína leva a engajar-se no processo de dar
vida, de resgate da dignidade, de restabelecimento da justiça evangélica, de gerar vida
abundante para todos etc.
A espiritualidade genuína rompe as situações injustas, desaliena as pessoas para
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que possam ser autônomas e livres, conduz a uma dignificação crescente. Portanto
uma espiritualidade que mantenha as pessoas nos sofrimentos e situações contrárias à
plenitude de vida não é espiritualidade cristã. Jesus expulsava demônios, curava de
enfermidades, reintegrava os marginalizados, propunha novos relacionamentos sociais
e religiosos... Interessante observar que os maiores e melhores movimentos
revolucionários foram os realizados em nome de Deus, isto é, que tiveram a sabedoria
de se deixar conduzir pelo Espírito de Deus.
Uma espiritualidade de conformação às situações, que não leve a romper com
toda a forma de opressão e escravidão provavelmente não é genuinamente cristã.
f) Contemplativa. Por fim, outra característica genuína da espiritualidade é o de ser
contemplativa. Uma contemplação ativa, feita de profunda escuta dos mais leves
gemidos inefáveis do Espírito. Feita de um “olhar” calmo e atento para o caminho a
palmilhar. É uma contemplação que discerne os “sinais de Deus na história”. O
contemplativo sabe que Deus se manifesta sempre no presente que todos os recursos
de que dispomos (Bíblia, Igreja...) estão aí como auxiliares para descobrir a fala de Deus
no hoje da vida. Jesus foi este contemplativo que se valia profundamente da Palavra da
Bíblia, mas, ao mesmo tempo, que a ultrapassava com liberdade, pois seu ouvido
estava acima de tudo colado à vida do povo. O mártir argentino D. Henrique Angelleli
disse um dia, retomando Karl Barth: “O cristão precisa ter um ouvido na Bíblia e outro no
jornal para entender a Deus”. Para favorecer a contemplação é fundamental também
aprender a rezar de um modo não racional, com um mínimo de palavras, mais com o
ouvido, com o coração do que com a razão (esta, por vezes, pode se tornar um
verdadeiro empecilho).
O contemplativo se torna capaz de confrontar seu jeito de ser, de viver, de
trabalhar, de rezar com o jeito de ser, de viver e de trabalhar daquele que veio inaugurar
o Reino neste mundo. É evidente que isso exigirá tempo e dedicação, certa priorização
no organizar o cotidiano, mas jamais separação ou negação do engajamento. Quando
K. Rahner disse que o cristão do século futuro “ou será místico ou não será cristão”
certamente o pensava nesta perspectiva.
Importa, pois, viver o seguimento de Jesus Cristo nestas múltiplas dimensões e
tensões. É tarefa exigente. “Só os violentos entrarão no Reino”. A “porta é estreita”.
Devido ao dom da liberdade, o seguimento de Jesus Cristo, o viver sintonizado com o
Espírito de Deus será sempre uma pro-posta a exigir uma res-posta dada livremente.
Ela começa então com uma “de-cisão” clara, firme e corajosa. Ser cristão não é algo
que se faça sem certa violência, pois o mundo que nos circunda segue direção
contrária. Trata-se de estar “com Jesus na contramão”, como intitulou Frei Carlos
Mesters uma pequena obra sobre o seguimento de Jesus Cristo11.
Porto Alegre, 11.04.04 – Páscoa do Senhor e, nela, nossa Páscoa!
11 MESTERS, Carlos. Com Jesus na Contramão. São Paulo, Paulinas, 1995.