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Espiritualidade cristã e ação histórica
Por Prof. Maurício Abdalla
1. Espiritualidade sem dualismos
Em nossa ação pastoral, trabalhar a espiritualidade é algo particularmente
importante. Reduzir a vida religiosa aos seus aspectos racionais e doutrinários
ou à prática ritual nos faz incorrer em diversos riscos, estando o dogmatismo, o
fundamentalismo, a intolerância e o farisaísmo entre os principais. No entanto,
o trato com a espiritualidade não é algo fácil, em razão das compreensões
enviesadas acerca do que significa essa dimensão de nossa vida.
Afirmar a dificuldade de trabalhar a espiritualidade parece algo paradoxal em
nossos dias, visto que, aparentemente, há uma tendência espiritualizante
tomando conta de diversas expressões religiosas contemporâneas, mesmo em
movimentos internos ao cristianismo em geral e ao catolicismo em particular. O
aparente sucesso dessas expressões espiritualistas da fé, no entanto, reproduz
também uma compreensão distorcida da espiritualidade cristã.
O eixo da distorção pode ser encontrado em certo dualismo que caracteriza a
compreensão ocidental do mundo. Tendemos a compreender as coisas sob a
lógica do ou e temos dificuldade de pensar em termos de e. Explicando melhor:
sempre colocamos entre as coisas diferentes uma contradição que as
impossibilita de conviver juntas ou formar uma unidade dentro dessa diferença.
Por isso, dizemos que é “ou A ou B”, “ou uma coisa ou outra”. Se A e B forem
polos diferentes de alguma dimensão de nossa vida, dificilmente serão
entendidos como componentes de uma unidade. Ou seja, tendemos
comumente a não conceber a afirmação “A e B”, ou “uma coisa e outra,
formando uma unidade”.
Assim é com “teoria e prática”, “razão e experiência”, “oração e ação”, “carinho
e severidade”, “corpo e alma”, “espírito e matéria” etc. Essa tendência é tão
forte que, se fizermos uma experiência com uma criança, perguntando-lhe qual
é o contrário de sal, ela provavelmente responderá “açúcar”, quando na
verdade não há relação de oposição entre esses dois componentes — como
bem sabe quem lida com culinária.
Mesmo muitos daqueles que falam da necessidade de considerarmos sempre
as duas (ou mais) dimensões acabam buscando um desses polos para pôr o
peso maior e atribuir-lhe prioridade. Dessa forma fazemos, na verdade, uma
soma e não a composição de uma unidade. É como se colocássemos em um
mesmo recipiente água e óleo: eles ficam juntos, mas não se misturam e não
resultam em um componente unitário.
Essa forma de compreender as coisas chama-se dualismo. E ele tem efeitos
marcantes sobre a nossa compreensão da espiritualidade. Por isso, não raras
vezes ela é confundida com um momento específico de nossa vida, com uma
dimensão possível de ser isolada para ser desenvolvida com maior atenção e
até com exclusividade. Essa deve ser a razão pela qual a expectativa das
pessoas, quando há a proposta de trabalhar a espiritualidade, é de que se
venha a falar apenas de oração ou de momentos de meditação e contato direto
com Deus. Ocorre como se houvesse em nossa vida duas dimensões distintas,
independentes e até opostas: uma espiritual e outra material. Ou não é verdade
que, na nossa vida pastoral, muitas vezes se reduz espiritualidade a “retiros”,
“louvores”, “adoração” etc.? Quantas vezes também já não ouvimos a frase
“vamos esquecer o mundo para pensar em Deus”?
Essa concepção não se dá por acaso. Somos herdeiros de uma cosmovisão
dualista originada na Grécia antiga e reforçada pela filosofia moderna. Platão
foi um dos principais responsáveis na formação dessa visão, ao dividir a
realidade entre mundo material (imperfeito e singular) e mundo das ideias
(perfeito e universal) e afirmar que a alma está presa ao corpo por ter decaído,
por um processo de corrupção, do mundo das ideias no qual vivia para o
mundo material. O filósofo Renê Descartes, considerado o “pai” da filosofia
moderna, repetiu esse dualismo ao estabelecer uma realidade pensante
(imaterial, ligada à alma) distinta da realidade material (da qual faz parte o
nosso corpo). Essa visão dualista moderna é chamada de cartesiana, porque a
versão latina do nome de Descartes era Cartesius.
Como seres situados histórica e geograficamente, somos influenciados pela
visão de mundo predominante. Por isso, carregamos o dualismo platônico e
cartesiano em nossa consciência e acabamos por reproduzi-lo em nossa vida
religiosa.
Essa não era, no entanto, a visão do povo hebreu presente na Bíblia — a não
ser em alguns casos de influência da cultura grega. O livro da Sabedoria, por
exemplo, escrito aproximadamente no ano 50 a.C., manifesta forte influência
da concepção grega, pois foi escrito na Alexandria, em um período de
hegemonia da cultura grega — chamado de “helenístico”, visto que a Grécia
antiga se chamava Hélade. O autor escreve: “Um corpo corruptível torna
pesada a alma, e a tenda de terra oprime a mente pensativa” (Sb 9,15). Mas o
conjunto da concepção expressa nas Sagradas Escrituras não manifesta esse
tipo de dualismo. Pelo contrário, manifesta uma tendência unitária, que não
permite a separação de planos distintos, como corpo e alma ou religião e
realidade social e política do país.
Portanto, para os gregos (incluídos entre os “gentios” dos Atos dos Apóstolos),
corpo e alma ou matéria e espírito eram realidades totalmente distintas e
opostas. Nesse sentido, eles podiam falar de “coisas do corpo” (referindo-se a
uma realidade) e “coisas da alma” (referindo-se a outra totalmente diferente).
Falar em espírito, para os gregos, era falar só da alma, rejeitando qualquer
referência à realidade material.
Para os hebreus, no entanto, no meio dos quais Jesus viveu e se criou, e a
partir de onde se forjou a experiência de Deus que fundamenta o cristianismo,
não havia esse dualismo entre corpo e alma. A palavra espírito não queria dizer
uma realidade abstrata, independente do corpo. Espírito referia-se à totalidade
da realidade humana, em seus diversos aspectos: corpo, saúde, alimento,
oração, comportamento, relação com Deus, presença no mundo etc. Falar,
então, em espírito, para os judeus, era falar da totalidade da realidade humana,
que é a unidade do que costumamos considerar o lado espiritual e o lado
material.
Entendemos ser esse o motivo pelo qual Mateus, escrevendo para os judeus e
provavelmente na língua que eles falavam (depois traduzida para o grego), pôs
no seu Evangelho a seguinte frase do Sermão da Montanha: “Felizes os pobres
em espírito” (Mt 5,3). Já no Evangelho de Lucas, escrito para os gregos e no
seu idioma, lemos apenas a expressão: “Felizes os pobres” (Lc 6,20).
Se para os gregos fosse acrescentado “em espírito”, certamente a frase teria
mais ou menos o seguinte sentido: “Felizes os que, apenas na sua dimensão
espiritual, são pobres, independentemente de como sejam na vida material”.
Mas Lucas devia conhecer bem o sentido do ensinamento de Jesus e não quis
correr o risco de uma interpretação dualista de sua mensagem. Por isso
escreve aos gregos falando simplesmente dos “pobres”. Na concepção
hebraica, porém, a frase de Mateus assume o sentido da totalidade e deveria
ser interpretada mais ou menos assim: “Felizes os que são pobres na
totalidade do seu viver, os que são pobres materialmente, mas também
possuem o comportamento, o pensamento e as atitudes de pobre”.
Como a nossa sociedade atual é marcadamente influenciada pelo dualismo
platônico e cartesiano, temos a tendência de interpretar a palavra espírito, raiz
da palavra espiritualidade, como algo que se refere a uma realidade
independente do corpo, que não tem relações com a vida material. Ou, quando
tem, é apenas algo que “impulsiona” a nossa ação, como o elástico do
estilingue, que empurra a pedra e a lança longe, mas não a acompanha. O
grande desafio é percebermos a própria dimensão espiritual da ação.
Quando associamos espiritualidade apenas com retiros, isolamento, oração,
meditação, música suave, paisagens bucólicas, montanhas etc., deixamos de
ver que esses momentos orantes são, na realidade, apenas um momento
específico de algo maior: a espiritualidade como tal. Portanto, o primeiro passo
que devemos dar quando queremos construir a nossa espiritualidade cristã é
saber que, em seu fundamento, ela se refere a nossa vida como um todo. Ao
falarmos da espiritualidade de Jesus Cristo, não estamos nos referindo apenas
aos seus momentos de oração no Horto das Oliveiras, mas também às suas
ações concretas: a partilha do pão, as curas, a expulsão dos vendilhões do
templo, a coragem de enfrentar o terrível Herodes, Pilatos e o Sinédrio, as
denúncias mordazes à hipocrisia das autoridades políticas e religiosas etc. A
verdadeira espiritualidade cristã é aquela que nos leva ao seguimento dos
passos de Jesus, aquela que converte a nossa vida também na sua dimensão
ativa, e não simplesmente contemplativa.
2. Embarcando na espiritualidade
2.1. O vento e a vela
Em vez da metáfora do estilingue, podemos compreender a espiritualidade
como um barco a vela. O “espírito” é o que impulsiona, o que faz mover, porém
não como o elástico do estilingue, mas como o vento em relação ao barco. O
elástico não acompanha a pedra (esta segue sozinha depois do impulso), ao
passo que o vento se mantém durante toda a trajetória do barco, ou seja,
acompanha a navegação: se ele cessa, o barco para. Não é à toa que a
palavra espírito, na língua grega em que foi escrito o Novo Testamento,
é pneuma, que quer dizer: vento, ar. Essa relação da palavra espírito com
vento está também presente no hebraico e em outras línguas antigas.
Portanto, um elemento de nossa espiritualidade é o sopro do Espírito Santo, a
fonte do mistério que acompanha as pessoas de fé. Esse Espírito não se
define. Ele “sopra onde quer” e age até mesmo em quem não professa nenhum
tipo de religião. É mysterion, algo que a razão não alcança e nem deveria
tentar. Pertence àquilo que chamamos de “mística”, derivado da palavra
mistério. Em relação a ele devemos estar abertos mediante uma prática
meditativa que não reproduz a forma de nosso pensamento racional. A mística
se expressa pela poesia, pela música, pelas parábolas e metáforas ou pelo
silêncio que reconhece a nossa incapacidade de dizer o indizível. Não nos
abrimos ao Espírito Santo pela multiplicação das palavras nas orações (Mt 6,7)
ou pela frequência das práticas rituais, mas por um exercício meditativo que
busca contemplar o mistério com um mergulho que, iniciando-se dentro de nós
mesmos, estende-se a toda a criação.
As palavras de nossas orações têm apenas dimensão comunitária, pois põem
em comum, por meio da linguagem, a nossa experiência de Deus. O ser
humano se socializa pela linguagem e assim também o faz nas orações
coletivas. Mas as palavras não têm um fim em si mesmas, e a eficácia das
orações não está relacionada a sua expressão linguística. Além do mais, nos
momentos de oração individual, as palavras podem servir como eixo de
concentração, como “mantras” (a palavra mantra no sânscrito quer dizer
“instrumento para conduzir o pensamento”) usados por algumas religiões
orientais. Elas não são, portanto, instrumento de invocação do Espírito, na
forma como o são em muitas expressões da magia e de cultos fetichistas, mas
recursos que nos ajudam na concentração individual ou na partilha em
comunidade.
Se, seguindo a metáfora do barco a vela, o Espírito é o vento, nossa atitude
ante o mistério pode ser comparada à vela do barco. Se a hasteamos, estamos
prontos para receber o impulso do vento; se a recolhemos, o vento não deixa
de soprar, mas não somos capazes de receber o seu ímpeto. A dimensão
orante de nossa vida religiosa deve ser como o hastear de uma vela, que se
abre ao vento e se deixa por ele enlevar.
No entanto, o acolhimento do sopro do Espírito é ainda apenas uma dimensão
da espiritualidade, se queremos compreendê-la como uma totalidade e sem o
dualismo que marca a nossa concepção ocidental. Mesmo com vento e vela, o
barco pode se perder, atracar em portos estranhos e hostis, ou mesmo
encalhar em bancos de areia. É preciso conhecer o mar e ter uma bússola à
disposição.
2.2. O mar
O cristão age no mundo. Este mundo possui sempre determinada configuração
social, política e econômica que o caracteriza e é independente de nossa
vontade imediata. Conhecer este mundo é também uma exigência de nossa
espiritualidade. Não são poucas as ações de boa vontade que redundam em
práticas ineficazes justamente por desconhecimento dos mecanismos que
geram os problemas atacados. A ação ingênua de muitos cristãos acaba
servindo como reforço de um sistema de exclusão quando não se dirige para
as causas.
O Concílio Vaticano II exorta os cristãos a eliminarem “as causas dos males,
não só os efeitos” (Apostolicam Actuositatem, 8). Como, entretanto, atacar as
causas, se desconhecermos a estrutura sobre a qual se organiza a nossa
sociedade? Como agir segundo as exigências do Espírito impulsionador, se
não nos ocuparmos em entender o mundo no qual “navegamos”?
É nesse sentido que a encíclica de João Paulo II O Espírito Santo na vida da
Igreja e do mundo (Dominum et Vivificantem, 29) fala da manifestação do
Espírito Santo no mundo, compreendendo-o conforme a constituição
pastoral Gaudium et Spes: “O mundo dos homens, ou seja, a inteira família
humana, no contexto de todas aquelas realidades no meio das quais ela vive; o
mundo que é teatro da história do gênero humano, marcado pelos esforços do
homem, pelas suas derrotas e pelas suas vitórias (…)”, donde conclui a
encíclica que precisamos compreender a “situação do pecado no mundo
contemporâneo e também explicar sua essência, partindo de diversos pontos
de vista”.
Os que dizem que a espiritualidade deve nos afastar deste mundo para elevar-
nos a uma espécie de “reduto de anjos” na terra, onde os problemas de nossa
época são omitidos e onde não se fala de nada que pertença à “história dos
homens”, estão conduzindo multidões para longe da essência da
espiritualidade cristã. Há movimentos dentro do próprio catolicismo que se
habituaram a não misturar o louvor (que acreditam ser um momento específico
da vida interna da Igreja) com a nossa realidade social, política e econômica
(que seria um problema específico do “mundo”). Esta última acaba ficando,
quando muito, como um apêndice não obrigatório, reservado a momentos
específicos, como a reflexão da Campanha da Fraternidade durante a
Quaresma.
No entanto, o Concílio Vaticano II nos diz expressamente: “Habituem-se os
leigos a (…) trazer para a comunidade da Igreja os problemas próprios do
mundo e as questões relativas à salvação dos homens, para serem
examinados e resolvidos por trocas e consultas” (Apostolicam Actuositatem,
10).
Portanto, o estudo dos problemas de nossa época, relacionados a todos os
aspectos da presença humana na Terra, é outra dimensão que compõe a
espiritualidade, e não apenas uma curiosidade reservada a estudiosos. Para
vivenciar a sua espiritualidade, o cristão deve conhecer a estrutura social,
política, econômica e cultural de seu povo, tanto como um navegador deve
conhecer o mar em que navega.
2.3. A bússola
Por outro lado, apenas conhecer o mar não é suficiente. É preciso saber para
onde ir. Por isso precisamos da bússola. Não basta a consciência dos
problemas do mundo. Devemos ter claro o que fazer diante deles.
A fonte da espiritualidade cristã é a Bíblia, principalmente os Evangelhos.
Nessa fonte é que encontramos a direção para a qual o vento nos impele. A
Sagrada Escritura funciona como uma bússola, que nos indica para onde
devemos ir, movidos pelo sopro do Espírito. É ela que nos mostra, em diversas
passagens, que o contato com o divino e com o Espírito de Deus sempre tem
como consequência um engajamento histórico em favor da libertação do povo.
Nunca uma experiência de Deus na Bíblia teve como consequência apenas a
mudança individual, o êxtase ou simplesmente um encantamento íntimo com o
sagrado. Este tipo de experiência só levaria as pessoas a ter, no máximo, uma
relação intimista e individualista com Deus. A experiência espiritual, conforme a
Bíblia nos mostra, sempre é acompanhada de um compromisso coletivo de
ação na história — ou melhor, ela só se concretiza nesse compromisso.
Esse caráter histórico da espiritualidade está expresso tanto no Antigo quanto
no Novo Testamento. O êxtase da oração, o “rosto brilhante de Moisés”, a
transfiguração de Jesus, o arrebatamento místico etc., na tradição bíblica, são
todos momentos constituintes da espiritualidade, mas de maneira nenhuma a
esgotam.
O paradigma da experiência espiritual concebida como uma totalidade é a
experiência que Moisés faz de Deus, narrada no livro do Êxodo (3,1-12). Nessa
passagem, podemos distinguir três momentos básicos e fundamentais que,
somados em uma unidade, nos dão a noção do que seja espiritualidade.
No primeiro momento (1-6), Moisés tem a experiência de Deus por meio de um
sinal visível, mas incompreensível (a sarça ardente que não se consumia),
revelando a dimensão do mistério de sua manifestação. É a experiência mística
de Moisés, o qual, imediatamente, tem o sentimento profundo da sacralidade
desta revelação (estava pisando em lugar sagrado). Deus, então, se manifesta
em espírito (Moisés não podia olhar para Deus). Mas a experiência ainda não
está completa.
No segundo momento (7-10), Deus revela o objetivo de sua manifestação: não
era “converter” Moisés ou agraciá-lo com uma dádiva individual. Javé, o Deus
de Abraão, Isaac e Jacó, manifesta-se para acabar com a miséria, a opressão
e os sofrimentos do povo hebreu, mantido como escravo no Egito. A
manifestação do Espírito divino se revela comprometida com a história
concreta de um povo, cujo sofrimento se relacionava a uma estrutura
econômica poderosa (o Egito) e uma situação de submissão social a esse
poder (a escravidão). Moisés seria o instrumento da justiça de Deus. O sopro
do Espírito o conduziria a organizar o povo hebreu na luta contra a escravidão
e na conquista da nova terra, “fértil e espaçosa, onde corre leite e mel”. Isso
implicaria um conflito com as forças do faraó, manifestadas nos carros, cavalos
e cavaleiros. Era, na verdade, não uma concessão de momentos tranquilos
para Moisés, mas uma convocação para a luta.
Por fim, o terceiro momento (11-12) revela a verdadeira e completa experiência
de Deus: depois da libertação dos filhos de Israel, todos servirão a Deus na
montanha. É o retorno de Moisés a Deus, mas um retorno diferente. Moisés
não voltará sozinho nem na mesma situação que antes. Ele deve voltar com
todo o povo e numa situação de liberdade. Assim se completa o ciclo da
experiência espiritual, que é sempre coletiva e histórica. Começa em Deus e
volta para Deus, mas não sem antes passar pela história dos homens.
Apenas quando liberto de todas as cadeias da opressão e da exploração é que
o povo poderá ter a experiência completa de Deus. Não há como ter a
experiência plena de Deus sem um mundo transformado. Experimentar Deus
não é ação que se realiza fora da história ou apesar dela. Pelo contrário,
é experiência que se dá na história e através dela.
Essa mesma experiência em três etapas e encarnada na história humana
repete-se em Neemias. Após o exílio da Babilônia, os judeus voltaram para
Judá, mas viviam em situação extremamente miserável. As muralhas de
Jerusalém, símbolos da unidade judaica, estavam destruídas e os seus
habitantes viviam em condições de penúria, sob o domínio estrangeiro dos
persas e de uma elite judaica. Ao saber da situação em que se encontravam
seus irmãos, Neemias, que era copeiro do rei persa e vivia em situação
cômoda, prostrou-se diante de Javé e pôs-se a chorar, jejuar e rezar (Ne 1,1-
4).
Para muitos, hoje, a experiência espiritual terminaria aqui, na oração e no
jejum. São aqueles que apenas “rezam para os pobres”, “jejuam em
solidariedade aos que têm fome”, fazem “um dia de oração pelos
necessitados”, mas continuam suas vidas cômodas (como copeiros do rei),
como se o sofrimento dos irmãos fosse uma sina que Deus lhes impôs.
Neemias não se limitou a isso, pois sabia que o contato com Javé não poderia
restringir-se às palavras e a um sentimento individual de compaixão. O
descompasso entre a história humana e a vontade de Deus gerou nele
indignação profética e o levou a assumir a missão de reedificar as muralhas de
Jerusalém, na tentativa de construir um reino de justiça. Ele mesmo, junto com
o povo que amargava péssimas condições de vida, iria lutar para isso. Esse foi
o compromisso assumido com Javé no cerne da experiência mística e espiritual
de Neemias (Ne 1,5-2,5). Para isso, ele teve de denunciar a opressão
estrangeira e a dívida externa, fazendo oposição às autoridades exploradoras
do povo e depois procurando estabelecer um governo com igualdade e
transparência.
Após essa ação na história, Neemias volta-se, com o povo, para Deus,
concluindo mais um ciclo de uma experiência espiritual. No capítulo 9
encontramos a belíssima e completa oração que resgata toda a unidade de
Javé e a história dos judeus. Uma verdadeira história de amor entre Deus e a
humanidade.
A mesma história se repete nos livros dos Macabeus (I e II), em uma luta
iniciada por Matatias e depois concluída por seus filhos, a qual legou aos
judeus um período de autonomia até caírem, em 63 a.C., sob o domínio do
império romano.
Enfim, a Bíblia é de uma clareza inconfundível: experimentar Deus e agir na
história são momentos de um mesmo processo. Quando refletimos sobre os
problemas do País (desemprego, saúde, reforma agrária, dívida externa e
interna, Alca etc.) e para eles buscamos soluções por meio de nossas
organizações e lutas populares, estamos sendo tão “espirituais” quanto nos
retiros ou momentos de oração diante do sacrário. Essa afirmação pode chocar
algumas pessoas, habituadas a conceber a espiritualidade de forma dualista.
Porém, ela não quer dizer que uma coisa substitua ou elimine a outra, mas tão
somente que as duas se completam e fazem parte de uma mesma dimensão
integral do ser humano, que estamos chamando de espiritualidade.
A bússola nos aponta para uma ação transformadora. Não podemos trilhar o
caminho do fatalismo, da naturalização dos problemas sociais ou da esperança
pseudoapocalíptica de que o mundo será resgatado em breve sem que
precisemos trabalhar para isso, restando-nos apenas aguardar a vinda de
Jesus.
Quando Cristo anuncia sua missão (Lc 4,14-19), deixa clara a vinculação de
sua atividade com a perspectiva integradora contida no Antigo Testamento.
Primeiro por citar um trecho de Isaías e, segundo, por não fazer nenhum
discurso espiritualista ou de arrebatamento sobrenatural. Sua missão era dar “a
boa notícia para os pobres; proclamar a libertação dos presos e aos cegos a
recuperação da vista; libertar os oprimidos e proclamar o ano de graça do
Senhor”. A boa notícia (em grego euaggélion, de onde vem a palavra
“evangelho”) que deve ser levada aos pobres é o mundo novo onde os
humildes serão exaltados e os poderosos perderão seus tronos; onde os
famintos serão saciados de bens e os ricos despedidos sem nada (Lc 1,52-53);
onde a ordem social será invertida e os pobres encontrarão a sua felicidade,
junto com aqueles que têm fome e sede de justiça e os que promovem a paz
(Mt 5,1-12; Lc 6,20-26).
No entanto, todas essas ações concretas não são partes separadas do plano
de atividades de Jesus, mas integram sua espiritualidade. Por isso ele inicia o
anúncio de seu projeto dizendo: “O Espírito do Senhor está sobre mim…”. É o
Espírito quem o impulsiona a realizar tais ações.
Outro exemplo da unidade inexorável entre espiritualidade e ação histórica nos
é dado pelos Atos dos Apóstolos. A história desse livro — que em uma
tradução literal deveria chamar-se “Prática” dos Apóstolos (do grego práxeis
apostolon) — tem dois momentos iniciais decisivos para o restante da história.
O primeiro ocorre quando os discípulos, advertidos por homens de branco,
deixaram de contemplar os céus para o qual Jesus havia subido (At 1,9-11).
Caso continuassem a “olhar o céu”, não iniciariam a sua missão na terra. Por
isso a advertência feita por misteriosos “homens vestidos de branco”, que
apontaram a consequência terrena da experiência da divindade de Jesus. O
outro momento é a vinda do Espírito Santo (At 2,1-4). Mesmo conscientes de
sua missão no mundo, somente quando recebem o sopro do Espírito, que veio
com “um barulho como o sopro de um forte vendaval”, é que os discípulos
adquirem a coragem para arriscar a vida na ação no meio de uma sociedade
injusta e opressora.
Repletos do Espírito, eles puderam sair da casa em que se escondiam por
medo das autoridades judaicas. Enfrentaram corajosamente os fariseus e
doutores da lei, pregaram uma nova ordem, formaram comunidades em que
todos tinham tudo em comum, foram levados às prisões e ao martírio. Tudo
como parte de sua espiritualidade. Foi a ação do Espírito que tornou possível a
prática dos apóstolos.
3. Terra à vista
A possibilidade de um novo mundo, a qual deve nutrir a esperança do cristão,
deve ser vista como expectativa que tem também uma dimensão terrena,
conforme nos faz ver Isaías (65,17-25). O profeta nos fala de que tipo de justiça
é preciso construir no mundo. Ou seja, a Bíblia nos aponta o destino, a “terra”
em que devemos aportar o nosso barco. Não é qualquer sociedade que nossa
espiritualidade nos faz desejar, mas uma que satisfaça as condições da justiça.
E isso pressupõe o fim da exploração (“Construirão casas e nelas habitarão,
plantarão vinhas e comerão seus frutos; ninguém construirá para outro morar,
ninguém plantará para outro comer”), saúde e vida plena para todos (“Aí não
haverá mais crianças que vivam alguns dias apenas, nem velhos que não
cheguem a completar seus dias”) e o fim das diferenças sociais (“O lobo e o
cordeiro pastarão juntos, o leão comerá capim junto com o boi”). Há evidente
contradição entre esse projeto e o mundo atual.
Fazer isso no mundo de hoje pressupõe grande coragem e grande esperança.
Lutaremos com poderes aparentemente inabaláveis, montados sobre
estruturas imperiais e com tentáculos espalhados por todos os lados —
também em nossas consciências. Por isso é uma tarefa “espiritual”. Apenas
com uma espiritualidade forte podemos escapar da tentação do desespero, do
medo, do sentimento de impotência e do fatalismo para reconstruir nossas
utopias.
Quando abandonamos a visão dualista, Espírito e prática libertadora,
espiritualidade e ação histórica, plano divino e realidade humana, alma e corpo
etc. passam a ser compreendidos em uma unidade — não mais como polos
opostos nem como partes que se tocam eventualmente. A expressão máxima
dessa unidade está na encarnação do Verbo. O Logos (palavra que João usa
para se referir ao que traduzimos por “Verbo”), princípio imaterial, razão do
mundo, sentido último das coisas, torna-se “carne” e “habita entre nós” (Jo
1,14). O sentido da espiritualidade cristã está em reproduzir esse evento em
todas as dimensões da nossa vida. Nenhuma espiritualidade que procura
desencarnar o evangelho ou simular um mundo angélico particular interno à
Igreja ou a movimentos espirituais, onde só existe alegria e onde se anuncia
“‘paz!’ quando não existe paz” (Jr 6,14), pode reivindicar ser herdeira da
tradição de Jesus Cristo.
O desafio que cabe àqueles que querem viver autêntica espiritualidade cristã
está em concretizar o Espírito e espiritualizar a ação concreta, estendendo a
experiência de Deus à nossa história real. Só assim poderemos experimentar a
Deus em sua plenitude.
Prof. Maurício Abdalla

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  • 1. Espiritualidade cristã e ação histórica Por Prof. Maurício Abdalla 1. Espiritualidade sem dualismos Em nossa ação pastoral, trabalhar a espiritualidade é algo particularmente importante. Reduzir a vida religiosa aos seus aspectos racionais e doutrinários ou à prática ritual nos faz incorrer em diversos riscos, estando o dogmatismo, o fundamentalismo, a intolerância e o farisaísmo entre os principais. No entanto, o trato com a espiritualidade não é algo fácil, em razão das compreensões enviesadas acerca do que significa essa dimensão de nossa vida. Afirmar a dificuldade de trabalhar a espiritualidade parece algo paradoxal em nossos dias, visto que, aparentemente, há uma tendência espiritualizante tomando conta de diversas expressões religiosas contemporâneas, mesmo em movimentos internos ao cristianismo em geral e ao catolicismo em particular. O aparente sucesso dessas expressões espiritualistas da fé, no entanto, reproduz também uma compreensão distorcida da espiritualidade cristã. O eixo da distorção pode ser encontrado em certo dualismo que caracteriza a compreensão ocidental do mundo. Tendemos a compreender as coisas sob a lógica do ou e temos dificuldade de pensar em termos de e. Explicando melhor: sempre colocamos entre as coisas diferentes uma contradição que as impossibilita de conviver juntas ou formar uma unidade dentro dessa diferença. Por isso, dizemos que é “ou A ou B”, “ou uma coisa ou outra”. Se A e B forem polos diferentes de alguma dimensão de nossa vida, dificilmente serão entendidos como componentes de uma unidade. Ou seja, tendemos comumente a não conceber a afirmação “A e B”, ou “uma coisa e outra, formando uma unidade”. Assim é com “teoria e prática”, “razão e experiência”, “oração e ação”, “carinho e severidade”, “corpo e alma”, “espírito e matéria” etc. Essa tendência é tão forte que, se fizermos uma experiência com uma criança, perguntando-lhe qual é o contrário de sal, ela provavelmente responderá “açúcar”, quando na verdade não há relação de oposição entre esses dois componentes — como bem sabe quem lida com culinária. Mesmo muitos daqueles que falam da necessidade de considerarmos sempre as duas (ou mais) dimensões acabam buscando um desses polos para pôr o peso maior e atribuir-lhe prioridade. Dessa forma fazemos, na verdade, uma soma e não a composição de uma unidade. É como se colocássemos em um mesmo recipiente água e óleo: eles ficam juntos, mas não se misturam e não resultam em um componente unitário. Essa forma de compreender as coisas chama-se dualismo. E ele tem efeitos marcantes sobre a nossa compreensão da espiritualidade. Por isso, não raras vezes ela é confundida com um momento específico de nossa vida, com uma dimensão possível de ser isolada para ser desenvolvida com maior atenção e até com exclusividade. Essa deve ser a razão pela qual a expectativa das pessoas, quando há a proposta de trabalhar a espiritualidade, é de que se
  • 2. venha a falar apenas de oração ou de momentos de meditação e contato direto com Deus. Ocorre como se houvesse em nossa vida duas dimensões distintas, independentes e até opostas: uma espiritual e outra material. Ou não é verdade que, na nossa vida pastoral, muitas vezes se reduz espiritualidade a “retiros”, “louvores”, “adoração” etc.? Quantas vezes também já não ouvimos a frase “vamos esquecer o mundo para pensar em Deus”? Essa concepção não se dá por acaso. Somos herdeiros de uma cosmovisão dualista originada na Grécia antiga e reforçada pela filosofia moderna. Platão foi um dos principais responsáveis na formação dessa visão, ao dividir a realidade entre mundo material (imperfeito e singular) e mundo das ideias (perfeito e universal) e afirmar que a alma está presa ao corpo por ter decaído, por um processo de corrupção, do mundo das ideias no qual vivia para o mundo material. O filósofo Renê Descartes, considerado o “pai” da filosofia moderna, repetiu esse dualismo ao estabelecer uma realidade pensante (imaterial, ligada à alma) distinta da realidade material (da qual faz parte o nosso corpo). Essa visão dualista moderna é chamada de cartesiana, porque a versão latina do nome de Descartes era Cartesius. Como seres situados histórica e geograficamente, somos influenciados pela visão de mundo predominante. Por isso, carregamos o dualismo platônico e cartesiano em nossa consciência e acabamos por reproduzi-lo em nossa vida religiosa. Essa não era, no entanto, a visão do povo hebreu presente na Bíblia — a não ser em alguns casos de influência da cultura grega. O livro da Sabedoria, por exemplo, escrito aproximadamente no ano 50 a.C., manifesta forte influência da concepção grega, pois foi escrito na Alexandria, em um período de hegemonia da cultura grega — chamado de “helenístico”, visto que a Grécia antiga se chamava Hélade. O autor escreve: “Um corpo corruptível torna pesada a alma, e a tenda de terra oprime a mente pensativa” (Sb 9,15). Mas o conjunto da concepção expressa nas Sagradas Escrituras não manifesta esse tipo de dualismo. Pelo contrário, manifesta uma tendência unitária, que não permite a separação de planos distintos, como corpo e alma ou religião e realidade social e política do país. Portanto, para os gregos (incluídos entre os “gentios” dos Atos dos Apóstolos), corpo e alma ou matéria e espírito eram realidades totalmente distintas e opostas. Nesse sentido, eles podiam falar de “coisas do corpo” (referindo-se a uma realidade) e “coisas da alma” (referindo-se a outra totalmente diferente). Falar em espírito, para os gregos, era falar só da alma, rejeitando qualquer referência à realidade material. Para os hebreus, no entanto, no meio dos quais Jesus viveu e se criou, e a partir de onde se forjou a experiência de Deus que fundamenta o cristianismo, não havia esse dualismo entre corpo e alma. A palavra espírito não queria dizer uma realidade abstrata, independente do corpo. Espírito referia-se à totalidade da realidade humana, em seus diversos aspectos: corpo, saúde, alimento, oração, comportamento, relação com Deus, presença no mundo etc. Falar,
  • 3. então, em espírito, para os judeus, era falar da totalidade da realidade humana, que é a unidade do que costumamos considerar o lado espiritual e o lado material. Entendemos ser esse o motivo pelo qual Mateus, escrevendo para os judeus e provavelmente na língua que eles falavam (depois traduzida para o grego), pôs no seu Evangelho a seguinte frase do Sermão da Montanha: “Felizes os pobres em espírito” (Mt 5,3). Já no Evangelho de Lucas, escrito para os gregos e no seu idioma, lemos apenas a expressão: “Felizes os pobres” (Lc 6,20). Se para os gregos fosse acrescentado “em espírito”, certamente a frase teria mais ou menos o seguinte sentido: “Felizes os que, apenas na sua dimensão espiritual, são pobres, independentemente de como sejam na vida material”. Mas Lucas devia conhecer bem o sentido do ensinamento de Jesus e não quis correr o risco de uma interpretação dualista de sua mensagem. Por isso escreve aos gregos falando simplesmente dos “pobres”. Na concepção hebraica, porém, a frase de Mateus assume o sentido da totalidade e deveria ser interpretada mais ou menos assim: “Felizes os que são pobres na totalidade do seu viver, os que são pobres materialmente, mas também possuem o comportamento, o pensamento e as atitudes de pobre”. Como a nossa sociedade atual é marcadamente influenciada pelo dualismo platônico e cartesiano, temos a tendência de interpretar a palavra espírito, raiz da palavra espiritualidade, como algo que se refere a uma realidade independente do corpo, que não tem relações com a vida material. Ou, quando tem, é apenas algo que “impulsiona” a nossa ação, como o elástico do estilingue, que empurra a pedra e a lança longe, mas não a acompanha. O grande desafio é percebermos a própria dimensão espiritual da ação. Quando associamos espiritualidade apenas com retiros, isolamento, oração, meditação, música suave, paisagens bucólicas, montanhas etc., deixamos de ver que esses momentos orantes são, na realidade, apenas um momento específico de algo maior: a espiritualidade como tal. Portanto, o primeiro passo que devemos dar quando queremos construir a nossa espiritualidade cristã é saber que, em seu fundamento, ela se refere a nossa vida como um todo. Ao falarmos da espiritualidade de Jesus Cristo, não estamos nos referindo apenas aos seus momentos de oração no Horto das Oliveiras, mas também às suas ações concretas: a partilha do pão, as curas, a expulsão dos vendilhões do templo, a coragem de enfrentar o terrível Herodes, Pilatos e o Sinédrio, as denúncias mordazes à hipocrisia das autoridades políticas e religiosas etc. A verdadeira espiritualidade cristã é aquela que nos leva ao seguimento dos passos de Jesus, aquela que converte a nossa vida também na sua dimensão ativa, e não simplesmente contemplativa. 2. Embarcando na espiritualidade 2.1. O vento e a vela Em vez da metáfora do estilingue, podemos compreender a espiritualidade como um barco a vela. O “espírito” é o que impulsiona, o que faz mover, porém
  • 4. não como o elástico do estilingue, mas como o vento em relação ao barco. O elástico não acompanha a pedra (esta segue sozinha depois do impulso), ao passo que o vento se mantém durante toda a trajetória do barco, ou seja, acompanha a navegação: se ele cessa, o barco para. Não é à toa que a palavra espírito, na língua grega em que foi escrito o Novo Testamento, é pneuma, que quer dizer: vento, ar. Essa relação da palavra espírito com vento está também presente no hebraico e em outras línguas antigas. Portanto, um elemento de nossa espiritualidade é o sopro do Espírito Santo, a fonte do mistério que acompanha as pessoas de fé. Esse Espírito não se define. Ele “sopra onde quer” e age até mesmo em quem não professa nenhum tipo de religião. É mysterion, algo que a razão não alcança e nem deveria tentar. Pertence àquilo que chamamos de “mística”, derivado da palavra mistério. Em relação a ele devemos estar abertos mediante uma prática meditativa que não reproduz a forma de nosso pensamento racional. A mística se expressa pela poesia, pela música, pelas parábolas e metáforas ou pelo silêncio que reconhece a nossa incapacidade de dizer o indizível. Não nos abrimos ao Espírito Santo pela multiplicação das palavras nas orações (Mt 6,7) ou pela frequência das práticas rituais, mas por um exercício meditativo que busca contemplar o mistério com um mergulho que, iniciando-se dentro de nós mesmos, estende-se a toda a criação. As palavras de nossas orações têm apenas dimensão comunitária, pois põem em comum, por meio da linguagem, a nossa experiência de Deus. O ser humano se socializa pela linguagem e assim também o faz nas orações coletivas. Mas as palavras não têm um fim em si mesmas, e a eficácia das orações não está relacionada a sua expressão linguística. Além do mais, nos momentos de oração individual, as palavras podem servir como eixo de concentração, como “mantras” (a palavra mantra no sânscrito quer dizer “instrumento para conduzir o pensamento”) usados por algumas religiões orientais. Elas não são, portanto, instrumento de invocação do Espírito, na forma como o são em muitas expressões da magia e de cultos fetichistas, mas recursos que nos ajudam na concentração individual ou na partilha em comunidade. Se, seguindo a metáfora do barco a vela, o Espírito é o vento, nossa atitude ante o mistério pode ser comparada à vela do barco. Se a hasteamos, estamos prontos para receber o impulso do vento; se a recolhemos, o vento não deixa de soprar, mas não somos capazes de receber o seu ímpeto. A dimensão orante de nossa vida religiosa deve ser como o hastear de uma vela, que se abre ao vento e se deixa por ele enlevar. No entanto, o acolhimento do sopro do Espírito é ainda apenas uma dimensão da espiritualidade, se queremos compreendê-la como uma totalidade e sem o dualismo que marca a nossa concepção ocidental. Mesmo com vento e vela, o barco pode se perder, atracar em portos estranhos e hostis, ou mesmo encalhar em bancos de areia. É preciso conhecer o mar e ter uma bússola à disposição.
  • 5. 2.2. O mar O cristão age no mundo. Este mundo possui sempre determinada configuração social, política e econômica que o caracteriza e é independente de nossa vontade imediata. Conhecer este mundo é também uma exigência de nossa espiritualidade. Não são poucas as ações de boa vontade que redundam em práticas ineficazes justamente por desconhecimento dos mecanismos que geram os problemas atacados. A ação ingênua de muitos cristãos acaba servindo como reforço de um sistema de exclusão quando não se dirige para as causas. O Concílio Vaticano II exorta os cristãos a eliminarem “as causas dos males, não só os efeitos” (Apostolicam Actuositatem, 8). Como, entretanto, atacar as causas, se desconhecermos a estrutura sobre a qual se organiza a nossa sociedade? Como agir segundo as exigências do Espírito impulsionador, se não nos ocuparmos em entender o mundo no qual “navegamos”? É nesse sentido que a encíclica de João Paulo II O Espírito Santo na vida da Igreja e do mundo (Dominum et Vivificantem, 29) fala da manifestação do Espírito Santo no mundo, compreendendo-o conforme a constituição pastoral Gaudium et Spes: “O mundo dos homens, ou seja, a inteira família humana, no contexto de todas aquelas realidades no meio das quais ela vive; o mundo que é teatro da história do gênero humano, marcado pelos esforços do homem, pelas suas derrotas e pelas suas vitórias (…)”, donde conclui a encíclica que precisamos compreender a “situação do pecado no mundo contemporâneo e também explicar sua essência, partindo de diversos pontos de vista”. Os que dizem que a espiritualidade deve nos afastar deste mundo para elevar- nos a uma espécie de “reduto de anjos” na terra, onde os problemas de nossa época são omitidos e onde não se fala de nada que pertença à “história dos homens”, estão conduzindo multidões para longe da essência da espiritualidade cristã. Há movimentos dentro do próprio catolicismo que se habituaram a não misturar o louvor (que acreditam ser um momento específico da vida interna da Igreja) com a nossa realidade social, política e econômica (que seria um problema específico do “mundo”). Esta última acaba ficando, quando muito, como um apêndice não obrigatório, reservado a momentos específicos, como a reflexão da Campanha da Fraternidade durante a Quaresma. No entanto, o Concílio Vaticano II nos diz expressamente: “Habituem-se os leigos a (…) trazer para a comunidade da Igreja os problemas próprios do mundo e as questões relativas à salvação dos homens, para serem examinados e resolvidos por trocas e consultas” (Apostolicam Actuositatem, 10). Portanto, o estudo dos problemas de nossa época, relacionados a todos os aspectos da presença humana na Terra, é outra dimensão que compõe a espiritualidade, e não apenas uma curiosidade reservada a estudiosos. Para vivenciar a sua espiritualidade, o cristão deve conhecer a estrutura social, política, econômica e cultural de seu povo, tanto como um navegador deve conhecer o mar em que navega.
  • 6. 2.3. A bússola Por outro lado, apenas conhecer o mar não é suficiente. É preciso saber para onde ir. Por isso precisamos da bússola. Não basta a consciência dos problemas do mundo. Devemos ter claro o que fazer diante deles. A fonte da espiritualidade cristã é a Bíblia, principalmente os Evangelhos. Nessa fonte é que encontramos a direção para a qual o vento nos impele. A Sagrada Escritura funciona como uma bússola, que nos indica para onde devemos ir, movidos pelo sopro do Espírito. É ela que nos mostra, em diversas passagens, que o contato com o divino e com o Espírito de Deus sempre tem como consequência um engajamento histórico em favor da libertação do povo. Nunca uma experiência de Deus na Bíblia teve como consequência apenas a mudança individual, o êxtase ou simplesmente um encantamento íntimo com o sagrado. Este tipo de experiência só levaria as pessoas a ter, no máximo, uma relação intimista e individualista com Deus. A experiência espiritual, conforme a Bíblia nos mostra, sempre é acompanhada de um compromisso coletivo de ação na história — ou melhor, ela só se concretiza nesse compromisso. Esse caráter histórico da espiritualidade está expresso tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. O êxtase da oração, o “rosto brilhante de Moisés”, a transfiguração de Jesus, o arrebatamento místico etc., na tradição bíblica, são todos momentos constituintes da espiritualidade, mas de maneira nenhuma a esgotam. O paradigma da experiência espiritual concebida como uma totalidade é a experiência que Moisés faz de Deus, narrada no livro do Êxodo (3,1-12). Nessa passagem, podemos distinguir três momentos básicos e fundamentais que, somados em uma unidade, nos dão a noção do que seja espiritualidade. No primeiro momento (1-6), Moisés tem a experiência de Deus por meio de um sinal visível, mas incompreensível (a sarça ardente que não se consumia), revelando a dimensão do mistério de sua manifestação. É a experiência mística de Moisés, o qual, imediatamente, tem o sentimento profundo da sacralidade desta revelação (estava pisando em lugar sagrado). Deus, então, se manifesta em espírito (Moisés não podia olhar para Deus). Mas a experiência ainda não está completa. No segundo momento (7-10), Deus revela o objetivo de sua manifestação: não era “converter” Moisés ou agraciá-lo com uma dádiva individual. Javé, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, manifesta-se para acabar com a miséria, a opressão e os sofrimentos do povo hebreu, mantido como escravo no Egito. A manifestação do Espírito divino se revela comprometida com a história concreta de um povo, cujo sofrimento se relacionava a uma estrutura econômica poderosa (o Egito) e uma situação de submissão social a esse poder (a escravidão). Moisés seria o instrumento da justiça de Deus. O sopro do Espírito o conduziria a organizar o povo hebreu na luta contra a escravidão e na conquista da nova terra, “fértil e espaçosa, onde corre leite e mel”. Isso implicaria um conflito com as forças do faraó, manifestadas nos carros, cavalos
  • 7. e cavaleiros. Era, na verdade, não uma concessão de momentos tranquilos para Moisés, mas uma convocação para a luta. Por fim, o terceiro momento (11-12) revela a verdadeira e completa experiência de Deus: depois da libertação dos filhos de Israel, todos servirão a Deus na montanha. É o retorno de Moisés a Deus, mas um retorno diferente. Moisés não voltará sozinho nem na mesma situação que antes. Ele deve voltar com todo o povo e numa situação de liberdade. Assim se completa o ciclo da experiência espiritual, que é sempre coletiva e histórica. Começa em Deus e volta para Deus, mas não sem antes passar pela história dos homens. Apenas quando liberto de todas as cadeias da opressão e da exploração é que o povo poderá ter a experiência completa de Deus. Não há como ter a experiência plena de Deus sem um mundo transformado. Experimentar Deus não é ação que se realiza fora da história ou apesar dela. Pelo contrário, é experiência que se dá na história e através dela. Essa mesma experiência em três etapas e encarnada na história humana repete-se em Neemias. Após o exílio da Babilônia, os judeus voltaram para Judá, mas viviam em situação extremamente miserável. As muralhas de Jerusalém, símbolos da unidade judaica, estavam destruídas e os seus habitantes viviam em condições de penúria, sob o domínio estrangeiro dos persas e de uma elite judaica. Ao saber da situação em que se encontravam seus irmãos, Neemias, que era copeiro do rei persa e vivia em situação cômoda, prostrou-se diante de Javé e pôs-se a chorar, jejuar e rezar (Ne 1,1- 4). Para muitos, hoje, a experiência espiritual terminaria aqui, na oração e no jejum. São aqueles que apenas “rezam para os pobres”, “jejuam em solidariedade aos que têm fome”, fazem “um dia de oração pelos necessitados”, mas continuam suas vidas cômodas (como copeiros do rei), como se o sofrimento dos irmãos fosse uma sina que Deus lhes impôs. Neemias não se limitou a isso, pois sabia que o contato com Javé não poderia restringir-se às palavras e a um sentimento individual de compaixão. O descompasso entre a história humana e a vontade de Deus gerou nele indignação profética e o levou a assumir a missão de reedificar as muralhas de Jerusalém, na tentativa de construir um reino de justiça. Ele mesmo, junto com o povo que amargava péssimas condições de vida, iria lutar para isso. Esse foi o compromisso assumido com Javé no cerne da experiência mística e espiritual de Neemias (Ne 1,5-2,5). Para isso, ele teve de denunciar a opressão estrangeira e a dívida externa, fazendo oposição às autoridades exploradoras do povo e depois procurando estabelecer um governo com igualdade e transparência. Após essa ação na história, Neemias volta-se, com o povo, para Deus, concluindo mais um ciclo de uma experiência espiritual. No capítulo 9 encontramos a belíssima e completa oração que resgata toda a unidade de Javé e a história dos judeus. Uma verdadeira história de amor entre Deus e a humanidade.
  • 8. A mesma história se repete nos livros dos Macabeus (I e II), em uma luta iniciada por Matatias e depois concluída por seus filhos, a qual legou aos judeus um período de autonomia até caírem, em 63 a.C., sob o domínio do império romano. Enfim, a Bíblia é de uma clareza inconfundível: experimentar Deus e agir na história são momentos de um mesmo processo. Quando refletimos sobre os problemas do País (desemprego, saúde, reforma agrária, dívida externa e interna, Alca etc.) e para eles buscamos soluções por meio de nossas organizações e lutas populares, estamos sendo tão “espirituais” quanto nos retiros ou momentos de oração diante do sacrário. Essa afirmação pode chocar algumas pessoas, habituadas a conceber a espiritualidade de forma dualista. Porém, ela não quer dizer que uma coisa substitua ou elimine a outra, mas tão somente que as duas se completam e fazem parte de uma mesma dimensão integral do ser humano, que estamos chamando de espiritualidade. A bússola nos aponta para uma ação transformadora. Não podemos trilhar o caminho do fatalismo, da naturalização dos problemas sociais ou da esperança pseudoapocalíptica de que o mundo será resgatado em breve sem que precisemos trabalhar para isso, restando-nos apenas aguardar a vinda de Jesus. Quando Cristo anuncia sua missão (Lc 4,14-19), deixa clara a vinculação de sua atividade com a perspectiva integradora contida no Antigo Testamento. Primeiro por citar um trecho de Isaías e, segundo, por não fazer nenhum discurso espiritualista ou de arrebatamento sobrenatural. Sua missão era dar “a boa notícia para os pobres; proclamar a libertação dos presos e aos cegos a recuperação da vista; libertar os oprimidos e proclamar o ano de graça do Senhor”. A boa notícia (em grego euaggélion, de onde vem a palavra “evangelho”) que deve ser levada aos pobres é o mundo novo onde os humildes serão exaltados e os poderosos perderão seus tronos; onde os famintos serão saciados de bens e os ricos despedidos sem nada (Lc 1,52-53); onde a ordem social será invertida e os pobres encontrarão a sua felicidade, junto com aqueles que têm fome e sede de justiça e os que promovem a paz (Mt 5,1-12; Lc 6,20-26). No entanto, todas essas ações concretas não são partes separadas do plano de atividades de Jesus, mas integram sua espiritualidade. Por isso ele inicia o anúncio de seu projeto dizendo: “O Espírito do Senhor está sobre mim…”. É o Espírito quem o impulsiona a realizar tais ações. Outro exemplo da unidade inexorável entre espiritualidade e ação histórica nos é dado pelos Atos dos Apóstolos. A história desse livro — que em uma tradução literal deveria chamar-se “Prática” dos Apóstolos (do grego práxeis apostolon) — tem dois momentos iniciais decisivos para o restante da história. O primeiro ocorre quando os discípulos, advertidos por homens de branco, deixaram de contemplar os céus para o qual Jesus havia subido (At 1,9-11). Caso continuassem a “olhar o céu”, não iniciariam a sua missão na terra. Por isso a advertência feita por misteriosos “homens vestidos de branco”, que apontaram a consequência terrena da experiência da divindade de Jesus. O
  • 9. outro momento é a vinda do Espírito Santo (At 2,1-4). Mesmo conscientes de sua missão no mundo, somente quando recebem o sopro do Espírito, que veio com “um barulho como o sopro de um forte vendaval”, é que os discípulos adquirem a coragem para arriscar a vida na ação no meio de uma sociedade injusta e opressora. Repletos do Espírito, eles puderam sair da casa em que se escondiam por medo das autoridades judaicas. Enfrentaram corajosamente os fariseus e doutores da lei, pregaram uma nova ordem, formaram comunidades em que todos tinham tudo em comum, foram levados às prisões e ao martírio. Tudo como parte de sua espiritualidade. Foi a ação do Espírito que tornou possível a prática dos apóstolos. 3. Terra à vista A possibilidade de um novo mundo, a qual deve nutrir a esperança do cristão, deve ser vista como expectativa que tem também uma dimensão terrena, conforme nos faz ver Isaías (65,17-25). O profeta nos fala de que tipo de justiça é preciso construir no mundo. Ou seja, a Bíblia nos aponta o destino, a “terra” em que devemos aportar o nosso barco. Não é qualquer sociedade que nossa espiritualidade nos faz desejar, mas uma que satisfaça as condições da justiça. E isso pressupõe o fim da exploração (“Construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos; ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer”), saúde e vida plena para todos (“Aí não haverá mais crianças que vivam alguns dias apenas, nem velhos que não cheguem a completar seus dias”) e o fim das diferenças sociais (“O lobo e o cordeiro pastarão juntos, o leão comerá capim junto com o boi”). Há evidente contradição entre esse projeto e o mundo atual. Fazer isso no mundo de hoje pressupõe grande coragem e grande esperança. Lutaremos com poderes aparentemente inabaláveis, montados sobre estruturas imperiais e com tentáculos espalhados por todos os lados — também em nossas consciências. Por isso é uma tarefa “espiritual”. Apenas com uma espiritualidade forte podemos escapar da tentação do desespero, do medo, do sentimento de impotência e do fatalismo para reconstruir nossas utopias. Quando abandonamos a visão dualista, Espírito e prática libertadora, espiritualidade e ação histórica, plano divino e realidade humana, alma e corpo etc. passam a ser compreendidos em uma unidade — não mais como polos opostos nem como partes que se tocam eventualmente. A expressão máxima dessa unidade está na encarnação do Verbo. O Logos (palavra que João usa para se referir ao que traduzimos por “Verbo”), princípio imaterial, razão do mundo, sentido último das coisas, torna-se “carne” e “habita entre nós” (Jo 1,14). O sentido da espiritualidade cristã está em reproduzir esse evento em todas as dimensões da nossa vida. Nenhuma espiritualidade que procura desencarnar o evangelho ou simular um mundo angélico particular interno à Igreja ou a movimentos espirituais, onde só existe alegria e onde se anuncia “‘paz!’ quando não existe paz” (Jr 6,14), pode reivindicar ser herdeira da tradição de Jesus Cristo.
  • 10. O desafio que cabe àqueles que querem viver autêntica espiritualidade cristã está em concretizar o Espírito e espiritualizar a ação concreta, estendendo a experiência de Deus à nossa história real. Só assim poderemos experimentar a Deus em sua plenitude. Prof. Maurício Abdalla