Este artigo discute a origem e identidade cultural dos povos construtores de sambaquis no litoral brasileiro. Foram sistematizadas as informações disponíveis sobre a distribuição dos sítios e cultura material. Discute-se se os sambaquis foram construídos por um único grupo cultural ou por diferentes grupos. Também se analisam modelos que propõem uma origem interiorana dos povos do litoral, empurrados para a costa por pressões demográficas.
1. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 169-178, 2004.
IDENTIDADE CULTURAL E ORIGEM DOS SAMBAQUIS*
Maria Cristina Tenório**
TENÓRIO, M.C. Identidade cultural e origem dos sambaquis. Rev. do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 14: 169-178, 2004.
RESUMO: A questão da delimitação das unidades culturais envolvidas na
construção dos sambaquis tem sido constante foco de debates na arqueologia
brasileira. No presente trabalho, foram sistematizadas as informações disponíveis
relacionadas à distribuição dos sítios e à cultura material assim como se procurou
elaborar um modelo para explicar o povoamento do litoral brasileiro apoiado nos
resultados dessa sistematização e na soma dos pontos convergentes de modelos pré-
existentes.
UNITERMOS: Sambaquis – Identidade cultural – Litoral – Pescadores – Coletores.
Introdução questão teve início tão logo foi finalizado o debate
sobre o caráter artificial desses sítios.
Um dos maiores interesses do estudo dos No Brasil, entre as décadas de 50 e 80, houve
sítios litorâneos reside justamente nas melhores inúmeras tentativas de agrupamentos regionais,
possibilidades de se discriminar a influência dos apoiadas na sistematização das diferenças e das
fatores ambientais que homogeneízam a cultura semelhanças encontradas na cultura material dos
material da margem de “liberdade cultural”, sambaquis. Dentre esses, destacam-se os trabalhos
expressa pelas diferenças de estilo em grupos de Loureiro Fernandes, Paulo Duarte, Adam
de mesmo nível tecnológico. (Prous 1992 : 199) Orssich, Ondemar Blasi, Wesley Hurt, José Wilson
Rauth, João Alfredo Rohr, Guilherme Tiburtius,
Definir as unidades culturais envolvidas na Valentin Calderon, Alan Bryan, Clifford e Betty
construção dos sambaquis tem sido um dos Meggers, Margarida Andreatta, Maria José Menezes,
maiores problemas da arqueologia brasileira. Essa Niède Guidon, Luciana Palestrini, Ondemar Dias,
Ana Maria Beck e Antonio Serrano, autores cujo
objetivo principal de seus trabalhos era evidenciar os
grupos afins e reconstituir os movimentos migratórios
(*) Esta publicação faz parte das atividades de pós-
doutorado desenvolvido no Museu de Arqueologia e ocorridos na costa brasileira.
Etnologia – MAE/USP. Posteriormente, foram utilizadas novas abordagens
Pesquisa apoiada pela Financiadora Nacional de embasadas por teorias provenientes da Ecologia
Estudos e Projetos/FINEP, Fundação de Amparo à Pesquisa Cultural e da Antropologia que possibilitaram a
do Rio de Janeiro/FAPERJ, Centro de Aperfeiçoamento elaboração de outros modelos interpretativos para
Profissional do Ensino Superior/CAPES e pelo Conselho
Nacional de Pesquisa/ CNPQ – Entidade governamental
entender o povoamento do litoral brasileiro. Embora à
brasileira promotora do desenvolvimento científico e primeira vista fosse antagônica, uma análise desses
tecnológico. modelos permitiu que a união de seus pontos conver-
(**) Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de gentes fosse usada na construção de um novo modelo
Janeiro-UFRJ. ctenorio@domain.com.br interpretativo para o desenvolvimento da questão.
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Origem da cultura sambaquiana partir da oposição entre sítios com predomínio de
moluscos e sítios com maior evidência de pesca,
Embora houvesse uma preocupação no estabele- identificou a fase Itaipu, em sítios em dunas, mais
cimento das unidades culturais e sua dispersão, não tarde considerada Tradição.
existia, inicialmente, para o litoral, um questionamento A constatação de que o sítio do Corondó teria
sobre a origem de seu povoamento, se se tratava de sido construído por populações já perfeitamente
uma só filiação cultural ou se os sambaquis haviam caracterizadas e portando o conhecimento dos
sido formados por diferentes levas de grupos vindos de processos de reprodução de plantas, que provavel-
lugares distintos. Apenas Annette Laming Emperaire mente não ocorreu in sito (Dias Jr. & Carvalho
(mimeógrafo inédito), que desejava testar a proposta 1990: 161), serviu para elaborar a hipótese de que
de Paul Rivet sobre a existência de uma rota alternativa seus construtores teriam uma origem diferente da
por mar usada por grupos que, há muito tempo, já dos sambaquis, embora fosse deixado em aberto
estariam adaptados à vida marinha, sugere a “quais os caminhos percorridos pela difusão entre
possibilidade de uma origem única, vinda de fora. um ponto desconhecido no interior do país e esta
Devido à morte prematura de Emperaire, seu região costeira”. (Dias op.cit: 172).
projeto foi interrompido, mais tarde, outros Uma origem diferente pressupõe uma unidade
retomaram a questão, passando-se a discutir se os sociocultural distinta da sambaquiana. Segundo Dias:
grupos responsáveis pela formação dos sambaquis “podemos supor que a origem da Tradição
abrangiam uma ou várias culturas sambaquianas. não se prenderia, necessariamente, a
Segundo Prous (1992: 259), Serrano foi o sambaquianos adaptados. Ela poderia
primeiro a abordar o problema da identidade do resultar, então, de caçadores, coletores &
“sambaquiano”, identificando a “fácies meridional“, pescadores diversificados que desenvolve-
com zoólitos, mais ao sul, e a “fácies setentrional”, ram uma sociedade complexa, paralela aos
a partir de São Paulo, sem zoólitos. Posteriormen- coletores especializados. (id: 160)
te, Beck (apud Id.Ibid) criou subdivisões para
essas fácies e, depois, Piazza (apud Id.Ibid) definiu Embora ressalte muito a diferenciação cultural
fases a partir de sítios englobados em uma dessas entre sambaquis e a tradição Itaipu, a ponto de
subdivisões, começando por critérios exclusiva- constituírem duas tradições culturais, Dias (ibid)
mente malacológicos, em função da predominância afirma que apresentam vínculos culturais:
dos tipos de moluscos coletados. A classificação, a “O vínculo entre as antigas comunidades
partir dos restos malacológicos, dentre outros (sambaquianas) e as novas (economia
aspectos, foi também utilizada, no Rio de Janeiro, diversificada – Itaipu) manteve-se tanto na
para definir fases, por Mendonça de Sousa (1981), tecnologia de fabrico, quanto na persistência
e unidades culturais, por Heredia et al (1989). dos padrões tipológicos dos artefatos líticos.
No entanto, com exceção da presença de Sem dúvida, esta classe de material ... consti-
zoólitos, o estudo da distribuição dos artefatos, tui-se numa espécie de “espinha dorsal”
segundo a abordagem do Histórico Culturalismo, unindo as Tradições locais.” (Dias, ibid:172)
não permitiu a delimitação das unidades culturais.
Numa análise da arqueografia brasileira, Prous (1992) atentou para a diversidade dos
pode-se verificar a dificuldade de delimitação das acampamentos litorâneos e optou por limitar a fase
províncias culturais, a partir do estudo da distri- Itaipu aos limites físicos do Rio de Janeiro, área que
buição da cultura material. Sua delimitação em até então apresentava muito poucos dados para
facies foi importante para uma primeira sistemati- que pudesse ser inserida nas subdivisões de Beck.
zação, mas, numa abordagem mais detalhada, Por outro lado, a ausência de sítios apresentando
pode-se constatar a ineficácia das classificações, evidências do processo adaptativo interior-litoral,
já que são comumente encontrados sítios distantes acrescida da semelhança observada no padrão de
entre si portando uma mesma cultura material e, assentamento (Gaspar 1991) e na cultura material,
ao mesmo tempo, sítios próximos e contemporâ- argumentam contra a diversidade cultural proposta
neos apresentando diferenças marcantes. para os sambaquis.
No estado do Rio de Janeiro, Dias (1967), Poucos pesquisadores, entre eles, Maria Dulce
também pressupondo uma diferenciação cultural, a Gaspar (1991), aceitam que a ocupação do litoral
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brasileiro tenha se dado por um único sistema Lima (Id: 33) propõe que o litoral teria sido
sociocultural. ocupado por diferentes sistemas socioculturais
Segundo Gaspar (Id: 260), a constante vindos do interior:
associação de moradia, alimento e enterramento
“Produzidos por sistemas socioculturais
configurara uma cosmologia própria a um único
distintos, regidos por lógica própria interna,
sistema sociocultural.
esses montes precisam ser analisados sob a
No modelo de Gaspar (Id), elementos
ótica da diversidade, respeitando-se seus
estruturais manteriam a coesão do grupo, protegendo
particularismos, na medida em que perspec-
sua desestabilização cultural que poderia ficar
tivas generalizantes e homogeneizadoras
ameaçada pela constante introdução de elementos
são de todo equivocadas para explicá-los”.
novos.
(Andrade Lima 1999-2000: 314)
Quanto à persistência de certos itens da
Cultura e adaptação cultura material, verificada nas adaptações aos
ambientes litorâneos, Andrade Lima (Id) a atribui a
A discussão sobre origem e unidade cultural, a uma conjunção de fatores, como limitação de
partir da década de setenta, se misturou às matéria prima e difusão de técnicas, acompanhando
questões sobre mudança temporal, ambiental e os movimentos migratórios ao longo da costa.
adaptação e, como conseqüência, houve uma No entanto, embora questione a validade da
interdição ao uso do termo sambaqui para definir utilização das similaridades encontradas na cultura
genericamente ocupação litorânea. Passando a ser material, Andrade Lima (1991: 513) utiliza outras,
o foco dos debates, o que seria ou não sambaqui, apontadas na cultura material como indício de que os
sendo substituída a delimitação dos sistemas sítios abordados na baía da Ribeira foram construídos
socioculturais envolvidos no povoamento do litoral por grupos pertencentes a um único sistema
brasileiro pelo questionamento das mudanças sociocultural. Tudo indica que o parâmetro usado
adaptativas observadas nos sítios. (Terceiro pela autora é o da proximidade geográfica, pois
Seminário Goiano de Arqueologia, março de 1980; apenas em sítios a pouca distância uns dos outros
3a Reunião do Sudeste, abril de 1995). considera válida a utilização de tais similaridades.
O reconhecimento de que existem sítios Andrade Lima considera que concentrações
litorâneos contendo maior ou menor quantidade de de sítios devam corresponder a grupos de mesma
molusco não está presente apenas na arqueologia filiação cultural:
brasileira, só não é consenso a atribuição de uma “Concentrações de sítios resultantes do
conotação cultural a essa diferenciação. A explica- estabelecimento desses coletores no âmbito
ção que prevalece, a exemplo do que Erlandson de uma localidade ou mesmo de uma região
(1994: 277) observa na costa da Califórnia, é que podem ser assumidas como contemporâne-
os sítios mais antigos apresentam maior quantidade as e corresponder à partilha de um territó-
de moluscos; nos mais recentes, é possível obser- rio por bandos com uma mesma filiação
var que o molusco deixa o papel de elemento
cultural”. (Andrade Lima 1991: 40)
básico da dieta para passar a ser apenas um artigo
suplementar, o que é explicado por crescimento Embora concordando com Barreto (1988
demográfico e pela exaustão dos bancos de apud Andrade Lima ibid.) sobre a escassez dos
moluscos. Essa explicação é compartilhada por dados disponíveis para discutir em maior profundi-
Andrade Lima (1991) que observa a mudança do dade a origem das populações que alcançaram o
conteúdo faunístico em sítios localizados no litoral litoral durante o holoceno, Andrade Lima propõe,
do estado do Rio de Janeiro, atribuindo o fato a hipoteticamente, um modelo para o povoamento da
uma exploração predatória dos bancos de moluscos costa brasileira, baseado no de Osborn, no que se
e a um crescimento demográfico, e não a uma refere à pressão demográfica, e no de Perlman, ao
opção cultural. tratar de aproveitamento oportunista. O modelo
Mesmo não considerando a diferenciação feita elaborado por Andrade Lima se aproxima do de
a partir da quantidade de moluscos encontrada nos Dias ao propor uma ocupação do litoral por grupos
sítios como um diferenciador cultural, Andrade interioranos:
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“Grupos provenientes do interior teriam cita como locais de passagem o vale da Ribeira e o
alcançado o litoral empurrados por stress vale do Rio Itajaí. Andrade Lima (1999-2000: 272)
populacional em algum ponto do planalto e também concorda com um eixo por vias fluviais em
alcançaram a costa; ao encontrarem alguns trechos do litoral, como no Vale do Ribeira,
ambientes extremamente favoráveis ao seu no Vale do Itajaí e no Vale do Jacuí. No entanto,
estabelecimento, teriam se especializado na para esta autora, em outras áreas, a serra do Mar
explotação dos abundantes recursos teria atuado como uma barreira, favorecendo um
disponíveis em determinados ecossistemas movimento perpendicular à costa.
não só por opção oportunista, mas ainda Uma análise inicial dos dados disponíveis
pela dificuldade de transpor a barreira sobre a cultura material encontrada no litoral
montanhosa da Serra do Mar, já anterior- brasileiro sugere a existência de pelo menos três
mente considerada por vários autores.” rotas de entrada. Pelo norte, através do norte do
Andrade Lima (1991: 33) estado do Rio de Janeiro; outra por São Paulo e,
talvez, mais de uma pelo sul, por caminhos onde
Caso os modelos de Dias e de Andrade Lima
também são encontrados os Cerritos, percorridos
sejam corretos, a falta de elementos culturais
por populações associadas aos zoólitos, que
interioranos no litoral sugere que levas populacionais
também poderiam ter vindo do Uruguai. No sul,
oriundas do interior chegariam com seus costumes
parece ter ocorrido um fluxo maior de pessoas
e, logo, adaptar-se-iam ao litoral, abandonando
relacionadas a diferentes tradições culturais, o que
totalmente quaisquer elementos de sua cultura,
se percebe na diversidade da indústria lítica
passando, então, a produzir, imediatamente,
encontrada em Santa Catarina.
elementos similares encontrados em toda a costa –
Associado a esse fato parece não haver
desde artigos funcionais, utilizados na obtenção de
dúvidas quanto à presença da Tradição Umbu no
alimentos, até elementos rituais – sem que houvesse
litoral e quanto à entrada de grupos pescadores-
contato com alguma “cultura” que já possuísse
coletores-caçadores proposta por Neves (1988).
esses costumes, ou que tivesse pleno domínio da
No entanto, a grande similaridade nos elemen-
tecnologia necessária para a exploração dos
tos mais expressivos em termos quantitativos, fato
recursos litorâneos.
também constatado por Gaspar (1991), parece indicar
Parece mais provável, que os grupos interioranos
a existência de uma cultura sambaquiana agregadora
tivessem rapidamente se adaptado, perdendo,
de populações ainda não adaptadas ao litoral.
inclusive, seus traços mais marcantes, porque
teriam sido absorvidos culturalmente por popula-
ções já bem adaptadas ao ambiente aquático. Cultura material encontrada no litoral:
A aculturação de grupos interioranos, que similaridades e diferenças
teriam chegado ao litoral, favoreceria a manutenção
e a continuidade de uma “cultura sambaquina”,
Para ilustrar as similaridades e diferenças
constituída de muita miscigenação, devido à
encontradas na cultura material proveniente do
constante introdução de elementos novos. No
litoral compreendido entre o Rio de Janeiro e
modelo de Gaspar (1991), elementos estruturais
Torres, foram elaboradas três tabelas (Tabelas 1, 2
manteriam a coesão do grupo, protegendo sua
e 3), contemplando a distribuição das indústrias
desestabilização cultural que poderia ficar ameaçada
lítica, óssea e malacológica. Foram utilizadas as
pela constante introdução de elementos novos.
informações fornecidas por Prous (1992), acresci-
das das informações obtidas através do desenvolvi-
Rotas migratórias (1) O projeto “O Aproveitamento Ambiental das Popula-
ções Pré-históricas no Litoral do Rio de Janeiro” vem
As grandes concentrações de sítios próximas sendo desenvolvido no Departamento de Antropologia
aos vales de grandes rios que cortam as serras, do Museu Nacional. De 1981 até o ano de 2000 contou
com o apoio da FINEP. Do seu início até 1989 foi
como as concentrações em Iguape, Cananéia,
coordenado pelo Professor Dr. Osvaldo Heredia, quando
Baixada Santista, Baía de Paranaguá, sugerem a este veio a falecer, desde então o projeto vem sendo
existência de rotas migratórias para a costa, desenvolvido sob a coordenação da Professora Dra. Maria
acompanhando o curso de rios. Neves (1988: 31) Dulce Gaspar e conta com a sub-coordenação da autora.
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mento do projeto “O aproveitamento ambiental das A distribuição do material lítico indica que, no
populações pré-históricas no estado do Rio de estado de Santa Catarina, ocorre uma grande
Janeiro”.1 diversidade de tipos que se expande para os litorais
A partir das tabelas 1,2,3, pode-se observar a norte e sul.
similaridade da cultura material proveniente do Retirando o Paraná da tabela, observa-se que
litoral, embora haja indiscutíveis elementos destoan- a difusão dos elementos até o Rio de Janeiro é bem
tes, como a ausência de zoólitos no Rio de Janeiro. maior. O estado do Paraná fomenta a ilusão de uma
Deve-se levar em consideração a escassez desse ruptura cultural, o que pode ser apenas resultante
elemento no estado de São Paulo e sua abundância da escassez de pesquisas.
no sul, o que parece indicar um elemento introduzi- Embora o estado de Santa Catarina não
do nesta região e que perde sua popularidade, à apresente datações muito antigas, sua indústria
medida que há uma dispersão de pessoas ou de lítica sugere que teria se constituído num centro de
idéias para o norte. dispersão. Já os construtores de sambaquis do
Por outro lado, os elementos semelhantes estado do Rio Grande do Sul parecem ter
encontrados na indústria sugerem a mesma tradição recebido a influência de elementos externos,
cultural, com acréscimos e perdas regionais que responsáveis pela introdução das pedras com
podem ter sido provocados por aprimoramento covinhas e os objetos geométricos. No entanto,
tecnológico/adaptativo ou por contato e incorpora- esses elementos são numericamente poucos e só
ção de outros grupos. chegam até Santa Catarina.
Tabela 1
Ocorrência de artefatos líticos em sítios localizados no litoral brasileiro
Material/Estados Rio G. do Sul Santa Catarina Paraná São Paulo Rio de Janeiro
Recipientes
Prismas naturais
Seixos batedores
Pesos de rede
Bigornas
Alisadores
Grosa
Corantes
Amoladores polidores fixos
Amoladores polidores portáteis
Lascas de quartzo
Lascas de seixos de r. básicas
Pedras de queijo
Lâminas de machados de seixos
ou plaquetas com só o gume
polido
Pingentes zoomórfos
Zoólitos
Pingentes
Pedras furadas
Pratos
Pedras com depressões
Tigelas, pilões e pratos
Objetos geométricos
Pedras c/ covinhas
Rodas dentadas
Bola de boleadeira
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Tabela 2
Ocorrência de artefatos ósseos em sítios localizados no litoral brasileiro
Material/Estados Rio G. do Sul Santa Catarina Paraná São Paulo Rio de Janeiro
Facas
Dentes de tubarão trabalhados
Espátulas
Instrumentos de ossos de cetáceos
Recipientes
Discos com furos
Flautas
Apitos
Tábuas de ossos de cetáceos
Vértebras perfuradas
Dardos
Pontas de esporão de raia
Espinhos trabalhados
Furadores
Pontas de diáfises peixes
Pontas de diáfises mamíferos e aves
Anzóis
Buris feitos de dente
Propulsores
Peças com gume de osso de cetáceo
Pássaros
Agulhas
Tabela 3
Ocorrência de artefatos malacológicos em sítios localizados no litoral brasileiro
Material/Estados Rio G. do Sul Santa Catarina Paraná São Paulo Rio de Janeiro
Valvas recipientes
Valvas com bordo cortante
Valvas raspadores
Braceletes
Pingentes
Este último estado pode também ser visto Em relação à indústria malacológica, constata-
como um ponto de dispersão, como um divisor de se que o Rio de Janeiro apresenta a maior variabili-
águas em relação ao material lítico. Alguns elemen- dade de itens, tendo sido, provavelmente, o centro
tos chegam do norte ou do sul e o alcançam, mas de dispersão desse implemento tecnológico (Dias
não o ultrapassam, fato que pode ser interpretado 1992:162).
como a introdução de itens de fora obtidos através Pelo que foi exposto, a cultura material
de contato ou da entrada de outros grupos por registrada no litoral brasileiro não apresenta
Santa Catarina (Neves 1988) ou, alternadamente, evidências de que seja resultante de adaptações
pelos dois estados, depois se misturando a grupos independentes. A variabilidade observada, prova-
sambaquianos. velmente, está mais relacionada à absorção de
Em relação à indústria óssea, sua distribuição é novos elementos culturais do que a uma grande
muito mais homogênea e, não considerando o estado diversidade cultural.
do Paraná, observa-se uma continuidade, com o As repetições observadas nos rituais de
estado de São Paulo no centro de dispersão. enterramentos corroboram a hipótese da existência
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de uma cultura sambaquiana, ao mesmo tempo em litorâneas, sugerindo que, diferente do que se
que a diversidade de elementos, que fazem parte pensava, grupos paleoíndios teriam chegado ao
desse ritual dentro de um mesmo contexto arqueo- litoral em épocas muito recuadas. Hipótese que
lógico, sugere a constante incorporação de outros questiona o modelo “Gates of the Hell” (Erlandson
grupos ainda não adaptados ao litoral. 1994:276), o qual propõe que o uso intensivo de
recursos marinhos foi desenvolvido relativamente
tarde, apenas quando o crescimento populacional
Hipóteses para explicar similaridades e ultrapassou a capacidade de obtenção de alimentos
diferenças observadas na cultura material no ambiente terrestre (Cohen 1981: 281). Segundo
essa hipótese, tais populações, há muito adaptadas
Três hipóteses não excludentes podem ser ao litoral, mesclaram-se, posteriormente, a grupos
usadas para explicar semelhanças e diferenças oriundos do interior.
encontradas na cultura material proveniente de Na segunda hipótese, as similaridades são
sítios litorâneos, a saber: decorrentes apenas do tipo de exploração.
Apoiada nas propostas de Cohen (1978) e de
1. Esses sítios foram construídos por
Binford (1968), volta-se para aquela em que a
grupos culturais relacionados a grupos
ocupação litorânea teria se dado num momento
pleistocênicos, já adaptados à economia
mais recente, como uma segunda opção para a falta
costeira. As diferenças regionais são conseqü-
de recursos nos territórios interioranos, decorrente
ência de fusões com grupos oriundos do
de aumento demográfico.
interior que, em épocas mais recentes,
De acordo com ela, os grupos que teriam
chegaram ao litoral usando, como rota, os
chegado ao litoral não tinham contato entre si,
grandes cursos d’água;
apresentavam traços culturais distintos que, com o
tempo, devido às exigências da exploração
2. A exploração dos recursos marinhos
marinha, passariam a apresentar semelhanças,
pode favorecer a existência de um arsenal
embora não houvesse contato.
tecnológico muito parecido, daí as seme-
A terceira hipótese baseia-se na existência de
lhanças encontradas, mesmo não havendo
um intenso contato já que um trajeto por água seria
contato cultural. As diferenças observadas
a melhor opção para cruzar a exuberante mata
se devem às distintas filiações culturais
fechada encontrada na costa brasileira; ao mesmo
relacionadas a vários grupos que vieram do
tempo, essa escolha permitiria uma grande mobili-
interior em diversos momentos, quando as
dade que incentivaria um intenso fluxo de pessoas e
pressões ambientais ou populacionais
de informações.
tornaram o litoral mais atrativo do que os
Por outro lado, para que esse contato não
territórios interioranos.
interferisse na manutenção dos territórios e da
identidade cultural, é provável que fosse necessária
3. A grande mobilidade permitida pela
a criação de fatores de etnicidade (Hodder 1982)
utilização de vias aquáticas, aliada à própria
que reforçassem a identidade, na medida em que
característica agregadora da exploração de
eram criados como elementos de diferenciação.
recursos marinhos, teria propiciado um intenso
Segundo Hodder (ibid: 12), quanto mais próximos
contato, o que incentivaria, ao mesmo tempo, a
os sítios, mais elementos de etnicidade haveria. Isso
presença de elementos similares na cultura
pode ser exemplificado pelo conjunto de sítios
material, como também uma grande diversidade
identificados no canal de Itajuru, no litoral do Rio
estilística utilizada como fator de etnicidade,
de Janeiro. Embora localizados muito próximos e
garantindo a territorialidade e a manutenção da
sendo contemporâneos, apresentam elementos
identidade cultural. O intenso contato também
muito diferentes na cultura material, inclusive
incentivaria a miscigenação que estaria evidenci-
relacionados à dieta alimentar (Tenório 1996),
ada pela presença da grande diversidade de
essas diferenciações podem ser percebidas como
elementos simbólicos encontrada nos sítios.
tendo sido criadas em oposição ao outro para
A primeira hipótese está baseada nas datações reforço de identidade e manutenção de territórios
recuadas que têm sido obtidas para adaptações (Hodder op.cit ).
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A partir do que foi apresentado, pode-se Segundo este modelo, a essa cultura
observar, nas três hipóteses, a presença de “escolas sambaquiana eram constantemente agregados
de pensamento” que condicionaram os tipos de novos costumes trazidos por grupos que alcançavam
abordagens, no entanto observa-se também que, não a costa, oriundos do interior. Apesar deste intenso
são excludentes. Constata-se que tanto a filiação contato, essa cultura não perdeu sua supremacia até
cultural, como o arsenal tecnológico adaptativo e o a chegada dos ceramistas, pois detinha o conheci-
intenso contato podem ser os responsáveis pelas mento tecnológico necessário à exploração marítima
semelhanças e pelas diferenças existentes na cultura e também porque possuía uma cosmologia bem
material encontrada no litoral. estruturada constantemente reforçada em rituais que
envolviam concentração de pessoas.
De acordo com o modelo proposto, o litoral
Conclusão durante mais de 5.000 anos foi povoado por grupos
que constituíam uma sociedade única, mas composta
A presença recorrente de elementos da cultura de várias “etnias”. Neste caso a palavra etnia está
material – extremamente semelhantes em sítios grifada porque é utilizada relacionada ao conceito de
distantes e, ao mesmo tempo, a diversidade do etnicidade (Hodder 1982) e não à origem étnica.
material resgatado em sítios próximos e contemporâ- Entende-se por fatores de etnicidade o conjunto de
neos – permite que seja levantada a hipótese da alta elementos de função diferenciadora criados artificial-
incidência de miscigenação e de fatores de mente para manutenção de territórios e de identidade
etnicidade. Estes últimos seriam os responsáveis social. Não obstante, a intensidade dos contatos, das
pelas diferenças verificadas na cultura material; a trocas e até das mais efetivas, como a miscigenação
miscigenação responderia pela grande variedade de através de casamentos. As diferenciações culturais
rituais funerários observados, muitas vezes, até regionais continuariam a ser mantidas graças à
dentro de um mesmo sítio, ou seja, haveria escolhas criação de fatores de etnicidade, que podem ser
marcantes relacionadas a estilo, matéria prima, exemplificados por modus diferenciados de
modus que seriam refletidos na cultura material produção de artefatos ou de elementos rituais. Essas
encontrada num mesmo sistema de assentamento. diferenças seriam constantemente reforçadas pela
Segundo Hodder (1982: passin), a interação maneira de cada comunidade se ver em relação à
social nem sempre provoca homogeneidade outra, independente de terem ancestrais comuns.
estilística, já que a relação da sociedade com a Essa realidade produziu uma cultura material
cultura material está associada a estruturas ideológi- com muitos elementos recorrentes, mas também
cas e com códigos simbólicos, pois a cultura material com diferenciações notáveis de difícil sistematiza-
desempenha um papel ativo como símbolo nas ção, já que o intenso contato e os elementos de
relações sociais e econômicas entre grupos étnicos, etnicidade criados artificialmente atenuaram os
grupos de idade, sexo, status e família. contornos necessários à delimitação das unidades
Somando-se os pontos convergentes dos culturais. Nesse contexto, parte-se do pressuposto
modelos construídos por Dias, Andrade Lima e de que uma estratégia eficaz na caracterização dos
Gaspar ao que foi apresentado, propomos um grupos envolvidos no povoamento de determinadas
modelo interpretativo para explicar o povoamento áreas é a identificação e a utilização de elementos
do litoral brasileiro, no qual se parte do princípio de criados para reforçar identidade e que podem ser
que teria existido uma “cultura sambaquiana” muito percebidos em contextos rituais, como no caso dos
antiga formada por grupos marítimos, caracterizados enterramentos ou em determinadas maneiras de
por possuírem um profundo conhecimento de fazer instrumentos.
técnicas necessárias à exploração do meio aquático
marinho. Esta suposição está apoiada nas similarida-
des observadas na cultura material, no padrão de Agradecimentos
assentamento, no fato observado por Gaspar (1991)
sobre a constância do hábito de enterrar os mortos Agradeço o apoio da FINEP, da CAPES e da
em locais que se destacam na paisagem e na FAPERJ no desenvolvimento das pesquisas no litoral
ausência de sítios de transição que reunissem Rio de Janeiro, assim como a Maria Dulce Gaspar e
elementos do interior e do litoral. a Angela Buarque pela atenciosa leitura dos originais.
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Etnologia, São Paulo, 14: 169-178, 2004.
ABSTRACT: The question concerning the distribution of the cultural units involved
in the construction of sambaquis has been in the constant focus of the debates in
Brazilian archaeology.
In this paper, we systematize the available data related to the distribution of the
sites and the material culture as well as present a model to explain the settlement of the
Brazilian coast, supported on the results of that systematization and the sum of the
merging points of preexisting models.
UNITERMS: Sambaquis – Cultural identity – Coastlines – Fishers – Gatherers.
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Recebido para publicação em 3 de junho de 2004.
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