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A Pluralidade Cultural na Obra do Cravo Carbono
Keila Michelle Silva Monteiro1
keilamail@yahoo.com.br
Resumo
Este artigo focaliza um dos grupos de música urbana na Amazônia que trabalha com a
pluralidade cultural. O objetivo do texto é revelar alguns elementos dessa pluralidade em determinados
momentos na letra e música de algumas faixas do álbum Peixe Vivo, lançado em 2001 pelo grupo
Cravo Carbono/. As referências teóricas são as obrasCulturas Híbridas: estratégias para entrar e sair
da modernidade de Nestor García Canclini (2006) e A identidade cultural na pós-modernidade de
Stuart Hall (2005).
Abstract
This article focalizes one of the groups of urban music in Amazon that works with the cultural
plurality. We intend reveal some elements of this plurality in certain lyrics and music of Peixe Vivo
(Live Fish) album, it was published in 2001 by the Cravo Carbono group, having as theoretical base
the works Hybrid Cultures: strategies for entering and leaving the modernity by Nestor García
Canclini (2006) and The cultural identity in the postmodernity by Stuart Hall (2005).
Introdução
Este texto considera apenas um dos vários aspectos de uma pesquisa de dissertação
que ainda está dando os primeiros passos e deverá ser concluída e apresentada ao final do
curso de Mestrado em Artes pela Universidade Federal do Pará que teve início em março de
2009.
Em Belém, no final dos anos 90, surgiram bandas com estilos variados/. Em 2001, uma
delas lançou um álbum que chamou a atenção pelo modo como conduzia suas composições,
trabalhando com releituras de ritmos do cotidiano paraense. Este grupo chamava-se Cravo
Carbono e chamou a atenção, em especial, pela técnica que apresentava na execução de suas
músicas e pela riqueza poética de suas letras, apesar de outros grupos, ou bandas, também
imprimirem certa poesia em sua música/. Então, percebi que o álbum recém lançado, na época,
pelo grupo, intitulado Peixe Vivo, poderia ser objeto de estudo, basicamente por dois fatores:
por unir duas artes: a poesia e a música e por relacionar elementos tradicionais e modernos
numa mesma obra. Esta relação, aliás, já vem sendo alvo de discussões por sociólogos,
antropólogos, etnomusicólogos e, inclusive, está presente nas obras de alguns músicos na
cidade de Belém. Estes elementos, sendo que na pluralidade cultural da Amazônia, serão o
foco do presente trabalho e, para isso, faremos um breve histórico acerca da trajetória do
grupo com ênfase na obra Peixe Vivo, e então prosseguiremos com a demonstração da
presença destes elementos concomitantemente numa mesma canção em trechos de algumas
faixas deste álbum.
1/. Mestranda do Curso de Mestrado em Artes pela Universidade Federal do Pará; professora de música pela
Secretaria Municipal de Educação
Ictus 10 - 2
1. Pluralidade Cultural e Hibridação
Para tratarmos da presença da pluralidade que afeta a nossa atual sociedade e, claro, a
nossa cultura, faz-se necessário retomarmos as ideias de Hall (2005) que fala da questão da
identidade na modernidade tardia, em que se chocam elementos tradicionais, modernos,
nacionais, regionais e estrangeiros na práxis das sociedades do mundo atual e Caclini (2006)
que trata do convívio destes mesmos elementos nas sociedades e na cultura da América
Latina.
• Hall nos revela que há argumentos que afirmam que o sujeito pós-moderno está
se tornando fragmentado, composto de várias identidades, por vezes contraditórias ou não-
resolvidas, sendo quase impossível, hoje, identificarmos nossas identidades culturais, por
estarmos em constante transformação. Isto seria o que difere as sociedades “modernas” das
“tradicionais”, visto que estas, segundo Giddens (apud Hall) veneram o passado e valorizam
os símbolos, por conterem estes experiências de gerações além de perpetuá-las. Um termo
interessante, adotado por Hall é a ‘pluralização’ de identidades, a qual começou a emergir
quando “As transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios
estáveis nas tradições e nas estruturas” (HALL, 2005, p.25). Dado isto, sua identificação (e
não mais a ‘identidade’ termo que perdeu praticamente o sentido, por sua fragmentação)
passou a se tornar um processo em andamento.
As culturas nacionais são colocadas entre o passado e o futuro, visto que seu discurso
se mantém entre a vontade de retornar às glórias do passado e o impulso por avançar ainda
mais em direção á modernidade. A etnia, no mundo moderno ocidental, revela-se híbrida;
ainda assim “as culturas nacionais contribuem para “costurar” as diferenças numa única
identidade” (idem, p.65). Há ainda uma “costura” numa escala global, para além da fronteiras
nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de
espaço-tempo, o que Hall chamou de “processo e homogeneização”.
Segundo o autor, de acordo com estes fatos, a identidade, na era da globalização,
estaria destinada a retornar a suas “raízes”; a desaparecer por meio da assimilação e da
homogeneização; ou ainda a virar “Tradução”, situação que o autor destina a pessoas
pertencentes a “culturas híbridas”, ou seja, que longe da sua terra natal, carregam traços das
culturas de seus lugares de origem e suas tradições e de outras culturas.
• Canclini afirma que, na América Latina, as tradições ainda não se foram e a
modernidade não terminou de chegar, e que não estamos convictos de que nos modernizar
seja o principal objetivo como divulgam políticos, economistas e a publicidade de novas
tecnologias. A partir daí, podemos chegar à conclusão que a modernidade chega à América
Latina após a pós-modernidade europeia apesar de termos algo de pós-moderno em
pouquíssimos aspectos do mercado cultural, por exemplo.
O autor fala de ‘hibridação’, termo que usa no sentido de mestiçagem, sincretismo,
fusão e outros vocábulos empregados para designar misturas particulares. Essa hibridação é
percebida como processos e como uma mistura de estruturas e práticas discretas que existem
de forma separada, mas não pura, em combinações que geram novas estruturas, objetos e
práticas. Um exemplo claro disso é o que ocorre na música, quando diz:
É possível colocar sob um só termo fatos tão variados quanto (...) a fusão de
melodias étnicas com música clássica e contemporânea ou com o jazz e a salsa (...)
mistura de ritmos andinos e caribenhos; a reinterpretação jazzística de Mozart (...)
pelo grupo afro-cubano Irakere; as reelaborações de melodias inglesas e hindus (...)
pelos Beatles, Peter Gabiel e outros músicos (?). (CANCLINI, 2006, p.XX).
Ictus 10 – 2 77
Desse modo, no caso do Brasil, do encontro entre várias culturas diferentes cria-se
uma composição que vai ser inserida na indústria cultural chamada MPB, mais um rótulo
comercial que um estilo. E, no caso da região amazônica, mais especificamente paraense,
além do grupo que é foco da nossa pesquisa, essa pluralidade cultural está presente nas obras
de Ruy e Paulo André Barata, grandes expoentes da MPB no Pará, e de outros artistas.
Canclini, ao citar Aracy Amaral, dá um diagnóstico sobre a arte e a literatura brasileira que
ratifica nossa afirmação na canção brasileira: “Os modernismos beberam em fontes duplas e
antagônicas: de um lado, a informação internacional (...) de outro, ‘um nativismo que se
evidenciaria na inspiração e busca de nossas raízes’” (idem, p.79).
2. O Grupo Cravo Carbono e a Obra Peixe Vivo
Sendo o nosso objeto de estudo o grupo Cravo Carbono, e mais especificamente, o
álbum Peixe Vivo, faz-se necessário conhecermos o cenário musical paraense em que estava
inserido e o modo como surgiu e atuou. É também de extrema importância apresentarmos a
obra em questão para que haja maior familiarização com a mesma a fim de que se possa
entender melhor o conteúdo a ser estudado.
Em Belém-PA, experimentações com elementos musicais provenientes de várias
culturas tornaram-se mais evidentes nos anos 90, com bandas identificadas como sendo de
rock e um público mais aberto a experimentações novas misturando sons regionais aos
acordes da guitarra com efeito de distorção, por exemplo. Havia grupos trabalhando com a
fusão de vários elementos rítmicos, incluindo o brega, música indiana, indígena, eletrônica,
entre outros. Nesta mesma linha surgiam também outros grupos em diversas regiões do país.
As bandas daqui inovavam também no seu instrumental, com cornetas feitas de garrafas de
refrigerante descartáveis, por exemplo. É neste contexto que surge o Cravo Carbono.
A banda trabalhava dentro da tradição instrumental de rock básico: guitarra, baixo e
bateria, e talvez por isso tenha sido, muitas vezes, confundida com uma banda de rock, sendo
associada a este gênero pela imprensa local e penetrando em espaços como programas e casas
de espetáculos destinadas a este estilo. De fato, o rock se faz presente em suas composições,
mas ele é apenas mais um elemento que faz parte de suas experiências musicais. O poeta e
compositor Lázaro Magalhães nega este rótulo à banda:
Somos um grupo de MPB (...) MPB é o retrato do próprio povo brasileiro que é um
povo que se miscigenou, veio de várias matrizes étnicas, trouxe influências de todo
mundo e misturou tudo numa história só. Então, a gente entende que fazer rock ou
fazer pop no Brasil é fazer MPB, porque a MPB está se apropriando disso e
transformando em outras coisas. (...) somos brasileiros devorando o rock, digerindo
isso e trazendo pra dentro da nossa história, e mais especificamente, com a nossa
história regional que já tem muitas coisas, como carimbó, guitarrada etc.
(MAGALHÃES, em entrevista em 03 de julho de 2001).
É desta mistura de ‘histórias’ de que fala o vocalista do grupo que trataremos. E é o
‘barulho’ da modernidade que chega aos ouvidos dos integrantes do grupo: o motor dos
carros; músicas tocadas em fortes intensidades nos ônibus de Belém, nos carros particulares e
nas caixas fixadas nos postes com rádios comunitárias (algo muito comum na Cidade Velha e
em outros bairros da cidade) e rádios AM. Juntando isso a um certo som produzido pelo
computador e acrescentando esse ‘tempero’ regional e à poesia, o grupo cria suas
composições.
Cravo e carbono seria a combinação exótica e sonora de dois nomes, que segundo os
integrantes da banda, soa como uma espécie de “ciência da mercearia”. O grupo surgiu entre
1996 e 1997 no bairro da Cidade Velha e se consolidou com a seguinte formação: Lázaro
78 Ictus 10 - 2
Magalhães (vocal), Pio Lobato (guitarra e baixo), Bruno Rabelo (baixo e guitarra) e Clenilson
Almeida (Vovô) (bateria). Entre eles, havia uma necessidade de fazer música como uma
experimentação, ou seja, criaram o que eles mesmos definiram como um “laboratório musical
do qual todos nós fazemos parte”. Uma de suas experiências era ouvir os sons produzidos
pelo computador.
A música do grupo aglutina diversas influências, entre elas, o samba, a marcha, o
frevo, o choro, e aquelas mais ouvidas ou surgidas na região amazônica: o merengue, o boi-
bumbá, o brega, o carimbó, a cumbia, o zuque e as guitarradas2
. Pio Lobato, responsável pela
influência das guitarradas no grupo, conta que são o modo de tocar guitarra próprio do
paraense, pelo fato deste não ter tido, na época da chegada da guitarra no Pará, referências de
como tocá-la. É, portanto, a guitarra com o jeito de tocar paraense. E, acabou por se tornar
uma música ouvida tradicionalmente pelos ribeirinhos do estado.
Lobato afirma que as músicas regionais entram como um elemento ‘simbólico’ apenas.
Isso quer dizer que, não daria para afirmarmos que tocam um carimbó ou um brega na íntegra;
o que acontece é uma espécie de releitura. É interessante notarmos que os quatro integrantes
possuem diversas influências; podemos dizer que o som ouvido voluntariamente por eles é o
rock progressivo, MPB, funk, samba, ritmos paraenses que permitem essa fusão musical a que
se propõem.
Com este estilo próprio, o grupo fazia várias apresentações em casas noturnas, teatros
e espaços acadêmicos de Belém, bem como na TV Cultura e Rádio Cultura FM do Pará. Foi
num estúdio desta rádio que o grupo gravou a maior parte das composições que comporiam o
álbum “Peixe Vivo” lançado em 2001 (há um álbum anterior a esse, chamado “Mundo-Açu”,
gravado em computador caseiro e que obteve pouca repercussão). Devido ao sucesso deste
álbum, no ano seguinte ao lançamento, o grupo foi incluído no mapeamento musical do
antropólogo brasileiro Hermano Vianna para o documentário multimídia Música do Brasil e,
por meio deste, teve uma faixa do seu CD incluída na trilha sonora do filme Deus é
Brasileiro, de Cacá Diegues. Em março de 2001, apresentou-se em São Paulo, no Centro Itaú
Cultural, na mostra nacional do projeto Rumos Itaú Cultural Música – Tendências e Vertentes,
que mapeou 78 revelações musicais em todo o Brasil. Em 2003, o grupo iniciou as gravações
do álbum “Córtex” com o apoio da Lei de incentivo Tó Teixeira e da Fundação Cultural
Y.Yamada, o qual só foi lançado em 2007. Em 2008, Córtex ganhou um prêmio de melhor
álbum por meio de votações num site da internet e, ainda, fez parte da coletânea de uma
revista francesa, a qual mostra o trabalho de bandas definidas como o novo rock brasileiro. Ao
final deste mesmo ano, o grupo se diluiu, alguns músicos deram prosseguimento aos seus
projetos paralelos e carreira solo, e outros estão em fase de experimentação a fim de que surja
um novo projeto, com outros músicos.
• O Peixe Vivo
Peixe Vivo é um álbum que começou a ser Produzido por Pio Lobato em 1997, com
duas faixas ‘caseiras’ (produzidas em computador dentro de uma residência) denominadas
“Psicocumbia” e “Recado para Lúcio Maia”; as outras canções foram gravadas ao vivo no
estúdio da FUNTELPA (Fundação das Telecomunicações do Pará) em setembro de 1999,
2Cumbia: ritmos que nasceu na região caribenha do que hoje é a Colômbia. Zuque ou zouk:
gênero musical originariamente caribenho, surgido nas Antilhas. Guitarradas: tipo de música
instrumental caracterizada pelo uso da guitarra elétrica solo como elemento principal da
composição; iniciada em Barcarena-PA por Mestre Vieira.
Ictus 10 – 2 79
produzidas por Beto Fares, sendo elas: “São Cristóvão”, “Rasante”, “Mestre Vieira”, “Mundo-
Açu”, “Capoeira Geográfica”, “Ver o Peso”, “Conselho Barato”, “Andarilho” e “Mercúrio”
totalizando 11 faixas. Na configuração final do CD, as duas faixas caseiras, que são
instrumentais, foram consideradas como faixas bônus. O álbum foi lançado em 2001, pela
Cardume Produções, uma produtora localizada na Cidade Velha, composta por alguns
membros da banda. Este álbum é de fundamental importância para detectarmos a presença
principalmente de elementos tradicionais e modernos no trabalho do grupo.
3. Um Peixe Vivo na Amazônia Plural
Segundo Laraia (2004), o homem depende do acesso a certos materiais que atendam as
suas necessidades na comunidade em que vive, um material que lhe permita exercer a sua
criatividade de uma maneira revolucionária. Para aplicarmos esta idéia à realidade do
compositor que habita a Amazônia, especialmente os ribeirinhos, devemos considerar as
palavras do músico e compositor Tynnôko Costa, “A aplicação de técnicas modernas em
particular na música, se bem aproveitadas de repente aquele artista caboclo que tem um poder
de criatividade evoluído tivesse a oportunidade de estudar e desenvolver essas técnicas, ele
seria em pouco tempo um gênio da música” (COSTA, 2000, p.28). O trabalho do grupo Cravo
Carbono, acreditamos, consiste nesta aplicação.
Em Belém, este grupo musical trabalhou com poesia modernista e moderna3
, aliada a
gêneros musicais tradicionais e modernos. A obra Peixe Vivo, do grupo, apresenta estilos
musicais latinos, que têm circulação na Amazônia, como a cumbia e o merengue, e derivações
desses ritmos, como as guitarradas e gêneros musicais como o funk e o rock.
Esta mistura de gêneros e estilos musicais presentes no nosso cotidiano, conseqüência
da nossa “modernidade tardia” de que fala Hall e que caracteriza a hibridação, está presente
na Amazônia e aparece como idéia central da canção Mundo-Açu que Magalhães define bem
no próprio poema impresso no encarte, com uma margem curva à esquerda a imitar fios de
cabelo com o que o poeta compara os braços de rios da Amazônia. Basta observar a primeira
estrofe:
Amazonas
Segura ao pêlo
Rios
Negros
Fios
De cabelos
Nheengatu
Nem eu
Nem tu
Podemos observar a aproximação entre o som de ‘rios’ e ‘fios’, de ‘pêlo’ e ‘cabelos’
numa fala fragmentada e sugerir que a poesia de Magalhães é concretista, trabalhando,
portanto, com elementos de vanguarda da poesia modernista, mas, inserindo aí a temática
amazônica, sua diversidade e suas contradições. Por beber tanto no tradicional, falando de
uma língua nativa, do rio da região amazônica; quanto no moderno, por meio da poesia
3O Moderno aqui está ligado à tradição da lírica moderna que não mais representa, mas sim
desconstrói a referencialidade do real para reconstruí-la em novas imagens poéticas.
80 Ictus 10 - 2
modernista, é provável que esteja dando continuidade ao processo que Oswald de Andrade
chamou de Antropofágico4
e que Canclini mostrou estar em geral na arte latino-americana, a
partir do século XX, quando fala da Semana de Arte Moderna de 1922: “Os modernismos
beberam em fontes duplas e antagônicas: de um lado, a informação internacional (...) de outro,
‘um nativismo que se evidenciaria na inspiração e busca de nossas raízes’” (CANCLINI,
2006, p.79).
Magalhães fala de hibridação da seguinte forma: “Caberá nos globos dos olhos este
nosso Mundo-Açu (o olhar caboclo sobre este mundo vasto mundo)?”. Este é o trecho de um
dos boxes que o poeta disponibilizou ao lado de cada letra no encarte de modo a tentar
explicar a intenção da letra no momento em que foi feita, explicação essa que poderá ser
complementada pelo leitor, já que cada canção permite várias interpretações. Ele
complementa esta idéia de ‘mundo-açu’ em entrevista: “É mundo grande(...)Mundo-açu seria
essa nossa visão do mundo, mas sendo a gente. É como entrar no mundo, não pela porta da
globalização que você tem que ser americano(...)falar inglês pra ser do mundo...não! Você é
do mundo sendo ‘eu’!”(MAGALHÃES, 03/07/2001) e comenta a estrofe acima:
Nheengatu é uma língua geral que a gente falava no Brasil(...)Os portugueses
chegaram e não conseguiram impor a língua portuguesa, passaram séculos falando
uma língua que era indígena(...)Então isso foi(...)um choque cultural e a gente
precisa entender isso, porque dá impressão que nós(...)queremos ser europeus e
queremos ser americanos e temos uma tradição grande de um povo indígena que fez
parte da nossa formação e influencia no que a gente come(...) no que a gente faz e a
gente nega isso(...)Nem eu nem você falamos nheengatu, mas ainda tentamos ser
brasileiros.(MAGALHÃES, em entrevista em 03 de julho de 2001).
Cabe-nos, lembrar, agora, a questão da identidade cultural pontuada por Hall. Qual
seria a identidade do nativo da Amazônia? Magalhães esclarece que somos um povo que tem,
muitas vezes, traços indígenas estampados no rosto, no entanto, negamo-nos em prol de outra
etnia, por vezes até a de um povo que exerceu ou exerce domínio econômico sobre nós
mesmos. Interessante é notarmos que esse amazônida que Magalhães afirma negar as origens
é o mesmo que ouve músicas permeada por elementos indígenas e latinos.
O instrumental, em compasso 2/4, tem a linha melódica de uma lambada, ritmo
caribenho e, consequentemente, um ritmo sincopado, porém, em alguns momentos, a bateria
acentua sua batida, tornando-a mais reta, como um hardcore5
relativamente desacelerado;
temos, portanto, a mistura entre um ritmo ouvido tradicionalmente na região e uma vertente
do rock que surgiu após o advento da modernidade.
Mercúrio é uma canção que o grupo definiu com um “brega distinto” no encarte do
álbum. Primeiro devemos considerar o fato de que o gênero escolhido pelo grupo já é um
exemplo de multiculturalismo na Amazônia. O brega surgiu no Pará como uma fusão de
alguns ritmos caribenhos com outros reminiscentes do movimento da Jovem Guarda. Num
Box explicativo ao lado da letra Mercúrio, temos: “(...) Assimilado o compasso 4/4 americano
ganhou andamento acelerado que lhe conferiu um sentido mais dançante: música de baile,
4Manifestação artística da década de 20 que tinha por objetivo a deglutição da cultura
estrangeira sem, no entanto imitá-la, para re-elaborar suas técnicas com autonomia,
convertendo-as em produto de exportação.
5Vertente do rock, especificamente do punk rock, que surgiu no final dos anos 70 nos Estados
Unidos e na Inglaterra.
Ictus 10 – 2 81
para dançar agarrado”. Neste parágrafo podemos perceber que outros ritmos originaram e/ou
constituem o gênero.
Tendo-se o brega como esse fenômeno que agrega culturas diferentes e que na sua
simplicidade faz com que as camadas populares se identifiquem, o Cravo Carbono lhe
imprimiu, ainda, nova roupagem. A obra Mercúrio une o “picotado” típico da guitarra
paraense ao 2/4 do boi-bumbá no contrabaixo segundo a informação contida no encarte do
álbum. Sabe-se que o boi-bumbá também é uma cultura que agrega várias outras. Ainda, para
complementar esse pluralismo contido na música, temos a letra como um poema cheio de
metáforas, em que prevalece a idéia da intolerância às peculiaridades da região amazônica,
vejamos a primeira estrofe:
Solto o paralelo
Amarelo
Me desmancha
A tolerância
Desafio de amor
É azul distância
Ar erguido
Ante a lembrança
Ainda no encarte, a seguinte informação: “Partir (soltar o paralelo) então parece
ser a ordem na Amazônia do velho desgosto luso”. Observamos a partir dos versos ‘Solto o
paralelo’ e ‘Me desmancha’ o lirismo do poema em que há a determinação de uma certa
vontade de partir, deixar a Amazônia e junto com ela tudo o que se tem por desgosto. Um dos
aspectos desta estrofe, segundo Magalhães, é o fato de o fim do amor entre um garimpeiro e
uma prostituta (é interessante notar que é comum os garimpeiros da região ouvirem brega
para se divertirem nos fins de semana, a isso também se deve o gênero escolhido) ser um
motivo para o garimpeiro, desiludido com o amor da prostituta, ficar desiludido também com
o lugar onde vive e trabalha duro. Daí a vontade de partir, deixar a Amazônia, saturado desse
universo de multiculturalismo, de biodiversidade e de exploração, e com tantas riquezas que
ainda permitem que a maior parte da população seja pobre, sem possibilidade de melhoria. A
respeito disso, podemos dizer que a ‘modernização deficiente’ na América Latina de que fala
Canclini contribui para a permanência dessa diferença social:
Modernização com expansão restrita do mercado, democratização para minorias,
renovação das ideias mas com baixa eficácia nos processos sociais. Os desajustes
entre modernismo(cultural) e modernização(social) são úteis às classes dominantes
para preservar sua hegemonia, e às vezes para não ter que se preocupar em justificá-
la, para ser simplesmente classes dominantes. Na cultura escrita, conseguiram isso
limitando a escolarização e o consumo de livros e revistas (CANCLINI, 2006, p. 69)
A partir dessas observações, notamos que o grupo trabalhou a manutenção da base
rítmica de um certo gênero musical típico da região, ou mesmo unindo duas bases desses
gêneros acrescentando novos elementos, novas notas, por exemplo, ou ainda, ritmos de
padrão universal, como o funk e rock já citados, e uma certa técnica de modo a tornar sua
obra universalizada e, portanto, mais aceitável em outros lugares. Então, a obra do grupo cria
códigos de compreensão além do âmbito cultural em que ela é praticada, universalizando a
sua comunicação, a sua expressão, como explica João de Jesus Paes Loureiro ao comentar o
trabalho de Costa: “(...) uma vinculação das raízes simbólicas e musicais e culturais da
Amazônia e do Pará, a uma linguagem universal, que permita interesse em qualquer lugar do
mundo, que seja compreendida e agrade, embora as pessoas, sabendo que elas são diferentes
82 Ictus 10 - 2
do seu lugar, que elas são ‘Amazônica’” (Loureiro apud COSTA, 2000, p.26). O
universalismo e o regionalismo na obra, portanto, não se excluem; ao contrário,
complementam-se para expressar o que o próprio poeta Magalhães chamaria de ‘Mundo-
Açu’. O grupo reconhece o diálogo da música paraense com ritmos que vão além das
fronteiras nacionais. A hibridação, como pudemos perceber, permeia sua obra.
Considerações finais
Devemos esclarecer que este é apenas o esboço de questões que serão aprofundadas na
dissertação que já consegue, como este artigo, localizar pequenos focos de pluralidade na obra
Peixe Vivo. Além de identificar a pluralidade cultural na obra, pretendemos, ainda, identificar
a letra da música como poesia e pesquisar a relação dessa poesia com o instrumental da
canção. Com tudo o que conseguimos até o momento, percebo a riqueza da obra Peixe Vivo
que, no entanto, permanece na memória de alguns paraenses e de uns poucos brasileiros sem
ter sido reconhecida sua importância para a cultura do país.
Bibliografia
Canclini, Nestor García. 2006. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da
modernidade. 4. ed. Trad. Heloísa Pezza Cintrão; Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo.
Costa, Tynnôko. 2000. Ritmos Amazônicos: entrevista. Belém: CEJUP.
Hall, Stuart. 2005. A identidade cultural na pós-modernidade. 10 ed. Trad. Tomaz Tadeu da
Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A.
Laraia, Roque de Barros. 2004. Cultura: um conceito antropológico. 17 ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor.
Referências fonográficas
CRAVO CARBONO. Peixe Vivo. 29:24. Belém: setembro, 1999.
PAULO ANDRÉ BARATA. Nativo. Rio de Janeiro: agosto, 1978.
Filmografia
Diegues, Cacá. Deus é Brasileiro. São Paulo, 2003.
Ictus 10 – 2 83

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A pluralidade cultural na obra do cravo carbono.keila.ictus

  • 1. A Pluralidade Cultural na Obra do Cravo Carbono Keila Michelle Silva Monteiro1 keilamail@yahoo.com.br Resumo Este artigo focaliza um dos grupos de música urbana na Amazônia que trabalha com a pluralidade cultural. O objetivo do texto é revelar alguns elementos dessa pluralidade em determinados momentos na letra e música de algumas faixas do álbum Peixe Vivo, lançado em 2001 pelo grupo Cravo Carbono/. As referências teóricas são as obrasCulturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade de Nestor García Canclini (2006) e A identidade cultural na pós-modernidade de Stuart Hall (2005). Abstract This article focalizes one of the groups of urban music in Amazon that works with the cultural plurality. We intend reveal some elements of this plurality in certain lyrics and music of Peixe Vivo (Live Fish) album, it was published in 2001 by the Cravo Carbono group, having as theoretical base the works Hybrid Cultures: strategies for entering and leaving the modernity by Nestor García Canclini (2006) and The cultural identity in the postmodernity by Stuart Hall (2005). Introdução Este texto considera apenas um dos vários aspectos de uma pesquisa de dissertação que ainda está dando os primeiros passos e deverá ser concluída e apresentada ao final do curso de Mestrado em Artes pela Universidade Federal do Pará que teve início em março de 2009. Em Belém, no final dos anos 90, surgiram bandas com estilos variados/. Em 2001, uma delas lançou um álbum que chamou a atenção pelo modo como conduzia suas composições, trabalhando com releituras de ritmos do cotidiano paraense. Este grupo chamava-se Cravo Carbono e chamou a atenção, em especial, pela técnica que apresentava na execução de suas músicas e pela riqueza poética de suas letras, apesar de outros grupos, ou bandas, também imprimirem certa poesia em sua música/. Então, percebi que o álbum recém lançado, na época, pelo grupo, intitulado Peixe Vivo, poderia ser objeto de estudo, basicamente por dois fatores: por unir duas artes: a poesia e a música e por relacionar elementos tradicionais e modernos numa mesma obra. Esta relação, aliás, já vem sendo alvo de discussões por sociólogos, antropólogos, etnomusicólogos e, inclusive, está presente nas obras de alguns músicos na cidade de Belém. Estes elementos, sendo que na pluralidade cultural da Amazônia, serão o foco do presente trabalho e, para isso, faremos um breve histórico acerca da trajetória do grupo com ênfase na obra Peixe Vivo, e então prosseguiremos com a demonstração da presença destes elementos concomitantemente numa mesma canção em trechos de algumas faixas deste álbum. 1/. Mestranda do Curso de Mestrado em Artes pela Universidade Federal do Pará; professora de música pela Secretaria Municipal de Educação Ictus 10 - 2
  • 2. 1. Pluralidade Cultural e Hibridação Para tratarmos da presença da pluralidade que afeta a nossa atual sociedade e, claro, a nossa cultura, faz-se necessário retomarmos as ideias de Hall (2005) que fala da questão da identidade na modernidade tardia, em que se chocam elementos tradicionais, modernos, nacionais, regionais e estrangeiros na práxis das sociedades do mundo atual e Caclini (2006) que trata do convívio destes mesmos elementos nas sociedades e na cultura da América Latina. • Hall nos revela que há argumentos que afirmam que o sujeito pós-moderno está se tornando fragmentado, composto de várias identidades, por vezes contraditórias ou não- resolvidas, sendo quase impossível, hoje, identificarmos nossas identidades culturais, por estarmos em constante transformação. Isto seria o que difere as sociedades “modernas” das “tradicionais”, visto que estas, segundo Giddens (apud Hall) veneram o passado e valorizam os símbolos, por conterem estes experiências de gerações além de perpetuá-las. Um termo interessante, adotado por Hall é a ‘pluralização’ de identidades, a qual começou a emergir quando “As transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas” (HALL, 2005, p.25). Dado isto, sua identificação (e não mais a ‘identidade’ termo que perdeu praticamente o sentido, por sua fragmentação) passou a se tornar um processo em andamento. As culturas nacionais são colocadas entre o passado e o futuro, visto que seu discurso se mantém entre a vontade de retornar às glórias do passado e o impulso por avançar ainda mais em direção á modernidade. A etnia, no mundo moderno ocidental, revela-se híbrida; ainda assim “as culturas nacionais contribuem para “costurar” as diferenças numa única identidade” (idem, p.65). Há ainda uma “costura” numa escala global, para além da fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, o que Hall chamou de “processo e homogeneização”. Segundo o autor, de acordo com estes fatos, a identidade, na era da globalização, estaria destinada a retornar a suas “raízes”; a desaparecer por meio da assimilação e da homogeneização; ou ainda a virar “Tradução”, situação que o autor destina a pessoas pertencentes a “culturas híbridas”, ou seja, que longe da sua terra natal, carregam traços das culturas de seus lugares de origem e suas tradições e de outras culturas. • Canclini afirma que, na América Latina, as tradições ainda não se foram e a modernidade não terminou de chegar, e que não estamos convictos de que nos modernizar seja o principal objetivo como divulgam políticos, economistas e a publicidade de novas tecnologias. A partir daí, podemos chegar à conclusão que a modernidade chega à América Latina após a pós-modernidade europeia apesar de termos algo de pós-moderno em pouquíssimos aspectos do mercado cultural, por exemplo. O autor fala de ‘hibridação’, termo que usa no sentido de mestiçagem, sincretismo, fusão e outros vocábulos empregados para designar misturas particulares. Essa hibridação é percebida como processos e como uma mistura de estruturas e práticas discretas que existem de forma separada, mas não pura, em combinações que geram novas estruturas, objetos e práticas. Um exemplo claro disso é o que ocorre na música, quando diz: É possível colocar sob um só termo fatos tão variados quanto (...) a fusão de melodias étnicas com música clássica e contemporânea ou com o jazz e a salsa (...) mistura de ritmos andinos e caribenhos; a reinterpretação jazzística de Mozart (...) pelo grupo afro-cubano Irakere; as reelaborações de melodias inglesas e hindus (...) pelos Beatles, Peter Gabiel e outros músicos (?). (CANCLINI, 2006, p.XX). Ictus 10 – 2 77
  • 3. Desse modo, no caso do Brasil, do encontro entre várias culturas diferentes cria-se uma composição que vai ser inserida na indústria cultural chamada MPB, mais um rótulo comercial que um estilo. E, no caso da região amazônica, mais especificamente paraense, além do grupo que é foco da nossa pesquisa, essa pluralidade cultural está presente nas obras de Ruy e Paulo André Barata, grandes expoentes da MPB no Pará, e de outros artistas. Canclini, ao citar Aracy Amaral, dá um diagnóstico sobre a arte e a literatura brasileira que ratifica nossa afirmação na canção brasileira: “Os modernismos beberam em fontes duplas e antagônicas: de um lado, a informação internacional (...) de outro, ‘um nativismo que se evidenciaria na inspiração e busca de nossas raízes’” (idem, p.79). 2. O Grupo Cravo Carbono e a Obra Peixe Vivo Sendo o nosso objeto de estudo o grupo Cravo Carbono, e mais especificamente, o álbum Peixe Vivo, faz-se necessário conhecermos o cenário musical paraense em que estava inserido e o modo como surgiu e atuou. É também de extrema importância apresentarmos a obra em questão para que haja maior familiarização com a mesma a fim de que se possa entender melhor o conteúdo a ser estudado. Em Belém-PA, experimentações com elementos musicais provenientes de várias culturas tornaram-se mais evidentes nos anos 90, com bandas identificadas como sendo de rock e um público mais aberto a experimentações novas misturando sons regionais aos acordes da guitarra com efeito de distorção, por exemplo. Havia grupos trabalhando com a fusão de vários elementos rítmicos, incluindo o brega, música indiana, indígena, eletrônica, entre outros. Nesta mesma linha surgiam também outros grupos em diversas regiões do país. As bandas daqui inovavam também no seu instrumental, com cornetas feitas de garrafas de refrigerante descartáveis, por exemplo. É neste contexto que surge o Cravo Carbono. A banda trabalhava dentro da tradição instrumental de rock básico: guitarra, baixo e bateria, e talvez por isso tenha sido, muitas vezes, confundida com uma banda de rock, sendo associada a este gênero pela imprensa local e penetrando em espaços como programas e casas de espetáculos destinadas a este estilo. De fato, o rock se faz presente em suas composições, mas ele é apenas mais um elemento que faz parte de suas experiências musicais. O poeta e compositor Lázaro Magalhães nega este rótulo à banda: Somos um grupo de MPB (...) MPB é o retrato do próprio povo brasileiro que é um povo que se miscigenou, veio de várias matrizes étnicas, trouxe influências de todo mundo e misturou tudo numa história só. Então, a gente entende que fazer rock ou fazer pop no Brasil é fazer MPB, porque a MPB está se apropriando disso e transformando em outras coisas. (...) somos brasileiros devorando o rock, digerindo isso e trazendo pra dentro da nossa história, e mais especificamente, com a nossa história regional que já tem muitas coisas, como carimbó, guitarrada etc. (MAGALHÃES, em entrevista em 03 de julho de 2001). É desta mistura de ‘histórias’ de que fala o vocalista do grupo que trataremos. E é o ‘barulho’ da modernidade que chega aos ouvidos dos integrantes do grupo: o motor dos carros; músicas tocadas em fortes intensidades nos ônibus de Belém, nos carros particulares e nas caixas fixadas nos postes com rádios comunitárias (algo muito comum na Cidade Velha e em outros bairros da cidade) e rádios AM. Juntando isso a um certo som produzido pelo computador e acrescentando esse ‘tempero’ regional e à poesia, o grupo cria suas composições. Cravo e carbono seria a combinação exótica e sonora de dois nomes, que segundo os integrantes da banda, soa como uma espécie de “ciência da mercearia”. O grupo surgiu entre 1996 e 1997 no bairro da Cidade Velha e se consolidou com a seguinte formação: Lázaro 78 Ictus 10 - 2
  • 4. Magalhães (vocal), Pio Lobato (guitarra e baixo), Bruno Rabelo (baixo e guitarra) e Clenilson Almeida (Vovô) (bateria). Entre eles, havia uma necessidade de fazer música como uma experimentação, ou seja, criaram o que eles mesmos definiram como um “laboratório musical do qual todos nós fazemos parte”. Uma de suas experiências era ouvir os sons produzidos pelo computador. A música do grupo aglutina diversas influências, entre elas, o samba, a marcha, o frevo, o choro, e aquelas mais ouvidas ou surgidas na região amazônica: o merengue, o boi- bumbá, o brega, o carimbó, a cumbia, o zuque e as guitarradas2 . Pio Lobato, responsável pela influência das guitarradas no grupo, conta que são o modo de tocar guitarra próprio do paraense, pelo fato deste não ter tido, na época da chegada da guitarra no Pará, referências de como tocá-la. É, portanto, a guitarra com o jeito de tocar paraense. E, acabou por se tornar uma música ouvida tradicionalmente pelos ribeirinhos do estado. Lobato afirma que as músicas regionais entram como um elemento ‘simbólico’ apenas. Isso quer dizer que, não daria para afirmarmos que tocam um carimbó ou um brega na íntegra; o que acontece é uma espécie de releitura. É interessante notarmos que os quatro integrantes possuem diversas influências; podemos dizer que o som ouvido voluntariamente por eles é o rock progressivo, MPB, funk, samba, ritmos paraenses que permitem essa fusão musical a que se propõem. Com este estilo próprio, o grupo fazia várias apresentações em casas noturnas, teatros e espaços acadêmicos de Belém, bem como na TV Cultura e Rádio Cultura FM do Pará. Foi num estúdio desta rádio que o grupo gravou a maior parte das composições que comporiam o álbum “Peixe Vivo” lançado em 2001 (há um álbum anterior a esse, chamado “Mundo-Açu”, gravado em computador caseiro e que obteve pouca repercussão). Devido ao sucesso deste álbum, no ano seguinte ao lançamento, o grupo foi incluído no mapeamento musical do antropólogo brasileiro Hermano Vianna para o documentário multimídia Música do Brasil e, por meio deste, teve uma faixa do seu CD incluída na trilha sonora do filme Deus é Brasileiro, de Cacá Diegues. Em março de 2001, apresentou-se em São Paulo, no Centro Itaú Cultural, na mostra nacional do projeto Rumos Itaú Cultural Música – Tendências e Vertentes, que mapeou 78 revelações musicais em todo o Brasil. Em 2003, o grupo iniciou as gravações do álbum “Córtex” com o apoio da Lei de incentivo Tó Teixeira e da Fundação Cultural Y.Yamada, o qual só foi lançado em 2007. Em 2008, Córtex ganhou um prêmio de melhor álbum por meio de votações num site da internet e, ainda, fez parte da coletânea de uma revista francesa, a qual mostra o trabalho de bandas definidas como o novo rock brasileiro. Ao final deste mesmo ano, o grupo se diluiu, alguns músicos deram prosseguimento aos seus projetos paralelos e carreira solo, e outros estão em fase de experimentação a fim de que surja um novo projeto, com outros músicos. • O Peixe Vivo Peixe Vivo é um álbum que começou a ser Produzido por Pio Lobato em 1997, com duas faixas ‘caseiras’ (produzidas em computador dentro de uma residência) denominadas “Psicocumbia” e “Recado para Lúcio Maia”; as outras canções foram gravadas ao vivo no estúdio da FUNTELPA (Fundação das Telecomunicações do Pará) em setembro de 1999, 2Cumbia: ritmos que nasceu na região caribenha do que hoje é a Colômbia. Zuque ou zouk: gênero musical originariamente caribenho, surgido nas Antilhas. Guitarradas: tipo de música instrumental caracterizada pelo uso da guitarra elétrica solo como elemento principal da composição; iniciada em Barcarena-PA por Mestre Vieira. Ictus 10 – 2 79
  • 5. produzidas por Beto Fares, sendo elas: “São Cristóvão”, “Rasante”, “Mestre Vieira”, “Mundo- Açu”, “Capoeira Geográfica”, “Ver o Peso”, “Conselho Barato”, “Andarilho” e “Mercúrio” totalizando 11 faixas. Na configuração final do CD, as duas faixas caseiras, que são instrumentais, foram consideradas como faixas bônus. O álbum foi lançado em 2001, pela Cardume Produções, uma produtora localizada na Cidade Velha, composta por alguns membros da banda. Este álbum é de fundamental importância para detectarmos a presença principalmente de elementos tradicionais e modernos no trabalho do grupo. 3. Um Peixe Vivo na Amazônia Plural Segundo Laraia (2004), o homem depende do acesso a certos materiais que atendam as suas necessidades na comunidade em que vive, um material que lhe permita exercer a sua criatividade de uma maneira revolucionária. Para aplicarmos esta idéia à realidade do compositor que habita a Amazônia, especialmente os ribeirinhos, devemos considerar as palavras do músico e compositor Tynnôko Costa, “A aplicação de técnicas modernas em particular na música, se bem aproveitadas de repente aquele artista caboclo que tem um poder de criatividade evoluído tivesse a oportunidade de estudar e desenvolver essas técnicas, ele seria em pouco tempo um gênio da música” (COSTA, 2000, p.28). O trabalho do grupo Cravo Carbono, acreditamos, consiste nesta aplicação. Em Belém, este grupo musical trabalhou com poesia modernista e moderna3 , aliada a gêneros musicais tradicionais e modernos. A obra Peixe Vivo, do grupo, apresenta estilos musicais latinos, que têm circulação na Amazônia, como a cumbia e o merengue, e derivações desses ritmos, como as guitarradas e gêneros musicais como o funk e o rock. Esta mistura de gêneros e estilos musicais presentes no nosso cotidiano, conseqüência da nossa “modernidade tardia” de que fala Hall e que caracteriza a hibridação, está presente na Amazônia e aparece como idéia central da canção Mundo-Açu que Magalhães define bem no próprio poema impresso no encarte, com uma margem curva à esquerda a imitar fios de cabelo com o que o poeta compara os braços de rios da Amazônia. Basta observar a primeira estrofe: Amazonas Segura ao pêlo Rios Negros Fios De cabelos Nheengatu Nem eu Nem tu Podemos observar a aproximação entre o som de ‘rios’ e ‘fios’, de ‘pêlo’ e ‘cabelos’ numa fala fragmentada e sugerir que a poesia de Magalhães é concretista, trabalhando, portanto, com elementos de vanguarda da poesia modernista, mas, inserindo aí a temática amazônica, sua diversidade e suas contradições. Por beber tanto no tradicional, falando de uma língua nativa, do rio da região amazônica; quanto no moderno, por meio da poesia 3O Moderno aqui está ligado à tradição da lírica moderna que não mais representa, mas sim desconstrói a referencialidade do real para reconstruí-la em novas imagens poéticas. 80 Ictus 10 - 2
  • 6. modernista, é provável que esteja dando continuidade ao processo que Oswald de Andrade chamou de Antropofágico4 e que Canclini mostrou estar em geral na arte latino-americana, a partir do século XX, quando fala da Semana de Arte Moderna de 1922: “Os modernismos beberam em fontes duplas e antagônicas: de um lado, a informação internacional (...) de outro, ‘um nativismo que se evidenciaria na inspiração e busca de nossas raízes’” (CANCLINI, 2006, p.79). Magalhães fala de hibridação da seguinte forma: “Caberá nos globos dos olhos este nosso Mundo-Açu (o olhar caboclo sobre este mundo vasto mundo)?”. Este é o trecho de um dos boxes que o poeta disponibilizou ao lado de cada letra no encarte de modo a tentar explicar a intenção da letra no momento em que foi feita, explicação essa que poderá ser complementada pelo leitor, já que cada canção permite várias interpretações. Ele complementa esta idéia de ‘mundo-açu’ em entrevista: “É mundo grande(...)Mundo-açu seria essa nossa visão do mundo, mas sendo a gente. É como entrar no mundo, não pela porta da globalização que você tem que ser americano(...)falar inglês pra ser do mundo...não! Você é do mundo sendo ‘eu’!”(MAGALHÃES, 03/07/2001) e comenta a estrofe acima: Nheengatu é uma língua geral que a gente falava no Brasil(...)Os portugueses chegaram e não conseguiram impor a língua portuguesa, passaram séculos falando uma língua que era indígena(...)Então isso foi(...)um choque cultural e a gente precisa entender isso, porque dá impressão que nós(...)queremos ser europeus e queremos ser americanos e temos uma tradição grande de um povo indígena que fez parte da nossa formação e influencia no que a gente come(...) no que a gente faz e a gente nega isso(...)Nem eu nem você falamos nheengatu, mas ainda tentamos ser brasileiros.(MAGALHÃES, em entrevista em 03 de julho de 2001). Cabe-nos, lembrar, agora, a questão da identidade cultural pontuada por Hall. Qual seria a identidade do nativo da Amazônia? Magalhães esclarece que somos um povo que tem, muitas vezes, traços indígenas estampados no rosto, no entanto, negamo-nos em prol de outra etnia, por vezes até a de um povo que exerceu ou exerce domínio econômico sobre nós mesmos. Interessante é notarmos que esse amazônida que Magalhães afirma negar as origens é o mesmo que ouve músicas permeada por elementos indígenas e latinos. O instrumental, em compasso 2/4, tem a linha melódica de uma lambada, ritmo caribenho e, consequentemente, um ritmo sincopado, porém, em alguns momentos, a bateria acentua sua batida, tornando-a mais reta, como um hardcore5 relativamente desacelerado; temos, portanto, a mistura entre um ritmo ouvido tradicionalmente na região e uma vertente do rock que surgiu após o advento da modernidade. Mercúrio é uma canção que o grupo definiu com um “brega distinto” no encarte do álbum. Primeiro devemos considerar o fato de que o gênero escolhido pelo grupo já é um exemplo de multiculturalismo na Amazônia. O brega surgiu no Pará como uma fusão de alguns ritmos caribenhos com outros reminiscentes do movimento da Jovem Guarda. Num Box explicativo ao lado da letra Mercúrio, temos: “(...) Assimilado o compasso 4/4 americano ganhou andamento acelerado que lhe conferiu um sentido mais dançante: música de baile, 4Manifestação artística da década de 20 que tinha por objetivo a deglutição da cultura estrangeira sem, no entanto imitá-la, para re-elaborar suas técnicas com autonomia, convertendo-as em produto de exportação. 5Vertente do rock, especificamente do punk rock, que surgiu no final dos anos 70 nos Estados Unidos e na Inglaterra. Ictus 10 – 2 81
  • 7. para dançar agarrado”. Neste parágrafo podemos perceber que outros ritmos originaram e/ou constituem o gênero. Tendo-se o brega como esse fenômeno que agrega culturas diferentes e que na sua simplicidade faz com que as camadas populares se identifiquem, o Cravo Carbono lhe imprimiu, ainda, nova roupagem. A obra Mercúrio une o “picotado” típico da guitarra paraense ao 2/4 do boi-bumbá no contrabaixo segundo a informação contida no encarte do álbum. Sabe-se que o boi-bumbá também é uma cultura que agrega várias outras. Ainda, para complementar esse pluralismo contido na música, temos a letra como um poema cheio de metáforas, em que prevalece a idéia da intolerância às peculiaridades da região amazônica, vejamos a primeira estrofe: Solto o paralelo Amarelo Me desmancha A tolerância Desafio de amor É azul distância Ar erguido Ante a lembrança Ainda no encarte, a seguinte informação: “Partir (soltar o paralelo) então parece ser a ordem na Amazônia do velho desgosto luso”. Observamos a partir dos versos ‘Solto o paralelo’ e ‘Me desmancha’ o lirismo do poema em que há a determinação de uma certa vontade de partir, deixar a Amazônia e junto com ela tudo o que se tem por desgosto. Um dos aspectos desta estrofe, segundo Magalhães, é o fato de o fim do amor entre um garimpeiro e uma prostituta (é interessante notar que é comum os garimpeiros da região ouvirem brega para se divertirem nos fins de semana, a isso também se deve o gênero escolhido) ser um motivo para o garimpeiro, desiludido com o amor da prostituta, ficar desiludido também com o lugar onde vive e trabalha duro. Daí a vontade de partir, deixar a Amazônia, saturado desse universo de multiculturalismo, de biodiversidade e de exploração, e com tantas riquezas que ainda permitem que a maior parte da população seja pobre, sem possibilidade de melhoria. A respeito disso, podemos dizer que a ‘modernização deficiente’ na América Latina de que fala Canclini contribui para a permanência dessa diferença social: Modernização com expansão restrita do mercado, democratização para minorias, renovação das ideias mas com baixa eficácia nos processos sociais. Os desajustes entre modernismo(cultural) e modernização(social) são úteis às classes dominantes para preservar sua hegemonia, e às vezes para não ter que se preocupar em justificá- la, para ser simplesmente classes dominantes. Na cultura escrita, conseguiram isso limitando a escolarização e o consumo de livros e revistas (CANCLINI, 2006, p. 69) A partir dessas observações, notamos que o grupo trabalhou a manutenção da base rítmica de um certo gênero musical típico da região, ou mesmo unindo duas bases desses gêneros acrescentando novos elementos, novas notas, por exemplo, ou ainda, ritmos de padrão universal, como o funk e rock já citados, e uma certa técnica de modo a tornar sua obra universalizada e, portanto, mais aceitável em outros lugares. Então, a obra do grupo cria códigos de compreensão além do âmbito cultural em que ela é praticada, universalizando a sua comunicação, a sua expressão, como explica João de Jesus Paes Loureiro ao comentar o trabalho de Costa: “(...) uma vinculação das raízes simbólicas e musicais e culturais da Amazônia e do Pará, a uma linguagem universal, que permita interesse em qualquer lugar do mundo, que seja compreendida e agrade, embora as pessoas, sabendo que elas são diferentes 82 Ictus 10 - 2
  • 8. do seu lugar, que elas são ‘Amazônica’” (Loureiro apud COSTA, 2000, p.26). O universalismo e o regionalismo na obra, portanto, não se excluem; ao contrário, complementam-se para expressar o que o próprio poeta Magalhães chamaria de ‘Mundo- Açu’. O grupo reconhece o diálogo da música paraense com ritmos que vão além das fronteiras nacionais. A hibridação, como pudemos perceber, permeia sua obra. Considerações finais Devemos esclarecer que este é apenas o esboço de questões que serão aprofundadas na dissertação que já consegue, como este artigo, localizar pequenos focos de pluralidade na obra Peixe Vivo. Além de identificar a pluralidade cultural na obra, pretendemos, ainda, identificar a letra da música como poesia e pesquisar a relação dessa poesia com o instrumental da canção. Com tudo o que conseguimos até o momento, percebo a riqueza da obra Peixe Vivo que, no entanto, permanece na memória de alguns paraenses e de uns poucos brasileiros sem ter sido reconhecida sua importância para a cultura do país. Bibliografia Canclini, Nestor García. 2006. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. Trad. Heloísa Pezza Cintrão; Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Costa, Tynnôko. 2000. Ritmos Amazônicos: entrevista. Belém: CEJUP. Hall, Stuart. 2005. A identidade cultural na pós-modernidade. 10 ed. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A. Laraia, Roque de Barros. 2004. Cultura: um conceito antropológico. 17 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Referências fonográficas CRAVO CARBONO. Peixe Vivo. 29:24. Belém: setembro, 1999. PAULO ANDRÉ BARATA. Nativo. Rio de Janeiro: agosto, 1978. Filmografia Diegues, Cacá. Deus é Brasileiro. São Paulo, 2003. Ictus 10 – 2 83