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Histórias de vida e transtornos alimentares:
                       intersecções multifacetadas
                               Daniela Ferreira Araujo Silva*



       Resumo:
       Se o modelo atual de causalidade para o conjunto de perturbações denominadas
       “transtornos alimentares” no campo das ciências biomédicas inclui fatores de
       ordem sócio-cultural, a própria história da definição desses transtornos indica que
       a intersecção entre tais perturbações e categorias sociais como gênero, classe e
       etnicidade permanece um terreno muito pouco explorado.
       Partindo de uma pesquisa baseada na construção de histórias de vida de pessoas
       que enfrentam ou enfrentaram um transtorno alimentar, o presente artigo procura
       indicar que tal abordagem metodológica abre possibilidades interessantes para
       investigar algumas das formas em que essas múltiplas dimensões da vida social
       co-produzem pessoas e suas aflições.
       Palavras-chave: transtornos alimentares e cultura; gênero; histórias de vida.
       Abstract:
       The current causation model for the afflictions defined by biomedical sciences as
       “eating disorders” includes socio-cultural factors. Nonetheless, the history of the
       definition of these disorders suggests that their intersection with social categories
       such as gender, class and ethnicity remains largely unexplored.
       Drawing from a research based on the construction of life histories of people who
       either suffered or are suffering from an eating disorder, this article suggests that
       such methodological approach may open up some interesting possibilities for the
       investigation of some ways in which these multiple dimensions of social life co-
       produce people and their ailments.
       Key words: eating disorders and culture; gender; life histories.


A partir da década 1970, os transtornos              aumento dos casos identificados reflete
alimentares emergiram como alvo de                   um crescimento na incidência, ou
maior     atenção     das    disciplinas             apenas à ampliação da capacidade de
biomédicas, sobretudo nos Estados                    reconhecer     sintomas    e   efetuar
Unidos,      chegando     a     suscitar             diagnósticos (WEINBERG; CORDÁS,
preocupações sobre uma possível                      2006: 17). Todavia, há quem defenda
“epidemia”1. Não há consenso se o                    que tal aumento estaria relacionado à
                                                     expansão da “lipofobia” [fat-phobia]
1
 O termo “epidemia”, em seu sentido estrito, é       lado a lado com a preocupação
empregado apenas no caso de doenças infecto-         generalizada com a “epidemia de
contagiosas, o que evidentemente não é o caso        obesidade” nas mesmas décadas.
dos transtornos alimentares. Todavia, mesmo          Tampouco há consenso no tocante à
autores da área de saúde empregam o termo,
como metáfora, para enfatizar o rápido aumento
                                                     relevância da contribuição dos ditos
dos casos diagnosticados.                            fatores sócio-culturais na causalidade


                                                                                               56
dos transtornos alimentares, mesmo que     distribuição dos casos entre os diferentes
alguns tenham sugerido classificá-los      segmentos que não passe pelo
como “síndromes ligadas à cultura”         argumento da influência dos fatores
[cultural-bound syndromes] (KEEL;          sócio-culturais (NASSER et al, 2001;
KLUMP, 2003: 747).                         SOH et al, 2006).
Independentemente das controvérsias        Em linhas bastante gerais, tais
citadas, é possível afirmar que há um      explicações atribuem o surgimento (ou
pressuposto compartilhado de que,          incremento) da incidência de transtornos
qualquer que seja a influência dos         alimentares nesses grupos como efeitos
fatores sócio-culturais na incidência      de processos de modernização – um
dessas perturbações, tais fatores          termo guarda-chuva que pouco nos
estariam ligados a aspectos da sociedade   informa sobre o caráter e sentidos dos
e cultura ocidental contemporânea,         processos sociais a que tenta aludir.
como o individualismo competitivo, a       Mais curioso ainda parece o fato de que,
cultura de consumo, a crescente            enquanto a “modernidade” parece ser
influência das disciplinas biomédicas na   um fator sempre limitado para explicar a
vida cotidiana através de noções como      “epidemia” de transtornos alimentares
prevenção de riscos e a auto-              em segmentos populacionais plenamente
responsabilização pela manutenção da       ocidentais e desenvolvidos, o mesmo
saúde, à lipofobia e ao padrão de beleza   argumento torna-se a explicação padrão
que sobrevaloriza a magreza.               para sua ocorrência nesses Outros
Esse pressuposto ganha destaque ao         grupos. Seja como um efeito colateral
voltarmos-nos      para    as   questões   ou      um     mal     necessário     ao
suscitadas pela “descoberta” de casos de   desenvolvimento (pensado sempre em
transtornos alimentares em segmentos       termos de uma progressiva aproximação
populacionais antes considerados como      ao padrão ocidental desenvolvido, ou
“protegidos” dessas desordens. Se          “aculturação”2), ou ainda como a
inicialmente a maioria dos casos           expressão do conflito vivido por pessoas
identificados ocorriam em mulheres         diante da escolha entre valores
jovens ou adolescentes, brancas,           tradicionais e modernos (choque entre
heterossexuais, de classe média a alta     culturas), os transtornos alimentares
em países ocidentais desenvolvidos,        parecem ser pensados como algo
cada vez mais surgem relatos de casos      inerente ou automático à modernidade,
não apenas em minorias étnicas ou          sobretudo em referência a Outros
raciais nesses mesmos países (NICDAO       contextos sócio-culturais.
et al, 2007), como nas mais diversas       Há poucos estudos qualitativos que
regiões do mundo (NASSER, 1997: 37-        procuram endereçar os conteúdos
38),    e também         entre homens
(RICCIARDELLI et al, 2007), gays,          2
lésbicas, crianças e pessoas mais velhas      A denominada teoria da aculturação já foi
                                           amplamente criticada no cânone antropológico
(MARCUS et al, 2007). Novamente,           contemporâneo, e é considerada ultrapassada.
inexiste o consenso se esses casos         Todavia, a idéia de que uma cultura pode ser
representam uma mudança no perfil          substituída por outra através do contato entre
epidemiológico ou se esses eram            ambas parece ainda ter apelo em alguns estudos
segmentos        populacionais      sub-   transculturais na área de saúde, sendo possível
                                           mesmo        encontrar     instrumentos    que
diagnosticados. Todavia, ainda não se      supostamente afeririam o “grau de aculturação”
encontrou nenhuma hipótese razoável        de determinadas populações. Ver, p. ex.,
para explicar a disparidade da             MARÍN et al, 1987 e LIM et al, 2002.


                                                                                       57
culturais das perturbações alimentares, e          diversos artigos5, foi conduzido em uma
os raros estudos sobre esses transtornos           comunidade rural de Fiji Ocidental
que empregam a metodologia de                      (Nadaroga),       entre     adolescentes
histórias de vida não endereçam                    autodenominadas etnicamente fijianas
diretamente a questão da alteridade                em escolas secundárias. Foi um estudo
cultural3. Para fins deste artigo, gostaria        prospectivo interseccional em duas
de comentar brevemente um desses                   fases, sendo a primeira em 1995 (poucas
trabalhos (BECKER et al, 2002; 2007),              semanas após a chegada da televisão na
dada a sua importância no campo dos                região), e a segunda em 1998.
estudos sobre a relação entre transtornos          As participantes do estudo responderam
alimentares e cultura, atentando para
                                                   a um questionário padronizado auto-
alguns dos limites resultantes da
                                                   aplicável sobre atitudes alimentares, o
metodologia empregada. Em seguida,
                                                   EAT-26, em sua versão na língua
partindo de dados de minha própria                 inglesa. Segundo Becker, como o inglês
pesquisa de doutoramento4, sugiro que o
                                                   era a língua escolar oficial, todas as
uso de histórias de vida pode ser uma
                                                   participantes     do     estudo     foram
estratégia de investigação interessante
                                                   consideradas fluentes. Para garantir a
na investigação de alguns aspectos desta
                                                   compreensão do questionário, palavras e
relação que não são contemplados por
                                                   conceitos     que    os     pesquisadores
outros métodos de pesquisa.
                                                   supunham ser de mais difícil
A antropóloga e psiquiatra norte-                  compreensão também foram explicados
americana Anne E. Becker ganhou                    oralmente, em inglês e em nadaroga, a
notoriedade por sua pesquisa nas Ilhas             critério dos pesquisadores. Além disso,
Fiji, na década de 90, que teria                   perguntou-se sobre a presença de
demonstrado      a     emergência     de           aparelho televisor na casa de domicílio,
transtornos alimentares nessa região               sobre a freqüência com que assistiam
após a introdução da televisão, em 1995.           TV, e aferidos o peso e a altura das
Em um estudo anterior, Becker tentara              participantes do estudo.
explicar a ausência de transtornos
                                                   Uma pontuação acima de 20 no EAT-26
alimentares em Fiji a partir das
                                                   era considerada alta, e indicativa de
concepções étnicas fijianas tradicionais
                                                   risco para Transtornos Alimentares
de pessoa. O estudo sobre o impacto da
                                                   (TAs). As participantes que relataram
introdução da televisão a que me refiro,
                                                   episódios de compulsão alimentar ou
cujos resultados foram apresentados em
                                                   comportamentos                purgativos
                                                   responderam também a um questionário
3
  Os trabalhos de Thompson (1992;1994) podem
                                                   semi-estruturado               elaborado
ser considerados uma exceção, por basearem-se      especialmente para o estudo, modulado
em histórias de vida de mulheres que, mesmo        pelas definições clínicas de purgação e
sendo norte-americanas, escapam ao perfil típico   compulsão alimentar, para confirmar a
esperado, quer seja quanto a classe social,        presença desses comportamentos.
etnicidade, idade ou orientação sexual. Todavia,
a abordagem de Thompson centra-se mais nas         Em 1998, novas perguntas foram
relações de poder no tocante às minorias no        adicionadas, endereçando dados como
interior da sociedade americana do que em uma
                                                   imagem corporal, dietas e potenciais
reflexão mais ampla sobre a questão da cultura
de um ponto de vista antropológico.
4                                                  5
     Minha      pesquisa    de    doutoramento,      Para fins deste artigo, centro-me em apenas
desenvolvida junto ao programa de Doutorado        duas referências (BECKER et alli, 2002;2007)
em Ciências Sociais da Unicamp, conta com o        que tratam especificamente dos aspectos mais
apoio de uma bolsa de estudos da Fapesp.           qualitativos do estudo.


                                                                                             58
disparidades intergeracionais entre          marcado interesse em aprimorar suas
sujeitos e seus pais quanto a tradições a    chances de assegurar um emprego, e
respeito de dieta e peso.                    40% racionalizaram o desejo de comer
                                             menos ou de perder peso como um meio
Constavam ainda perguntas específicas,
                                             para progredir na carreira ou tornar-se
centradas em se (e como) a exposição à
                                             mais útil em casa. 4. 30% dos
televisão ocidental no contexto de rápida
                                             entrevistados        indicaram       que
transição social e econômica teria
                                             personagens televisivos serviam como
estimulado mudanças na imagem
                                             modelos no tocante a questões de
corporal e perturbações alimentares, a
                                             trabalho e carreira. 5. Todos os sujeitos
despeito das práticas culturais locais que
                                             entrevistados indicaram maneiras em
tradicionalmente favoreciam apetites e
                                             que a TV afetou normas e
formas corporais robustos.
                                             comportamentos tradicionais, enquanto
No tocante aos resultados do estudo,         alguns sujeitos relataram perceber o
Becker aponta para dois dados mais           desenvolvimento          de      tensões
significativos na comparação entre as        intergeracionais em função da adoção,
duas amostras: um aumento da                 por parte dos mais jovens, de costumes
pontuação média no EAT-26 entre 1995         ocidentais vistos na TV, mencionando
e 1998, bem como uma presença de             especificamente conflito sobre as
vômitos auto-induzidos em 11,3% em           expectativas quanto à quantidade
1998, contra 0% em 1995. Não cabe            adequada de comida a ser ingerida.
aqui entrar nos pormenores dos
                                             Becker conclui:
resultados do estudo, mas de acordo
com os dados apresentados por Becker,                É uma conclusão lógica e
a pesquisa teria estabelecido uma                    assustadora que meninas e
correlação entre a exposição à TV e a                mulheres vulneráveis de diversas
presença (e o aumento) de sintomas                   populações, que se sentem
alimentares.                                         marginalizadas das fontes de
                                                     prestígio e status da cultura
Quanto às entrevistas abertas de 1998,               localmente dominante possam
Becker identifica vários temas que,                  ancorar suas identidades em
segundo o artigo, sugerem a profunda                 símbolos culturais de prestígio
influência da televisão em atitudes e                amplamente          reconhecidos,
comportamentos relacionados à dieta,                 popularizados por idéias, valores e
                                                     imagens importados pela mídia.
peso e forma corporal nessa faixa etária.
                                                     (BECKER et al, 2007, p. 555.
Esses temas seriam: 1. Prevalente                    Tradução livre.)
admiração por personagens televisivos e
o desejo explícito de imitá-los mediante     A meu ver, o principal limite da
a modificação de comportamento, estilo       metodologia empregada por Becker é
de cabelo e vestimenta e modificação         não endereçar em maior profundidade os
corporal; 2. A grande maioria dos            sentidos atribuídos por seus sujeitos de
participantes admitiu que a televisão        pesquisa tanto ao que assistiam na
teve influência direta na modificação de     televisão quanto às mudanças que dali
seus sentimentos quanto ao peso e à          decorreram. Não fica claro, por
forma corporal, bem como nas                 exemplo, a razão de terem associado o
iniciativas de modificá-los. A maior         desejo de comer menos ou perder peso
parte também admitiu influência direta       com progredir na carreira ou ser útil em
da TV em sua auto-percepção corporal;        casa. A autora parece supor que a
3. As participantes demonstraram um          associação entre magreza e diligência,



                                                                                     59
disciplina e sucesso profissional –          feminilidade que as personagens citadas
relatada por diversos autores no que diz     como inspiração estariam representando
respeito à sociedade norte-americana –       para as jovens fijianas. Me parece digno
tenha sido automaticamente absorvida         de nota que de todos os possíveis ícones
por essas jovens junto com as imagens        femininos oriundos da televisão
transmitidas pela TV. Algo semelhante        ocidental,   as     estudantes   fijianas
parece acontecer no tocante aos efeitos      participantes do estudo de Becker
sobre normas e comportamentos                tenham citado a personagem Xena com
“tradicionais”      e   tensões    inter-    mais freqüência.
geracionais: os “valores tradicionais”       Para Becker, a valorização de Xena
seriam representados pelas gerações          entre as adolescentes fijianas está
mais velhas – notadamente, àquela dos        relacionada ao desejo por um corpo
pais da geração considerada vulnerável       feminino magro e atlético, bem como à
aos TAs. Essa nova geração estaria           capacidade de competir em iguais
vivendo o conflito entre duas “culturas”:    condições com os homens no mercado
de um lado, os valores “tradicionais”,       de trabalho. Mas, voltando atenção para
coletivistas e solidários, de outro, o       o conteúdo do seriado, a menção a Xena
apelo aparentemente irresistível de          parece apontar para outra direção,
ingressar em um mercado de trabalho          sobretudo se pensarmos que o outro
nos       moldes      capitalistas    do     programa mais citado foi “Beverly Hills
individualismo e da competitividade. O       90210”.
pressuposto aqui é que o ingresso nesse
mercado de trabalho é sempre visto           Este último retratava o cotidiano de um
como uma possibilidade de ascensão           casal de irmãos gêmeos oriundos de
social, libertação e um meio de acesso       Minnesota que passaram a morar em
aos bens de consumo ocidentais –             Beverly Hills, onde se vêem às voltas
imaginados        como     inerentemente     com as exigências do padrão local de
sedutores, enquanto a “tradição” seria       sucesso, fortuna, consumo e aparência.
uma espécie de aprisionamento, que           De acordo com a interpretação de
alijaria essas jovens das fontes de          Becker sobre os desejos que estariam
prestígio e status.                          representados nessas figuras televisivas,
                                             parece curioso que as meninas tenham
Os resultados apresentados pouco             preferido citar Xena a alguma das
informam sobre quais seriam os               diversas personagens de Beverly Hills
elementos “tradicionais” que estariam        (que oferecem uma ampla gama de
limitando o acesso dessas jovens às          jovens mulheres bem sucedidas em que
fontes de prestígio e status, quais seriam   meninas poderiam se espelhar).
tais fontes tradicionais, o significado de
status e prestígio em Nadaroga ou            Em primeiro lugar, Xena nunca chamou
mesmo se as mudanças em processo             a atenção enquanto um ícone de
nessa sociedade – que certamente não se      magreza: dotada de um físico bastante
limitam à introdução da televisão –          atlético, é mais corpulenta do que a
estariam modificando o que se entendia       grande maioria das atrizes de televisão.
por prestígio e status.                      Segundo a trama, Xena era uma
                                             guerreira de habilidades extraordinárias,
Por outro lado, todo conteúdo                em alguma época remota e mítica na
televisionado parece ser reduzido à mera     antiga Grécia. Cometeu terríveis
transmissão do “modelo ocidental”, sem       atrocidades enquanto chefiava uma
que se desse atenção às diferenças e         milícia de bandidos, e por isso tornou-se
nuances de significados distintos de


                                                                                   60
inimiga do próprio Hércules – com            Vivianne6 conta que sua mãe vem de
quem rivalizava em força e habilidade        uma família relativamente abastada de
marcial.                                     São Paulo – SP. Seu avô materno
                                             possuía uma gráfica, e sua avó era dona
Após se arrepender de seus crimes, saiu
                                             de casa. Ela relata que quando sua mãe
em busca de redenção lutando contra
                                             nasceu, o avô disse, ao descobrir que era
todas as injustiças que encontrava em
                                             uma menina: “Que pena! Não vai levar
seu caminho, acompanhada sempre por
                                             o nome da família para diante.”
sua fiel companheira Gabrielle, uma
“barda”, e seu verdadeiro amor. Embora       Apesar da situação financeiramente
o relacionamento homoafetivo entre as        confortável     da   família     materna,
duas personagens não seja propriamente       Vivianne afirma que os avós e tios eram
conjugal ou monogâmico – em vários           “muito machistas e não tinham cultura”.
momentos da série ambas estabelecem          Os homens da família tratavam as
relacionamentos com homens – o elo           mulheres como “inferiores”, fazendo
entre as duas permanece o mais forte         constantes comentários sobre sua
através de toda a trama, e é através do      suposta limitação intelectual. Ela afirma
amor de Gabrielle que Xena consegue          que até hoje tem muito medo de ser
alcançar sua redenção. Além disso, o         chamada de “burra”, pois é o que o avô
seriado foi inteiramente filmado na          e o tio faziam com a avó e mãe.
Nova Zelândia, e contava com a               Apesar disso, sua mãe estudou em um
participação      de    vários     atores    bom colégio. Em casa, era tratada como
etnicamente      maori     em     papéis
                                             a “menininha da casa” e a “filhinha do
secundários – o que pode ter contribuído
                                             papai”. Não se esperava que fizesse um
para a identificação da população fijiana
                                             curso superior: foi criada para ser “uma
com o programa.
                                             boa moça, casar e constituir família”. A
Essa breve descrição do seriado Xena         mãe de Vivianne fez um segundo grau
me parece suficiente para sugerir que o      técnico em contabilidade e, ao se
foco de Becker, ao limitar-se a sintomas     formar, foi trabalhar em um banco – o
alimentares e à questão da magreza,          que era uma fonte de status para a
acabou desperdiçando possibilidades          família na época.
sugestivas de uma investigação mais          Segundo Vivianne, sua mãe se sentia
aprofundada sobre as formas como essas
                                             aprisionada pelas expectativas da
imagens femininas trazidas a Fiji pela       família para ela. Fazer o curso técnico e
televisão estavam sendo recebidas e
                                             trabalhar no banco eram tentativas de
interpretadas pelas adolescentes fijianas,   ampliar um pouco seus horizontes.
e influenciando sua relação com seus
                                             Apesar disso, “o sonho da vida dela era
corpos e sua alimentação.                    construir uma família”.
A seguir, apresentarei sucintamente
                                             Foi através do trabalho no banco que sua
alguns elementos de uma das histórias        mãe conheceu aquele que viria a ser seu
de vida realizadas em minha pesquisa
                                             pai. A irmã do pai de Vivianne era
para apontar alguns ganhos possíveis de
                                             cliente do banco, e tornou-se amiga de
tal metodologia em relação à utilizada
                                             sua mãe. Foi ela quem os apresentou. O
por Becker para investigar a relação         pai de Vivianne era feirante, e
entre transtornos alimentares e fatores
sócio-culturais.
                                             6
                                               Vivianne é um pseudônimo, escolhido pela
                                             interlocutora de pesquisa para preservar seu
                                             anonimato.


                                                                                      61
divorciara-se da primeira esposa após       Vivianne quem pegou o telefone e ligou
flagrá-la “na cama com outro”. Sua mãe      pedindo ajuda.
apaixonou-se por seu pai, e começou a       Tudo isso fez com que Vivianne não
namorá-lo a contragosto de sua família –    quisesse ser “mulherzinha” – o que para
que desaprovava o pretendente de status     ela significava estar à mercê das
sócio-econômico inferior.                   vontades       masculinas,       depender
Ela conta que seus pais “não chegaram a     totalmente dos homens e ser humilhada
se casar, nem no civil, nem no              por eles, “ser tratada como um objeto”
religioso”, mas que passaram a morar        que pode ser “jogado fora”. Por isso
juntos após sua mãe ter engravidado. A      mesmo, tornou-se “um moleque”.
família materna, entretanto, nunca          Preferia a companhia dos meninos e as
“engoliu” seu pai: viviam a criticá-lo,     brincadeiras masculinas. Ela adorava
afirmavam que ele era adúltero, e os tios   andar de bicicleta. Seu tio passou com o
viviam tentando flagrá-lo em adultério.     carro por cima de sua bicicleta para que
Três meses após seu nascimento, sua         ela parasse de andar. Ela continuou
mãe engravidou novamente, mas sofreu        andando na bicicleta torta mesmo. Em
um aborto espontâneo aos cinco meses        seguida, ela diz que sua mãe nunca
de gravidez: o bebê era um menino.          andou de bicicleta porque seu avô dizia
Vivianne diz que sua mãe lhe falou          que “bicicleta era coisa de menino, e ela
sobre o aborto quando ela tinha 5 anos      ficou com medo de andar”. Tornou-se
de idade, e que por muito tempo, se         muito competitiva em tudo, nos esportes
sentiu culpada por isso: “e de certa        e nos estudos. Não tolerava que
forma queria ser meu irmão de algum         ninguém “fosse melhor que ela”.
jeito para minha mãe sofrer menos.          Também diz que “tacava a zona” na
Porque ela sempre se referia ‘Se eu         escola, ou seja, fazia parte da turma dos
tivesse um menino’... e por muito tempo     “moleques bagunceiros”: “Aí eu era
quis ser esse menino. Eu não usei saia      bem amiga de meninos na escola, jogava
até meus 14 anos.”                          bola com eles. Cheguei a jogar futebol
                                            no Palmeiras e no Juventus. (...) É, eu
Quando Vivianne tinha 4 anos de idade,
                                            era lateral direita e jogava muito bem,
seu pai fez as malas e saiu de casa. Sua
                                            (...) fiquei muito amiga deles, saia para
mãe         ficou         completamente
                                            pichar com eles...”
“desestruturada”,       emocional       e
psicologicamente. Por isso Vivianne fala    Durante a infância, em algum momento
que “não teve mãe”. Sua mãe ficou tão       passou a engordar e a comer muito, e
fragilizada que Vivianne sentia que         que aos doze anos, pesava 82 kg mas
cuidava mais da mãe do que a mãe dela.      não se achava gorda, apesar de ter
Por isso queria ser o irmão que não teve,   sofrido com a zombaria de alguns
para cuidar da mãe. Quanto ao pai, a        colegas da escola. Embora não saiba ao
ajudava financeiramente, mas era            certo o que a levou ao excesso alimentar
ausente em tudo o mais. Ela relata que      e ao ganho de peso, Vivianne acha
sua mãe continuou “correndo atrás” de       possível que tenha procurado na comida
seu pai, ligava para ele a toda hora,       o conforto e a segurança que sua família
implorava que ele voltasse, se              não era capaz de lhe dar. Além disso, o
humilhava. Ela também se recorda de         corpo maior também podia ser uma
um incidente ocorrido aos quatro anos       forma de se afastar do modelo de
de idade: sua mãe estava muito              fragilidade feminina valorizado pela
descontrolada, passando mal, havia          família materna. Foi durante a oitava
tomado muitos calmantes. Foi a própria      série que desenvolveu anorexia, após


                                                                                  62
decidir emagrecer “para a viagem de         faculdade de gestão ambiental, e decidiu
formatura”. Nessa época, começara a         fazer o período de estágio previsto na
desenvolver um interesse romântico por      praia. Seu pedido de estágio foi negado,
um de seus amigos do futebol, que           mas Vivianne mentiu para os pais e sob
morava no mesmo bairro.                     esse pretexto, morou na praia por seis
                                            meses trabalhando como garçonete.
O surgimento do desejo pelo sexo
                                            Eventualmente, conseguiu lá mesmo um
oposto despertou sentimentos muito
                                            outro estágio.
contraditórios: ao mesmo tempo em que
queria ser desejada e correspondida em      Foi também com um de seus amigos
seus afetos, Vivianne receava que isso a    caiçaras, Arnaldo, que Vivianne
transformasse na mulher que sua família     conseguiu          estabelecer         um
gostaria, e que ela sempre fizera questão   relacionamento afetivo e sexual que
de rejeitar. A anorexia, que foi            contribuiu para que descobrisse uma
acompanhada de um intenso abuso de          forma de “ser mulher” com que se sentia
álcool e drogas, foi a forma que            à vontade: “Ele não queria saber da
encontrou      para      simultaneamente    minha      vida,    me     tratar    como
“matar” essa futura mulher que sua          mulherzinha, me tratar bem. E ele me
família queria que ela fosse, e de tentar   respeitava       como     pessoa.”      O
encontrar alguma forma de feminilidade      relacionamento       nunca       pressupôs
que desse vazão ao seu desejo. Durante      exclusividade de ambas as partes, mas
a viagem de formatura, Vivianne perdeu      durou por vários anos, e contribuiu
a virgindade com um rapaz que               bastante para que vivianne lutasse contra
conheceu em uma boate, cujo nome não        a anorexia e começasse a cuidar melhor
se lembra. Ao saber do episódio, o          do corpo: “porque eu achava o Arnaldo
amigo por quem se interessara a chamou      bonito, e também queria ficar bonita”.
de “vagabunda”: “Pintei meu cabelo de       Através da convivência com os amigos
loiro branco, porque sempre falavam         da praia, e do trabalho na área de gestão
que eu era puta. Tirei a sobrancelha bem    ambiental – sempre ligado a projetos
fininha, e só andava com roupas de axé.     sociais – que Vivianne pôde construir
Eu hoje, olhando de longe, acho que eu      uma vida pautada por valores em que
quis me detonar. Porque queria matar a      acreditava, que se opunham àqueles que
Vivianne que [a família materna] tinha      a família materna defendia e tentara lhe
feito, queria me livrar de qualquer         impor, e conseguiu superar o transtorno
resquício do mundo que me suprimia.         alimentar, e o problema do abuso de
Porque eu queria ser mulher mas tinha       álcool e drogas: “A pessoa que eu queria
medo de ter opinião sexual, mas ser         ser era diferente da pessoa que minha
inteligente, ser alguém. Queria ser         família tinha criado e que me suprimia,
mulher mas não só mulher, entende?”         e que quando eu consegui me ver, e ver
Vivianne só começou a melhorar              quem eu era e ter um propósito de vida,
quando estabeleceu um novo círculo de       e acreditar em algo, eu melhorei. Porque
amizades, com um grupo de “caiçaras”        era o oposto do que eu vivia, eles [a
que conheceu em uma viagem à praia.         família materna] sempre falavam com
Foi através da convivência com esses        preconceito racial e com ‘os pobres’, em
amigos, de classe social mais baixa, que    ‘ganhar dos pobres’, em supressão da
Vivianne começou a perceber que             mulher, em todo esse cenário que me
poderia encontrar outro modo de viver,      fazia mal desde que me entendo por
distinto do modelo valorizado por sua       gente, e [eu] acreditava que o mundo era
família materna. Começara a cursar          isso. E de repente eu vi que não era, que


                                                                                   63
existiam as coisas em que eu acreditava,    fazem parte da constituição do sujeito.
que eu poderia ser quem eu quisesse.”       No relato de Vivianne, vemos como as
                                            normatividades de gênero e classe
O breve resumo da história de vida de
                                            corporificadas por sua família estavam
Vivianne apresentado acima mostra
                                            em desacordo com os valores que ela
como, em diferentes momentos de sua
                                            própria desejava para si.
vida, sua relação com o peso e tamanho
de seu corpo e a alimentação assumiram      Em Undoing Gender (2004), Judith
distintos sentidos e serviram a diversos    Butler avança em sua reflexão sobre a
propósitos. Além disso, só é possível       performatividade    de     identidades,
apreender tais elementos em referência      produzidas na corporificação e no
às múltiplas relações sociais que           embate com as normatividades sociais,
compuseram a trama de sua história. Se      com a importância do reconhecimento:
é verdade que os problemas alimentares             O humano é diferencialmente
de Vivianne expressaram conflitos de               compreendido dependendo de sua
valores inter-geracionais e uma ruptura            raça, da inteligibilidade de sua raça,
com         determinadas        tradições          de sua morfologia, da possibilidade
incorporadas por sua família materna,              de       reconhecimento          dessa
tanto os conflitos quanto as rupturas não          morfologia, de seu sexo, da
podem ter seu significado deduzido a               possibilidade       de     verificação
partir de uma equação direta entre os              perceptual desse sexo, de sua
comportamentos do transtorno alimentar             etnicidade,      da      compreensão
e uma busca por status e prestígio social          categórica dessa etnicidade. Certos
                                                   humanos são reconhecidos como
pautada por valores tipicamente
                                                   menos do que humanos, e tal forma
ocidentais como sucesso financeiro e               de reconhecimento qualificado não
profissional, individualismo, diligência           conduz a uma vida viável.
e disciplina. Se o excesso alimentar e de          Determinados humanos sequer são
peso, bem como a anorexia serviram                 reconhecidos como humanos, o que
para romper com os valores tradicionais            conduz a uma vida inviável de outra
de gênero da família materna, por ela              ordem.” (BUTLER, 2004, p. 2;
vividos como limitadores e opressivos,             tradução livre).
também foram formas de romper com os        Desse ponto de vista, seria possível
preconceitos      de    classe     e    o   considerar as perturbações alimentares e
individualismo empreendedor da família      de imagem corporal como formas de
de classe média com aspirações de           expressar e tentativas de elaboração da
ascensão social, para construir uma vida    falta       de      reconhecimento     e
pautada por valores mais solidários e       inteligibilidade social de identidades
coletivistas.                               desejadas. Foi apenas ao ingressar em
A história narrada por Vivianne nos         uma rede de relações sociais – a dos
oferece uma interessante porta de           amigos caiçaras - pautada por valores
entrada    para     compreender      as     mais próximos dos que adotara para si é
perturbações alimentares e de imagem        que Vivianne conseguiu melhorar do
corporal para além de interpretações de     transtorno alimentar. E através de sua
cunho psicológico individual, apontando     formação e atuação profissional, pode
para a íntima relação entre os              ampliar o círculo de relações com
denominados “sintomas” e os sentidos        pessoas que compartilhavam de valores
que estes adquirem nas diferentes           afins, e sustentar sua melhora.
relações sociais – dentre as quais se
incluem as relações familiares – que


                                                                                      64
Desse modo, o emprego da metodologia                  MARCUS, M. D. et al. Prevalence and Selected
de histórias de vida na investigação da               Correlates of Eating Disorder Symptoms among
                                                      a Multiethnic Community Sample of Midlife
relação entre transtornos alimentares e               Women. Annals of Behavioral Medicine, vol.
fatores sócio-culturais adverte para o                33, n. 3, p. 269-277, 2007.
risco de pressupor uma relação direta e
                                                      MARÍN, G. et al. Development of a short
de conteúdo fixo entre transtornos                    acculturation scale for Hispanics. Hispanic
alimentares                            e              Journal of Behavioral Sciences, vol. 9, p. 183-
modernização/ocidentalização, e para a                205, 1987.
necessidade de compreender pessoas,                   NASSER,      M.    Culture  and    Weight
suas ações e suas aflições em referência              Consciousness. London/New York: Routledge,
às múltiplas dimensões de relações                    1997.
sociais que as constituem.                            NICDAO, E. G; HONG, S.; TAKEUCHI, D. T.
                                                      Prevalence and Correlates of Eating Disorders
                                                      among Asian Americans: Results from the
Referências                                           National Latino and Asian American Study.
                                                      International Journal of Eating Disorders, vol.
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LIM, K. V. et al. The development of the Khmer
acculturation scale. International Journal of
Intercultural Relations, vol. 26, n. 6, p. 653-678,
novembro de 2002.




*
          DANIELA FERREIRA ARAUJO SILVA é Doutoranda em Ciências Sociais pela Unicamp,
Mestre em Antropologia, voluntária no Ambulatório de Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas
da Unicamp.




                                                                                                  65

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Histórias de vida revelam intersecções entre transtornos alimentares e cultura

  • 1. Histórias de vida e transtornos alimentares: intersecções multifacetadas Daniela Ferreira Araujo Silva* Resumo: Se o modelo atual de causalidade para o conjunto de perturbações denominadas “transtornos alimentares” no campo das ciências biomédicas inclui fatores de ordem sócio-cultural, a própria história da definição desses transtornos indica que a intersecção entre tais perturbações e categorias sociais como gênero, classe e etnicidade permanece um terreno muito pouco explorado. Partindo de uma pesquisa baseada na construção de histórias de vida de pessoas que enfrentam ou enfrentaram um transtorno alimentar, o presente artigo procura indicar que tal abordagem metodológica abre possibilidades interessantes para investigar algumas das formas em que essas múltiplas dimensões da vida social co-produzem pessoas e suas aflições. Palavras-chave: transtornos alimentares e cultura; gênero; histórias de vida. Abstract: The current causation model for the afflictions defined by biomedical sciences as “eating disorders” includes socio-cultural factors. Nonetheless, the history of the definition of these disorders suggests that their intersection with social categories such as gender, class and ethnicity remains largely unexplored. Drawing from a research based on the construction of life histories of people who either suffered or are suffering from an eating disorder, this article suggests that such methodological approach may open up some interesting possibilities for the investigation of some ways in which these multiple dimensions of social life co- produce people and their ailments. Key words: eating disorders and culture; gender; life histories. A partir da década 1970, os transtornos aumento dos casos identificados reflete alimentares emergiram como alvo de um crescimento na incidência, ou maior atenção das disciplinas apenas à ampliação da capacidade de biomédicas, sobretudo nos Estados reconhecer sintomas e efetuar Unidos, chegando a suscitar diagnósticos (WEINBERG; CORDÁS, preocupações sobre uma possível 2006: 17). Todavia, há quem defenda “epidemia”1. Não há consenso se o que tal aumento estaria relacionado à expansão da “lipofobia” [fat-phobia] 1 O termo “epidemia”, em seu sentido estrito, é lado a lado com a preocupação empregado apenas no caso de doenças infecto- generalizada com a “epidemia de contagiosas, o que evidentemente não é o caso obesidade” nas mesmas décadas. dos transtornos alimentares. Todavia, mesmo Tampouco há consenso no tocante à autores da área de saúde empregam o termo, como metáfora, para enfatizar o rápido aumento relevância da contribuição dos ditos dos casos diagnosticados. fatores sócio-culturais na causalidade 56
  • 2. dos transtornos alimentares, mesmo que distribuição dos casos entre os diferentes alguns tenham sugerido classificá-los segmentos que não passe pelo como “síndromes ligadas à cultura” argumento da influência dos fatores [cultural-bound syndromes] (KEEL; sócio-culturais (NASSER et al, 2001; KLUMP, 2003: 747). SOH et al, 2006). Independentemente das controvérsias Em linhas bastante gerais, tais citadas, é possível afirmar que há um explicações atribuem o surgimento (ou pressuposto compartilhado de que, incremento) da incidência de transtornos qualquer que seja a influência dos alimentares nesses grupos como efeitos fatores sócio-culturais na incidência de processos de modernização – um dessas perturbações, tais fatores termo guarda-chuva que pouco nos estariam ligados a aspectos da sociedade informa sobre o caráter e sentidos dos e cultura ocidental contemporânea, processos sociais a que tenta aludir. como o individualismo competitivo, a Mais curioso ainda parece o fato de que, cultura de consumo, a crescente enquanto a “modernidade” parece ser influência das disciplinas biomédicas na um fator sempre limitado para explicar a vida cotidiana através de noções como “epidemia” de transtornos alimentares prevenção de riscos e a auto- em segmentos populacionais plenamente responsabilização pela manutenção da ocidentais e desenvolvidos, o mesmo saúde, à lipofobia e ao padrão de beleza argumento torna-se a explicação padrão que sobrevaloriza a magreza. para sua ocorrência nesses Outros Esse pressuposto ganha destaque ao grupos. Seja como um efeito colateral voltarmos-nos para as questões ou um mal necessário ao suscitadas pela “descoberta” de casos de desenvolvimento (pensado sempre em transtornos alimentares em segmentos termos de uma progressiva aproximação populacionais antes considerados como ao padrão ocidental desenvolvido, ou “protegidos” dessas desordens. Se “aculturação”2), ou ainda como a inicialmente a maioria dos casos expressão do conflito vivido por pessoas identificados ocorriam em mulheres diante da escolha entre valores jovens ou adolescentes, brancas, tradicionais e modernos (choque entre heterossexuais, de classe média a alta culturas), os transtornos alimentares em países ocidentais desenvolvidos, parecem ser pensados como algo cada vez mais surgem relatos de casos inerente ou automático à modernidade, não apenas em minorias étnicas ou sobretudo em referência a Outros raciais nesses mesmos países (NICDAO contextos sócio-culturais. et al, 2007), como nas mais diversas Há poucos estudos qualitativos que regiões do mundo (NASSER, 1997: 37- procuram endereçar os conteúdos 38), e também entre homens (RICCIARDELLI et al, 2007), gays, 2 lésbicas, crianças e pessoas mais velhas A denominada teoria da aculturação já foi amplamente criticada no cânone antropológico (MARCUS et al, 2007). Novamente, contemporâneo, e é considerada ultrapassada. inexiste o consenso se esses casos Todavia, a idéia de que uma cultura pode ser representam uma mudança no perfil substituída por outra através do contato entre epidemiológico ou se esses eram ambas parece ainda ter apelo em alguns estudos segmentos populacionais sub- transculturais na área de saúde, sendo possível mesmo encontrar instrumentos que diagnosticados. Todavia, ainda não se supostamente afeririam o “grau de aculturação” encontrou nenhuma hipótese razoável de determinadas populações. Ver, p. ex., para explicar a disparidade da MARÍN et al, 1987 e LIM et al, 2002. 57
  • 3. culturais das perturbações alimentares, e diversos artigos5, foi conduzido em uma os raros estudos sobre esses transtornos comunidade rural de Fiji Ocidental que empregam a metodologia de (Nadaroga), entre adolescentes histórias de vida não endereçam autodenominadas etnicamente fijianas diretamente a questão da alteridade em escolas secundárias. Foi um estudo cultural3. Para fins deste artigo, gostaria prospectivo interseccional em duas de comentar brevemente um desses fases, sendo a primeira em 1995 (poucas trabalhos (BECKER et al, 2002; 2007), semanas após a chegada da televisão na dada a sua importância no campo dos região), e a segunda em 1998. estudos sobre a relação entre transtornos As participantes do estudo responderam alimentares e cultura, atentando para a um questionário padronizado auto- alguns dos limites resultantes da aplicável sobre atitudes alimentares, o metodologia empregada. Em seguida, EAT-26, em sua versão na língua partindo de dados de minha própria inglesa. Segundo Becker, como o inglês pesquisa de doutoramento4, sugiro que o era a língua escolar oficial, todas as uso de histórias de vida pode ser uma participantes do estudo foram estratégia de investigação interessante consideradas fluentes. Para garantir a na investigação de alguns aspectos desta compreensão do questionário, palavras e relação que não são contemplados por conceitos que os pesquisadores outros métodos de pesquisa. supunham ser de mais difícil A antropóloga e psiquiatra norte- compreensão também foram explicados americana Anne E. Becker ganhou oralmente, em inglês e em nadaroga, a notoriedade por sua pesquisa nas Ilhas critério dos pesquisadores. Além disso, Fiji, na década de 90, que teria perguntou-se sobre a presença de demonstrado a emergência de aparelho televisor na casa de domicílio, transtornos alimentares nessa região sobre a freqüência com que assistiam após a introdução da televisão, em 1995. TV, e aferidos o peso e a altura das Em um estudo anterior, Becker tentara participantes do estudo. explicar a ausência de transtornos Uma pontuação acima de 20 no EAT-26 alimentares em Fiji a partir das era considerada alta, e indicativa de concepções étnicas fijianas tradicionais risco para Transtornos Alimentares de pessoa. O estudo sobre o impacto da (TAs). As participantes que relataram introdução da televisão a que me refiro, episódios de compulsão alimentar ou cujos resultados foram apresentados em comportamentos purgativos responderam também a um questionário 3 Os trabalhos de Thompson (1992;1994) podem semi-estruturado elaborado ser considerados uma exceção, por basearem-se especialmente para o estudo, modulado em histórias de vida de mulheres que, mesmo pelas definições clínicas de purgação e sendo norte-americanas, escapam ao perfil típico compulsão alimentar, para confirmar a esperado, quer seja quanto a classe social, presença desses comportamentos. etnicidade, idade ou orientação sexual. Todavia, a abordagem de Thompson centra-se mais nas Em 1998, novas perguntas foram relações de poder no tocante às minorias no adicionadas, endereçando dados como interior da sociedade americana do que em uma imagem corporal, dietas e potenciais reflexão mais ampla sobre a questão da cultura de um ponto de vista antropológico. 4 5 Minha pesquisa de doutoramento, Para fins deste artigo, centro-me em apenas desenvolvida junto ao programa de Doutorado duas referências (BECKER et alli, 2002;2007) em Ciências Sociais da Unicamp, conta com o que tratam especificamente dos aspectos mais apoio de uma bolsa de estudos da Fapesp. qualitativos do estudo. 58
  • 4. disparidades intergeracionais entre marcado interesse em aprimorar suas sujeitos e seus pais quanto a tradições a chances de assegurar um emprego, e respeito de dieta e peso. 40% racionalizaram o desejo de comer menos ou de perder peso como um meio Constavam ainda perguntas específicas, para progredir na carreira ou tornar-se centradas em se (e como) a exposição à mais útil em casa. 4. 30% dos televisão ocidental no contexto de rápida entrevistados indicaram que transição social e econômica teria personagens televisivos serviam como estimulado mudanças na imagem modelos no tocante a questões de corporal e perturbações alimentares, a trabalho e carreira. 5. Todos os sujeitos despeito das práticas culturais locais que entrevistados indicaram maneiras em tradicionalmente favoreciam apetites e que a TV afetou normas e formas corporais robustos. comportamentos tradicionais, enquanto No tocante aos resultados do estudo, alguns sujeitos relataram perceber o Becker aponta para dois dados mais desenvolvimento de tensões significativos na comparação entre as intergeracionais em função da adoção, duas amostras: um aumento da por parte dos mais jovens, de costumes pontuação média no EAT-26 entre 1995 ocidentais vistos na TV, mencionando e 1998, bem como uma presença de especificamente conflito sobre as vômitos auto-induzidos em 11,3% em expectativas quanto à quantidade 1998, contra 0% em 1995. Não cabe adequada de comida a ser ingerida. aqui entrar nos pormenores dos Becker conclui: resultados do estudo, mas de acordo com os dados apresentados por Becker, É uma conclusão lógica e a pesquisa teria estabelecido uma assustadora que meninas e correlação entre a exposição à TV e a mulheres vulneráveis de diversas presença (e o aumento) de sintomas populações, que se sentem alimentares. marginalizadas das fontes de prestígio e status da cultura Quanto às entrevistas abertas de 1998, localmente dominante possam Becker identifica vários temas que, ancorar suas identidades em segundo o artigo, sugerem a profunda símbolos culturais de prestígio influência da televisão em atitudes e amplamente reconhecidos, comportamentos relacionados à dieta, popularizados por idéias, valores e imagens importados pela mídia. peso e forma corporal nessa faixa etária. (BECKER et al, 2007, p. 555. Esses temas seriam: 1. Prevalente Tradução livre.) admiração por personagens televisivos e o desejo explícito de imitá-los mediante A meu ver, o principal limite da a modificação de comportamento, estilo metodologia empregada por Becker é de cabelo e vestimenta e modificação não endereçar em maior profundidade os corporal; 2. A grande maioria dos sentidos atribuídos por seus sujeitos de participantes admitiu que a televisão pesquisa tanto ao que assistiam na teve influência direta na modificação de televisão quanto às mudanças que dali seus sentimentos quanto ao peso e à decorreram. Não fica claro, por forma corporal, bem como nas exemplo, a razão de terem associado o iniciativas de modificá-los. A maior desejo de comer menos ou perder peso parte também admitiu influência direta com progredir na carreira ou ser útil em da TV em sua auto-percepção corporal; casa. A autora parece supor que a 3. As participantes demonstraram um associação entre magreza e diligência, 59
  • 5. disciplina e sucesso profissional – feminilidade que as personagens citadas relatada por diversos autores no que diz como inspiração estariam representando respeito à sociedade norte-americana – para as jovens fijianas. Me parece digno tenha sido automaticamente absorvida de nota que de todos os possíveis ícones por essas jovens junto com as imagens femininos oriundos da televisão transmitidas pela TV. Algo semelhante ocidental, as estudantes fijianas parece acontecer no tocante aos efeitos participantes do estudo de Becker sobre normas e comportamentos tenham citado a personagem Xena com “tradicionais” e tensões inter- mais freqüência. geracionais: os “valores tradicionais” Para Becker, a valorização de Xena seriam representados pelas gerações entre as adolescentes fijianas está mais velhas – notadamente, àquela dos relacionada ao desejo por um corpo pais da geração considerada vulnerável feminino magro e atlético, bem como à aos TAs. Essa nova geração estaria capacidade de competir em iguais vivendo o conflito entre duas “culturas”: condições com os homens no mercado de um lado, os valores “tradicionais”, de trabalho. Mas, voltando atenção para coletivistas e solidários, de outro, o o conteúdo do seriado, a menção a Xena apelo aparentemente irresistível de parece apontar para outra direção, ingressar em um mercado de trabalho sobretudo se pensarmos que o outro nos moldes capitalistas do programa mais citado foi “Beverly Hills individualismo e da competitividade. O 90210”. pressuposto aqui é que o ingresso nesse mercado de trabalho é sempre visto Este último retratava o cotidiano de um como uma possibilidade de ascensão casal de irmãos gêmeos oriundos de social, libertação e um meio de acesso Minnesota que passaram a morar em aos bens de consumo ocidentais – Beverly Hills, onde se vêem às voltas imaginados como inerentemente com as exigências do padrão local de sedutores, enquanto a “tradição” seria sucesso, fortuna, consumo e aparência. uma espécie de aprisionamento, que De acordo com a interpretação de alijaria essas jovens das fontes de Becker sobre os desejos que estariam prestígio e status. representados nessas figuras televisivas, parece curioso que as meninas tenham Os resultados apresentados pouco preferido citar Xena a alguma das informam sobre quais seriam os diversas personagens de Beverly Hills elementos “tradicionais” que estariam (que oferecem uma ampla gama de limitando o acesso dessas jovens às jovens mulheres bem sucedidas em que fontes de prestígio e status, quais seriam meninas poderiam se espelhar). tais fontes tradicionais, o significado de status e prestígio em Nadaroga ou Em primeiro lugar, Xena nunca chamou mesmo se as mudanças em processo a atenção enquanto um ícone de nessa sociedade – que certamente não se magreza: dotada de um físico bastante limitam à introdução da televisão – atlético, é mais corpulenta do que a estariam modificando o que se entendia grande maioria das atrizes de televisão. por prestígio e status. Segundo a trama, Xena era uma guerreira de habilidades extraordinárias, Por outro lado, todo conteúdo em alguma época remota e mítica na televisionado parece ser reduzido à mera antiga Grécia. Cometeu terríveis transmissão do “modelo ocidental”, sem atrocidades enquanto chefiava uma que se desse atenção às diferenças e milícia de bandidos, e por isso tornou-se nuances de significados distintos de 60
  • 6. inimiga do próprio Hércules – com Vivianne6 conta que sua mãe vem de quem rivalizava em força e habilidade uma família relativamente abastada de marcial. São Paulo – SP. Seu avô materno possuía uma gráfica, e sua avó era dona Após se arrepender de seus crimes, saiu de casa. Ela relata que quando sua mãe em busca de redenção lutando contra nasceu, o avô disse, ao descobrir que era todas as injustiças que encontrava em uma menina: “Que pena! Não vai levar seu caminho, acompanhada sempre por o nome da família para diante.” sua fiel companheira Gabrielle, uma “barda”, e seu verdadeiro amor. Embora Apesar da situação financeiramente o relacionamento homoafetivo entre as confortável da família materna, duas personagens não seja propriamente Vivianne afirma que os avós e tios eram conjugal ou monogâmico – em vários “muito machistas e não tinham cultura”. momentos da série ambas estabelecem Os homens da família tratavam as relacionamentos com homens – o elo mulheres como “inferiores”, fazendo entre as duas permanece o mais forte constantes comentários sobre sua através de toda a trama, e é através do suposta limitação intelectual. Ela afirma amor de Gabrielle que Xena consegue que até hoje tem muito medo de ser alcançar sua redenção. Além disso, o chamada de “burra”, pois é o que o avô seriado foi inteiramente filmado na e o tio faziam com a avó e mãe. Nova Zelândia, e contava com a Apesar disso, sua mãe estudou em um participação de vários atores bom colégio. Em casa, era tratada como etnicamente maori em papéis a “menininha da casa” e a “filhinha do secundários – o que pode ter contribuído papai”. Não se esperava que fizesse um para a identificação da população fijiana curso superior: foi criada para ser “uma com o programa. boa moça, casar e constituir família”. A Essa breve descrição do seriado Xena mãe de Vivianne fez um segundo grau me parece suficiente para sugerir que o técnico em contabilidade e, ao se foco de Becker, ao limitar-se a sintomas formar, foi trabalhar em um banco – o alimentares e à questão da magreza, que era uma fonte de status para a acabou desperdiçando possibilidades família na época. sugestivas de uma investigação mais Segundo Vivianne, sua mãe se sentia aprofundada sobre as formas como essas aprisionada pelas expectativas da imagens femininas trazidas a Fiji pela família para ela. Fazer o curso técnico e televisão estavam sendo recebidas e trabalhar no banco eram tentativas de interpretadas pelas adolescentes fijianas, ampliar um pouco seus horizontes. e influenciando sua relação com seus Apesar disso, “o sonho da vida dela era corpos e sua alimentação. construir uma família”. A seguir, apresentarei sucintamente Foi através do trabalho no banco que sua alguns elementos de uma das histórias mãe conheceu aquele que viria a ser seu de vida realizadas em minha pesquisa pai. A irmã do pai de Vivianne era para apontar alguns ganhos possíveis de cliente do banco, e tornou-se amiga de tal metodologia em relação à utilizada sua mãe. Foi ela quem os apresentou. O por Becker para investigar a relação pai de Vivianne era feirante, e entre transtornos alimentares e fatores sócio-culturais. 6 Vivianne é um pseudônimo, escolhido pela interlocutora de pesquisa para preservar seu anonimato. 61
  • 7. divorciara-se da primeira esposa após Vivianne quem pegou o telefone e ligou flagrá-la “na cama com outro”. Sua mãe pedindo ajuda. apaixonou-se por seu pai, e começou a Tudo isso fez com que Vivianne não namorá-lo a contragosto de sua família – quisesse ser “mulherzinha” – o que para que desaprovava o pretendente de status ela significava estar à mercê das sócio-econômico inferior. vontades masculinas, depender Ela conta que seus pais “não chegaram a totalmente dos homens e ser humilhada se casar, nem no civil, nem no por eles, “ser tratada como um objeto” religioso”, mas que passaram a morar que pode ser “jogado fora”. Por isso juntos após sua mãe ter engravidado. A mesmo, tornou-se “um moleque”. família materna, entretanto, nunca Preferia a companhia dos meninos e as “engoliu” seu pai: viviam a criticá-lo, brincadeiras masculinas. Ela adorava afirmavam que ele era adúltero, e os tios andar de bicicleta. Seu tio passou com o viviam tentando flagrá-lo em adultério. carro por cima de sua bicicleta para que Três meses após seu nascimento, sua ela parasse de andar. Ela continuou mãe engravidou novamente, mas sofreu andando na bicicleta torta mesmo. Em um aborto espontâneo aos cinco meses seguida, ela diz que sua mãe nunca de gravidez: o bebê era um menino. andou de bicicleta porque seu avô dizia Vivianne diz que sua mãe lhe falou que “bicicleta era coisa de menino, e ela sobre o aborto quando ela tinha 5 anos ficou com medo de andar”. Tornou-se de idade, e que por muito tempo, se muito competitiva em tudo, nos esportes sentiu culpada por isso: “e de certa e nos estudos. Não tolerava que forma queria ser meu irmão de algum ninguém “fosse melhor que ela”. jeito para minha mãe sofrer menos. Também diz que “tacava a zona” na Porque ela sempre se referia ‘Se eu escola, ou seja, fazia parte da turma dos tivesse um menino’... e por muito tempo “moleques bagunceiros”: “Aí eu era quis ser esse menino. Eu não usei saia bem amiga de meninos na escola, jogava até meus 14 anos.” bola com eles. Cheguei a jogar futebol no Palmeiras e no Juventus. (...) É, eu Quando Vivianne tinha 4 anos de idade, era lateral direita e jogava muito bem, seu pai fez as malas e saiu de casa. Sua (...) fiquei muito amiga deles, saia para mãe ficou completamente pichar com eles...” “desestruturada”, emocional e psicologicamente. Por isso Vivianne fala Durante a infância, em algum momento que “não teve mãe”. Sua mãe ficou tão passou a engordar e a comer muito, e fragilizada que Vivianne sentia que que aos doze anos, pesava 82 kg mas cuidava mais da mãe do que a mãe dela. não se achava gorda, apesar de ter Por isso queria ser o irmão que não teve, sofrido com a zombaria de alguns para cuidar da mãe. Quanto ao pai, a colegas da escola. Embora não saiba ao ajudava financeiramente, mas era certo o que a levou ao excesso alimentar ausente em tudo o mais. Ela relata que e ao ganho de peso, Vivianne acha sua mãe continuou “correndo atrás” de possível que tenha procurado na comida seu pai, ligava para ele a toda hora, o conforto e a segurança que sua família implorava que ele voltasse, se não era capaz de lhe dar. Além disso, o humilhava. Ela também se recorda de corpo maior também podia ser uma um incidente ocorrido aos quatro anos forma de se afastar do modelo de de idade: sua mãe estava muito fragilidade feminina valorizado pela descontrolada, passando mal, havia família materna. Foi durante a oitava tomado muitos calmantes. Foi a própria série que desenvolveu anorexia, após 62
  • 8. decidir emagrecer “para a viagem de faculdade de gestão ambiental, e decidiu formatura”. Nessa época, começara a fazer o período de estágio previsto na desenvolver um interesse romântico por praia. Seu pedido de estágio foi negado, um de seus amigos do futebol, que mas Vivianne mentiu para os pais e sob morava no mesmo bairro. esse pretexto, morou na praia por seis meses trabalhando como garçonete. O surgimento do desejo pelo sexo Eventualmente, conseguiu lá mesmo um oposto despertou sentimentos muito outro estágio. contraditórios: ao mesmo tempo em que queria ser desejada e correspondida em Foi também com um de seus amigos seus afetos, Vivianne receava que isso a caiçaras, Arnaldo, que Vivianne transformasse na mulher que sua família conseguiu estabelecer um gostaria, e que ela sempre fizera questão relacionamento afetivo e sexual que de rejeitar. A anorexia, que foi contribuiu para que descobrisse uma acompanhada de um intenso abuso de forma de “ser mulher” com que se sentia álcool e drogas, foi a forma que à vontade: “Ele não queria saber da encontrou para simultaneamente minha vida, me tratar como “matar” essa futura mulher que sua mulherzinha, me tratar bem. E ele me família queria que ela fosse, e de tentar respeitava como pessoa.” O encontrar alguma forma de feminilidade relacionamento nunca pressupôs que desse vazão ao seu desejo. Durante exclusividade de ambas as partes, mas a viagem de formatura, Vivianne perdeu durou por vários anos, e contribuiu a virgindade com um rapaz que bastante para que vivianne lutasse contra conheceu em uma boate, cujo nome não a anorexia e começasse a cuidar melhor se lembra. Ao saber do episódio, o do corpo: “porque eu achava o Arnaldo amigo por quem se interessara a chamou bonito, e também queria ficar bonita”. de “vagabunda”: “Pintei meu cabelo de Através da convivência com os amigos loiro branco, porque sempre falavam da praia, e do trabalho na área de gestão que eu era puta. Tirei a sobrancelha bem ambiental – sempre ligado a projetos fininha, e só andava com roupas de axé. sociais – que Vivianne pôde construir Eu hoje, olhando de longe, acho que eu uma vida pautada por valores em que quis me detonar. Porque queria matar a acreditava, que se opunham àqueles que Vivianne que [a família materna] tinha a família materna defendia e tentara lhe feito, queria me livrar de qualquer impor, e conseguiu superar o transtorno resquício do mundo que me suprimia. alimentar, e o problema do abuso de Porque eu queria ser mulher mas tinha álcool e drogas: “A pessoa que eu queria medo de ter opinião sexual, mas ser ser era diferente da pessoa que minha inteligente, ser alguém. Queria ser família tinha criado e que me suprimia, mulher mas não só mulher, entende?” e que quando eu consegui me ver, e ver Vivianne só começou a melhorar quem eu era e ter um propósito de vida, quando estabeleceu um novo círculo de e acreditar em algo, eu melhorei. Porque amizades, com um grupo de “caiçaras” era o oposto do que eu vivia, eles [a que conheceu em uma viagem à praia. família materna] sempre falavam com Foi através da convivência com esses preconceito racial e com ‘os pobres’, em amigos, de classe social mais baixa, que ‘ganhar dos pobres’, em supressão da Vivianne começou a perceber que mulher, em todo esse cenário que me poderia encontrar outro modo de viver, fazia mal desde que me entendo por distinto do modelo valorizado por sua gente, e [eu] acreditava que o mundo era família materna. Começara a cursar isso. E de repente eu vi que não era, que 63
  • 9. existiam as coisas em que eu acreditava, fazem parte da constituição do sujeito. que eu poderia ser quem eu quisesse.” No relato de Vivianne, vemos como as normatividades de gênero e classe O breve resumo da história de vida de corporificadas por sua família estavam Vivianne apresentado acima mostra em desacordo com os valores que ela como, em diferentes momentos de sua própria desejava para si. vida, sua relação com o peso e tamanho de seu corpo e a alimentação assumiram Em Undoing Gender (2004), Judith distintos sentidos e serviram a diversos Butler avança em sua reflexão sobre a propósitos. Além disso, só é possível performatividade de identidades, apreender tais elementos em referência produzidas na corporificação e no às múltiplas relações sociais que embate com as normatividades sociais, compuseram a trama de sua história. Se com a importância do reconhecimento: é verdade que os problemas alimentares O humano é diferencialmente de Vivianne expressaram conflitos de compreendido dependendo de sua valores inter-geracionais e uma ruptura raça, da inteligibilidade de sua raça, com determinadas tradições de sua morfologia, da possibilidade incorporadas por sua família materna, de reconhecimento dessa tanto os conflitos quanto as rupturas não morfologia, de seu sexo, da podem ter seu significado deduzido a possibilidade de verificação partir de uma equação direta entre os perceptual desse sexo, de sua comportamentos do transtorno alimentar etnicidade, da compreensão e uma busca por status e prestígio social categórica dessa etnicidade. Certos humanos são reconhecidos como pautada por valores tipicamente menos do que humanos, e tal forma ocidentais como sucesso financeiro e de reconhecimento qualificado não profissional, individualismo, diligência conduz a uma vida viável. e disciplina. Se o excesso alimentar e de Determinados humanos sequer são peso, bem como a anorexia serviram reconhecidos como humanos, o que para romper com os valores tradicionais conduz a uma vida inviável de outra de gênero da família materna, por ela ordem.” (BUTLER, 2004, p. 2; vividos como limitadores e opressivos, tradução livre). também foram formas de romper com os Desse ponto de vista, seria possível preconceitos de classe e o considerar as perturbações alimentares e individualismo empreendedor da família de imagem corporal como formas de de classe média com aspirações de expressar e tentativas de elaboração da ascensão social, para construir uma vida falta de reconhecimento e pautada por valores mais solidários e inteligibilidade social de identidades coletivistas. desejadas. Foi apenas ao ingressar em A história narrada por Vivianne nos uma rede de relações sociais – a dos oferece uma interessante porta de amigos caiçaras - pautada por valores entrada para compreender as mais próximos dos que adotara para si é perturbações alimentares e de imagem que Vivianne conseguiu melhorar do corporal para além de interpretações de transtorno alimentar. E através de sua cunho psicológico individual, apontando formação e atuação profissional, pode para a íntima relação entre os ampliar o círculo de relações com denominados “sintomas” e os sentidos pessoas que compartilhavam de valores que estes adquirem nas diferentes afins, e sustentar sua melhora. relações sociais – dentre as quais se incluem as relações familiares – que 64
  • 10. Desse modo, o emprego da metodologia MARCUS, M. D. et al. Prevalence and Selected de histórias de vida na investigação da Correlates of Eating Disorder Symptoms among a Multiethnic Community Sample of Midlife relação entre transtornos alimentares e Women. Annals of Behavioral Medicine, vol. fatores sócio-culturais adverte para o 33, n. 3, p. 269-277, 2007. risco de pressupor uma relação direta e MARÍN, G. et al. Development of a short de conteúdo fixo entre transtornos acculturation scale for Hispanics. Hispanic alimentares e Journal of Behavioral Sciences, vol. 9, p. 183- modernização/ocidentalização, e para a 205, 1987. necessidade de compreender pessoas, NASSER, M. Culture and Weight suas ações e suas aflições em referência Consciousness. London/New York: Routledge, às múltiplas dimensões de relações 1997. sociais que as constituem. NICDAO, E. G; HONG, S.; TAKEUCHI, D. T. Prevalence and Correlates of Eating Disorders among Asian Americans: Results from the Referências National Latino and Asian American Study. International Journal of Eating Disorders, vol. BECKER, A. E. et al. Eating behaviours and 40, p. S22-S26, 2007. attitudes following prolonged exposure to television among ethnic Fijian adolescent girls. RICCIARDELLI, L.A. et al. The role of British Journal of Psychiatry, vol. 180, p. 509- ethnicity and culture in body image and 514, 2002. disordered eating among males. Clinical Psychology Review, vol. 27, p. 582-606, 2007. BECKER, A. E. et al. Facets of Acculturation and Their Diverse Relations to Body Shape SOH, N. L.; TOUYZ, S. W.; SURGENOR, L. J. Concern in Fiji. International Journal of Eating Eating and Body Image Disturbances Across Disorders, vol. 40, p. 42-50, 2007. cultures: A Review. European Eating Disorders Review, vol. 14, p. 54-65, 2006. BUTLER, J. Undoing Gender. New York/ London: Routledge, 2004. THOMPSON, B. W. ‘A Way Outa No Way’: Eating Problems among African-American, NASSER, M.; KATZMAN, M. A. e GORDON, Latina and White Women. Gender and Society, R. A. (eds.). Eating Disorders and Cultures in vol.6, n.4, p. 546-561, 1992. Transition. Hove, East Sussex: Brunner- Routlege, 2001. ______. A Hunger So Wide and So Deep: American Women Speak Out on Eating KEEL, P. K. e KLUMP, K. L. Are Eating Problems. Minneapolis: University of Disorders Cultural Bound Syndromes? Minnesota Press, 1994. Implications for Conceptualizing Their Etiology. Psychological Bulletin, vol. 129, n. 5, p. 747- WEINBERG, C.; CORDÁS, T. A. Do Altar às 769, 2003. Passarelas: Da anorexia santa à anorexia nervosa. São Paulo: Annablume, 2003. LIM, K. V. et al. The development of the Khmer acculturation scale. International Journal of Intercultural Relations, vol. 26, n. 6, p. 653-678, novembro de 2002. * DANIELA FERREIRA ARAUJO SILVA é Doutoranda em Ciências Sociais pela Unicamp, Mestre em Antropologia, voluntária no Ambulatório de Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Unicamp. 65