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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
(Em véspera de vestibular o vestibulando passa a pedir a opinião do pai
sobre a que carreira seguir.)
Cândido
_ Meu pai, sabes que estou em véspera de vestibular. Achas que vou prestar
para alguma coisa?
Ateneu
_ Oh! Meu filho, se você vai prestar para alguma coisa isso eu já não sei, mas
que pelo menos uma profissão dessas que tirará seu pai da miséria em pleno
fim da vida isso sim posso lhe recomendar.
Cândido
_ Mas o que escolher meu pai, nesse leque tão extenso de opções que se
chamam trabalho ou profissão?
Ateneu
_ Te aconselho que siga o caminho dos bens sucedidos.
Cândido
_ Mas que caminho é esse meu pai que todos estão a buscar mas poucos a
prosperar?
Ateneu
_ Suponho que seja as profissões de autoridade e quando digo autoridade digo
daquelas profissões que pelo embuste o homem parece ser mais do que se é
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
por possuir uma técnica baseada quando não na persuasão ao menos na
força.
Cândido
_ Quer dizer que essas são as profissões mais honradas?
Ateneu
_ Não digo honradas nem mesmo respeitadas porém mais temidas pelas
conseqüências que trazem.
Cândido
_ Seja mais específico meu pai pois assim acho seu raciocínio disperso e muito
vago.
Ateneu
_ O que quero dizer é simples. Qual técnica faz com que o mal seja visto como
um bem?
Cândido
_ É aquela que mesmo punindo, o que por si só é um mal para o punido, seja
vista como um bem para aquele que não sendo punido se vê em situação
privilegiada quanto ao execrado.
Ateneu
_ Pois bem, definiu bem o Direito e se queres ser forçosamente bem sucedido
nessa profissão terá além de tudo fazer com que o aparente seja verdadeiro ou
o falso verossímil.
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Cândido
_ O que queres dizer?
Ateneu
_ Ora, se alguém roubou não o fez por mal caso o tivesse feito não teria as
regalias de seu crime. Logo age pelo bem próprio que é seu. Concorda?
Cândido
_ Sim. Exato.
Ateneu
_ E quando dizem que ele cometeu um mal realmente o cometeste ou apenas
pela perspectiva alheia?
Cândido
_ Certamente pela perspectiva do lesado, ou seja, pelo ponto de vista alheio,
pois para o próprio ladrão que rouba isso não é mal algum. Pelo contrário,
estará solucionando suas carências.
Ateneu
_ Falas com sabedoria e é neste ponto ao qual queria chegar. Esse mal não é
absoluto apesar de contra toda natureza o advogado ou promotor querer que
seja visto como uma absoluta maldade quando na verdade o ladrão age pelo
bem que a si próprio faz. E quanto a guerra, o que dizes?
Cândido
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Esses assuntos já são políticos e não ouso falar deles devido à
impossibilidade de pleitear uma função política.
Ateneu
_ Mas lhe atesto que também não é um mal absoluto pois enquanto os
perdedores morrem ou ficam aleijados é um grande bem para a população em
geral uma vez que aqueles que ganham têm os seus espólios e os que
sobreviveram do lado dos vencidos, em contrapartida, aumentam suas
vantagens em relação aos mais fustigados pela guerra daí eis a solução para a
superpopulação e eis a limpeza étnica de povos mais fracos que só fazem
peso na terra.
Cândido
_ O que quer tudo isso dizer?
Ateneu
_ Que a guerra é um mal se virmos pelo ponto de vista particular dos
derrotados mas em perspectivas globais é sempre bom que morra um excesso
de fracos de vezes em vezes diria o filósofo.
Cândido
_ Controversas suas opiniões, mas e quanto à carreira que devo seguir meu
pai, qual a melhor? Se não me confundirmes mais lhe agradeço.
Ateneu
_ Pois bem meu filho, lhe dizia que a melhor profissão é aquela em que o mais
fraco se pareça o mais forte ou que a aparência supere a essência.
Cândido
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Como assim?
Ateneu
_ Um vendedor, por exemplo, ele é mestre na técnica de tapar buracos na
parede com cortinas glamorosas. Se disseres a ele que o produto é de baixa
qualidade ele irá fazer crer que para a situação precisa de que necessitas do
produto é melhor um produto de baixa qualidade, pois o custo-benefício de tal
produto é melhor que o outro para tal situação. Assim se há buracos na sala
ele enfatizará a beleza da cortina que os tampa.
Cândido
_ Mas o melhor produto não é sempre melhor que o pior?
Ateneu
_ Aí entra a função não do vendedor mas do publicitário.
Cândido
_ O que ele tem dizer?
Ateneu
_ Que o melhor pode ser o pior. O melhor do mundo quem sabe o que é?
Ninguém. Por isso ele pode jogar com as facetas do tangível e do intangível. Já
não lhes mostrei que o pior pode ser o melhor dependendo das circunstâncias
e que não há nada melhor ou pior em absoluto?
Cândido
_ Certamente no exemplo do ladrão e no da guerra.
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Ateneu
_ Pois bem a mesma lógica vale para a publicidade.
Cândido
_ Deixe-me entender o que dizes com exemplos que facilita a assunção. Se
algo é bom é porque a Maria falou que é bom. Se a Maria falou que é bom
quem tem consistência para persuadir ela do contrário senão Joana que diz ser
o outro produto melhor?
Ateneu
_ Essa eu sei. Quem assim como Maria ou Joana, José, por exemplo, der seu
parecer melhor a um que ao outro produto vence por maioria de votos aquele
produto que conseguiu o maior número de adeptos e assim estatisticamente o
melhor produto é aquele que todos usam. Desde que não seja um parecer
forçado ou interesseiro o que é difícil que aconteça.
Cândido
_ Dessa forma é a maioria que vence estatisticamente, pois no caso acima
Maria pode ter um voto contra um de Joana e assim parecer impossível
resolver a contenda, porém se um outro, chamado este de José disser que
Joana tem razão confiarão agora na maioria que é Joana e José. Tudo bem, se
esta Maria não for uma Maria vai com as outras continuará usando seu produto
de costume, porém se por uma pressão externa criticarem-na quanto a não
adesão ao considerado agora melhor produto devido à maioria das opiniões a
favor deste ou daquele produto assim Maria se ressentirá e poderá mudar de
produto pois foi persuadida. Mas da mesma forma que a guerra ou o mal não é
um mal absoluto, como dizer que o produto x de Maria é pior que o produto y
de Joana e José somente porque estatisticamente alguns preferem em sua
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
maioria um ao outro? Não estamos lhe dando com bens tangíveis e
intangíveis?
Ateneu
_ Isso acontece meu filho porque jogam com a velha máxima do rebanho ou do
coro. Estatística significa isso. Nove entre dez pessoas usam determinado
produto logo esse é melhor porque é impossível que tanta gente se engane.
Coisa a qual não estou de comum acordo, pois muitos não enganaram quando
achavam que a terra era o centro do Universo e só um, Galileu, estava certo?
Além do mais tentam dar uma característica tangível ao produto ao colocarem
qualidades funcionais que elevam os atributos dos produtos à manifestação de
certos benefícios intrínsecos à substância chamada produto. Substância a qual
possui certas qualidades e atributos que se manifestam do lado do sujeito em
forma de benefícios para este.
Cândido
_ Boa resposta meu pai mas mesmo assim não está me ajudando a escolher a
profissão que mais apraz-me.
Ateneu
_ É porque você está com a mesma mentalidade da maioria ao achar que um
voto meu mais um voto de outra autoridade somado ao seu voto dará um valor
tangível do que é a melhor profissão.
Cândido
_ Mesmo assim continuemos pai e assim que chegarmos a uma conclusão
estarei a par de que profissão escolher.
Ateneu
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Mas esses testemunhais são a única pedra de toque da publicidade?
Pergunto-lhe agora, meu filho?
Cândido
_ Creio que não meu pai senão já teria comprado muito mais do que os
vendedores me incitam a comprar.
Ateneu
_ E por que não compras?
Cândido
_ É que me parece que eles têm interesses nada imparciais de que eu compre
o produto.
Ateneu
_ Então é uma testemunha tão válida quanto à dos artistas e famosos que
testemunham em propaganda o valor do produto?
Cândido
_ Certamente e não acreditaria mais num famoso que na dona Maria, pois a
dona Maria ainda tem o privilégio de conhecer o produto.
Ateneu
_ Mas assim como parece, o valor de uso do produto tem menos valor que o
seu requisito aparente qual seja, sua perfeição imagética em relação aos
outros produtos testemunhados por alguém que mesmo não usando o produto
e ao mesmo tempo até o odiando dá apenas provas verbais e retóricas de que
aquela é a melhor mercadoria. Falo dos artistas do verbo e dos atores que
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
muitas vezes não usariam tal produto mesmo que os recubram de beleza e
maravilhas quando lhes convém.
Cândido
_ Certo é que confiaria mais em quem usa o produto do que naquele que só viu
a embalagem, ou seja, o ator que propaga a idéia através da mídia.
Ateneu
_ Não és inocente meu filho pois achas que do simples vulgo interesseiro de
um artista não achamos mais nada por detrás da afirmação que a justificação
de um cachê.
Cândido
_ Mas por que um produto há de ser ontologizado ao que me parece?
Ateneu
_ Como pegas as coisas no ar meu filho. Querem dar uma fundamentação
mercadológica ao que é simples exercício de retórica e persuasão. Assim vê-se
o produto ou a mercadoria como uma substância de limitados atributos dos
quais conhecemos a utilidade e nada mais. Sendo que a utilidade nem sempre
é apenas técnica ou valor de uso do produto, mas também assume certo valor
de ser substancialmente uma qualidade que traz o benefício de aumentar a
vontade de poder da pessoa, pois quem não dirá que uma Mercedez Benz faz
com que nós adquiramos status quo? O produto então têm seus atributos
assim como Sócrates tem o atributo de ser racional. O atributo do produto não
obstante pode se manifestar na forma de benefícios ao cliente sendo a
logomarca a própria assinatura do criador na criatura, ou seja, os homens são
deuses que fabricam outros seres que por muitas vezes são tidos como
animados ou já não vistes várias vezes palhas de aço que falam e que dançam
em um comercial? É como se o homem na sua insuficiência de criar vidas
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
superiores empresta-as a seres que de inanimado passam a ser animados. A
substância é o produto. Os atributos suas qualidades. A substância ou o
produto um ser que ora se manifesta enquanto atributo ora como benefícios ao
cliente sendo o próprio atributo ou qualidade a potência que se atualiza em
benefício ao cliente.
Cândido
_ Creio que não necessito saber nada mais dessa profissão ignominiosa da
publicidade e da propaganda, pois se o jogo é justamente defender um
adversário que por mais que seja um réu culpado ornamenta-se das mais
diversas evocações à beleza e funcionalidade quando não da defesa
desenfreada de um suspeito pela sua falha prefiro-me ater a outra opção, pois
seria por demais vergonhoso chamar de o melhor produto do mundo algo que
realmente não o é assim. Como pude entender não há nada de mal em dizer
de um produto que é o melhor produto do mundo se ele o for para Maria ou
José mesmo que não sirva ao resto. Assim dessa universalização chula coloca-
se todos os problemas dos particulares e dos universais, pois como ceder a um
produto bom apenas para um a universalidade de bom para todos? O certo
seria dizer: “o melhor produto do mundo para Maria e Jósé”. Isso seria o certo a
se fazer e não jogar com aparência e mentiras.
Ateneu
_ Por eliminação já foste exilada de suas pretensões a publicidade portanto
procuremos uma profissão mais adequada às suas vocações. Que tal o direito?
Cândido
_ Pelo que me foi dito sobre a publicidade creio no raciocínio semelhante a
essa ciência, pois enquanto uma defende réus culpados que não podem
cometer maiores prejuízos que arranhar panelas ou dar uma dor de estômago
essa, por sua vez, o Direito, traz conseqüências mais graves quando os réus
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
são assassinos ou calhordas da pior espécie ou na pior das hipóteses um
inocente culpado injustamente.
Ateneu
_ Mas quanto ao inocente, não acha de boa índole defendê-lo?
Cândido
_ Defendê-lo sim. Mas de quem? Da autoridade divina? Dessa não precisas de
prova, pois Deus tudo vê e sabe sendo desnecessárias defesas. Agora, quanto
ao jugo humano várias coisas atravancam o caminho da defesa do inocente.
Primeiro, a ignorância do juiz e do júri que não escolherá quem é inocente ou
culpado, mas sim o melhor advogado de defesa ou de acusação. Segundo
porque agindo assim o melhor que posso fazer é trocar o impreciso pelo
duvidoso, pois nem mesmo eu terei provas de fato da inocência ou culpa
através de testemunhos que são por demais interesseiros, alcoviteiros e
preconceituosos para ver mais que a um palmo de seus olhos. Admito que
assim como a publicidade o direito nada tem a oferecer que um discurso falho
e parcial sendo que esses ofícios deveriam ser feitos sem retribuição financeira
mas sim por dever à justiça. Não da ordem, mas da justiça mesmo quando o
que mais visam não é ela propriamente dita mas sim a ordem estabelecida e
descartando a probidade acima de qualquer sentença fazem passar o válido
pelo devido. Para mim, defender um réu culpado assim como um produto ruim
ou um assassino que é um sujeito relativamente mau, apenas através da arte
da persuasão e da retórica não são coisas que passam pela minha cabeça
apesar de toda recompensa financeira que possa eu receber.
Ateneu
_ Mas então meu filho? Se pelos mesmos motivos descartastes o Direito e a
publicidade justamente por elas tratarem apenas de aparências dos seres e
nunca de suas essências o que vais querer fazer se essas são umas das
profissões mais prestimosas?
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Cândido
_ O que mais poderia eu querer senão uma profissão que nos tirasse dessa
miséria que nos assola? Mas viver infeliz por toda uma vida devido a uma
escolha da juventude isso é o que não quero. Imagina eu por aí a fazer a
defesa dos sofistas e a acusação de Sócrates. Não seria tão vil como Meleto e
os demais acusadores de Sócrates? O que quero meu pai é uma profissão
digna e afeita à verdade. Uma profissão que por si só já justifica o seu
empenho sem mesmo os louros da vitória garantidos para os mais crápulas da
sociedade, ou seja, os políticos.
Ateneu
_ Meu filho, entres na Medicina. Essa é uma profissão acima de qualquer
suspeita e todos os que a praticam são homens honrosos e respeitados. Assim
fica a impressão.
Cândido
_ Não suporto ver sangue meu pai.
Ateneu
_ Podes ser um psiquiatra e nunca precisará ver sangue.
Cândido
_ O quê? Não esperaria de ti tamanha ofensa. Eu? Um psiquiatra? Um
mercenário cuja profissão está atrelada às indústrias farmacêuticas e que de
chofre se tornou uma máquina de ganhar dinheiro justamente por ser uma
máquina de força bruta? Jamais meu pai eu faria tal coisa. Inventaram a
loucura ou doença mental para ter gente por aí a acusar os outros sem motivo
específico. Aí a pejorativa alcunha de louco. O desviante, aquele que não se
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
adere facilmente ao coro e que ainda por cima está acima dos normais por
achar tudo isso uma alienação social. Os loucos são justamente aqueles que
não quero perseguir assim como outrora perseguiam bruxas. De todas as
profissões essa é a mais falsária e todo psiquiatra é um sicário da verdade.
Querem nos fazer crer que alguém que pensa diferente é culpado por isso. Se
o todo é feito de partes e há uma parte que pertence ao todo não se deve
aniquilar as partes sob a pena de corromper o todo dizia Nietzsche. O louco é
parte do todo logo ele merece ser tido como alguém que é de um todo a parte e
lhe cabe um quinhão desse todo que é justamente a sanção à liberdade de
livre expressão e o direito de ir e vir. A loucura é como uma daquelas modas
passageiras que logo se desmistificam pelo seu vanguardismo em livre
pensamento e são tratadas como verdade posteriormente. A loucura de hoje é
a verdade de amanhã. Você meu pai, que és sagas por natureza sabe que a
loucura é um fenômeno antes social que do pensamento e se tem pessoas a
ganhar dinheiro com a exploração dessa pequena parcela da população esses
sim deveriam ser taxados se não de loucos ao menos de usurpadores ou
vampiros.
Ateneu
_ Então está complicado meu filho. Se tudo o que lhe disse nada serviu e posto
que são as profissões mais respeitáveis de nosso século imagino que devas
seguir uma carreira acadêmica pois é a que melhor se adapta a seu perfil
questionador. Mas para isso uma primeira pergunta: tens boa memória?
Cândido
_ Depende. Se apanho não esqueço nunca mas se bato posso esquecer com
facilidade.
Ateneu
_ Certo, então é uma matéria difícil de decidir.
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Cândido
_ E para quê é necessária uma boa memória para ser acadêmico?
Ateneu
_ Para entulhar a mente de frases das quais eles chamam de A VERDADE.
Cândido
_ Mas o que é esta verdade que estes reclamam?
Ateneu
_ Nem mesmo eles sabem mas não há um só discurso científico ou filosófico
dos quais não estão imbuídas as palavras verdade e razão.
Cândido
_ Pois bem pai, pela primeira vez me disseste algo de útil para a minha carreira
e com todas as minhas forças, quando não mais sobrar energia e até que meu
corpo e mente fraquejem vou querer saber o que significam tais coisas:
verdade e razão. E ademais, onde consigo tais conhecimentos?
Ateneu
_ Só há um lugar que ensinam tais conhecimentos e é na escola de Filosofia
onde os conceitos razão e verdade se insurgem como o Pilar de toda
construção filosófica, mas não esqueça também de outros dois conceitos que
são essência e método pois certamente irão te falar de tais palavras e já tens
que ter um conhecimento prévio dessas asserções sob pena de nada entender
do que dizem.
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Cândido
_ Assim será feito meu pai e voltarei apto para o mais penoso dos trabalhos
assim que acumular informação suficiente que me possa dizer o que são
Razão e Verdade. Dessa empreitada espero adquirir os conhecimentos
necessários para escolher minha profissão, quando não, voltar rico daqui a uns
meses ou anos. Meu pai, obrigado pela lição e quando eu mesmo souber o que
seja essa tal verdade e razão voltarei para lhe explicar para que serve e como
nos pode ajudar a sermos ricos.
(FIM DO PRIMEIRO ATO)
(Cândido reflete agora sobre o radicalismo que teve antes contra as
profissões colocadas em questão pelo pai. Nem discutira sobre o esteio da
publicidade e propaganda cujo nome é Marketing e assim tece algumas
considerações a si mesmo para exame que não peque por falta de
enumeração. Pela omissão do Marketing no diálogo com Ateneu, porém por
sua proximidade com a publicidade ainda levanta algumas cogitações sobre
essa profissão pois nada poderia passar pelo seu exame que não fosse
refletido, assim passa a pensar repentinamente.)
Cândido
“Será que meu pai estava certo e antes melhor uma profissão que me
sustente que as honras dos grandes feitos? É certo que um saber, se é que se
pode chamar uma técnica de fazer negócios de saber, poderia ser a melhor
opção? E não conheço outros gurus na terra que não os marketeiros. Eles
ensinam tudo o que necessitamos para vencer num negócio ou levar a
vantagem sobre o adversário. É certo que é muito custoso e exige esforços,
mas mesmo com todos os seus entraves é um empreendimento justo? Ao que
me parece essa ideologia chamada marketing é a grande causadora de muitos
15
MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
malefícios humanos. Será deus que necessitamos de tanta coisa que o
marketing apregoa precisarmos? Já tínhamos carroças porque um ideal de
locomoção já existia latente em nós e esse ideal até que surgisse o marketing
não era mais que uma carroça, ou seja, o ideal não era um carro. Será então
que o marketing acrescentou essa necessidade em nossas mentes ou será que
já era uma necessidade latente? Pensando bem me parece mais a
necessidade de certas empresas e o ideal de certos cientistas que criaram o
carro a causa de nossa necessidade por carros que a própria necessidade
latente do ente específico. O ideal de carro nunca passara pela cabeça de um
homem da idade média sendo assim ele nunca teve essa necessidade de um
carro potente. Talvez de uma carroça mais veloz e assim colocaram quatro
cavalos no estribo ao invés de dois. Mas a necessidade latente de algo que
nunca teve idéia acho difícil. Talvez o homem teve o ideal de voar mas a
necessidade de um avião nunca passara pela sua cabeça antes dessa
invenção. Claro que passou por umas cabeças antes de ser construído porém
não pela da maioria. Até me parece muito paradoxal a idéia de necessidade
latente pois como algo necessário não pode existir? Ora, se é necessário existe
antes de qualquer coisa e o que é acidental passa a ser posterior. Só aquilo
que antes possuímos e depois perdemos pode ser tido como uma falta mas
aquilo que nunca tivemos não pode ser tido como necessidade ou falta antes
de existir sua posse. Quando acostumamos a utilizar certo benefício como o
avião aí sim se torna uma necessidade. As grandes civilizações capitalistas nos
deram a necessidade de possuirmos carros para nos locomovermos a grandes
distâncias em tempo rápido e até de aviões, mas numa sociedade de tipo tribal
será que necessitariam de tais coisas supérfluas e sem necessidade para tais
vidas selvagens? Pronto, estou certo de que o marketing cria necessidades já
que o ouro e o pau-brasil mesmo abundantes no Brasil pré-colonial não
serviam para nada quando se trata dos hábitos dos índios desta forma foi o
comércio mercantilista que criou a necessidade de acumular metais. O
processo da criação de necessidades no que tange àquilo mesmo que não é
intrínseco a uma vida digna é histórico portanto. O marketing, só para retomar
as conversas do meu pai sobre profissões está fadado a ser um grande criador
senão de necessidades ao menos de objetos de desejo, pois ninguém tem
necessidade daquilo que não conhece. Se necessitavam de carroças era
16
MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
porque já haviam pernas para andar. Se necessitavam de carros é porque já
haviam carroças e assim por diante. Isso é o mesmo que dizer que
necessitamos de ar porque temos pulmões, mas quem necessita de algo que
não existe a não ser quando esse passa a existir? Nenhuma tribo primitiva
necessita de carro porque em seu habitat e em suas curtas distâncias que
percorrem esse haveria de ser inútil sendo portanto o hábito o pai da
necessidade. Após pensar nisso descarto também o marketing do leque de
opções de carreira a seguir devido a seu embuste de criar necessidades
supérfluas que antes de necessidades são caprichos que os homens inventam
a fim de ganhar dinheiro.”
(Com esse raciocínio Cândido elimina de vez por todas a possibilidade de
se entregar a profissões corriqueiras antes de saber o que é razão e verdade.
Por isso encontra um sábio que o recepciona do alto de sua filosofia.)
Cândido
_ Vejas sábio, passei em revista todas as profissões ao meu dispor e não
encontrei nenhuma do meu alento. Quero ao menos saber o que é verdade e
razão para prosseguir em minha busca. Meu pai, Ateneu, disse-me que a única
forma de esclarecer tais conceitos seria numa escola de filosofia, mas como
não conheço nenhuma na cidade vou direto lhe dar com o sábio que é você.
sábio
_ Vens a me importunar com coisa mais vã quando estou a contemplar os
segredos do céu e da terra? Os Mistérios dos Elêusis e as mais profundas
instâncias do ser recôndito e inefável.
Cândido
_ Pensai que estavas a tomar chá.
sábio
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Mas dessa forma circunspeta não deduz que se trata de grande coisa que eu
vejo nessa xícara de chá?
Cândido
_ E o que vês através da louça?
sábio
_ Vejo os mais remotos segredos. Vejo água, terra, fogo e ar num devir
absoluto que é uma cópia do mundo das essências.
Cândido
_ Quer dizer que para beber um chá necessita-se de tanta preparação?
sábio
_ Até mesmo para respirar. Antes de inspirar o ar eu penso em todas as almas
que refluem em minha alma ao aglutiná-las em meu ser corpóreo. E antes de
expirar procuro liberar apenas aqueles espíritos maléficos concentrando em
meu ser apenas os bons e não deixando minha alma escapar por completo.
Cândido
_ Dessa forma você pode demorar muito para respirar e ficar sem ar não estou
certo?
sábio
_ O problema não é quem está certo ou errado mas o que é certo ou errado.
Qual a essência dessas palavras que soam tão superficiais e guardam em si o
segredo de tudo o que há na Terra? O bem, o mal, o bom, o ruim é tudo o que
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
as pessoas vêem nesse mundo sendo o resto conseqüência desses
julgamentos.
Cândido
_ Quanta sabedoria, que eloqüência. Ensine-me a arte de bem falar.
sábio
_ Não é simples pois antes necessitaria da arte de ver e depois da arte de
pensar para só assim chegar à arte do bem falar que leva à arte do bem viver.
Cândido
_ Mas então, da sua sapientíssima mente, o que tens a me dizer sobre verdade
e razão?
sábio
_ A Verdade? Não existe. Não é nada. É somente a justificativa de tanto
pensamento trabalhoso e a razão é seu álibe.
Cândido
_ Não compreendi, poderia me responder melhor?
sábio
_ Há um mito na filosofia que toda ela está em busca da verdade. Mas qual
verdade? Qual conhecimento é capaz de a produzir? Nenhum posto que a
verdade é o próprio caminho da busca e se uma vez atingida a filosofia
acabaria sendo por isso que o sapientíssimo Sócrates guardou a verdade para
alguém que poderia respondê-la ao guardar para si mesmo a verdade. Ele
nunca respondeu a uma questão por temer ser desmascarado. Certamente ele
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
queria ser ouvido por séculos e se respondesse de imediato o que são as
coisas privaria os outros de pensar por si mesmos e também de ler suas obras
que não tratam senão da verdade mas sem nunca dizê-la qual é.
Cândido
_ Que complexo. Então a verdade é uma mentira?
sábio
_ Certamente uma palavra tão ornamentada e falada que tomou ares de reflexo
condicionado nos filósofos. Basta falar em filosofia para se falar em busca pela
verdade. Quanto à razão é o álibe que os faz não ser tomados por idiotas e
esquizofrênicos. Quando o nome razão passa na filosofia a ser considerado o
lastro de todo o pensamento institui-se então uma verdade para a filosofia que
é justamente a verdade de um saber racional. Para sua primeira lição isso
basta. Até logo e me deixe tomar meu chá enquanto contemplo o ar que reflui
na xícara ao modelo dos ares do Universo atmosférico.
Cândido
_ Obrigado Sábio. Mais tarde voltarei para me aliciar em sua presteza.
(FIM DO SEGUNDO ATO)
Cândido
_ Fui ter um conversa com o sábio, meu pai, e de nada adiantou o diálogo.
Parece que ele está em outra sintonia que a nossa e mesmo parecendo poder
responder sobre qualquer assunto humano em coisas específicas ele não
consegue se fixar.
Ateneu
20
MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Mas meu filho, é da natureza dos sábios caírem em buracos ao estar muito
entretidos com os segredos dos céus. Enquanto pensamos em assuntos
mundanos estes estão em estado de contemplação olhando para o próprio
umbigo e perguntando se seu umbigo fosse o modelo do Universo quantas
translações seriam possíveis em um dia.
Cândido
_ Muito me admira eles se colocarem acima dos assuntos políticos. Por acaso
só pensam com as cabeças nas nuvens? Nunca pensam com os pés fincados
na terra?
Ateneu
_ Estão eles preparando-se para a morte pois acreditam que assim que esta
vier eles já estarão tão desprendidos do corpo que não seria necessário grande
impacto na mudança repentina de vida para morte. Além do mais desprezam o
corpo e tudo o que vem dos sentidos pois têm em mente que a realidade
sensível é matéria de dúvida.
Cândido
_ Não acredito nessas palavras vãs que provêem de sua boca meu pai. Por
acaso está tomando o sábio de lunático?
Ateneu
_ Com certeza meu filho. O verdadeiro sábio já é uma múmia ambulante que
esqueceu tudo o que é sentido e instinto em nome da razão.
Cândido
_ Mas o sábio mesmo que eu fui encontrar me dissera que essa história de
razão é apenas um álibe para que os filósofos não sejam tidos por idiotas. Se
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
não canonizassem uma idéia assim como a religião canoniza a idéia de Deus
seriam homens comuns porém com a intervenção da razão passam a ser os
detentores exclusivos de um poder quase mágico e misterioso.
Ateneu
_ Certo meu filho, mas a verdade é que aqueles que pensam, pensam é
porque sofrem e sofrem também porque pensam e assim só aumentam sua dor
nesse círculo vicioso. O verdadeiro felizardo é um grande ignorantão cheio de
dinheiro no bolso. É o grande paquiderme voltado não para si, mas para seus
vícios. Um porco satisfeito vale mais que um Sócrates insatisfeito. Palavra do
perito.
Cândido
_ Não aceito meu pai que desmereça cultura tão milenar como a filosofia.
Enquanto as outras ciências tateiam... (é interrompido)
Ateneu
_ Enquanto as outras ciências tateiam a Filosofia permanece no mesmo lugar,
imóvel e meditabunda. Procurando as origens andam de trás para frente
porque crêem que a verdade não está dada de imediato, mas que percorre um
grande cabedal histórico e por vezes a - histórico uma vez que vivem no mundo
não do que é mas no do que deveria ser.
Cândido
_ Então o que buscar meu pai? De tudo já tentei. Dinheiro, mulheres,
bebedeiras, drogas, religião, o que buscar então que me tire desse sofrimento
de ser mortal e me ver tão frágil quanto um caniço?
Ateneu
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Veja agora meu filho a palavra de um sábio: “o homem é um caniço, o mais
frágil de todos, porém um caniço pensante.” Quem disse isso foi o filósofo
Pascal e se isso tu és, esse caniço pensante, agarre com todas as suas forças
o seu dever e me prometa que não fará mais esses exageros mortíferos para
uma alma que pretende ser sã.
Cândido
_ Tudo bem meu pai. Eu juro que em toda minha vida jamais cometerei atos
iguais a esses. Mas assim estás se contradizendo, pois se afirma a primazia
dos sentidos em relação à razão como prefere ser um Sócrates insatisfeito a
ser um porco satisfeito?
Ateneu
_ Meu filho, assim como o sol a depositar suas sombras sobre os anteparos é
minha alma. Ela pende entre a satisfação dos prazeres e a vontade racional do
dever. Tenho em minha alma tesouros envoltos de sombras e quando as
sombras dão trégua eu consigo pensar claramente. Todas as minhas
esperanças deposito em ti e logo verei uma escola digna para que possas
cursar um bom curso de oratória que o levará a aprender a arte de ganhar
disputas verbais e depois disso poderá ser um excelente advogado a ganhar
causas para o seu pai que está atolado em dívidas e processos.
Cândido
_ Mas por que lhe devo isso meu pai?
Ateneu
_ Por que lhe dei o bem mais precioso que foi uma infância feliz e da minha
mulher ao fecundá-la tu nascestes.
Cândido
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ E por acaso tive opção em renunciar tal bem em troca da isenção da dívida
que contraí em nome disso, ou seja, ter que lhe pagar com o suor do meu rosto
meu próprio nascimento?
Ateneu
_ Não se ludibrie meu caro Cândido a vida é cheia de percalços e não se pode
confiar em ninguém. A mulher é adúltera até mesmo em pensamento, os
negociantes cafajestes em seu trato e os prazeres trazem conseqüências
maléficas em longo prazo.
Cândido
_ Como confiar na vida meu pai? Se antes queria apenas escolher minha
profissão agora me vejo tendo que resolver todos os problemas da vida.
Ateneu
_ Mas quem disse que tudo não está interligado?
Cândido
_ Só o que sei é sobre o ciúme que me aplaca o coração e se tenho que
resolver problemas de maiores montas este do ciúme da minha criada que eu
faço sexo ocasional me consome o orgulho e dispersa a atenção para coisas
mais prementes. Ela, um embuste de feiúra e decadência e eu um Apolo de
beleza incomensurável tendo ciúme por uma coroa? Poderia eu ter as mais
lindas das mulheres, mas estou aqui me vendo com uma promíscua que além
de me dar pouco sexo ainda não é da minha posse. É certo que para se
conquistar alguém se deve conquistar de corpo e alma senão nada está feito.
O que vale é ter a posse até dos pensamentos da mulher e se ela divide seus
pensamentos flertando com outros homens ou mesmo com a efetivação do
coito para mim isto não tem outro nome senão traição.
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Ateneu
_ Mas se concentre nas coisas essenciais meu filho. Por que está desviando
do trabalho que tanto quer?
Cândido
_ É por que minha mente fervilha e não me dá descanso. A inquietação me
deixa como um balaio de gato onde os felinos se atacam seja através da
paixão seja através da razão. Além do mais um dos gatos se chama razão e
está nesse balaio sempre a brigar com outro gato que se chama paixão da
alma e nesses ataques cada vez um sai vitorioso quando o que eu queria era
uma vida constante sem volatilidade entre um lado e outro do espírito. Quero
dizer, deixar de oscilar entre o racional e o emocional.
Ateneu
_ E qual profissão você pensa que lhe dará a tranqüilidade da alma tão
desejada?
Cândido
_ Nenhuma. Esse é o problema. É uma questão de espírito e enquanto eu
permanecer o que sou em meus vícios cotidianos nada poderá ser mudado. A
paixão me consome quando o ódio infla meu sentimento de possessão por
outra pessoa e mesmo que não a ame esse é o tipo de amor que eu tenho e
valorizo-o por ser o único que possuo.
Ateneu
_ Sua vida toda está um caos e além do mais você sente uma extrema
angústia de possibilidade. Tem medo de que seus projetos não se realizem.
Medo de ser apenas sua vida, aquilo que há de concreto e no final acabar senil
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
e derrotado. A vida não foi feita só de vencedores e Ai dos vencidos meu filho.
Você pode até ser corno, burro, idiota mas não deixem pisar em você pelo que
você é porque por mais defeitos que possua há muitos outros com defeitos
piores.
Cândido
_ Está bem, então voltemos ao assunto da profissão. Qual seguir?
Ateneu
_ Aquela que cure sua alma de todas essas paixões e vícios maléficos.
Cândido
_ Mas é possível um conhecimento que transforma e me faça um homem bem
sucedido quando não feliz?
Ateneu
_ Depende do seu conceito de felicidade. Se for se dar aos prazeres fugazes
das drogas e do sexo logo se sucumbirá e terá uma vida curta.
Cândido
_ Curta porém aprazível. Já tive viagens que só um monge tibetano pode ter. Vi
o todo em imagens que refluíam e me dava o todo que escapava de mim
mesmo para circular no mundo e voltar a mim mesmo. Forçava as imagens e
elas eram extrusivas pois davam abertura a uma totalidade que refluía e além
do mais me englobava ao englobar todo o resto.
Ateneu
_ Certamente efeitos de drogas alucinógenas.
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Cândido
_ Tudo o que ressinto é que não posso ter essas viagens espontaneamente. É
Como se a mente fosse mais vagarosa que a realidade sendo que o essencial
mesmo escapa.
Ateneu
_ Fica complicado conseguir algo para o seu perfil devido você ser um idiota
com pretensões de intelectual.
Cândido
_ Mas como você disse há mais idiotas que eu e isso me conforta.
Ateneu
_ Mas pelo movimento de vida que vem levando com esses vícios nocivos
creio que não sobrará tantos menos idiotas que você.
Cândido
_ Mas como saber que sou capaz de tudo o que almejo?
Ateneu
_ Primeiro sabendo o que desejas e depois empenhando feito a um cavalo que
coloca um cabresto na direção escolhida e não olha para os lados, mas só para
frente.
Cândido
_ Será isso possível em meio a tanta tentação e hábito condicionado?
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Ateneu
_ Só uma dica. Para se afastar das tentações deve-se refrear os instintos e
utilizando do método Coué se persuadir dos pensamentos que têm afinidade
com aquilo que é sua meta.
Cândido
_ Mesmo você não sendo sábio meu pai, tem grande inteligência prática e por
isso seguirei seus conselhos. Posso ver a olhos vistos a deterioração e
decadência de minha mente. Invejo o Cândido de raciocínio rápido e memória
tenaz que outrora eu era, mas agora tenho que me contentar com o pouco que
me sobrou de anos fustigados pelos vícios de todas as espécies.
(FIM DO TERCEIRO ATO)
(Depois da conversa com seu pai Ateneu, Cândido decide percorrer o
grande círculo do mundo. Sempre foi dado aos vícios, mas agora quer fazer
viagens exteriores e não interiores rumo às profundezas do inconsciente. Ele
necessitava perquirir sobre os grandes segredos do mundo externo sabendo
que estes muito mais que os segredos do movimento interno do espírito o
dariam uma extensão mais vasta do que é o mundo em si. Estudou primeiro
cosmologia, depois física e por final química. Descobriu que esses
conhecimentos apesar de dar um vasto cabedal de conhecimento que
desmistifica muitas ações remetidas ao sobrenatural não transforma o sujeito
por ele mesmo assim sendo finalmente acolheu o conselho de seu pai e entrou
numa escola de filosofia. No primeiro dia de aula teve a impressão de que
havia homens ali que por simples vaidade cultivavam o saber apenas para ter
uma prótese espiritual que não os fizesse sentir tão frágeis quanto eram na
verdade. Tão comuns como são em vida. Essa fora sua primeira lição e
chegando ao primeiro aluno que conheceu altercou algumas disputas assim já
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
de início e apenas com o conhecimento do senso comum, pois se refutasse a
partir de bases leigas aquilo que era o cânone do saber não se sentiria tão
menor que os outros.)
Cândido
_ O que vocês estudam aqui de forma tão disciplinada que apenas os doutores
podem dar seu parecer e vocês acharem que isso é a verdade? Afinal, o que é
a verdade para você?
(Todos riram do intransigente novato que por não ter passado pelos ritos de
iniciação órfica não podia dirigir a palavra para os considerados superiores em
saber. Esses doutores muito haviam acumulado em saber e se Cândido
pretendesse alcançar uma sabedoria de vida deveria buscar um atalho. Mas
como? Esse era o problema. Já havia aprendido que apenas os pensamentos
ao ar livre são dignos de monta, mas ele mesmo era um burocrata. Não tanto
quanto a elite intelectual de sua cidade nem grande nem pequena. Como se
apressar para aprender numa idade mental em que a senilidade imperava e
apenas o método poderia salvá-lo? Só um método seguro, porém que se
baseasse não na norma do conhecimento mas sim na sua transgressão.
Apenas essa radicalidade de pensamento poderia o tirar dos fastios de um
desesperado pela cura. Pela cura através das palavras. E assim continuou o
debate com o aluno)
Cândido
_ Diga-me o que é a razão e a verdade que tanto procuram.
Aluno
_ Nada mais que uma vida inteira dedicada a um único conceito.
Cândido
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Que coisa mais chata. No final o que consegue com isso?
Aluno
_ Pleitear a uma vaga de professor universitário.
Cândido
_ É nisso que se resume a vida acadêmica?
Aluno
_ Não só nisso, mas também a certa disposição do espírito de memorizar as
doutrinas dos filósofos
Cândido
_ E o que isso traz ao final?
Aluno
_ A oportunidade de fugir de uma vida de aparências.
Cândido
_ Mas você não crê que a aparência é apenas um estado do ser como todos os
outros e talvez o único?
Aluno
_ Como assim?
Cândido
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ É que a essência das coisas já nos são dadas através dos fenômenos não
havendo nada por trás disso.
Aluno
_ Há algo além das aparências e dos fenômenos. Há a coisa em si kantiana.
Cândido
_ Sendo assim caro colega tudo que posso fazer é me retirar nos montes e
procurar minha própria verdade, pois não me incitastes com o palavrório bonito.
Aluno
_ Se quiseres conhecer a si mesmo cuida de ti. Outra coisa. Se almejas uma
transcendência não será através de discursos mas da intuição e imaginação
que a tudo aplaca. O discurso filosófico é totalmente racional e não vai te
ajudar a transformar-se como sujeito. Se busca uma conversão a si procure a
religião, pois esta é a melhor opção para seres espirituais como você.
Cândido
_ Mas minha espiritualidade não tem nada a ver com Deus ou religião já que é
uma transcendência que se faz na imanência do mundo terrestre. De qualquer
forma agradeço, porém aqui não é o meu lugar a não ser que possas me
transformar num grande orador conhecedor da lógica e da sofística, pois tudo o
que me interessa é a vida prática.
Aluno
_ Isso pode ser provido. Volte aqui amanhã que lhe apresentarei para nosso
mestre de retórica. Mas muito me admira você ser afeito à espiritualidade e à
vida prática ao mesmo tempo.
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Cândido
_ Algo que aprendi é que está tudo interligado. Até amanhã. Vejo-te lá.
(FIM DO QUARTO ATO)
(Cândido então voltou à escola para aprender retórica com o mestre de
retórica mas antes devia passar pela sabatina do aluno de retórica.)
Aluno
_ Muito bem Cândido, está disposto a aprender retórica?
Cândido
_ Com muita disposição, aliás.
Aluno
_ A primeira colocação que lhe ponho é sobre a quadratura do círculo.
Cândido
_ Como é possível seu vil que um círculo possua quadratura, que seja por
alguma de suas circularidades algo quadrado?
Aluno
_ Não importa o que achas, se queres ser orador ou retórico deves defender a
pior tese e demonstrar sua verossimilhança. Deves possuir o dom mágico dos
rouxinóis que encantam apenas pela sonoridade. A lógica sofística que queres
aprender se baseia justamente em fazer o pior parecer o melhor. Agora me
responda a colocação sobre a quadratura do círculo.
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Cândido
_ Ora, se é círculo deve ser redondo e não quadrado.
Aluno
_ Por algumas vezes vistes que a logomarca da Skol é redonda?
Cândido
_ Sim, por demais vezes.
Aluno
_ Mas não é certo também que os iguais têm afinidade pelos iguais pois se não
fosse assim os aristocratas andariam não com seus pares mas com seus
ímpares?
Cândido
_ Com certeza.
Aluno
_ Pois então, quem bebe Skol não há de ficar redondo de tantas calorias que
ingere?
Cândido
_ Certamente.
Aluno
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Assim é fato que o redondo não repeliu o redondo caso contrário a tendência
era o sujeito ficar quadrado ao beber cerveja e não redondo como um barril.
Cândido
_ Isso é certo.
Aluno
_ Mas apesar disso, no que tange à paixão apenas, os contrários não se
atraem?
Cândido
_ Atraem sim, tanto que Xantipa era ignorante e Sócrates um sábio.
Aluno
_ Assim você teve progresso mas concentre-se mais. O sujeito que toma Skol
fica redondo e além do mais é muito quadrado não beber cerveja, pois dizem
dos que não a bebem que são caretas. Isso é certo?
Cândido
_ Certo. Quem não bebe cerveja é quadrado, careta.
Aluno
_ Mas as moçoilas não se atraem por esses seres glutões e muitas vezes
ogros que bebem Skol e ficam redondos?
Cândido
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Acontece muitas vezes pois elas os acham másculos com barrigas de cerveja
e copos de meio litro nas mãos.
Aluno
_ E essas moças não são requintadas e alheias aos vícios devido à educação?
Cândido
_ Com certeza.
Aluno
_ Então elas são quadradas por isso?
Cândido
_ Concordo.
Aluno
_ Então como me dizes que é impossível a quadratura do círculo quando uma
moça quadrada em seus costumes atrai um homem circular de cintura? Não é
verdade que aí houve a sobreposição entre o quadrado e o círculo já que eles
em coito se atracam?
Cândido
_ É verdade. Pois então você me provou que é possível uma síntese
simultânea entre o quadrado e o círculo e assim sendo o círculo pode ter
aspectos de quadratura devido à sobreposição de um ao outro.
Aluno
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Você foi admitido na escola de retórica. Agora reze para os deuses gregos
para que assim que sair daqui se torne um perfeito falastrão. Um embusteiro
que a todos engana e surrupia só com a língua ferina e afiada. Volte aqui
amanhã para a sua segunda lição que será de erística. Mas Cândido, você se
lembra que me devia dez reais daquela noite em que bebemos juntos?
Cândido
_ Sim, me lembro, foi numa sexta-feira.
Aluno
_ Pode me pagar agora?
(Cândido lhe dá os dez reais)
Cândido
_ Agora você me deve dez reais.
Aluno
_ Ora, por quê?
Cândido
_ Eu não lhe devia dez porque tu havia me dado os dez, pela mesma lógica
agora me deves dez pelos dez que agora lhe dou a você neste instante.
Aluno
_ Como?
Cândido
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Se tu me passando dez reais fizeste-me contrair uma dívida agora eu lhe
dando os dez te faço contrair outra dívida de dez reais.
Aluno
_ Concordo. Toma os dez de volta.
(Devido Cândido ter entrado na pocilga dos retóricos e sair de lá vinte reais
mais rico se entusiasmou com a retórica mas percebendo que não passava
tudo de aleivosia perniciosa voltou triste para casa por ainda não ter decidido
seu destino.)
(FIM DO QUINTO ATO)
(Cândido volta tarde para casa e quando acorda está tudo diferente ao seu
redor. Neste dia todos acordaram com algo diferente no ar. Tudo parecia
sórdido tamanha clareza na percepção e constância nos acontecimentos.
Passaram dias e dias e tudo acontecia em repetição, ou seja, sem mudança.
Nenhum imprevisto protelava as ações pois tudo era certo e imutável. As
línguas dos cidadãos estavam saburrentas e sem doce. Só o amargor da
melancolia e da certeza, da frigidez e de tudo aquilo que é ordenado e regrado.
Monótono e tedioso. Os espíritos estavam todos apolíneos. Nenhuma
probabilidade posto que tudo passou a ser totalmente previsível. A razão neste
momento impera soberba. A alegria escapara dos corações e só a fria e gélida
razão encontrava espaço nos espíritos. )
Cândido
_ Notou algo de diferente meu pai?
Ateneu
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Sim meu filho. Estamos na era da razão. Finalmente chegou o momento em
que sem gradações da noite para o dia foi instalada a ordem racional.
Cândido
_ Mas como isso é possível se há dias atrás as pessoas ainda cantavam e
dançavam?
Ateneu
_ Agora não há espaço para festas, pois não há disposição para a felicidade
que Baco nos trazia.
Cândido
_ O que de tão grave pode ter desferido esse golpe em nossos corações meu
pai?
Ateneu
_ Um novo advento, uma nova descoberta e o aprisionamento de um deus.
Cândido
_ O que? Quer me dizer que algum dos deuses do Olimpo foi aprisionado
assim como Prometeu acorrentado?
Ateneu
_ Exato. E com tal deus que na verdade é uma deusa vários outros deuses
perderam suas forças só para citar dois dos que foram prejudicados cito
Dionísio e Cupido que sem essa deusa nada podem fazer além de esperar a
libertação dela. Eros também foi prejudicado pois se tornou impotente sem a
loucura.
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Cândido
_ E de que deusa se trata? Quem a aprisionou?
Ateneu
_ Moria. A quem os antigos gregos chamam de a deusa Loucura e os romanos
com toda aquela insipidez de Stultitia.
Cândido
_ Quer me dizer que o mesmo destino que dão aos loucos fora dado à própria
deusa causadora da loucura?
Ateneu
_ E digo mais meu filho. Com ela também foi aprisionado Dionísio, deus da
embriaguez e da alegria.
Cândido
_ Está explicado então meu pai a condição funesta em que vivemos agora e
sua causa. Moria foi presa em grilhões os mais fortes possíveis pois difícil é
acorrentar tal deusa quando furiosa. Dionísio tentando defendê-la deve ter sido
também enviado para a prisão. Se assim deduzo certo.
Ateneu
_ Correto meu filho. Foi por ordem de Apolo que em conluio com Zeus
pretendeu fazer da Terra e dos Céus um lugar onde impera a clareza e a
ordem. Onde tudo é regrado e disciplinado.
Cândido
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Mas onde conseguiram prender tal deusa?
Ateneu
_ Foi numa colossal caixa de anti-psicóticos tarja preta, pois apesar de ser
frágil esta caixa tem poderes sinistros contra tal deusa.
Cândido
_ Mas uma simples caixa de papelão prendendo uma deusa de tamanha força
quando em fúria?
Ateneu
_ Ludibriaram-na ao dizer que ali, no fundo de tal caixa, orgias mil eram
propiciadas e ela em sua alegria e promiscuidade logo aceitou o convite.
Pensou que lá estavam Afrodite e Eros que eram encenados por impostores
em coito à meia-luz. Assim que entrou a trancafiaram na caixa de tarja preta. É
justamente tal tarja que a prende como grilhões acorrentaram Prometeu.
Cândido
_ Mas como foram maquiavélicos e aproveitadores da demência de tal deusa,
de seu esquecimento. Mal sabe ela reconhecer os amigos e distingui-los dos
inimigos.
Ateneu
_ Isso é certo meu filho.
Cândido
_ E onde se encontra tal prisão?
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Ateneu
_ No firmamento.
Cândido
_ Prepare meu Pegasus pai, pois se tanto eu procurava meu destino agora o
encontrei. Salvar Moria e salvando-a salvar toda a Terra pois é impossível viver
nesse covil de raposas e abutres sem nossa querida loucura de cada dia. Até
percebi que ninguém faz mais piadas. Não há mais comédias, somente
encenam agora tragédias e além do mais os psiquiatras perderam sua função.
Estão desempregados.
Ateneu
_ Aí se engana meu filho Cândido. Não é a toa que seu nome nos traz a
transparência da inocência. Foram os próprios psiquiatras que forjaram a
grande caixa de anti-psicótico tarja preta auxiliados e mancomunados com as
indústrias farmacêuticas.
Cândido
_ Não posso acreditar em tamanha falcatrua e crueldade. Agora esses
psiquiatras se tornaram ricos?
Ateneu
_ Souberam prover bem e tomar partido da oportunidade. Um salário vitalício
para aqueles que assim conseguiram prender Moria e jogar Dionísio para
escanteio. Estão todos a venerar Apolo e agora me dizem que o único deus
venerável é esse. O deus da ordem, da clareza e da perfeição.
Cândido
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Que triste meu pai. Vejo agora a vitória dos imobilistas como Parmênides e o
enterro do devir heracliteano. Posso perceber que meus sentidos não estão
mais tão aguçados, que meu coração não é mais apaixonado e que acima de
tudo está tudo imóvel como bem pretendia Parmênides posto que a via dos
sentidos está evanescente.
Ateneu
_ Isso é tudo meu caro Cândido e se pretende salvar a rainha antes tanto
venerada por todos nós de moles corações terá que desafiar um séquito de
seguidores de Apolo.
Cândido
_ E quem são eles?
Ateneu
_ O exército, a polícia e o poder psiquiátrico.
Cândido
_ Que dura batalha terei que travar.
Ateneu
_ Se assim quiser procure a bela morte. A morte dos campeões ou dos heróis
em campo de batalha.
Cândido
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Que assim seja meu velho. Depois de procurar por todas as profissões
escolhi a minha. Serei um herói antipsiquiatra.
Ateneu
_ Que os deuses estejam contigo.
Cândido
_ Força de expressão né? Pois se nem mesmo Zeus está...
Ateneu
_ Este não mas outros estarão e ainda diversos tipos que como eles nutrem a
esperança de voltarem aos corações as paixões da alma e à sensibilidade a
estética perdida. Toda uma população de amantes que agora não encontram o
amor perdido. Cupido lhe emprestará sua flecha para que combata de igual
para igual com todos os exércitos.
Cândido
_ Mas essa flecha do Cupido também serve para matar?
Ateneu
_ Nessa situação sim pois quem ativava os poderes de tal flecha era a deusa
Moria. Com ela presa e sedada agora a flecha do Cupido se tornou uma arma
mortífera. Vai ao seu pegasus e cate sua flecha. Moria está debilitada e não
suportará tantos mais tormentos. Salve a Terra. Essa sua missão. Essa sua
profissão meu filho.
Cândido
_ Pois que assim seja.
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
(FIM DO SEXTO ATO)
(Cândido em seu otimismo toma para si a arma que Cupido lhe empresta,
monta em seu pegasus e voa rumo às estrelas e chegando ao Olimpo encontra
Caos toda ressentida.)
Cândido
_ O que lhe aflige Caos?
Caos
_ É o maldito Zeus. Este aprisionando Moria tirou a felicidade de todos ao
ordenar tudo regradamente. Não há nada que não passe agora pela mão dos
psiquiatras. Suas drogas cujo segredo Prometeu roubou dos deuses e enviou
para o prêmio Nobel em psiquiatria agora deixa Moria semi-morta. A grande
caixa de anti-psicóticos tarja preta que aprisiona a deusa Loucura têm efeitos
funestos sobre ela. Não se vê mais ela furiosa nem a disparatar impropérios. A
Stultitia antes rainha e amada por Eros, Cupido, Afrodite e principalmente por
Baco ou Dionísio não emana mais seus poderes de comédias e devaneios para
todo esse séquito de deuses que buscavam sua inspiração justamente nessa
musa da doidice e da maluquice.
Cândido
_ Mas quem guarda a porta da prisão?
Caos
_ Aquiles, o terrível.
Cândido
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Hércules pode com ele.
Caos
_ Não mais. Com Moria presa se tornou prudente e agora não disputa em
batalhas.
Cândido
_ Deixe que lá vou eu.
Caos
_ Está brincando, você ousa desafiar o bravo Aquiles?
Cândido
_ Certamente. Finalmente escolhi minha profissão.
Caos
_ E qual é ela?
Cândido
_ Guerreiro antipsiquiatra.
Caos
_ Não sabia que havia essa classe de guerreiros.
Cândido
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ Agora nessa situação deplorável há. Quem não pode seguir os caminhos
existentes têm que abrir seus próprios caminhos.
Caos
_ A fortaleza de Papel é muito grande e mesmo que passe por Aquiles terá que
enfrentar os Gigantes.
Cândido
_ Mas será possível, esse golpe de Estado de Zeus levou consigo os maiores
guerreiros?
Caos
_ Eles levam a vantagem da hegemonia política no Olimpo e só os deuses
mais depravados e irracionais estão fora desse esquema quanto ao resto todos
se tornaram cúmplices de Zeus e Apolo.
Cândido
_ Que eu encontre a Bela Morte. Vou-me embora para a fortaleza de papel.
Caos
_ A sorte está lançada que seja como a fatalidade permitir que seja.
(Cândido trava batalha contra Aquiles na porta da fortaleza de papel quando
quase morto por esse, aproveitando da desatenção do bravo guerreiro que ao
subestimar seu adversário dá-lhe as costas, lança a flecha de Cupido no
calcanhar de Aquiles que cai ao chão. Ainda muito debilitado e com a cabeça
quebrada Cândido levanta e continua a caminhar adentrando-se no Castelo
cuja insígnia é uma tarja preta que envolve toda a fortaleza horizontalmente. Lá
encontra Odisseu. Sem a flecha que ficou para trás fincada no calcanhar de
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Aquiles Cândido não tem nenhuma chance contra Odisseu até que as sereias
aparecem para dar uma mãozinha para Cândido e começa seu canto. Cândido
cujos ouvidos estavam repletos de cera não ouve o canto inebriante da sereia
ao contrário de Odisseu que fascinado pelas vozes majestosas corre em
direção de onde provinha o canto deixando assim a passagem livre para
Cândido ir avante. )
(em coro)
Gigantes
_ O que? Mesmo com ferimento quase fatal continuas a nos desafiar humano
idiota?
Cândido
_ É para o bem dos deuses e da humanidade que lhes desafio à luta. Estou
prestes a salvar Moria de seus tentáculos coercivos homens de duas cabeças.
(em coro)
Gigante
_ Que seja. Sua morte será rápida e indolor.
(Quando os gigantes levantam o pé para esmagar Cândido um novo aliado
o salva. Hera que havia se ressentido com Zeus por ele dar o golpe de Estado
deixando-a fora de seus planos de poder acaba por derrotar os Gigantes com
seu olho poderoso e invencível ao aterrorizar os gigantes que saíram correndo
do recinto.)
Cândido
_ Obrigado Hera. Esse Gigante já era.
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
(Assim continua Cândido que avançava em seus postos até adentrar na
cúpula central onde havia dois psiquiatras recém formados sendo um deles
Ulisses que aderiu à nova moda psiquiátrica por ser muito esperto e procurar o
phármakon da imortalidade.)
Ulisses
_ Pretende mesmo libertar Moria? Como acha que será o mundo com ela
novamente?
Cândido
_ Totalmente excelente.
Ulisses
_ Mas o quê? Você acha que a loucura é preferível à Razão?
Cândido
_ Não absolutamente mas sou a favor de um meio termo.
Ulisses
_ Posso te dar uma droga que o faça imortal e assim você será como os
deuses. Não se esqueça que sou psiquiatra e possuo o phármakon da
felicidade.
Cândido
_ Não era da imortalidade?
Ulisses
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MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
_ E qual a diferença entre ser um dia eternamente feliz ao invés de cem anos
de infelicidade. Não concorda que aquele dia seria eterno comparado aos
outros cem anos infelizes.
Cândido
_ Concordo.
Ulisses
_ Então tome essa droga e seja feliz. Esqueça Moria. Ela é uma demente
incurável. É da essência dela ser uma boba alegre.
(Na iminência de tomar o phármakon da felicidade dado à Cândido por
Ulisses aquele ouve os gemidos de dor de Moria e coloca seu dever acima da
felicidade.)
Cândido
_ Agora você foi pego pela sua própria esperteza. Ao trancafiarem Moria me
tornei mais racional e coloquei o dever acima do prazer dessa forma minha
felicidade não vale nada se não pode ser tida como máxima universal. Tornei-
me kantiano devido à evanescência dos poderes de Moria que refletem apenas
pelo meu lado irresponsável. Tornando-me racional devido à ausência dos
poderes de Moria sobre mim estou seguindo o imperativo categórico kantiano e
não posso agir de acordo com uma felicidade que não possa se tornar
universal. Minha moral se elevou, mas meu coração continua triste. Em guarda
seu espertinho. Vou te derrotar.
(Nesse momento se dá uma batalha sangrenta e Cândido derrota Ulisses)
Vai adentrando na grande caixa de antipsicóticos tarja preta e vê Moria
desalmada. Pega-a pelo colo e vai levando para fora. Assim que ela vai saindo
49
MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
a sedação vai diminuindo e ela voltando ao normal. Baco já é avistado em sua
volta à embriaguez. Cupido dá pulos de alegria espontaneamente.
O reino dos proscritos vai se erigindo novamente. Vai-se voltando tudo à
anormalidade. Quem é louco começa a degelar a razão e delirar em cantos
inebriantes. Os enfermeiros e psiquiatras passam a uma face desolada. Os
políticos cortam a verba vitalícia e logo tem-se que rondar as ambulâncias.
O sol desponta de forma gloriosa. A rainha loucura está novamente solta
e convida a todos para um piquenique. É derrubada a bastilha da razão.
Agora todos cantam alegres e embriagados na relva fluorescente.
Moira
O que houve contigo? Está muito debilitado.
Cândido
Sim. Eu faço parte do movimento antipsiquiatrico e estava
restabelecendo às coisas à sua devida ordem, ou seria desordem?
Moira
Eu fiquei muito tempo amarrada dos pés a cabeça e sou claustrofóbica.
Parece-me que eu estava morrendo até que você chegou para me salvar. Meu
herói! O que eu farei de agora em diante?
Cândido
Você irá morar em uma floresta onde há pessoas a te idolatrar por ser a
rainha deles. Você poderá voltar ao Olimpo, mas agora daremos umas férias a
você daquele lugar cheio de cobiças, para que possas descansar e lhe dar com
seus irmãos de espírito. Lá o tratamento é viver conforme a paixão e natureza
segundo dê no espírito. Não há enfermeiros, não há psiquiatras e você ficará
inspirando toda obra do pensamento trágico. Irá ser você mesma sem que
ninguém te force a fazer o que não quiser e por lá sim, há médicos, mas eles
são do movimento antipsiquiátrico o que te fará ter mais vivências que
50
MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
sujeições. São os médicos e autores das mais diversas obras. Escultores,
pintores, poetas, dançarinos, artistas no geral que preferiram criar que ficarem
em uma cama prostrados o dia inteiro esperando a próxima injeção.
Moira
Esse lugar existe?
Cândido
Está sendo inaugurado agora. Antes que tentem exterminar a loucura da
face da Terra reservamos este lugar, mas logo depois poderá voltar para o
Olimpo. Erasmo de Roterdã te espera para apresentar-lhe culto. Muitos te
amam, apenas aqueles que são os normóticos não te toleram devido seu ser
mesmo de sujeito não devido qualquer coisa que faça ou deixe de fazer.
Moira
Será que eles me deixarão em paz?
Cândido
Dificilmente. Ontologicamente você é o outro da razão. A razão que é
muito difícil de desvendar objetivamente é algo que quer oprimir os surtos
mágicos do enfrentamento trágico da loucura. Enfrentar o que há de morte em
ser louco é uma longa história, pois te veem como um cadáver adiado. Como o
resíduo daquilo que sobrou na história da psiquiatria e sua própria razão de
ser. Não temas entretanto, pois se não fosses uma deusa não estaria aqui
falando contigo e te protegendo, mas até eu precisarei de um médico agora.
Moira
Glorioso momento de redenção
Antes enjaulada como um animal
51
MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
Agora com amigos em comoção
Quero sorrir sem isso ser mal
Quero viver sem isso ser sanção
Como me portar agora
Não sei ir embora
Nem tomar precaução
Vivo pela relva cintilante
A fazer poemas no instante
Como se a vida não fosse crime
Nem meus convivas um alvo time
Que pradarias belas
Quanto eles me falaram balelas
Agora de volta ao mundo
Não creio no silencia mudo
Cândido
Bela canção antirepressiva. Ficou amarrada muito tempo. Corra Moria... corra...
E Moria saiu correndo pela relva despedaçando cachos absurdos de
orvalho. Saiu como se acabara de ter nascido e nunca tivesse visto o sol.
Corria a gazela pelos matos, livre agora de toda instituição. Uma deusa a qual
a Hélade tudo deve ter sido espancada e amarrada, sedada no mais alto grau
enquanto planejavam para ela a morte lenta, a vida em morte...
Não. Moria estava finalmente livre e por onde passava desabrochava
surtos de alegrias. Algazarra total de uma inocência sem limite. A criança débil
agora podia pintar o sete. O senil podia brincar com ela. O jovem louco se
refestelava em mil piruetas. Dionísio de longe fitava o céu estelar cujo reflexo
resplandecia na face de Moria.
Uma lua descia do céu a apontar no nariz de Moria mais um disparate. E
sem ninguém para torturar no cárcere. O movimento psiquiatra como não podia
52
MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR
deixar de ser continuava a buscar mais gente para si na vã tentativa de que um
dia os céus estariam a seu favor, pois a deusa voltava de seu confinamento.
Ela estava alegre e todos voltaram a sorrir.
FIM
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  • 1. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR (Em véspera de vestibular o vestibulando passa a pedir a opinião do pai sobre a que carreira seguir.) Cândido _ Meu pai, sabes que estou em véspera de vestibular. Achas que vou prestar para alguma coisa? Ateneu _ Oh! Meu filho, se você vai prestar para alguma coisa isso eu já não sei, mas que pelo menos uma profissão dessas que tirará seu pai da miséria em pleno fim da vida isso sim posso lhe recomendar. Cândido _ Mas o que escolher meu pai, nesse leque tão extenso de opções que se chamam trabalho ou profissão? Ateneu _ Te aconselho que siga o caminho dos bens sucedidos. Cândido _ Mas que caminho é esse meu pai que todos estão a buscar mas poucos a prosperar? Ateneu _ Suponho que seja as profissões de autoridade e quando digo autoridade digo daquelas profissões que pelo embuste o homem parece ser mais do que se é 1
  • 2. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR por possuir uma técnica baseada quando não na persuasão ao menos na força. Cândido _ Quer dizer que essas são as profissões mais honradas? Ateneu _ Não digo honradas nem mesmo respeitadas porém mais temidas pelas conseqüências que trazem. Cândido _ Seja mais específico meu pai pois assim acho seu raciocínio disperso e muito vago. Ateneu _ O que quero dizer é simples. Qual técnica faz com que o mal seja visto como um bem? Cândido _ É aquela que mesmo punindo, o que por si só é um mal para o punido, seja vista como um bem para aquele que não sendo punido se vê em situação privilegiada quanto ao execrado. Ateneu _ Pois bem, definiu bem o Direito e se queres ser forçosamente bem sucedido nessa profissão terá além de tudo fazer com que o aparente seja verdadeiro ou o falso verossímil. 2
  • 3. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Cândido _ O que queres dizer? Ateneu _ Ora, se alguém roubou não o fez por mal caso o tivesse feito não teria as regalias de seu crime. Logo age pelo bem próprio que é seu. Concorda? Cândido _ Sim. Exato. Ateneu _ E quando dizem que ele cometeu um mal realmente o cometeste ou apenas pela perspectiva alheia? Cândido _ Certamente pela perspectiva do lesado, ou seja, pelo ponto de vista alheio, pois para o próprio ladrão que rouba isso não é mal algum. Pelo contrário, estará solucionando suas carências. Ateneu _ Falas com sabedoria e é neste ponto ao qual queria chegar. Esse mal não é absoluto apesar de contra toda natureza o advogado ou promotor querer que seja visto como uma absoluta maldade quando na verdade o ladrão age pelo bem que a si próprio faz. E quanto a guerra, o que dizes? Cândido 3
  • 4. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Esses assuntos já são políticos e não ouso falar deles devido à impossibilidade de pleitear uma função política. Ateneu _ Mas lhe atesto que também não é um mal absoluto pois enquanto os perdedores morrem ou ficam aleijados é um grande bem para a população em geral uma vez que aqueles que ganham têm os seus espólios e os que sobreviveram do lado dos vencidos, em contrapartida, aumentam suas vantagens em relação aos mais fustigados pela guerra daí eis a solução para a superpopulação e eis a limpeza étnica de povos mais fracos que só fazem peso na terra. Cândido _ O que quer tudo isso dizer? Ateneu _ Que a guerra é um mal se virmos pelo ponto de vista particular dos derrotados mas em perspectivas globais é sempre bom que morra um excesso de fracos de vezes em vezes diria o filósofo. Cândido _ Controversas suas opiniões, mas e quanto à carreira que devo seguir meu pai, qual a melhor? Se não me confundirmes mais lhe agradeço. Ateneu _ Pois bem meu filho, lhe dizia que a melhor profissão é aquela em que o mais fraco se pareça o mais forte ou que a aparência supere a essência. Cândido 4
  • 5. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Como assim? Ateneu _ Um vendedor, por exemplo, ele é mestre na técnica de tapar buracos na parede com cortinas glamorosas. Se disseres a ele que o produto é de baixa qualidade ele irá fazer crer que para a situação precisa de que necessitas do produto é melhor um produto de baixa qualidade, pois o custo-benefício de tal produto é melhor que o outro para tal situação. Assim se há buracos na sala ele enfatizará a beleza da cortina que os tampa. Cândido _ Mas o melhor produto não é sempre melhor que o pior? Ateneu _ Aí entra a função não do vendedor mas do publicitário. Cândido _ O que ele tem dizer? Ateneu _ Que o melhor pode ser o pior. O melhor do mundo quem sabe o que é? Ninguém. Por isso ele pode jogar com as facetas do tangível e do intangível. Já não lhes mostrei que o pior pode ser o melhor dependendo das circunstâncias e que não há nada melhor ou pior em absoluto? Cândido _ Certamente no exemplo do ladrão e no da guerra. 5
  • 6. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Ateneu _ Pois bem a mesma lógica vale para a publicidade. Cândido _ Deixe-me entender o que dizes com exemplos que facilita a assunção. Se algo é bom é porque a Maria falou que é bom. Se a Maria falou que é bom quem tem consistência para persuadir ela do contrário senão Joana que diz ser o outro produto melhor? Ateneu _ Essa eu sei. Quem assim como Maria ou Joana, José, por exemplo, der seu parecer melhor a um que ao outro produto vence por maioria de votos aquele produto que conseguiu o maior número de adeptos e assim estatisticamente o melhor produto é aquele que todos usam. Desde que não seja um parecer forçado ou interesseiro o que é difícil que aconteça. Cândido _ Dessa forma é a maioria que vence estatisticamente, pois no caso acima Maria pode ter um voto contra um de Joana e assim parecer impossível resolver a contenda, porém se um outro, chamado este de José disser que Joana tem razão confiarão agora na maioria que é Joana e José. Tudo bem, se esta Maria não for uma Maria vai com as outras continuará usando seu produto de costume, porém se por uma pressão externa criticarem-na quanto a não adesão ao considerado agora melhor produto devido à maioria das opiniões a favor deste ou daquele produto assim Maria se ressentirá e poderá mudar de produto pois foi persuadida. Mas da mesma forma que a guerra ou o mal não é um mal absoluto, como dizer que o produto x de Maria é pior que o produto y de Joana e José somente porque estatisticamente alguns preferem em sua 6
  • 7. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR maioria um ao outro? Não estamos lhe dando com bens tangíveis e intangíveis? Ateneu _ Isso acontece meu filho porque jogam com a velha máxima do rebanho ou do coro. Estatística significa isso. Nove entre dez pessoas usam determinado produto logo esse é melhor porque é impossível que tanta gente se engane. Coisa a qual não estou de comum acordo, pois muitos não enganaram quando achavam que a terra era o centro do Universo e só um, Galileu, estava certo? Além do mais tentam dar uma característica tangível ao produto ao colocarem qualidades funcionais que elevam os atributos dos produtos à manifestação de certos benefícios intrínsecos à substância chamada produto. Substância a qual possui certas qualidades e atributos que se manifestam do lado do sujeito em forma de benefícios para este. Cândido _ Boa resposta meu pai mas mesmo assim não está me ajudando a escolher a profissão que mais apraz-me. Ateneu _ É porque você está com a mesma mentalidade da maioria ao achar que um voto meu mais um voto de outra autoridade somado ao seu voto dará um valor tangível do que é a melhor profissão. Cândido _ Mesmo assim continuemos pai e assim que chegarmos a uma conclusão estarei a par de que profissão escolher. Ateneu 7
  • 8. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Mas esses testemunhais são a única pedra de toque da publicidade? Pergunto-lhe agora, meu filho? Cândido _ Creio que não meu pai senão já teria comprado muito mais do que os vendedores me incitam a comprar. Ateneu _ E por que não compras? Cândido _ É que me parece que eles têm interesses nada imparciais de que eu compre o produto. Ateneu _ Então é uma testemunha tão válida quanto à dos artistas e famosos que testemunham em propaganda o valor do produto? Cândido _ Certamente e não acreditaria mais num famoso que na dona Maria, pois a dona Maria ainda tem o privilégio de conhecer o produto. Ateneu _ Mas assim como parece, o valor de uso do produto tem menos valor que o seu requisito aparente qual seja, sua perfeição imagética em relação aos outros produtos testemunhados por alguém que mesmo não usando o produto e ao mesmo tempo até o odiando dá apenas provas verbais e retóricas de que aquela é a melhor mercadoria. Falo dos artistas do verbo e dos atores que 8
  • 9. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR muitas vezes não usariam tal produto mesmo que os recubram de beleza e maravilhas quando lhes convém. Cândido _ Certo é que confiaria mais em quem usa o produto do que naquele que só viu a embalagem, ou seja, o ator que propaga a idéia através da mídia. Ateneu _ Não és inocente meu filho pois achas que do simples vulgo interesseiro de um artista não achamos mais nada por detrás da afirmação que a justificação de um cachê. Cândido _ Mas por que um produto há de ser ontologizado ao que me parece? Ateneu _ Como pegas as coisas no ar meu filho. Querem dar uma fundamentação mercadológica ao que é simples exercício de retórica e persuasão. Assim vê-se o produto ou a mercadoria como uma substância de limitados atributos dos quais conhecemos a utilidade e nada mais. Sendo que a utilidade nem sempre é apenas técnica ou valor de uso do produto, mas também assume certo valor de ser substancialmente uma qualidade que traz o benefício de aumentar a vontade de poder da pessoa, pois quem não dirá que uma Mercedez Benz faz com que nós adquiramos status quo? O produto então têm seus atributos assim como Sócrates tem o atributo de ser racional. O atributo do produto não obstante pode se manifestar na forma de benefícios ao cliente sendo a logomarca a própria assinatura do criador na criatura, ou seja, os homens são deuses que fabricam outros seres que por muitas vezes são tidos como animados ou já não vistes várias vezes palhas de aço que falam e que dançam em um comercial? É como se o homem na sua insuficiência de criar vidas 9
  • 10. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR superiores empresta-as a seres que de inanimado passam a ser animados. A substância é o produto. Os atributos suas qualidades. A substância ou o produto um ser que ora se manifesta enquanto atributo ora como benefícios ao cliente sendo o próprio atributo ou qualidade a potência que se atualiza em benefício ao cliente. Cândido _ Creio que não necessito saber nada mais dessa profissão ignominiosa da publicidade e da propaganda, pois se o jogo é justamente defender um adversário que por mais que seja um réu culpado ornamenta-se das mais diversas evocações à beleza e funcionalidade quando não da defesa desenfreada de um suspeito pela sua falha prefiro-me ater a outra opção, pois seria por demais vergonhoso chamar de o melhor produto do mundo algo que realmente não o é assim. Como pude entender não há nada de mal em dizer de um produto que é o melhor produto do mundo se ele o for para Maria ou José mesmo que não sirva ao resto. Assim dessa universalização chula coloca- se todos os problemas dos particulares e dos universais, pois como ceder a um produto bom apenas para um a universalidade de bom para todos? O certo seria dizer: “o melhor produto do mundo para Maria e Jósé”. Isso seria o certo a se fazer e não jogar com aparência e mentiras. Ateneu _ Por eliminação já foste exilada de suas pretensões a publicidade portanto procuremos uma profissão mais adequada às suas vocações. Que tal o direito? Cândido _ Pelo que me foi dito sobre a publicidade creio no raciocínio semelhante a essa ciência, pois enquanto uma defende réus culpados que não podem cometer maiores prejuízos que arranhar panelas ou dar uma dor de estômago essa, por sua vez, o Direito, traz conseqüências mais graves quando os réus 10
  • 11. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR são assassinos ou calhordas da pior espécie ou na pior das hipóteses um inocente culpado injustamente. Ateneu _ Mas quanto ao inocente, não acha de boa índole defendê-lo? Cândido _ Defendê-lo sim. Mas de quem? Da autoridade divina? Dessa não precisas de prova, pois Deus tudo vê e sabe sendo desnecessárias defesas. Agora, quanto ao jugo humano várias coisas atravancam o caminho da defesa do inocente. Primeiro, a ignorância do juiz e do júri que não escolherá quem é inocente ou culpado, mas sim o melhor advogado de defesa ou de acusação. Segundo porque agindo assim o melhor que posso fazer é trocar o impreciso pelo duvidoso, pois nem mesmo eu terei provas de fato da inocência ou culpa através de testemunhos que são por demais interesseiros, alcoviteiros e preconceituosos para ver mais que a um palmo de seus olhos. Admito que assim como a publicidade o direito nada tem a oferecer que um discurso falho e parcial sendo que esses ofícios deveriam ser feitos sem retribuição financeira mas sim por dever à justiça. Não da ordem, mas da justiça mesmo quando o que mais visam não é ela propriamente dita mas sim a ordem estabelecida e descartando a probidade acima de qualquer sentença fazem passar o válido pelo devido. Para mim, defender um réu culpado assim como um produto ruim ou um assassino que é um sujeito relativamente mau, apenas através da arte da persuasão e da retórica não são coisas que passam pela minha cabeça apesar de toda recompensa financeira que possa eu receber. Ateneu _ Mas então meu filho? Se pelos mesmos motivos descartastes o Direito e a publicidade justamente por elas tratarem apenas de aparências dos seres e nunca de suas essências o que vais querer fazer se essas são umas das profissões mais prestimosas? 11
  • 12. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Cândido _ O que mais poderia eu querer senão uma profissão que nos tirasse dessa miséria que nos assola? Mas viver infeliz por toda uma vida devido a uma escolha da juventude isso é o que não quero. Imagina eu por aí a fazer a defesa dos sofistas e a acusação de Sócrates. Não seria tão vil como Meleto e os demais acusadores de Sócrates? O que quero meu pai é uma profissão digna e afeita à verdade. Uma profissão que por si só já justifica o seu empenho sem mesmo os louros da vitória garantidos para os mais crápulas da sociedade, ou seja, os políticos. Ateneu _ Meu filho, entres na Medicina. Essa é uma profissão acima de qualquer suspeita e todos os que a praticam são homens honrosos e respeitados. Assim fica a impressão. Cândido _ Não suporto ver sangue meu pai. Ateneu _ Podes ser um psiquiatra e nunca precisará ver sangue. Cândido _ O quê? Não esperaria de ti tamanha ofensa. Eu? Um psiquiatra? Um mercenário cuja profissão está atrelada às indústrias farmacêuticas e que de chofre se tornou uma máquina de ganhar dinheiro justamente por ser uma máquina de força bruta? Jamais meu pai eu faria tal coisa. Inventaram a loucura ou doença mental para ter gente por aí a acusar os outros sem motivo específico. Aí a pejorativa alcunha de louco. O desviante, aquele que não se 12
  • 13. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR adere facilmente ao coro e que ainda por cima está acima dos normais por achar tudo isso uma alienação social. Os loucos são justamente aqueles que não quero perseguir assim como outrora perseguiam bruxas. De todas as profissões essa é a mais falsária e todo psiquiatra é um sicário da verdade. Querem nos fazer crer que alguém que pensa diferente é culpado por isso. Se o todo é feito de partes e há uma parte que pertence ao todo não se deve aniquilar as partes sob a pena de corromper o todo dizia Nietzsche. O louco é parte do todo logo ele merece ser tido como alguém que é de um todo a parte e lhe cabe um quinhão desse todo que é justamente a sanção à liberdade de livre expressão e o direito de ir e vir. A loucura é como uma daquelas modas passageiras que logo se desmistificam pelo seu vanguardismo em livre pensamento e são tratadas como verdade posteriormente. A loucura de hoje é a verdade de amanhã. Você meu pai, que és sagas por natureza sabe que a loucura é um fenômeno antes social que do pensamento e se tem pessoas a ganhar dinheiro com a exploração dessa pequena parcela da população esses sim deveriam ser taxados se não de loucos ao menos de usurpadores ou vampiros. Ateneu _ Então está complicado meu filho. Se tudo o que lhe disse nada serviu e posto que são as profissões mais respeitáveis de nosso século imagino que devas seguir uma carreira acadêmica pois é a que melhor se adapta a seu perfil questionador. Mas para isso uma primeira pergunta: tens boa memória? Cândido _ Depende. Se apanho não esqueço nunca mas se bato posso esquecer com facilidade. Ateneu _ Certo, então é uma matéria difícil de decidir. 13
  • 14. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Cândido _ E para quê é necessária uma boa memória para ser acadêmico? Ateneu _ Para entulhar a mente de frases das quais eles chamam de A VERDADE. Cândido _ Mas o que é esta verdade que estes reclamam? Ateneu _ Nem mesmo eles sabem mas não há um só discurso científico ou filosófico dos quais não estão imbuídas as palavras verdade e razão. Cândido _ Pois bem pai, pela primeira vez me disseste algo de útil para a minha carreira e com todas as minhas forças, quando não mais sobrar energia e até que meu corpo e mente fraquejem vou querer saber o que significam tais coisas: verdade e razão. E ademais, onde consigo tais conhecimentos? Ateneu _ Só há um lugar que ensinam tais conhecimentos e é na escola de Filosofia onde os conceitos razão e verdade se insurgem como o Pilar de toda construção filosófica, mas não esqueça também de outros dois conceitos que são essência e método pois certamente irão te falar de tais palavras e já tens que ter um conhecimento prévio dessas asserções sob pena de nada entender do que dizem. 14
  • 15. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Cândido _ Assim será feito meu pai e voltarei apto para o mais penoso dos trabalhos assim que acumular informação suficiente que me possa dizer o que são Razão e Verdade. Dessa empreitada espero adquirir os conhecimentos necessários para escolher minha profissão, quando não, voltar rico daqui a uns meses ou anos. Meu pai, obrigado pela lição e quando eu mesmo souber o que seja essa tal verdade e razão voltarei para lhe explicar para que serve e como nos pode ajudar a sermos ricos. (FIM DO PRIMEIRO ATO) (Cândido reflete agora sobre o radicalismo que teve antes contra as profissões colocadas em questão pelo pai. Nem discutira sobre o esteio da publicidade e propaganda cujo nome é Marketing e assim tece algumas considerações a si mesmo para exame que não peque por falta de enumeração. Pela omissão do Marketing no diálogo com Ateneu, porém por sua proximidade com a publicidade ainda levanta algumas cogitações sobre essa profissão pois nada poderia passar pelo seu exame que não fosse refletido, assim passa a pensar repentinamente.) Cândido “Será que meu pai estava certo e antes melhor uma profissão que me sustente que as honras dos grandes feitos? É certo que um saber, se é que se pode chamar uma técnica de fazer negócios de saber, poderia ser a melhor opção? E não conheço outros gurus na terra que não os marketeiros. Eles ensinam tudo o que necessitamos para vencer num negócio ou levar a vantagem sobre o adversário. É certo que é muito custoso e exige esforços, mas mesmo com todos os seus entraves é um empreendimento justo? Ao que me parece essa ideologia chamada marketing é a grande causadora de muitos 15
  • 16. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR malefícios humanos. Será deus que necessitamos de tanta coisa que o marketing apregoa precisarmos? Já tínhamos carroças porque um ideal de locomoção já existia latente em nós e esse ideal até que surgisse o marketing não era mais que uma carroça, ou seja, o ideal não era um carro. Será então que o marketing acrescentou essa necessidade em nossas mentes ou será que já era uma necessidade latente? Pensando bem me parece mais a necessidade de certas empresas e o ideal de certos cientistas que criaram o carro a causa de nossa necessidade por carros que a própria necessidade latente do ente específico. O ideal de carro nunca passara pela cabeça de um homem da idade média sendo assim ele nunca teve essa necessidade de um carro potente. Talvez de uma carroça mais veloz e assim colocaram quatro cavalos no estribo ao invés de dois. Mas a necessidade latente de algo que nunca teve idéia acho difícil. Talvez o homem teve o ideal de voar mas a necessidade de um avião nunca passara pela sua cabeça antes dessa invenção. Claro que passou por umas cabeças antes de ser construído porém não pela da maioria. Até me parece muito paradoxal a idéia de necessidade latente pois como algo necessário não pode existir? Ora, se é necessário existe antes de qualquer coisa e o que é acidental passa a ser posterior. Só aquilo que antes possuímos e depois perdemos pode ser tido como uma falta mas aquilo que nunca tivemos não pode ser tido como necessidade ou falta antes de existir sua posse. Quando acostumamos a utilizar certo benefício como o avião aí sim se torna uma necessidade. As grandes civilizações capitalistas nos deram a necessidade de possuirmos carros para nos locomovermos a grandes distâncias em tempo rápido e até de aviões, mas numa sociedade de tipo tribal será que necessitariam de tais coisas supérfluas e sem necessidade para tais vidas selvagens? Pronto, estou certo de que o marketing cria necessidades já que o ouro e o pau-brasil mesmo abundantes no Brasil pré-colonial não serviam para nada quando se trata dos hábitos dos índios desta forma foi o comércio mercantilista que criou a necessidade de acumular metais. O processo da criação de necessidades no que tange àquilo mesmo que não é intrínseco a uma vida digna é histórico portanto. O marketing, só para retomar as conversas do meu pai sobre profissões está fadado a ser um grande criador senão de necessidades ao menos de objetos de desejo, pois ninguém tem necessidade daquilo que não conhece. Se necessitavam de carroças era 16
  • 17. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR porque já haviam pernas para andar. Se necessitavam de carros é porque já haviam carroças e assim por diante. Isso é o mesmo que dizer que necessitamos de ar porque temos pulmões, mas quem necessita de algo que não existe a não ser quando esse passa a existir? Nenhuma tribo primitiva necessita de carro porque em seu habitat e em suas curtas distâncias que percorrem esse haveria de ser inútil sendo portanto o hábito o pai da necessidade. Após pensar nisso descarto também o marketing do leque de opções de carreira a seguir devido a seu embuste de criar necessidades supérfluas que antes de necessidades são caprichos que os homens inventam a fim de ganhar dinheiro.” (Com esse raciocínio Cândido elimina de vez por todas a possibilidade de se entregar a profissões corriqueiras antes de saber o que é razão e verdade. Por isso encontra um sábio que o recepciona do alto de sua filosofia.) Cândido _ Vejas sábio, passei em revista todas as profissões ao meu dispor e não encontrei nenhuma do meu alento. Quero ao menos saber o que é verdade e razão para prosseguir em minha busca. Meu pai, Ateneu, disse-me que a única forma de esclarecer tais conceitos seria numa escola de filosofia, mas como não conheço nenhuma na cidade vou direto lhe dar com o sábio que é você. sábio _ Vens a me importunar com coisa mais vã quando estou a contemplar os segredos do céu e da terra? Os Mistérios dos Elêusis e as mais profundas instâncias do ser recôndito e inefável. Cândido _ Pensai que estavas a tomar chá. sábio 17
  • 18. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Mas dessa forma circunspeta não deduz que se trata de grande coisa que eu vejo nessa xícara de chá? Cândido _ E o que vês através da louça? sábio _ Vejo os mais remotos segredos. Vejo água, terra, fogo e ar num devir absoluto que é uma cópia do mundo das essências. Cândido _ Quer dizer que para beber um chá necessita-se de tanta preparação? sábio _ Até mesmo para respirar. Antes de inspirar o ar eu penso em todas as almas que refluem em minha alma ao aglutiná-las em meu ser corpóreo. E antes de expirar procuro liberar apenas aqueles espíritos maléficos concentrando em meu ser apenas os bons e não deixando minha alma escapar por completo. Cândido _ Dessa forma você pode demorar muito para respirar e ficar sem ar não estou certo? sábio _ O problema não é quem está certo ou errado mas o que é certo ou errado. Qual a essência dessas palavras que soam tão superficiais e guardam em si o segredo de tudo o que há na Terra? O bem, o mal, o bom, o ruim é tudo o que 18
  • 19. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR as pessoas vêem nesse mundo sendo o resto conseqüência desses julgamentos. Cândido _ Quanta sabedoria, que eloqüência. Ensine-me a arte de bem falar. sábio _ Não é simples pois antes necessitaria da arte de ver e depois da arte de pensar para só assim chegar à arte do bem falar que leva à arte do bem viver. Cândido _ Mas então, da sua sapientíssima mente, o que tens a me dizer sobre verdade e razão? sábio _ A Verdade? Não existe. Não é nada. É somente a justificativa de tanto pensamento trabalhoso e a razão é seu álibe. Cândido _ Não compreendi, poderia me responder melhor? sábio _ Há um mito na filosofia que toda ela está em busca da verdade. Mas qual verdade? Qual conhecimento é capaz de a produzir? Nenhum posto que a verdade é o próprio caminho da busca e se uma vez atingida a filosofia acabaria sendo por isso que o sapientíssimo Sócrates guardou a verdade para alguém que poderia respondê-la ao guardar para si mesmo a verdade. Ele nunca respondeu a uma questão por temer ser desmascarado. Certamente ele 19
  • 20. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR queria ser ouvido por séculos e se respondesse de imediato o que são as coisas privaria os outros de pensar por si mesmos e também de ler suas obras que não tratam senão da verdade mas sem nunca dizê-la qual é. Cândido _ Que complexo. Então a verdade é uma mentira? sábio _ Certamente uma palavra tão ornamentada e falada que tomou ares de reflexo condicionado nos filósofos. Basta falar em filosofia para se falar em busca pela verdade. Quanto à razão é o álibe que os faz não ser tomados por idiotas e esquizofrênicos. Quando o nome razão passa na filosofia a ser considerado o lastro de todo o pensamento institui-se então uma verdade para a filosofia que é justamente a verdade de um saber racional. Para sua primeira lição isso basta. Até logo e me deixe tomar meu chá enquanto contemplo o ar que reflui na xícara ao modelo dos ares do Universo atmosférico. Cândido _ Obrigado Sábio. Mais tarde voltarei para me aliciar em sua presteza. (FIM DO SEGUNDO ATO) Cândido _ Fui ter um conversa com o sábio, meu pai, e de nada adiantou o diálogo. Parece que ele está em outra sintonia que a nossa e mesmo parecendo poder responder sobre qualquer assunto humano em coisas específicas ele não consegue se fixar. Ateneu 20
  • 21. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Mas meu filho, é da natureza dos sábios caírem em buracos ao estar muito entretidos com os segredos dos céus. Enquanto pensamos em assuntos mundanos estes estão em estado de contemplação olhando para o próprio umbigo e perguntando se seu umbigo fosse o modelo do Universo quantas translações seriam possíveis em um dia. Cândido _ Muito me admira eles se colocarem acima dos assuntos políticos. Por acaso só pensam com as cabeças nas nuvens? Nunca pensam com os pés fincados na terra? Ateneu _ Estão eles preparando-se para a morte pois acreditam que assim que esta vier eles já estarão tão desprendidos do corpo que não seria necessário grande impacto na mudança repentina de vida para morte. Além do mais desprezam o corpo e tudo o que vem dos sentidos pois têm em mente que a realidade sensível é matéria de dúvida. Cândido _ Não acredito nessas palavras vãs que provêem de sua boca meu pai. Por acaso está tomando o sábio de lunático? Ateneu _ Com certeza meu filho. O verdadeiro sábio já é uma múmia ambulante que esqueceu tudo o que é sentido e instinto em nome da razão. Cândido _ Mas o sábio mesmo que eu fui encontrar me dissera que essa história de razão é apenas um álibe para que os filósofos não sejam tidos por idiotas. Se 21
  • 22. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR não canonizassem uma idéia assim como a religião canoniza a idéia de Deus seriam homens comuns porém com a intervenção da razão passam a ser os detentores exclusivos de um poder quase mágico e misterioso. Ateneu _ Certo meu filho, mas a verdade é que aqueles que pensam, pensam é porque sofrem e sofrem também porque pensam e assim só aumentam sua dor nesse círculo vicioso. O verdadeiro felizardo é um grande ignorantão cheio de dinheiro no bolso. É o grande paquiderme voltado não para si, mas para seus vícios. Um porco satisfeito vale mais que um Sócrates insatisfeito. Palavra do perito. Cândido _ Não aceito meu pai que desmereça cultura tão milenar como a filosofia. Enquanto as outras ciências tateiam... (é interrompido) Ateneu _ Enquanto as outras ciências tateiam a Filosofia permanece no mesmo lugar, imóvel e meditabunda. Procurando as origens andam de trás para frente porque crêem que a verdade não está dada de imediato, mas que percorre um grande cabedal histórico e por vezes a - histórico uma vez que vivem no mundo não do que é mas no do que deveria ser. Cândido _ Então o que buscar meu pai? De tudo já tentei. Dinheiro, mulheres, bebedeiras, drogas, religião, o que buscar então que me tire desse sofrimento de ser mortal e me ver tão frágil quanto um caniço? Ateneu 22
  • 23. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Veja agora meu filho a palavra de um sábio: “o homem é um caniço, o mais frágil de todos, porém um caniço pensante.” Quem disse isso foi o filósofo Pascal e se isso tu és, esse caniço pensante, agarre com todas as suas forças o seu dever e me prometa que não fará mais esses exageros mortíferos para uma alma que pretende ser sã. Cândido _ Tudo bem meu pai. Eu juro que em toda minha vida jamais cometerei atos iguais a esses. Mas assim estás se contradizendo, pois se afirma a primazia dos sentidos em relação à razão como prefere ser um Sócrates insatisfeito a ser um porco satisfeito? Ateneu _ Meu filho, assim como o sol a depositar suas sombras sobre os anteparos é minha alma. Ela pende entre a satisfação dos prazeres e a vontade racional do dever. Tenho em minha alma tesouros envoltos de sombras e quando as sombras dão trégua eu consigo pensar claramente. Todas as minhas esperanças deposito em ti e logo verei uma escola digna para que possas cursar um bom curso de oratória que o levará a aprender a arte de ganhar disputas verbais e depois disso poderá ser um excelente advogado a ganhar causas para o seu pai que está atolado em dívidas e processos. Cândido _ Mas por que lhe devo isso meu pai? Ateneu _ Por que lhe dei o bem mais precioso que foi uma infância feliz e da minha mulher ao fecundá-la tu nascestes. Cândido 23
  • 24. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ E por acaso tive opção em renunciar tal bem em troca da isenção da dívida que contraí em nome disso, ou seja, ter que lhe pagar com o suor do meu rosto meu próprio nascimento? Ateneu _ Não se ludibrie meu caro Cândido a vida é cheia de percalços e não se pode confiar em ninguém. A mulher é adúltera até mesmo em pensamento, os negociantes cafajestes em seu trato e os prazeres trazem conseqüências maléficas em longo prazo. Cândido _ Como confiar na vida meu pai? Se antes queria apenas escolher minha profissão agora me vejo tendo que resolver todos os problemas da vida. Ateneu _ Mas quem disse que tudo não está interligado? Cândido _ Só o que sei é sobre o ciúme que me aplaca o coração e se tenho que resolver problemas de maiores montas este do ciúme da minha criada que eu faço sexo ocasional me consome o orgulho e dispersa a atenção para coisas mais prementes. Ela, um embuste de feiúra e decadência e eu um Apolo de beleza incomensurável tendo ciúme por uma coroa? Poderia eu ter as mais lindas das mulheres, mas estou aqui me vendo com uma promíscua que além de me dar pouco sexo ainda não é da minha posse. É certo que para se conquistar alguém se deve conquistar de corpo e alma senão nada está feito. O que vale é ter a posse até dos pensamentos da mulher e se ela divide seus pensamentos flertando com outros homens ou mesmo com a efetivação do coito para mim isto não tem outro nome senão traição. 24
  • 25. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Ateneu _ Mas se concentre nas coisas essenciais meu filho. Por que está desviando do trabalho que tanto quer? Cândido _ É por que minha mente fervilha e não me dá descanso. A inquietação me deixa como um balaio de gato onde os felinos se atacam seja através da paixão seja através da razão. Além do mais um dos gatos se chama razão e está nesse balaio sempre a brigar com outro gato que se chama paixão da alma e nesses ataques cada vez um sai vitorioso quando o que eu queria era uma vida constante sem volatilidade entre um lado e outro do espírito. Quero dizer, deixar de oscilar entre o racional e o emocional. Ateneu _ E qual profissão você pensa que lhe dará a tranqüilidade da alma tão desejada? Cândido _ Nenhuma. Esse é o problema. É uma questão de espírito e enquanto eu permanecer o que sou em meus vícios cotidianos nada poderá ser mudado. A paixão me consome quando o ódio infla meu sentimento de possessão por outra pessoa e mesmo que não a ame esse é o tipo de amor que eu tenho e valorizo-o por ser o único que possuo. Ateneu _ Sua vida toda está um caos e além do mais você sente uma extrema angústia de possibilidade. Tem medo de que seus projetos não se realizem. Medo de ser apenas sua vida, aquilo que há de concreto e no final acabar senil 25
  • 26. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR e derrotado. A vida não foi feita só de vencedores e Ai dos vencidos meu filho. Você pode até ser corno, burro, idiota mas não deixem pisar em você pelo que você é porque por mais defeitos que possua há muitos outros com defeitos piores. Cândido _ Está bem, então voltemos ao assunto da profissão. Qual seguir? Ateneu _ Aquela que cure sua alma de todas essas paixões e vícios maléficos. Cândido _ Mas é possível um conhecimento que transforma e me faça um homem bem sucedido quando não feliz? Ateneu _ Depende do seu conceito de felicidade. Se for se dar aos prazeres fugazes das drogas e do sexo logo se sucumbirá e terá uma vida curta. Cândido _ Curta porém aprazível. Já tive viagens que só um monge tibetano pode ter. Vi o todo em imagens que refluíam e me dava o todo que escapava de mim mesmo para circular no mundo e voltar a mim mesmo. Forçava as imagens e elas eram extrusivas pois davam abertura a uma totalidade que refluía e além do mais me englobava ao englobar todo o resto. Ateneu _ Certamente efeitos de drogas alucinógenas. 26
  • 27. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Cândido _ Tudo o que ressinto é que não posso ter essas viagens espontaneamente. É Como se a mente fosse mais vagarosa que a realidade sendo que o essencial mesmo escapa. Ateneu _ Fica complicado conseguir algo para o seu perfil devido você ser um idiota com pretensões de intelectual. Cândido _ Mas como você disse há mais idiotas que eu e isso me conforta. Ateneu _ Mas pelo movimento de vida que vem levando com esses vícios nocivos creio que não sobrará tantos menos idiotas que você. Cândido _ Mas como saber que sou capaz de tudo o que almejo? Ateneu _ Primeiro sabendo o que desejas e depois empenhando feito a um cavalo que coloca um cabresto na direção escolhida e não olha para os lados, mas só para frente. Cândido _ Será isso possível em meio a tanta tentação e hábito condicionado? 27
  • 28. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Ateneu _ Só uma dica. Para se afastar das tentações deve-se refrear os instintos e utilizando do método Coué se persuadir dos pensamentos que têm afinidade com aquilo que é sua meta. Cândido _ Mesmo você não sendo sábio meu pai, tem grande inteligência prática e por isso seguirei seus conselhos. Posso ver a olhos vistos a deterioração e decadência de minha mente. Invejo o Cândido de raciocínio rápido e memória tenaz que outrora eu era, mas agora tenho que me contentar com o pouco que me sobrou de anos fustigados pelos vícios de todas as espécies. (FIM DO TERCEIRO ATO) (Depois da conversa com seu pai Ateneu, Cândido decide percorrer o grande círculo do mundo. Sempre foi dado aos vícios, mas agora quer fazer viagens exteriores e não interiores rumo às profundezas do inconsciente. Ele necessitava perquirir sobre os grandes segredos do mundo externo sabendo que estes muito mais que os segredos do movimento interno do espírito o dariam uma extensão mais vasta do que é o mundo em si. Estudou primeiro cosmologia, depois física e por final química. Descobriu que esses conhecimentos apesar de dar um vasto cabedal de conhecimento que desmistifica muitas ações remetidas ao sobrenatural não transforma o sujeito por ele mesmo assim sendo finalmente acolheu o conselho de seu pai e entrou numa escola de filosofia. No primeiro dia de aula teve a impressão de que havia homens ali que por simples vaidade cultivavam o saber apenas para ter uma prótese espiritual que não os fizesse sentir tão frágeis quanto eram na verdade. Tão comuns como são em vida. Essa fora sua primeira lição e chegando ao primeiro aluno que conheceu altercou algumas disputas assim já 28
  • 29. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR de início e apenas com o conhecimento do senso comum, pois se refutasse a partir de bases leigas aquilo que era o cânone do saber não se sentiria tão menor que os outros.) Cândido _ O que vocês estudam aqui de forma tão disciplinada que apenas os doutores podem dar seu parecer e vocês acharem que isso é a verdade? Afinal, o que é a verdade para você? (Todos riram do intransigente novato que por não ter passado pelos ritos de iniciação órfica não podia dirigir a palavra para os considerados superiores em saber. Esses doutores muito haviam acumulado em saber e se Cândido pretendesse alcançar uma sabedoria de vida deveria buscar um atalho. Mas como? Esse era o problema. Já havia aprendido que apenas os pensamentos ao ar livre são dignos de monta, mas ele mesmo era um burocrata. Não tanto quanto a elite intelectual de sua cidade nem grande nem pequena. Como se apressar para aprender numa idade mental em que a senilidade imperava e apenas o método poderia salvá-lo? Só um método seguro, porém que se baseasse não na norma do conhecimento mas sim na sua transgressão. Apenas essa radicalidade de pensamento poderia o tirar dos fastios de um desesperado pela cura. Pela cura através das palavras. E assim continuou o debate com o aluno) Cândido _ Diga-me o que é a razão e a verdade que tanto procuram. Aluno _ Nada mais que uma vida inteira dedicada a um único conceito. Cândido 29
  • 30. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Que coisa mais chata. No final o que consegue com isso? Aluno _ Pleitear a uma vaga de professor universitário. Cândido _ É nisso que se resume a vida acadêmica? Aluno _ Não só nisso, mas também a certa disposição do espírito de memorizar as doutrinas dos filósofos Cândido _ E o que isso traz ao final? Aluno _ A oportunidade de fugir de uma vida de aparências. Cândido _ Mas você não crê que a aparência é apenas um estado do ser como todos os outros e talvez o único? Aluno _ Como assim? Cândido 30
  • 31. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ É que a essência das coisas já nos são dadas através dos fenômenos não havendo nada por trás disso. Aluno _ Há algo além das aparências e dos fenômenos. Há a coisa em si kantiana. Cândido _ Sendo assim caro colega tudo que posso fazer é me retirar nos montes e procurar minha própria verdade, pois não me incitastes com o palavrório bonito. Aluno _ Se quiseres conhecer a si mesmo cuida de ti. Outra coisa. Se almejas uma transcendência não será através de discursos mas da intuição e imaginação que a tudo aplaca. O discurso filosófico é totalmente racional e não vai te ajudar a transformar-se como sujeito. Se busca uma conversão a si procure a religião, pois esta é a melhor opção para seres espirituais como você. Cândido _ Mas minha espiritualidade não tem nada a ver com Deus ou religião já que é uma transcendência que se faz na imanência do mundo terrestre. De qualquer forma agradeço, porém aqui não é o meu lugar a não ser que possas me transformar num grande orador conhecedor da lógica e da sofística, pois tudo o que me interessa é a vida prática. Aluno _ Isso pode ser provido. Volte aqui amanhã que lhe apresentarei para nosso mestre de retórica. Mas muito me admira você ser afeito à espiritualidade e à vida prática ao mesmo tempo. 31
  • 32. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Cândido _ Algo que aprendi é que está tudo interligado. Até amanhã. Vejo-te lá. (FIM DO QUARTO ATO) (Cândido então voltou à escola para aprender retórica com o mestre de retórica mas antes devia passar pela sabatina do aluno de retórica.) Aluno _ Muito bem Cândido, está disposto a aprender retórica? Cândido _ Com muita disposição, aliás. Aluno _ A primeira colocação que lhe ponho é sobre a quadratura do círculo. Cândido _ Como é possível seu vil que um círculo possua quadratura, que seja por alguma de suas circularidades algo quadrado? Aluno _ Não importa o que achas, se queres ser orador ou retórico deves defender a pior tese e demonstrar sua verossimilhança. Deves possuir o dom mágico dos rouxinóis que encantam apenas pela sonoridade. A lógica sofística que queres aprender se baseia justamente em fazer o pior parecer o melhor. Agora me responda a colocação sobre a quadratura do círculo. 32
  • 33. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Cândido _ Ora, se é círculo deve ser redondo e não quadrado. Aluno _ Por algumas vezes vistes que a logomarca da Skol é redonda? Cândido _ Sim, por demais vezes. Aluno _ Mas não é certo também que os iguais têm afinidade pelos iguais pois se não fosse assim os aristocratas andariam não com seus pares mas com seus ímpares? Cândido _ Com certeza. Aluno _ Pois então, quem bebe Skol não há de ficar redondo de tantas calorias que ingere? Cândido _ Certamente. Aluno 33
  • 34. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Assim é fato que o redondo não repeliu o redondo caso contrário a tendência era o sujeito ficar quadrado ao beber cerveja e não redondo como um barril. Cândido _ Isso é certo. Aluno _ Mas apesar disso, no que tange à paixão apenas, os contrários não se atraem? Cândido _ Atraem sim, tanto que Xantipa era ignorante e Sócrates um sábio. Aluno _ Assim você teve progresso mas concentre-se mais. O sujeito que toma Skol fica redondo e além do mais é muito quadrado não beber cerveja, pois dizem dos que não a bebem que são caretas. Isso é certo? Cândido _ Certo. Quem não bebe cerveja é quadrado, careta. Aluno _ Mas as moçoilas não se atraem por esses seres glutões e muitas vezes ogros que bebem Skol e ficam redondos? Cândido 34
  • 35. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Acontece muitas vezes pois elas os acham másculos com barrigas de cerveja e copos de meio litro nas mãos. Aluno _ E essas moças não são requintadas e alheias aos vícios devido à educação? Cândido _ Com certeza. Aluno _ Então elas são quadradas por isso? Cândido _ Concordo. Aluno _ Então como me dizes que é impossível a quadratura do círculo quando uma moça quadrada em seus costumes atrai um homem circular de cintura? Não é verdade que aí houve a sobreposição entre o quadrado e o círculo já que eles em coito se atracam? Cândido _ É verdade. Pois então você me provou que é possível uma síntese simultânea entre o quadrado e o círculo e assim sendo o círculo pode ter aspectos de quadratura devido à sobreposição de um ao outro. Aluno 35
  • 36. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Você foi admitido na escola de retórica. Agora reze para os deuses gregos para que assim que sair daqui se torne um perfeito falastrão. Um embusteiro que a todos engana e surrupia só com a língua ferina e afiada. Volte aqui amanhã para a sua segunda lição que será de erística. Mas Cândido, você se lembra que me devia dez reais daquela noite em que bebemos juntos? Cândido _ Sim, me lembro, foi numa sexta-feira. Aluno _ Pode me pagar agora? (Cândido lhe dá os dez reais) Cândido _ Agora você me deve dez reais. Aluno _ Ora, por quê? Cândido _ Eu não lhe devia dez porque tu havia me dado os dez, pela mesma lógica agora me deves dez pelos dez que agora lhe dou a você neste instante. Aluno _ Como? Cândido 36
  • 37. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Se tu me passando dez reais fizeste-me contrair uma dívida agora eu lhe dando os dez te faço contrair outra dívida de dez reais. Aluno _ Concordo. Toma os dez de volta. (Devido Cândido ter entrado na pocilga dos retóricos e sair de lá vinte reais mais rico se entusiasmou com a retórica mas percebendo que não passava tudo de aleivosia perniciosa voltou triste para casa por ainda não ter decidido seu destino.) (FIM DO QUINTO ATO) (Cândido volta tarde para casa e quando acorda está tudo diferente ao seu redor. Neste dia todos acordaram com algo diferente no ar. Tudo parecia sórdido tamanha clareza na percepção e constância nos acontecimentos. Passaram dias e dias e tudo acontecia em repetição, ou seja, sem mudança. Nenhum imprevisto protelava as ações pois tudo era certo e imutável. As línguas dos cidadãos estavam saburrentas e sem doce. Só o amargor da melancolia e da certeza, da frigidez e de tudo aquilo que é ordenado e regrado. Monótono e tedioso. Os espíritos estavam todos apolíneos. Nenhuma probabilidade posto que tudo passou a ser totalmente previsível. A razão neste momento impera soberba. A alegria escapara dos corações e só a fria e gélida razão encontrava espaço nos espíritos. ) Cândido _ Notou algo de diferente meu pai? Ateneu 37
  • 38. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Sim meu filho. Estamos na era da razão. Finalmente chegou o momento em que sem gradações da noite para o dia foi instalada a ordem racional. Cândido _ Mas como isso é possível se há dias atrás as pessoas ainda cantavam e dançavam? Ateneu _ Agora não há espaço para festas, pois não há disposição para a felicidade que Baco nos trazia. Cândido _ O que de tão grave pode ter desferido esse golpe em nossos corações meu pai? Ateneu _ Um novo advento, uma nova descoberta e o aprisionamento de um deus. Cândido _ O que? Quer me dizer que algum dos deuses do Olimpo foi aprisionado assim como Prometeu acorrentado? Ateneu _ Exato. E com tal deus que na verdade é uma deusa vários outros deuses perderam suas forças só para citar dois dos que foram prejudicados cito Dionísio e Cupido que sem essa deusa nada podem fazer além de esperar a libertação dela. Eros também foi prejudicado pois se tornou impotente sem a loucura. 38
  • 39. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Cândido _ E de que deusa se trata? Quem a aprisionou? Ateneu _ Moria. A quem os antigos gregos chamam de a deusa Loucura e os romanos com toda aquela insipidez de Stultitia. Cândido _ Quer me dizer que o mesmo destino que dão aos loucos fora dado à própria deusa causadora da loucura? Ateneu _ E digo mais meu filho. Com ela também foi aprisionado Dionísio, deus da embriaguez e da alegria. Cândido _ Está explicado então meu pai a condição funesta em que vivemos agora e sua causa. Moria foi presa em grilhões os mais fortes possíveis pois difícil é acorrentar tal deusa quando furiosa. Dionísio tentando defendê-la deve ter sido também enviado para a prisão. Se assim deduzo certo. Ateneu _ Correto meu filho. Foi por ordem de Apolo que em conluio com Zeus pretendeu fazer da Terra e dos Céus um lugar onde impera a clareza e a ordem. Onde tudo é regrado e disciplinado. Cândido 39
  • 40. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Mas onde conseguiram prender tal deusa? Ateneu _ Foi numa colossal caixa de anti-psicóticos tarja preta, pois apesar de ser frágil esta caixa tem poderes sinistros contra tal deusa. Cândido _ Mas uma simples caixa de papelão prendendo uma deusa de tamanha força quando em fúria? Ateneu _ Ludibriaram-na ao dizer que ali, no fundo de tal caixa, orgias mil eram propiciadas e ela em sua alegria e promiscuidade logo aceitou o convite. Pensou que lá estavam Afrodite e Eros que eram encenados por impostores em coito à meia-luz. Assim que entrou a trancafiaram na caixa de tarja preta. É justamente tal tarja que a prende como grilhões acorrentaram Prometeu. Cândido _ Mas como foram maquiavélicos e aproveitadores da demência de tal deusa, de seu esquecimento. Mal sabe ela reconhecer os amigos e distingui-los dos inimigos. Ateneu _ Isso é certo meu filho. Cândido _ E onde se encontra tal prisão? 40
  • 41. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Ateneu _ No firmamento. Cândido _ Prepare meu Pegasus pai, pois se tanto eu procurava meu destino agora o encontrei. Salvar Moria e salvando-a salvar toda a Terra pois é impossível viver nesse covil de raposas e abutres sem nossa querida loucura de cada dia. Até percebi que ninguém faz mais piadas. Não há mais comédias, somente encenam agora tragédias e além do mais os psiquiatras perderam sua função. Estão desempregados. Ateneu _ Aí se engana meu filho Cândido. Não é a toa que seu nome nos traz a transparência da inocência. Foram os próprios psiquiatras que forjaram a grande caixa de anti-psicótico tarja preta auxiliados e mancomunados com as indústrias farmacêuticas. Cândido _ Não posso acreditar em tamanha falcatrua e crueldade. Agora esses psiquiatras se tornaram ricos? Ateneu _ Souberam prover bem e tomar partido da oportunidade. Um salário vitalício para aqueles que assim conseguiram prender Moria e jogar Dionísio para escanteio. Estão todos a venerar Apolo e agora me dizem que o único deus venerável é esse. O deus da ordem, da clareza e da perfeição. Cândido 41
  • 42. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Que triste meu pai. Vejo agora a vitória dos imobilistas como Parmênides e o enterro do devir heracliteano. Posso perceber que meus sentidos não estão mais tão aguçados, que meu coração não é mais apaixonado e que acima de tudo está tudo imóvel como bem pretendia Parmênides posto que a via dos sentidos está evanescente. Ateneu _ Isso é tudo meu caro Cândido e se pretende salvar a rainha antes tanto venerada por todos nós de moles corações terá que desafiar um séquito de seguidores de Apolo. Cândido _ E quem são eles? Ateneu _ O exército, a polícia e o poder psiquiátrico. Cândido _ Que dura batalha terei que travar. Ateneu _ Se assim quiser procure a bela morte. A morte dos campeões ou dos heróis em campo de batalha. Cândido 42
  • 43. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Que assim seja meu velho. Depois de procurar por todas as profissões escolhi a minha. Serei um herói antipsiquiatra. Ateneu _ Que os deuses estejam contigo. Cândido _ Força de expressão né? Pois se nem mesmo Zeus está... Ateneu _ Este não mas outros estarão e ainda diversos tipos que como eles nutrem a esperança de voltarem aos corações as paixões da alma e à sensibilidade a estética perdida. Toda uma população de amantes que agora não encontram o amor perdido. Cupido lhe emprestará sua flecha para que combata de igual para igual com todos os exércitos. Cândido _ Mas essa flecha do Cupido também serve para matar? Ateneu _ Nessa situação sim pois quem ativava os poderes de tal flecha era a deusa Moria. Com ela presa e sedada agora a flecha do Cupido se tornou uma arma mortífera. Vai ao seu pegasus e cate sua flecha. Moria está debilitada e não suportará tantos mais tormentos. Salve a Terra. Essa sua missão. Essa sua profissão meu filho. Cândido _ Pois que assim seja. 43
  • 44. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR (FIM DO SEXTO ATO) (Cândido em seu otimismo toma para si a arma que Cupido lhe empresta, monta em seu pegasus e voa rumo às estrelas e chegando ao Olimpo encontra Caos toda ressentida.) Cândido _ O que lhe aflige Caos? Caos _ É o maldito Zeus. Este aprisionando Moria tirou a felicidade de todos ao ordenar tudo regradamente. Não há nada que não passe agora pela mão dos psiquiatras. Suas drogas cujo segredo Prometeu roubou dos deuses e enviou para o prêmio Nobel em psiquiatria agora deixa Moria semi-morta. A grande caixa de anti-psicóticos tarja preta que aprisiona a deusa Loucura têm efeitos funestos sobre ela. Não se vê mais ela furiosa nem a disparatar impropérios. A Stultitia antes rainha e amada por Eros, Cupido, Afrodite e principalmente por Baco ou Dionísio não emana mais seus poderes de comédias e devaneios para todo esse séquito de deuses que buscavam sua inspiração justamente nessa musa da doidice e da maluquice. Cândido _ Mas quem guarda a porta da prisão? Caos _ Aquiles, o terrível. Cândido 44
  • 45. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Hércules pode com ele. Caos _ Não mais. Com Moria presa se tornou prudente e agora não disputa em batalhas. Cândido _ Deixe que lá vou eu. Caos _ Está brincando, você ousa desafiar o bravo Aquiles? Cândido _ Certamente. Finalmente escolhi minha profissão. Caos _ E qual é ela? Cândido _ Guerreiro antipsiquiatra. Caos _ Não sabia que havia essa classe de guerreiros. Cândido 45
  • 46. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ Agora nessa situação deplorável há. Quem não pode seguir os caminhos existentes têm que abrir seus próprios caminhos. Caos _ A fortaleza de Papel é muito grande e mesmo que passe por Aquiles terá que enfrentar os Gigantes. Cândido _ Mas será possível, esse golpe de Estado de Zeus levou consigo os maiores guerreiros? Caos _ Eles levam a vantagem da hegemonia política no Olimpo e só os deuses mais depravados e irracionais estão fora desse esquema quanto ao resto todos se tornaram cúmplices de Zeus e Apolo. Cândido _ Que eu encontre a Bela Morte. Vou-me embora para a fortaleza de papel. Caos _ A sorte está lançada que seja como a fatalidade permitir que seja. (Cândido trava batalha contra Aquiles na porta da fortaleza de papel quando quase morto por esse, aproveitando da desatenção do bravo guerreiro que ao subestimar seu adversário dá-lhe as costas, lança a flecha de Cupido no calcanhar de Aquiles que cai ao chão. Ainda muito debilitado e com a cabeça quebrada Cândido levanta e continua a caminhar adentrando-se no Castelo cuja insígnia é uma tarja preta que envolve toda a fortaleza horizontalmente. Lá encontra Odisseu. Sem a flecha que ficou para trás fincada no calcanhar de 46
  • 47. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Aquiles Cândido não tem nenhuma chance contra Odisseu até que as sereias aparecem para dar uma mãozinha para Cândido e começa seu canto. Cândido cujos ouvidos estavam repletos de cera não ouve o canto inebriante da sereia ao contrário de Odisseu que fascinado pelas vozes majestosas corre em direção de onde provinha o canto deixando assim a passagem livre para Cândido ir avante. ) (em coro) Gigantes _ O que? Mesmo com ferimento quase fatal continuas a nos desafiar humano idiota? Cândido _ É para o bem dos deuses e da humanidade que lhes desafio à luta. Estou prestes a salvar Moria de seus tentáculos coercivos homens de duas cabeças. (em coro) Gigante _ Que seja. Sua morte será rápida e indolor. (Quando os gigantes levantam o pé para esmagar Cândido um novo aliado o salva. Hera que havia se ressentido com Zeus por ele dar o golpe de Estado deixando-a fora de seus planos de poder acaba por derrotar os Gigantes com seu olho poderoso e invencível ao aterrorizar os gigantes que saíram correndo do recinto.) Cândido _ Obrigado Hera. Esse Gigante já era. 47
  • 48. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR (Assim continua Cândido que avançava em seus postos até adentrar na cúpula central onde havia dois psiquiatras recém formados sendo um deles Ulisses que aderiu à nova moda psiquiátrica por ser muito esperto e procurar o phármakon da imortalidade.) Ulisses _ Pretende mesmo libertar Moria? Como acha que será o mundo com ela novamente? Cândido _ Totalmente excelente. Ulisses _ Mas o quê? Você acha que a loucura é preferível à Razão? Cândido _ Não absolutamente mas sou a favor de um meio termo. Ulisses _ Posso te dar uma droga que o faça imortal e assim você será como os deuses. Não se esqueça que sou psiquiatra e possuo o phármakon da felicidade. Cândido _ Não era da imortalidade? Ulisses 48
  • 49. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR _ E qual a diferença entre ser um dia eternamente feliz ao invés de cem anos de infelicidade. Não concorda que aquele dia seria eterno comparado aos outros cem anos infelizes. Cândido _ Concordo. Ulisses _ Então tome essa droga e seja feliz. Esqueça Moria. Ela é uma demente incurável. É da essência dela ser uma boba alegre. (Na iminência de tomar o phármakon da felicidade dado à Cândido por Ulisses aquele ouve os gemidos de dor de Moria e coloca seu dever acima da felicidade.) Cândido _ Agora você foi pego pela sua própria esperteza. Ao trancafiarem Moria me tornei mais racional e coloquei o dever acima do prazer dessa forma minha felicidade não vale nada se não pode ser tida como máxima universal. Tornei- me kantiano devido à evanescência dos poderes de Moria que refletem apenas pelo meu lado irresponsável. Tornando-me racional devido à ausência dos poderes de Moria sobre mim estou seguindo o imperativo categórico kantiano e não posso agir de acordo com uma felicidade que não possa se tornar universal. Minha moral se elevou, mas meu coração continua triste. Em guarda seu espertinho. Vou te derrotar. (Nesse momento se dá uma batalha sangrenta e Cândido derrota Ulisses) Vai adentrando na grande caixa de antipsicóticos tarja preta e vê Moria desalmada. Pega-a pelo colo e vai levando para fora. Assim que ela vai saindo 49
  • 50. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR a sedação vai diminuindo e ela voltando ao normal. Baco já é avistado em sua volta à embriaguez. Cupido dá pulos de alegria espontaneamente. O reino dos proscritos vai se erigindo novamente. Vai-se voltando tudo à anormalidade. Quem é louco começa a degelar a razão e delirar em cantos inebriantes. Os enfermeiros e psiquiatras passam a uma face desolada. Os políticos cortam a verba vitalícia e logo tem-se que rondar as ambulâncias. O sol desponta de forma gloriosa. A rainha loucura está novamente solta e convida a todos para um piquenique. É derrubada a bastilha da razão. Agora todos cantam alegres e embriagados na relva fluorescente. Moira O que houve contigo? Está muito debilitado. Cândido Sim. Eu faço parte do movimento antipsiquiatrico e estava restabelecendo às coisas à sua devida ordem, ou seria desordem? Moira Eu fiquei muito tempo amarrada dos pés a cabeça e sou claustrofóbica. Parece-me que eu estava morrendo até que você chegou para me salvar. Meu herói! O que eu farei de agora em diante? Cândido Você irá morar em uma floresta onde há pessoas a te idolatrar por ser a rainha deles. Você poderá voltar ao Olimpo, mas agora daremos umas férias a você daquele lugar cheio de cobiças, para que possas descansar e lhe dar com seus irmãos de espírito. Lá o tratamento é viver conforme a paixão e natureza segundo dê no espírito. Não há enfermeiros, não há psiquiatras e você ficará inspirando toda obra do pensamento trágico. Irá ser você mesma sem que ninguém te force a fazer o que não quiser e por lá sim, há médicos, mas eles são do movimento antipsiquiátrico o que te fará ter mais vivências que 50
  • 51. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR sujeições. São os médicos e autores das mais diversas obras. Escultores, pintores, poetas, dançarinos, artistas no geral que preferiram criar que ficarem em uma cama prostrados o dia inteiro esperando a próxima injeção. Moira Esse lugar existe? Cândido Está sendo inaugurado agora. Antes que tentem exterminar a loucura da face da Terra reservamos este lugar, mas logo depois poderá voltar para o Olimpo. Erasmo de Roterdã te espera para apresentar-lhe culto. Muitos te amam, apenas aqueles que são os normóticos não te toleram devido seu ser mesmo de sujeito não devido qualquer coisa que faça ou deixe de fazer. Moira Será que eles me deixarão em paz? Cândido Dificilmente. Ontologicamente você é o outro da razão. A razão que é muito difícil de desvendar objetivamente é algo que quer oprimir os surtos mágicos do enfrentamento trágico da loucura. Enfrentar o que há de morte em ser louco é uma longa história, pois te veem como um cadáver adiado. Como o resíduo daquilo que sobrou na história da psiquiatria e sua própria razão de ser. Não temas entretanto, pois se não fosses uma deusa não estaria aqui falando contigo e te protegendo, mas até eu precisarei de um médico agora. Moira Glorioso momento de redenção Antes enjaulada como um animal 51
  • 52. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR Agora com amigos em comoção Quero sorrir sem isso ser mal Quero viver sem isso ser sanção Como me portar agora Não sei ir embora Nem tomar precaução Vivo pela relva cintilante A fazer poemas no instante Como se a vida não fosse crime Nem meus convivas um alvo time Que pradarias belas Quanto eles me falaram balelas Agora de volta ao mundo Não creio no silencia mudo Cândido Bela canção antirepressiva. Ficou amarrada muito tempo. Corra Moria... corra... E Moria saiu correndo pela relva despedaçando cachos absurdos de orvalho. Saiu como se acabara de ter nascido e nunca tivesse visto o sol. Corria a gazela pelos matos, livre agora de toda instituição. Uma deusa a qual a Hélade tudo deve ter sido espancada e amarrada, sedada no mais alto grau enquanto planejavam para ela a morte lenta, a vida em morte... Não. Moria estava finalmente livre e por onde passava desabrochava surtos de alegrias. Algazarra total de uma inocência sem limite. A criança débil agora podia pintar o sete. O senil podia brincar com ela. O jovem louco se refestelava em mil piruetas. Dionísio de longe fitava o céu estelar cujo reflexo resplandecia na face de Moria. Uma lua descia do céu a apontar no nariz de Moria mais um disparate. E sem ninguém para torturar no cárcere. O movimento psiquiatra como não podia 52
  • 53. MOIRA, A VOZ SILENCIADA – RICARDO RASSI JÚNIOR deixar de ser continuava a buscar mais gente para si na vã tentativa de que um dia os céus estariam a seu favor, pois a deusa voltava de seu confinamento. Ela estava alegre e todos voltaram a sorrir. FIM 53