1) O documento discute a influência do filósofo Hegel na historiografia do século XIX, especialmente em autores como Ranke, Carlyle, Marx e Engels.
2) Ranke adotou um método científico de história baseado em fontes primárias, rejeitando a filosofia universal da história de Hegel.
3) Carlyle interpretou a história por meio de heróis que encarnam os ideais de uma época, relacionando-se à noção hegeliana do Espírito Absoluto.
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O objetivo deste trabalho é mostrar de maneira breve a
importância de G. W. F. Hegel (1770-1831) na formação
historiográfica do século XIX e, consequentemente, na
estruturação oitocentista da história das ciências. Busco
trazer a concepção de que o pensamento político e o
legado historiográfico de Hegel não podem ser analisados
de maneira superficial. Para tal, analiso sua grande
importância e influência nos seguintes autores: Leopold
von Ranke, T. Carlyle, K. Marx e F. Engels (juntamente), e J.
G. Droysen. De suas biografias e sistemas socio-históricos
pode-se recuperar a contribuição do sistema filosófico
hegeliano, com a marca do idealismo lógico e da dialética,
seja aceitando, condenando ou propondo adaptações a
esse mesmo pensamento hegeliano. Apesar de interpretar
que Hegel legou-nos uma concepção de modernidade que
deveria dar conta da totalidade, porém, fica entendido que
seu sistema não é aqui interpretado como a superação de
toda contradição política e histórica, e não é também a
absolutização do destino humano e da realidade.
Discussão
Segundo M. Eliade há diferença entre memória (mneme) e
recordação (anamnesis). A memória perfeita é superior à
faculdade de rememorar. A recordação implica em um
esquecimento que se manifestou no ser e tal perda, para
alguns povos antigos, equivale a uma forma de escravidão,
à ignorância e mesmo à morte. Pode-se dizer que os
historiadores, ao longo da trajetória humana, buscaram a
“memória perfeita” através de suas obras, cada um ao seu
modo, tentando repassar à sociedade fatos cronológicos
através de determinada visão de mundo. Vários sentidos
moldaram esse “prisma”, fosse mais pessoal, imparcial,
político, estético, social, econômico, etc. Há uma evolução
desde a Antiguidade em termos de análise do que seja o
registro da memória de uma nação, evoluindo a
historiografia como método, arte, de trazer à luz a história.
Esta sofre influência da cultura em que o pensador
originante esteve imerso, e mesmo hoje fica mais claro que
a interlocução com o texto também terá a contribuição
daqueles que interpretam esse texto primeiro.
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Dentro da ótica dessa influência metastisada,
particularmente ao século XIX, encontra-se G. W. F. Hegel,
considerado por muitos o filósofo de maior influência para
o debate historiográfico de sua época. Despertou o
interesse no saber de que a história pode ser usada tanto
pelos que pensam e constroem as nações, como por
aqueles que as dirigem, sendo uma forma, um vetor, para a
análise de tudo o que se passou no tempo histórico (e que
projeta o homem para fora daquele mesmo momento
histórico próprio). Hegel propõe uma filosofia sistêmica
(último grande sistema da modernidade), onde há a busca
pela identidade através da dialética no mundo e nos povos.
Coloca o pensar na totalidade, no saber absoluto. Projeta
uma consciência crítica que, pela reflexão, gera um
processo de formação do homem e o conhecimento.
Retomando a questão crucial da dialética, sabemos que
com ela Hegel produziu um sistema que permite a
apreensão da história, da filosofia, da filosofia da história e
do próprio mundo. Lógicamente, há margem para os erros
na história, mas a humanidade progridirá depois das
experiências inerentes a um povo. E, por causa delas, pode-
se postular então a existência de um Estado composto de
cidadãos livres, que fazem parte do conjunto dialético
humano. Um Estado Constitucional que é um poder que
organiza e trás a todos o equilíbrio que conduzirá a um
Bem geral. A razão faz emergir os ideais revolucionários da
liberdade, igualdade e fraternidade. O pensamento
apreende tudo, inclusive o ser, sendo a ação um
movimento dialético do em-si ao para-si (dialética do
interior e do exterior). Todo homem, ser político e cultural,
passa a ser o exemplo vivo de que a contradição leva ao
progresso. Logo, há valor para a contradição e o “negativo”.
A negação não produz um objeto hegeliano histórico vazio
de significados.
A evolução histórica hegeliana segue a lógica do devir
heraclitiano, em eterno progresso de um Espírito objetivo
que se desenvolve, realizado-se por sucessivas etapas até a
plena consciência de si mesmo. Nesse caminho, o ser e o
pensar não se opõem como realidades. O pensamento é
real, e a realidade é sua expressão. O que pensou está no
movimento do devir e de síntese universal.
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Historiadores & Hegel
Leopold von Ranke (1795-1886): De estilo conservador e
opositor ao sistema hegeliano e também marcante
pensador para a história, é considerado por muitos como o
mentor da “história cientifica” devido ao fato de introduzir,
através do uso prioritário de fontes primárias, o método
científico das ciências exatas (como a física oriunda do
newtonismo) na elaboração da pesquisa histórica. Na
Universidade de Leipzig esteve ao lado do professor
Fridrich Savigny (que propunha as diferenças nos vários
períodos da História) em oposição aos seguidores de Hegel
(que defendiam o devir constante de uma “história
universal”).
Havia uma diferença fundamental entre a posição Ranke e
a visão hegeliana. Para aquele, Hegel usava uma mesma
interpretação para culturas muito diversas, onde os valores
mudaram muito ao longo da história. Para conhecer
realmente o que um autor queria dizer aos futuros leitores
só haveria uma forma que não disporia erros ao estudioso:
o uso temporal e cultural das fontes primarias. Quanto
mais se usam aos fatos, mais verídica será à história.
Negou, assim, a existência ou possibilidade de uma filosofia
universal da história hegeliana, achando que tal filosofia
desconsiderava a ação direta dos homens (e seu livre
arbítrio) na hstória. Não havia como indicar por fatos que
existia um Espírito absoluto para a história, ou seja, que um
mero conceito pudesse delimitar o pensamento e a razão
dos povos. Em Ranke, cada nação possui um ethos
particular que serve apenas aquele povo. Como exemplo,
cita que os ideais da Revolução Francesa não serviriam ao
Estado Prussiano, onde a cultura e a mente dominante são
diferentes da francesa. Talvez fique marcado neste fato a
filosofia romântica alemã como resistência política ao
movimento Iluminista francês. Ranke não percebe que
Hegel coloca a relação da história com a filosofia e também
do pensamento com o real neste mundo factual. Tal mundo
não “está fora” da história, em um mundo platônico
inteligível.
Thomas Carlyle (1795-1881): Propõe que a História pode
ser interpretada através da vida dos heróis, que
representam a encarnação em um homem importante
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dentro de uma cultura. As massas e o herói seguem
cumprindo uma missão como no Espírito Absoluto
hegeliano num devir marcante. A teoria do surgimento de
um ser que unisse o abandono (o estar acima) dos valores
do bem e do mal com um ateísmo político foi conseqüência
do culto ao gênio humano professado pelos primeiros
românticos. A “teoria do gênio” vai ser colocada também
por Arthur Schopenhauer (1788-1860) na obra “O mundo
como vontade e representação”, quando associa o homem
genial às “alturas do Monte Blanc”, sendo que do alto o
gênio contempla os demais da humanidade. Esse homem
está ligado a um fim objetivo, assim também a figura do
Super-Homem nietzscheano (F. W. Nietzsche, 1844-1900, na
obra “Assim falou Zaratustra”). A figura do herói que Carlyle
associa à história está presente recorrentemente no saber
humano. Para o século XIX e para Carlyle, tal herói é (ou
representa) a encarnação daquele Espírito na história como
prevê Hegel. São os ideais e sentimentos de uma época
cultural e histórica que encarnam em um quase mítico
personagem, mostrando a luta social por que todos os que
representa estão passando.
O Espírito Absoluto serve-se daquele homem para realizar
atos superiores quase inimagináveis, grandes destinos. As
massas e o herói seguem heraclitícamente cumprindo uma
simbiótica missão. É possível dizer que as doutrinas
coincidentes de Hegel e Carlyle também se orientam
histórico-teleológicamente. A primeira dentro de um
idealismo e no Espírito Absoluto, com o destino final dos
povos através da história; em Carlyle, na exploração dos
sujeitos, falando de homens providenciais a quem
corresponde o direito de governar as sociedades levando-a
à felicidade e concretude de ideais.
Karl Heinrich Marx (1818-1883) & Friedrich Engels (1820-
1895): São considerados seguidores da chamada corrente
“hegelianos de esquerda”. No posfácio à segunda edição de
1873 de “O Capital”, K. Marx escreve: “Meu método dialético
não só é fundamentalmente distinto do método de Hegel,
mas é, em tudo e por tudo, a antítese dele”. Apesar de tal
afirmação, muito da teoria econômica e social do
socialismo marxista deve-se a questões identificáveis no
sistema hegeliano: o movimento de efetivação da liberdade
na vida comunitária, onde a razão está na consciência de
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seus membros; a reconciliação da vontade particular com a
vontade universal; a existência da liberdade, guiada por um
sistema de produção. Aqui não há poucos heróis, mas o
movimento coletivo das massas.
A partir do “Manifesto” em 1848, Marx e Engels
aprofundaram suas concepções sobre a nova sociedade
que deveria nas anteriores bases estruturar-se. Marx
relaciona para isso três correntes do pensamento que lhe
são contemporâneas: a dialética hegeliana, a economia
política inglesa e o socialismo. Para ambos a dialética
hegeliana deveria ser aplicada ao mundo real, não
possuindo base ou interesse “espiritual” (socialmente
falando), mas sim um fim material e econômico. O
materialismo dialético surge como conceito central da
filosofia marxista em uma inversão da proposta hegeliana.
A idéia de autonomia da ciência está presente, questão que
surge em um ambiente de consolidação da nova
universidade alemã depois da fundação da Universidade de
Berlim (1810).
Engels valorizou, entretanto, a obra de Hegel no prólogo de
1888 a L. Feuerbach, propondo o fim da filosofia clássica
alemã. Engels sabia que não poderia ignorar o “degrau”
deixado por Hegel, citando-o quando propôs um lado
revolucionário ao método dialético. Engels vê que em Hegel
a dialética não passaria do “automovimento” de um mero
conceito geral (crítica à posição conceitual). Sobre esta
questão é que a inversão se tornava necessária, eliminando
qualquer idealismo e tornando Hegel realmente inserido na
história prática. Surge um caminho para que a dialética
passe ao conhecimento do que deveria ser a Verdade,
utilizada para o conhecimento de uma verdade objetivada.
A natureza é regida por leis que estão em eterno vir-a-ser,
sempre em movimento que o homem buscará entender
pouco a pouco.
O método hegeliano original não serviria por ser
considerado idealista demais. Marx e Engels chegaram até
a história a partir do entendimento desta como teoria
científica, propondo o materialismo histórico e a ruptura
com a história idealista romântica como vinha sendo
estudada até então.
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Johann Gustav Droysen (1808-1886): Foi aluno de Hegel, o
que fornece a Droysen a influência hegeliana em alguma
medida. Droysen foi historiador que se formou em um
ambiente de mudanças na política e na economia, além da
filosofia, música e literatura, o que talvez tenha tornado
mais compreensível o conteúdo dialético. Estudou a
história na dialética sujeito/objeto, onde essa história
deveria dar sentido para os fatos ao longo das eras. Buscou
deixar mais clara a separação entre as ciências do espírito e
as ciências naturais.
Importante atuação na fundamentação sólida da
hermenêutica antes de Dilthey, Heidegger e Gadamer. A
questão da recordação, como colocado no início deste
texto, é central para a constituição de uma consciência
histórica fundada na hermenêutica desde Droysen: a
dialética do recordar/apreender sobre um texto como meio
de estabelecimento de continuidade. É possível superar o
caráter fragmentado dos vestígios e, a partir de
semelhanças não evidentes no texto, estabelecerem uma
nova unidade inteligível.
Transferindo para a história surge o “percurso” do Espírito
Absoluto, de onde propõe a Bildung: formação ou cultura
no devir, conceito inovador para o entendimento humano
da história e na história. É a cultura de um povo que se
estrutura na construção dialética.
Conclusão
A importância da compreensão historiográfica no
entendimento dos povos fica marcada, no século XIX, por
algum tipo de noção de progresso dada pelos historiadores
citados, onde Hegel esteve presente como referência em
maior ou menor medida. A busca pelo homem e pelo
Estado perfeitos chegarão até nossos dias, comprovando
ainda mais sua importância no pensamento humano. Hegel
produziu no século XIX uma nova forma de pensar e ver o
mundo a partir das influências que também sofreu de Kant,
Gothe, Descartes, Fichte e Schelling.
Carlyle mostra a marca imanente do sistema hegeliano com
os heróis da história que encarnam o Espírito Universal, e
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na obra autobiográfica romanceada “Sartor Resartus, and
On Heroes, Hero-Worship, and the Heroic in History”,
Carlyle cita Hegel nos capítulos 3 e 10, mencionando seu
sistema filosófico e deixando claro seu conhecimento sobre
Hegel e a influência que recebeu.
O historiador L. von Ranke não cita textualmente Hegel em
suas obras, mas sua oposição ao sistema hegeliano é por
demais conhecida pela sua própria atuação em vida, e
também por comentadores contemporâneos e atuais.
Jean Léon Jaurès é um exemplo, através de Marx e Engels,
de outro pensador político que possuiu forte marca do
hegelianismo de esquerda, além Marx e Engels aqui
citados. Hegel também participou do pensamento de V. I.
Lênin (1870-1924), sendo a Revolução de 1917 outra marca
sua na história do século XX.
Droysen foi historiador cuja vida marca o século XIX e que
ainda teve a impressionante sensibilidade de, como aluno
de Hegel, herdar questões da cultura intelectual do século
XVIII e início do XIX, antecipando ainda outros problemas
que serviram também de marca para o pensamento
contemporâneo.
*Adílio Jorge Marques é professor de Física e História da
Ciência da rede pública e particular de ensino do Rio de
Janeiro. Pesquisador em História da Ciência luso-brasileira e
história das Tradições.
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