O documento discute a evolução histórica da Psicologia Social, desde sua fundação por Wundt até as teorias contemporâneas. Ao longo do tempo, houve debates sobre se a Psicologia Social deveria ser vista como parte da Psicologia ou da Sociologia. Teóricos como Ramos, Rodrigues e Lane debateram como compreender a relação entre indivíduo e sociedade, com visões diferentes sobre o grau em que o indivíduo é influenciado ou pode influenciar a sociedade.
1. Ado . ^ Q S - t t
4
A dimensão subjetiva dos
fenômenos sociais
Maria da Graça Marchina Gonçalves
Ana Mercês Bahia Bock
A dificuldade de definição da psicologia social reside na impreci
são dos seus objetivos. Sendo uma disciplina relativamente recen
te, não há ainda acordo, no campo dos seus cultores, no sentido
de delimitar-lhe os objetivos nítidos e a extensão de suas apli
cações. Enquanto que, para uns, a psicologia social se aproxima
da psicologia (McDougall), para outros, o seu objeto de estudo
se confunde com o da sociologia (Ellwood, Ross).
O parágrafo acima abre o primeiro capítulo do livro Introdução à Psi
cologia Social, de Arthur Ramos, publicado em 1936 (2003, p. 27) e consi
derado como a segunda publicação brasileira na área. A dúvida sobre a
natureza da Psicologia Social é tomada como questão importante na pu
blicação que é resultado, como afirma o próprio autor, de suas aulas do
curso de Psicologia Social na Universidade do Distrito Federal, em 1935.
Em seu prefácio, Ramos afirma que a "(...) Psicologia Social está assumin
do uma importância cada vez maior, embora sem nitidez definitiva nos
seus métodos e nos seus objetivos". (Ramos, 2003, p. 23)
2. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 117
As várias tendências destacadas naquele momento demonstravam
a preocupação em definir a Psicologia Social como uma área da Psicolo
gia ou da Sociologia. Interessante ainda registrar que Ramos afirma, para
organizar seu livro, que a Psicologia Social estuda três ordens gerais de
fenômenos:
(...) Em primeiro lugar, a psicologia social estuda as bases psicológicas do
comportamento social epor aí se aproxima da psicologia do indivíduo. Em
seguida, estuda as inter-relações psicológicas dos indivíduos na vida social.
Toma-se então uma interpsicologia, no velho sentido de Tarde. Por fim, a
psicologia social tem de considerar a influência total dos grupos sobre a
personalidade. Ela será então uma sociologia psicológica e uma psicologia
cultural. (Ramos, 2003, p. 36)
Talvez essas citações já sejam suficientes para falarmos da dicotomia
Lndivíduo/sociedade presente na Psicologia Social, a qual tomaremos
como eixo de nossas reflexões. Mas ainda cabe citar alguns trechos de Ra
mos (2003) que expõem claramente essa questão, tomada aqui como um
dos problemas centrais da indefinição da Psicologia Social.
No capítulo 16 de seu livro, capítulo intitulado O indivíduo e o social,
Ramos nos diz:
O homem isolado é um mito. A sua personalidade só pode ser compreen
dida dentro do jogo complexo das influências ambientais — físicas, sociais
e culturais. Um dos problemas da psicologia social é justamente esse de in
vestigar a ação total do meio sobre o indivíduo... (Ramos, 2003, p. 237)
E continua:
... o grupo social influencia o indivíduo, moldando-o aos seus padrões de
atitudes, opiniões ejulgamentos... A"pessoa" é oindivíduo dentrodos seus
padrões sociais. O indivíduo vive na sociedade como membro de grupo,
como "pessoa", como "socius". A própria consciência da sua individuali
dade, ele aadquire como membro do grupo social, visto que é determinada
pelas relações entre o "eu" e os "outros"... (Ramos, 2003, p. 238)
3. 118 BOCK • GONÇALVES
Avançando até 1981, vamos encontrar, em obra de Aroldo Rodrigues,
a Psicologia Social definida como o estudo das "manifestações comporta-
mentais suscitadas pela interação de uma pessoa com outras pessoas, ou
pela mera expectativa de tal interação" (Rodrigues, 1971, p. 3). E seguin
do no tempo, o próprio Rodrigues et al., em 2000, quando da 18aedição
revisada de seu livro Psicologia Social, afirmam de início:
Psicologia Social é o estudo científico da influência recíproca entre as pes
soas (interação social) e do processo cognitivo gerado por esta interação
(pensamento social)... Um aperto de mão, uma reprimenda, umelogio, um
sorriso, um simples olhar de uma pessoa em direção a outra suscitam nes
ta última uma resposta que caracterizamos como social. Por sua vez, a res
posta emitida servirá de estímulo à pessoa que a provocou, gerando por
seu turno um outro comportamento desta última, estabelecendo-se assim
o processo de interação social. (Rodrigues, et al., 2000, p. 21)
Em 1981, Silvia Lane publica O que é a Psicologia Social e questiona
a definição da área como sendo o estudo do comportamento dos indiví
duos no que ele é influenciado socialmente. Lane afirma ser impossível
encontrarmos comportamentos que não sejam sociais e conclui:
... a Psicologia Social estuda a relação essencial entre o indivíduo e a socie
dade, esta entendida historicamente, desde como seus membros se organi
zam para garantir sua sobrevivência até seus costumes, valores e institui
çõesnecessáriospara acontinuidadedasociedade... Eagrandepreocupação
atual da Psicologia Social é conhecer como ohomem se insere neste proces
so histórico, não apenas em como ele é determinado, mas principalmente,
como ele se toma agente da história, ou seja, como ele pode transformar a
sociedade em que vive. (Lane, 1981, p. 10)
O pensamento de Lane avança e, em 1984, na publicação histórica Psi
cologia Social — o homem em movimento (Lane e Codo [orgs.]), Lane afirma:
Toda a psicologia é social.
Esta afirmação não significa reduzir as áreas específicas da Psicologia à Psi
cologia Social, mas sim cada uma assumir dentro da sua especificidade a
natureza histórico-social do ser humano...
4. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 119
Também com esta afirmação não negamos a especificidade da Psicologia
Social — ela continua tendo por objetivo conhecer o Indivíduo no conjun
to de suas relações sociais, tanto naquilo que lhe é específico como naquilo
em que ele é manifestação grupai e social... (Lane, 1984, p. 19)
Este percurso que fizemos pretende destacar a dicotomia presente
na Psicologia Social e as tentativas de superação dela. Apresentaremos a
Psicologia Social de abordagem sócio-histórica como uma das mais bem-
-sucedidas nessa empreitada, porque redefine o objeto da Psicologia So
cial e o recoloca em outras bases epistemológicas, seguindo a trilha de
Lane. A divisão (dicotomia) entre o indivíduo e a sociedade, a objetivi
dade e a subjetividade, o mundo psicológico e o mundo social começa a
ser superada trazendo uma nova concepção de ser humano e uma nova
visão sobre sua relação com a sociedade.
Uma preocupação histórica
É preciso que se afirme que há um consenso em todas essas teori
zações sobre a Psicologia Social, aqui contrapostas: o de compreender a
relação que o indivíduo mantém com a sociedade. Desde Wundt esta
vam postas questões que se colocavam para além do indivíduo. Ele re
conhecia diferenças entre indivíduos de diferentes culturas, reconhecia
os fenômenos sociais e coletivos como relativos ao campo de interesse da
Psicologia e considerava que o estudo da consciência por meio da intros-
pecção não esgotava a sua complexidade. Contudo, estava em busca de
conhecer os processos universais de funcionamento da consciência hu
mana. Enfatizou métodos que alcançassem essa compreensão e a cons
trução da sua Psicologia Social terminou pouco difundida, de modo que
não se reconhece em sua obra o desenvolvimento de estudos sobre a re
lação indivíduo-sociedade. O próprio Arthur Ramos, aqui citado, colo
cou questões dessa natureza quando falou de uma psicologia da cultura.
A questão do negro na sociedade brasileira e a formação de uma nação
Brasil foram eixos importantes de sua produção. Ramos propunha estu
5. 120 BOCK • GONÇALVES
dar e compreender o que havia de primitivo em nossas heranças cultu
rais e que seriam empecilhos para o desenvolvimento da nação. Apesar
dessa visão, hoje considerada equivocada, na medida em que associava
a questão racial ao que havia de primitivo e atrasado em nossa socieda
de, Ramos enfatizou o estudo do comportamento humano tendo sempre
em vista a sua inserção no ambiente social.
Que relação mantém o indivíduo com a sociedade? O que somos
tem alguma relação com a sociedade em que nos inserimos? Como se dá
essa relação?
Se tomarmos como referência as duas "pontas teóricas" que apresen
tamos — Ramos e Lane —, podemos verificar que as perspectivas para a
resposta são diversas: Ramos pensava o homem como influenciado pelo
meio e considerava assim as influências do meio sobre a personalidade.
Rodrigues coloca-se neste campo afirmando a Psicologia Social como es
tudo da interação e do pensamento social decorrente da interação. Lane,
por outro lado, busca superar essas visões, desafiando a Psicologia a pen
sar o humano como transformador, como sujeito ativo, protagonista de
sua história e de sua sociedade. A relação indivíduo — sociedade estava
lá, posta nessas abordagens. Está, entretanto, posta a partir de diferentes
concepções metodológicas de como se dá a relação, as quais compreen
dem homem e sociedade de maneiras diversas.
A compreensão desde a raiz da proposição de Silvia Lane, que inau
gura no Brasil a concepção sócio-histórica, requer o esclarecimento des
sas diferenças.
A dicotomia como divisor de águas
O pensamento moderno científico afirmou-se desde o início como
objetivo e neutro. Isso distinguia a ciência do senso comum. Apostou-se
então no método como forma de garantir a neutralidade e a objetivida
de, já que o cientista também era dotado de uma subjetividade. Sujeitos
pesquisando sujeitos poderiam ser objetivos se se mantivessem rigoro
samente presos a um método que garantisse a objetividade e afastasse as
6. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 121
possibilidades de contaminação subjetiva, ou seja, de que o pesquisador
se misturasse com seu objeto de estudo. Estava posta a dicotomia entre
sujeito e objeto: "Produzir conhecimento científico era manter-se, como
sujeito, externo ao objeto a ser investigado, fosse qual fosse esse objeto".
(Gonçalves e Bock, 2003, p. 42)
A dicotomia presente nesta maneira de conceber a relação sujeito-ob
jeto se estenderá para as formas de conceber a relação sujeito e sociedade;
natural e histórico; mundo interno e mundo externo. Não só se estenderá
como será a base epistemológica da produção em Psicologia.
Na Psicologia Social essa dicotomia se evidenciará na divisão entre
psicologias sociais sociológicas e psicológicas. As produções dessas psi
cologias expressam a busca eterna de encontrar a leitura mais adequada
para a realidade: estariam as explicações no âmbito do indivíduo (ten
dências psicológicas) ou da sociedade (tendências sociológicas)? Foi em
busca dessa resposta que a Psicologia Social se desenvolveu, de manei
ra preponderante, entretanto, sob a égide de concepções objetivistas de
ciência. E, juntamente com elas, concepções de neutralidade da ciência,
de separação entre o momento do conhecimento e o momento da ação,
colocando para o pesquisador em Psicologia Social outra dicotomia a re
solver: como relacionar pesquisa e ação social?
É nesse contexto que o conhecimento que se produz se isenta de
questões sociais concretas, aparece apartado dos problemas considerados
mais relevantes, afasta-se das questões da realidade social. A naturaliza
ção dos fenômenos, decorrente da visão dicotômica, leva a formulações
abstratas e universais sobre os indivíduos e as sociedades; parece falar do
todo, ou de tudo, mas termina por falar de quase nada. É essa a origem
da chamada "crise da psicologia social", ocorrida nos anos 1960, muito
embora autores como Rodrigues (1978) e Lane (1980 e 1991) tenham for
mulado análises diferentes dessa crise.
Para um — Rodrigues — a crise era devida à falta de cientificidade
nessa área. Era preciso ir mais a fundo na pesquisa isenta, na busca dos pro
cessos universais (e, portanto, naturais), para se avançar no conhecimento
da relação indivíduo-sociedade, produzindo pesquisa básica que poderia,
em outro contexto, que não o da ciência, resultar em aplicações.
7. 122 BOCK • GONÇALVES
Para outra — Lane — a crise era devida, exatamente, à separação
entre conhecimento e ação. Apenas o compromisso do cientista com as
questões do seu tempo, um compromisso revelado desde a escolha do
método e da teoria, poderia proporcionar um conhecimento que contri
buísse para a transformação da sociedade.
Novamente, têm-se diferentes implicações, para o conhecimento e a
atuação, a depender de como se lida com a dicotomia estabelecida entre
indivíduo e sociedade.
Assumimos aqui a versão de Lane, que, com essa visão, inaugura a
produção de uma Psicologia Social alternativa, crítica e comprometida
com a realidade brasileira e latino-americana. Para ir adiante na explici
tação das raízes dessas posições e suas diferentes possibilidades é neces
sário o conhecimento de seus fundamentos, o que remete às produções
da Modernidade, exigindo que se aprofunde sua compreensão.
O pensamento da Modernidade
Vários são os elementos que compõem as elaborações da Moderni
dade, revelando a complexidade e os aspectos contraditórios do período
histórico que representa: racionalismo como pilar central; valorização da
ciência racional e empírica; reconhecimento do homem como sujeito epis-
têmico; formulações sobre o lugar social do homem e sobre a liberdade;
só para apontar, genericamente, alguns deles.
Entre essas formulações está uma concepção fundamental, apoiada
nos cânones do racionalismo e reveladora, de modo mais concreto, do ho
mem que surge nesse período: a concepção do homem como indivíduo.
Esse homem, por ser racional e considerando-se a universalidade
da Razão, é o que é por sua capacidade de pensar por si só, de encontrar
nas luzes da Razão as verdades sobre a realidade, natural ou metafísica.
Verdades que bem poderiam estar no objeto externo ao homem, ou bem
poderiam ser a ele reveladas pelo trabalho da Razão e/ou por seus con
teúdos próprios (inatos ou a priori).
8. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 123
Mas, além disso, ou juntamente com isso — na verdade, na base dis
so —, está a experiência concreta dada a esse homem, a experiência de ser
e se ver como a "célula" da sociedade. Trata-se do desenvolvimento do
capitalismo e da organização social necessária à sua consolidação. A pro
dução da riqueza e o mercado sob o capital têm sua organização baseada
na inserção individual, pois cada um deve negociar sua própria força de
trabalho e cada um deve tornar-se um consumidor. O indivíduo aparece,
então, como forma primeira e insubstituível de existência. A individua
lidade é marca e conquista do capitalismo, dada sua forma de organiza
ção e produção social, mas ela também vai se definindo como modo de
ser do homem. O indivíduo é forma de subjetivação.
Dois esclarecimentos terminológicos são necessários neste ponto. Primeiro,
reafirmar com Dumont (1985, p. 29) os dois sentidos sob os quais a expres
são "indivíduo" pode ser utilizada: (1) o sujeito empírico da palavra, do
pensamento, da vontade, amostra indivisível da espécie humana, tal como
o observador o encontra em todas as sociedades; e (2) o sujeito moral, in
dependente, autônomo, e assim essencialmente não social, tal como se en
contra, sobretudo, emnossa ideologia moderna de homeme sociedade.1Em
decorrência do primeiro esclarecimento, segue-se que o indivíduo é apenas
um dos modos de subjetivação possíveis. (Mancebo, 1999, p. 36)
Assim, a Modernidade traz a afirmação do homem como indivíduo,
sendo que não se trata de tomá-lo como a unidade da espécie ao se fa
zer essa afirmação. Mais que isso, a sociedade que passa a se formar nes
se período e virá a ser hegemônica tem como referência fundamental a
noção de individualidade, da experiência individual como a base para a
organização social.
Surge, dessa forma, a experiência humana que passará a ser hege
mônica e central em toda a histórica ocidental e dominante. Podemos di
zer que o surgimento do "homem burguês" (Konder, 2000) traz mais do
que o surgimento de uma nova classe social. Evidentemente é disso que
1. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna.
Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
9. 124 BOCK • GONÇALVES
se trata. Mas é preciso reconhecer que a forma como essa experiência se
impõe objetiva e ideologicamente levará a um aprofundamento da no
ção de indivíduo que se elabora nos séculos XVII e XVIII, se fortalece no
século XIX, atravessa todo o século XX, e chega à contemporaneidade com
a insígnia, ainda pouca abalada, de ser uma concepção natural.
Não é. A concepção do homem como indivíduo é produto de certa
ordem social, que permitiu o desenvolvimento de determinadas experiên
cias e suas correspondentes representações, tão sólidas e contraditórias
quanto a realidade que as possibilita.
Não se trata de uma "modelagem" do burguês feita pela burguesia (fenô
meno que de fato existe, mas permanece restrito ao estaco de classe): trata-
se de um condicionamento promovido, não pela burguesia, diretamente,
mas pelo conjunto da sociedade burguesa, quer dizer, pelas características
do "sistema" social estruturado sob a hegemonia da burguesia. (Konder,
2000, p. 15)
A noção de indivíduo foi particularmente importante para o libera
lismo, que fundamentou nela todas as suas formulações sobre o homem.
Mancebo (1999) cita Dumont, o qual estabelece uma distinção entre so
ciedades e culturas holísticas e as individualistas. As primeiras situam
os indivíduos empíricos de acordo com sua posição na estrutura social;
os indivíduos são, então, representados por meio de identidades posi
cionais. Nas segundas, "o valor da identidade individual é dado, sobre
tudo, pela ideia de autonomia do sujeito em relação ao todo" (Mancebo,
1999, p. 36). Na concepção individualista, o indivíduo tem potencialida
des "naturais" ou "intrínsecas", pré-existentes à sociedade, e deve reali
zá-las na vida social.
Foi essa referência ao indivíduo como unidade básica da sociedade,
com base na qual se estabelecem normas e relações, que fundamentou
concepções sociais importantes na organização da sociedade sob a nova
estruturação econômica. Segundo Mancebo (1999, p. 36):
Pode-se afirmar que o conceito de indivíduo tal qual apresentado acima
foi elevado ao nível de bandeira política e realidade econômica pelo libe-
10. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 125
ralismo dos séculos XVII e XVIII, constituindo-se em parcela significativa
do imaginário social da modernidade. Para os contratualistas dessa época
— Locke, Hobbes, Rousseau — o poder das famílias havia sido substituído
politicamente pelo Estado Moderno, constituído, ao menos em tese, pela
participação d:reta de indivíduos. Os contornos básicos desse novo ideá
rio seriam: a liberdade (inclusive em relação à própria coletividade na qual
vive, implicando direito de escolha, liberdade de ação e de participação),
a igualdade (ontológica e legal, implicando direitos inalienáveis, públicos,
reconhecidos por todos), aconsciência individual acentuada (razão própria,
emoções e sentimentos próprios, singulares e únicos) e a consideração do
homem como unidade básica da sociedade na qual participa diretamente
sem mediações.
Neste momento podemos dizer que já são dois os aspectos que nos
podem levar a entender a postulação de explicações psicológicas ou so
ciológicas para a relação indivíduo e sociedade. Um deles claramente
epistemológico, nos mostra como a separação entre sujeito e objeto, como
forma de se chegar à objetividade do conhecimento, induz à separação
entre indivíduo e sociedade, porque: 1) estende a visão de exterioridade
a toda relação de que se trata, pois é uma visão metodológica que orienta
a forma de abordar o objeto do conhecimento, nesse caso, entendendo-se
como objeto a relação indivíduo-sociedade; a implicação é a visão de exte
rioridade entre indivíduo e sociedade; 2) busca a objetividade do conheci
mento sobre o indivíduo e a sociedade de maneira objetivista, reduzindo
os processos de relação a uma imediaticidade e a uma linearidade condi
zentes com essa maneira de abordar a realidade para conhecê-la.
O outro é um aspecto ontológico, que permite apontar característi
cas, historicamente constituídas, do ser do qual se trata, o homem indi
víduo, assim concebido com base em experiências concretas ratificadas
pelas concepções liberais. É esse indivíduo que precisa ser compreendido
na sua relação com a sociedade. E é desse indivíduo que se fala quando
se estuda sua relação com a sociedade.
Reunindo os dois elementos, o epistemológico e o ontológico, temos,
além da exterioridade do indivíduo em relação à sociedade, um indivíduo
"em si", que prescinde, a princípio, da sociedade para ser como tal.
11. 126 BOCK • GONÇALVES
O resultado da presença dessas concepções na Psicologia Social é
o que apontamos acima: explicações sociológicas ou psicológicas para a
relação indivíduo-sociedade, com desdobramentos para a visão de qual
deve ser o lugar do conhecimento na vida social e até mesmo para a iden
tificação dos problemas da vida social que devem ser conhecidos.
Outros elementos da Modernidade devem ser considerados para ir
mos adiante nessa análise. Isso porque, como também já referimos aci
ma, o conjunto de elementos que a compõem revela a complexidade e as
contradições das produções históricas.
Assim, devemos considerar que esse homem racional e individual da
Modernidade, o "homem burguês" referido por Konder (2000), é também
reconhecido como sujeito.
Estamos nos referindo a um ser de possibilidades (de determinadas
possibilidades): possibilidade de conhecer, possibilidade de agir a partir
do conhecimento, possibilidade de encontrar e/ou aplicar a racionalidade
em tudo que existe, possibilidade de sentir, possibilidade de pensar sobre
o que conhece e o que sente, possibilidade de expressar suas vontades e
esperar que a sociedade as realize. E possibilidade de realizar tudo isso
perante outros, perante a sociedade. Há, dessa forma, uma afirmação do
homem como sujeito.
Mas ela só foi possível, concretamente, no interior da contradição
capital — trabalho, que requereu que o homem ocupasse os lugares so
ciais (na produção e no consumo) como ser individual. E só foi possível,
em termos ontológicos e epistemológicos, com a afirmação também do
objeto, significando a afirmação de uma existência do objeto (realidade,
natureza) independente do sujeito. Ambos os aspectos aqui presentes, o
concreto e o das representações, carregam contradições.
Na concreticidade, para ocupar o lugar social da produção, o indi
víduo só pode fazê-lo com outros indivíduos. Ou seja, a organização da
produção é social. Por outro lado, para ocupar o lugar social do consu
mo, o indivíduo precisar anular outros indivíduos (na concorrência do
mercado); ou, na melhor das hipóteses, precisa tornar-se indistinto deles
(na massificação do consumo).
12. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 127
Nas representações, ontológicas e epistemológicas, o sujeito racional
autônomo precisa submeter-se à objetividade e à racionalidade do obje
to, tendo sua autonomia limitada. O ser de possibilidades tudo pode?
Ou nada pode?
Postas dessa forma as questões, as respostas oscilam de um polo a
outro, mantendo visões dicotômicas em vários campos. O que pode o in
divíduo frente à sociedade: impor sua individualidade ou amoldar-se ao
que lhe é imposto?
As concepções alternativas e a dificuldade da superação
As contradições da Modernidade estão, também, entretanto, na ori
gem de concepções alternativas, de contraponto às visões dominantes. O
sujeito liberal, indivíduo racional, bem como sua possibilidade de reali
zação, encontram seu questionamento em experiências concretas e suas
correspondentes representações ontológicas e epistemológicas.
O capitalismo tem em si, contraditoriamente, como apontado acima,
um novo elemento de experiência concreta, por meio do trabalho. Trata-se
da possibilidade de os sujeitos do trabalho constituírem-se concretamente
como coletivo, considerando-se a organização da produção industrial. É
uma experiência possibilitada pela mesma organização social da produ
ção que afirmara o indivíduo como sua célula básica; daí a contradição.
Essa experiência possibilita outra: o reconhecimento da condição co
mum a que estão expostos esses sujeitos. Na verdade, aquilo que está li
mitado pela concorrência do mercado (para a oferta da força de trabalho
ou para o consumo) será coletivamente reconhecido como limitação impos
ta pela ordem social. Esse reconhecimento trará a possibilidade de outro
tipo de reflexividade, de consciência, diferente da consciência individual.
Trata-se da consciência histórica, fundada numa práxis política. Ou seja,
traz a possibilidade de uma consciência que não é individual e autofun-
dante ou autoiluminada, mas constituída a partir da ação, do trabalho, o
que só ocorre coletivamente.
13. BOCK • GONÇALVES
Aqui se fala da possibilidade de superar a alienação que marca as
formas de consciência sob o capitalismo, possibilidade esta que está dada
pelas contradições que estão presentes nessa realidade.
A análise histórica do capitalismo, realizada pelo marxismo, permi
tiu identificar as características da base material, nesse modo de produ
ção, que dão origem ao processo de alienação.
O indivíduo produtor da riqueza está posto nessa tarefa de modo
individual: vende sua força de trabalho ao capital que a utiliza na pro
dução da riqueza. O resultado desse trabalho é apropriado individual
mente pelo capitalista. O trabalhador aplica sua força de trabalho e não
se apropria de sua produção. A objetivação de seu trabalho pertence a
outro. Aliena-se de si próprio e não se reconhece como parte de um cole
tivo que produz; não se reconhece no produto e não reconhece sua ativi
dade como produtora. Sua consciência está marcada por essa alienação
que se origina na organização da base material da produção. E está tam
bém marcada pelos conteúdos ideológicos que referendam e contribuem
para a sustentação dessa situação.2
O processo de produção de ideologia, apoiado nessa base material,
desenvolve-se por meio das características que marcam a produção de
ideias nas sociedades de classes: separação entre trabalho intelectual e tra
balho manual, desvinculação aparente entre ideias e interesses concretos
que representam, universalização das ideias. Tal processo aprofunda-se
no capitalismo, em que o racionalismo e a ideologia liberal produzem con
cepções que o favorecem: as ideias válidas são as produzidas pela Razão;
a universalidade da Razão justifica ideias universais; o homem é indiví
duo livre para pensar, utilizando a Razão, que tem ideias evidentes por
si mesmas. Ou seja, tanto a experiência concreta do trabalho como as re
presentações sobre a sociedade e sua organização contêm elementos que
explicam a alienação.
Depois de separar as ideias dominantes dos indivíduos que exercem o po
der esobretudo das relações que decorrem de um dado estádio do modo de
2. Ver, no capítulo 3 desta obra, discussão mais detalhada sobre o processo de alienação.
14. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 129
produção, é fácil concluir que são sempre as ideias que dominam a histó
ria, podendo-se, então, abstrair, destas diferentes ideias, a "Ideia", ou seja, a
ideia por excelência etc., fazendo dela o elemento que domina na história e
concebendo então todas as ideias e conceitos isolados como "autodetermi
nações" do conceito que se desenvolve ao longo da história Em seguida, é
igualmente natural fazer derivar todas as relações humanas do conceito de
homem, do homem representado, da essência do homem, numa palavra,
de o Homem. (Marx e Engels, 1980, p. 60)
A mesma base material, entretanto, por suas contradições, possibilita
outra experiência e, consequentemente, cria a possibilidade de outra cons
ciência. A própria necessidade de organização do trabalho produziu o re
conhecimento da condição comum desses sujeitos. Esse reconhecimento
trouxe a possibilidade de outro tipo de consciência, diferente da consciên
cia individual. Trata-se, como já afirmado, da consciência histórica cons
tituída com base no trabalho coletivo. Seu desenvolvimento requer esse
reconhecimento da condição comum a um determinado grupo social, o
que possibilita o rompimento com aquelas marcas da produção de ideias
que as tornam ideológicas: as ideias representam interesses concretos; por
isso, não podem ser universais, pois os interesses concretos são oriundos de
lugares distintos, ocupados, no seio da produção, por grupos distintos; as
experiências relativas a esses lugares são comuns em muitos aspectos, por
isso sua representação é compartilhada; nesse sentido, para além de uma
consciência individual, há a possibilidade de uma consciência social.
Essa experiência concreta vai se manifestar também em relação às
questões epistemológicas. O sujeito do conhecimento tem com seu obje
to uma relação intencional, da mesma forma que se dá a relação de tra
balho. A práxis histórica, posta a partir do reconhecimento do trabalho
como fundante da relação do homem com a realidade, inclui a intencio
nalidade como inerente à relação do sujeito com o objeto, articula subje
tividade e objetividade.
(...) Pelo trabalho, os seres humanos não consomem diretamente aNatureza
nem se apropriam diretamente dela, mas a transformam em algo humano
também. A subjetividade humana se exprime num objeto produzido por
ela e aobjetividade do produto é a materialização externa da subjetividade.
15. 130 BOCK • GONÇALVFS
Pelo trabalho os seres humanos estendem a sua humanidade à Natureza.
É nesse sentido que o trabalho é práxis, ação em que o agente e o produto
de sua ação são idênticos, pois o agente se exterioriza na ação produtora e
no produto, ao mesmo tempo que este interioriza uma capacidade criado
ra humana, cu a subjetividade. (Chaui, 1995, p. 419)
Essa compreensão da relação ente sujeito e objeto, que decorre da
compreensão do movimento de transformação que se dá a partir da ação
do homem sobre a realidade, aponta a articulação entre ontologia e epis-
temologia. O ser de que se trata está em constante transformação, em um
processo histórico em que o homem atua sobre a realidade. Nesse proces
so, se dá também o conhecimento.
Essas formulações ocorreram já no século XIX, diante das primeiras
crises do capitalismo, que evidenciaram de várias formas as contradições
históricas. Percebe-se, então, que a mesma matriz histórica que constituiu
o homem como sujeito e o identificou como sujeito racional e individual
contraditoriamente criou a possibilidade do sujeito histórico. A contra
dição histórica presente na realidade material está também representada
nas ideias da Modernidade.
Assim, revelando as contradições presentes, a Modernidade pro
duziu esse contraponto às noções do liberalismo, como expressão da
contradição histórica entre capital e trabalho que constituiu o próprio
capitalismo. O sujeito racional e individual estaria superado diante da
possibilidade da experiência concreta de um sujeito ativo e social, de um
sujeito histórico.
A identificação dessa outra formulação para a experiência histórica
do homem a partir do capitalismo se faz necessária para começarmos a
debater possibilidades de superação das dicotomias e para avançarmos
na elaboração de uma visão da relação indivíduo-sociedade que contenha
a noção de articulação e processo entre um e outro. Em outras palavras,
para que seja possível ter, desde a raiz, a compreensão de uma visão dia
lética da relação indivíduo-sociedade como proposta por Sílvia Lane.
(...) Tornou-se necessária uma nova dimensão espaço-temporal para se
apreender o Indivíduo como um ser concreto, manifestação de uma totali
16. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 131
dade histórico-social — daí a procura de uma psicologia social que partis
se da materialidade histórica produzida por e produtora de homens. (...) o
homem não sobrevive a não ser em relação com outros homens, portanto
a dicotomia indivíduo x grupo é falsa — desde o seu nascimento (mesmo
antes) o homem está inserido num grupo social. (Lane, 1984, p. 15 e 16)
A raiz dessa visão está na concepção materialista histórica e dialética
de sociedade, indivíduo, história, conhecimento, método. E é importante
que se reconheça essa concepção na sua gênese histórica, como expressão
das contradições do capitalismo, expressas também na Modernidade.
Ou seja, o "homem burguês" já tem posta sua contraposição histó
rica. Tanto como possibilidade de experiência concreta, como também
em termos de representações alternativas. Por que permanece, então,
como concepção ainda predominante? Por que aparece naturalizado,
como se fosse a síntese da mais pura, essencial, universal e eterna expe
riência humana?
A resposta mais básica, embora não simples, é a de que a sociedade
globalizada e tecnológica move-se, ainda, sob a batuta das relações capi
talistas, em que pesem todas as diferenças que encontramos na sociedade
contemporânea em relação aos séculos XiX e XX. Assim, uma resposta,
grosso modo, é possível: o ideal do homem individual, promessa da Mo
dernidade, ainda não foi abandonado. Mesmo diante das perplexidades
geradas a partir da falência dessa e de outras promessas, como aponta
Boaventura de Sousa Santos (1996), o indivíduo, agora com novos mati
zes, ainda serve à organização social.
Outras respostas devem ser acrescentadas, evidenciando como as
ideias e os saberes que se produziram orientados pelas concepções hege
mônicas tornaram-se fatores muitas vezes impeditivos do aparecimento
de novas formulações. Entre essas ideias e saberes, encontramos a Psico
logia e todos os saberes psi, que valorizaram e fundamentaram a expe
riência da individualidade, naturalizando-a e absolutizando-a.
É verdade que desde o século XIX, a partir das primeiras crises do ca
pitalismo, como apontamos acima, surgem questionamentos, pelo menos
em parte, a essa visão. As contradições da Modernidade logo se evidencia
17. 132 BOCK • GONÇALVES
ram. Entretanto, como dissemos, a superação de seus limites requer trans
formações históricas mais profundas, com a superação da base material
que sustenta e dá sentido a essas concepções. Alguns exemplos permitem
perceber os limites impostos pelas contradições da Modernidade.
Outras noções de sujeito desenvolveram-se no seio do capitalismo,
com base nas concepções da Modernidade, durante os séculos XIX e XX.
A predominância da concepção liberal é questionada em vários âmbitos
e o século XX assiste até mesmo à decretação da "morte do sujeito". Es
sas outras concepções, que não representam a possibilidade de supera
ção da realidade histórica que as engendrou, expressam, por sua vez, a
complexidade do movimento histórico. São configurações resultantes das
múltiplas determinações presentes no processo social, que contribuem,
em maior ou menor grau, para a explicitação e superação da contradição
fundamental do capitalismo.
É o caso das contraposições que são elaboradas para questionar os
reducionismos na concepção de sujeito que valorizam o caráter pragmá
tico e instrumental da ação humana. O sujeito liberal que, com o desen
volvimento do capitalismo, precisa ser disciplinado para o trabalho e para
o consumo, é massificado e treinado. As concepções humanistas se con
trapõem a isso e vão em busca de um sujeito pleno, guiado por sua cons
ciência individual. Mas, estaria aqui o "homem burguês" superado?
É o caso também da recuperação da emoção em contraposição ao
excesso de racionalidade que permeia a vida do indivíduo massificado,
treinado, disciplinado até mesmo em seus desejos. Nesse aspecto, a psica
nálise desempenha um papel importante. Sua formulação básica põe em
cena a irracionalidade, afirmando a presença do inconsciente, que repre
senta o lado escuro que traz sombra à Razão Iluminada. Nesse sentido,
pode-se dizer que a psicanálise é uma das maneiras pelas quais a contra
dição histórica se manifesta, pois suas formulações põem em cheque o
sujeito plenamente racional.
A psicanálise, entretanto, não se opõe à noção liberal de sujeito. Ao
contrário, toma dela o individualismo, reconhecendo no indivíduo e nas
suas pulsões a gênese de suas manifestações em sociedade e nas relações
com os outros indivíduos. Ao mesmo tempo, a racionalidade, relativizada
18. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 133
pelo inconsciente, é retomada para explicar a estruturação da sociedade
que se impõe sobre os indivíduos e suas pulsões.3
Por outro lado, em alguns contextos de aplicação e desenvolvimen
to das concepções marxistas, as dificuldades históricas em se estabelecer
concretamente as possibilidades de realização do sujeito histórico condu
zem a outros tipos de reducionismos: são os decorrentes de uma exacerba
ção do papel da base material na produção de sujeitos, o que leva a uma
desconsideração de fatores individuais e subjetivos no processo social.
O sujeito histórico, dessa forma, tem apartada de si uma parte do que o
constitui e está presente nos processos sociais: a condição de vivenciar,
registrar e elaborar subjetivamente experiências concretas.
Por todos esses reducionismos a que foi conduzido o sujeito da Mo
dernidade (massificação, disciplina, excesso de racionalidade, pragma
tismo), seria justificável decretar a morte do sujeito.
Os abalos à noção de sujeito liberal que vão se desenvolvendo na
primeira metade do século XX acabam abrindo caminho para a negação
do homem como sujeito. Se a decretação da morte do sujeito (década de
1960) é compreensível como denúncia dos reducionismos a que o capita
lismo submeteu o homem, ela também abre espaço para a veiculação de
uma concepção neoliberal que acompanha as reformulações do capitalis
mo diante da crise mundial que ocorre na década de 1970.
Aquilo que se denominou "pós-modemidade" aglutina produções
bastante diversas que, entretanto, têm em comum um trabalho de revi
são crítica da Modernidade.4 Evidenciam, dessa forma, os limites das
concepções da Modernidade, inclusive das concepções de sujeito. Entre
tanto, algumas dessas produções começam por negar o caráter histórico
dos fenômenos sociais e humanos e, dessa forma, revestem-se de uma
pseudoisenção que, na verdade, oculta o seu caráter ideológico.
3. Uma análise da presença e da influência dessas concepções de sujeito na Psicologia pode ser
encontrada em Gonçalves, 2001a.
4. Uma análise, nessa direção, de vários pensadores da pós-modemidade pode ser encontra
da em PEIXOTO, Madalena G. A questão política na pós-modemidade: a questão da democracia. São
Paulo: Cortez, 1998.
19. 134 BOCK • CONÇAIVES
Negar o sujeito estaria representando a necessidade de abandonar
as promessas da Modernidade que não se concretizaram, portanto esta
ria decretando a inviabilidade de realização plena do sujeito como con
cebido pelo liberalismo. Mas estaria também representando a negação da
historicidade e, consequentemente, o sujeito histórico.
A Psicologia também é alcançada por esse debate e, na tentativa de
apresentar críticas aos limites do sujeito da Modernidade, resvala na ne
gação do sujeito, ela, a ciência da subjetividade.
Ainfluência do debate pós-modemo apartir daí será sentida na negação de
qualquerpossibilidadede uma concepção totalizante desujeitoequecoloca
ráemxeque aexistência de uma essencialidadedo sujeito. Para aPsicologia,
essa discussão assume um caráter peculiar. Questionado o sujeito, aponta
da sua pluralidade, sua fluidez ou até mesmo sua inexistência, como fica a
subjetividade enquanto objeto dessa ciência? (Gonçalves, 2001b, p. 71)
Considerando que essas produções se dão no âmbito do mesmo capi
talismo que engendrou as concepções anteriores, é evidente o significado
ideológico que carregam. Negar o sujeito representa a tentativa de man
ter o indivíduo adaptado, massificado, treinado, o que ainda é necessário
para a organização social; e, ao mesmo tempo, "limpar" as concepções de
qualquer indício de contradição presente na afirmação da plenitude de
possibilidades do sujeito liberal. Significa também negar qualquer outra
possibilidade para o homem como sujeito, reafirmando como única pos
sibilidade sua condição de indivíduo.5
Nesse contexto, para o enfrentamento de formulações que encobrem
seu caráter ideológico, é necessário apontar o que novas formulações so
bre o homem revelam de sua atual experiência histórica. Isso permite
evidenciar que também na contemporaneidade há uma valorização do
indivíduo, supostamente para atender a uma "nova" realidade social. A
identificação das experiências que lhe são possíveis e de como elas são
representadas, evidencia que o "neo" liberalismo transforma em farsa o
que foi tragédia.
5. Também uma análise da implicação das concepções de sujeito "pós-modemas" para a Psico
logia pode ser encontrada em Gonçalves, 2001b.
20. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 135
Em princípio as experiências contemporâneas já não poderiam ser
justificadas por uma racionalidade que seria inerente aos processos so
ciais e humanos. O trabalho parece perder seu lugar fundante, em razão
do grande desenvolvimento tecnológico. Associado a isso, consideran
do-se que o desenvolvimento da tecnologia implica mudanças constantes,
aparecem vivências de renovação permanente, de flexibilidade. Os luga
res sociais apresentam-se, em decorrência, como instáveis, alternativos.
Abre-se espaço, com o questionamento da racionalidade e a desestabili-
zação do trabalho, para a valorização de cutras dimensões do indivíduo:
a afetividade é reconhecida, valorizada e toma-se a principal referência
em muitos espaços sociais, inclusive públicos.
A implicação mais direta dessa nova situação é uma crescente ênfa
se no individualismo, que apresenta novas características, mas mantém
a supremacia do indivíduo. No início do capitalismo era a identidade so
cial do trabalho autônomo e do mercado que atendia e justificativa ideo
logicamente o capitalismo ascendente, que configurava esse indivíduo.
Atualmente, é a singularidade, a imediaticidade e a transitoriedade de
suas experiências e vivências em um mercado volátil, fluido.
Todos esses aspectos apontam, então, para uma exacerbação da indi
vidualidade, calcada no questionamento da racionalidade e na valoriza
ção da emoção, com sentimentos completamente particulares, singulares.
Por isso não se articulam a projetos coletivos e, contraditoriamente, tais
vivências abrem espaço para o crescimento da indiferença, da anestesia
diante de questões que não toquem os indivíduos diretamente. Estão jun
tos e revelam o mesmo processo, a busca desenfreada do prazer imediato,
visível na rapidez e voracidade do consumo; o culto ao corpo e à aparên
cia, reforçados pelo consumismo; a rejeição ao compromisso com questões
sociais e políticas. Ou seja, o individualismo não se enfraquece.
Precisamente umdos aspectos mais perversos do "capitalismo pós-moder-
no" é aprodução de sentidos supérfluos na população, sentidos associados
à aparência, aoconsumo, aoócio organizado etc. Eles produzem atividades
que as pessoas realizam "voluntariamente", mas que na verdade estão go
vernadas pela produção supraindividual de recursos simbólicos que con
trolame automatizam a produção de sentidos de pessoas e espaços sociais
diversos. (...) (González Rey, 2004, p. 56)
21. 136 BOCK • GONÇALVES
Revelando a contradição histórica ainda presente, o que se observa,
entretanto, é que a sociedade está cada vez mais submetida à racionali
dade técnica, presente no alto grau de desenvolvimento tecnológico que
sustenta as atividades humanas hoje em dia. Também que o prazer ime
diato é fugaz e não realiza os indivíduos. Que a massificação persiste,
embora camuflada pela multiplicidade aparente de opções de escolha,
seja de objetos, estilos de vida, relações.
Embora a possibilidade de vivenciar a diversidade deva ser saudada
como conquista da contemporaneidade, é necessário identificar as con
tradições que esse fenômeno carrega. Respeitar a diversidade não deve
se configurar como subterfúgio para negar a discussão ontológica, para
negar a possibilidade de uma experiência totalizante, como projeto his
tórico: a emancipação deve se dar para todos os indivíduos, em que pese
sua diversidade. Tal projeto não pode ter como fundamento concepções
relativistas.
O que percebemos, travestida de novidade, é a mesma antiga forma
de compreender as determinações sociais e históricas calcada no proces
so de alienação e na produção de ideologia, na medida em que as novas
concepções aparecem desvinculadas do processo que as constituiu.
Estão presentes nas concepções "pós-modemas" ideias sobre o sujeito e
a subjetividade que resultam de críticas a concepções desenvolvidas pela
modernidade. Embora de início pudessem ser saudadas como a real supe
ração dos limites presentes nas concepções modernas sobre sujeito e subje
tividade, tais ideias, na verdade significam o risco de negação ou descarac-
terização total do sujeito, sua "volitização", fenômeno aliás, muito próprio
de tempos pós-modemos.
Achamada pós-modemidade declara a falência de todas as versões da mo
dernidade, notadamente a liberal e a marxista. Ao fazer isso, os pensado
res que proclamam "novas ideias" para "novos tempos" desconsideram
que as diferentes concepções revelam contradições históricas ainda não
superadas. Esse tratamento homogêneo a todas as ideias modernas traz o
risco de se perder a possibilidade de afirmar concepções que evidenciam
as contradições concretas e apontam para sua superação. (...) (Gonçalves,
2001b, p. 53 e 54)
22. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE IJ7
A mudança que se observa nos fala de um novo sujeito ou de um
"neo" sujeito, no sentido de ter alterada sua forma, mas não seu conteú
do, sua aparência, mas não sua essência?
Eis aqui mais um complemento de resposta para a pergunta que fi
zemos acima. Por que permanece a ideia do homem como sujeito indivi
dual, desvinculado, a princípio ou ao final, da sociedade, dos processos
sociais? Porque também as explicações contemporâneas naturalizam essa
vivência, agora pela ideia da inexorabilidade do desenvolvimento tecno
lógico, pela valorização do presente, pela fluidez das experiências, tidas
como naturais. A complexidade crescente dos elementos não se impõe
sobre a simplificação presente na negação de explicações históricas e na
assunção da inexorabilidade como elemento explicativo.
A Psicologia Social, com suas explicações sociológicas ou psicológicas
para a relação indivíduo-sociedade, cumpriu também o papel de natura
lizar as explicações dos fenômenos presentes na relação indivíduo-socie
dade. Tanto em uma como em outra vertente, contribuiu para preservar
o indivíduo, o indivíduo da Modernidade, na medida em que não deu
conta de apontar a constituição imbricada entre cada um e o outro, en
tre cada um e o coletivo, entre o coletivo social e histórico e cada um, na
sua singularidade. E, atenta às discussões da chamada pós-modemidade,
tem-se colocado mais na direção de explicar os processos dessa vivência
individual da relação com a tecnologia e o signo, do que em explicar os
processos históricos de constituição das subjetividades e das relações so
ciais contemporâneas.
(...) Ateoria histórico-cultural, inspirada em um marxismo criativo e revo
lucionário, procurava representar a unidade dos sistemas complexos da
sociedade por meio das aparências desconexas de suas formas de expres
são. Procurava-se a essência como princípio organizador, e não como prin
cípio metafísico inalterável que atuava como causa universal; no entanto,
isso aconteceu em um momento em que o pós-estruturalismo, apoiado na
própria crítica ao estruturalismo e ao marxismo, ia contra os megassiste-
mas e as megateorias, enfatizando o valor das construções locais parciais.
Nesse contexto, na psicologia, a semiótica e o discurso hegemonizavam a
novidade, e o oonstrucionismo social aparecia como a última moda, negan
23. 138 BOCK • GONÇALVES
do, nas suas variantes mais radicais, toda definição ontológica. (González
Rey, 2005, p. 29 e 30)
Por isso, a proposição de uma Psicologia Social que aponte para a
constituição dialética e complexa de indivíduos inseridos em sociedades
por eles constituídas é fundamental para a compreensão das possibilidades
de um sujeito que é histórico. Reafirma-se, dessa maneira, a importância
de resgatar a discussão ontológica e posicionar-se em relação a ela.
Nesse sentido, é importante considerar que tais possibilidades de rea
lização do sujeito não estão prontas, não estão dadas, não estão latentes,
esperando para se desenvolver. São possibilidades ativas, atravessadas
por contradições presentes na sociedade, as quais devem ser identificadas
para que se possa escolher a direção que represente avanço.
Pressupostos da concepção sócio-histórica
A noção básica da Psicologia Sócio-Histórica é a historicidade, o que
significa ter como ponto de partida a concepção de que todos os fenôme
nos humanos são produzidos no processo histórico de constituição da
vida social. Essa vida social se constitui na materialidade das relações
entre os homens e entre os homens e a natureza, para a produção da sua
existência.
Tais pressupostos vêm do materialismo histórico e dialético, método
que afirma objetividade e subjetividade como unidade de contrários, em
movimento de transformação constante. Sujeito e objeto transformam-se,
em um processo histórico em que o sujeito atua sobre o objeto e é trans
formado nesse processo.
Tal método orienta que se busque a gênese dos fenômenos na reali
dade material contraditória, incluindo o conteúdo histórico definido por
essa realidade. O conteúdo histórico, considerando-se as relações mate
riais entre os homens e entre os homens e a natureza para a produção da
sua existência, é dado pela divisão da sociedade em classes, que acarte-
24. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 139
ta lugares e experiências distintas para os diferentes grupos sociais. Essa
clivagem social produz alienação e, no mesmo processo de produção de
alienação, produz-se ideologia. Já nos referimos adma a essa articulação
entre as experiências concretas de inserção social, possibilitadas pelo ca
pitalismo e que, seja na produção, seja no consumo, apartam os indiví
duos dos resultados materiais, ao mesmo tempo em que justificam ideo
logicamente os processos sociais. Assim, os fenômenos sociais têm caráter
ideológico.
Apontar o caráter histórico dos fenômenos sociais e humanos possi
bilita uma análise que permite a sua desnaturalização. Em termos meto
dológicos, isso leva a se trabalhar com categorias que indicam processos,
com conteúdos históricos, ideológicos, contraditórios, mediados.
Ou seja, trabalhar com a historicidade significa adotar um método que
prevê não apenasforma, mas também conteúdo. A forma aponta o caráter
processual dos fenômenos. O conteúdo aponta sua produção histórica,
considerando-se a qualidade da sociedade de que se trata. Uma socieda
de que encerra a contradição de classes produz fenômenos qualitativa
mente diferentes a depender de sua relação com os processos sociais que
apartam e produzem alienação e ideologia. Isso implica tomar sujeito e
subjetividade como constituídos na dialética subjetividade-objetividade
e procurar identificar os aspectos desse processo, aspectos que revelam a
historicidade. Por isso, a forma processual, juntamente com o conteúdo
histórico resultante das relações de classe, devem ser considerados. As
categorias da dialética, particularmente a categoria de mediação,6são re
cursos para apreender o processo.
Na mesma linha metodológica, a proposta é identificar no objeto, em
vez de conceitos, categorias. Tendo-se como referência a própria noção
de categoria, aborda-se o objeto delimitando campos de investigação nos
quais se busca compreender o movimento, o processo de constituição dos
fenômenos. Nesta perspectiva metodológica, ao se buscar a definição de
algo não se responde "o que é", mas sim "como se constituiu". Isso signi
fica privilegiar o processo, o movimento do objeto, sua historicidade.
6. Ver nos capítulos 1 e 2 desta obra a discussão de categorias e das categorias da dialética.
25. 140 BOCK • CONÇAIVES
Ao se fazer esse esforço, considera-se fundamental a ideia de que os
fenômenos da realidade são multideterminados, isto é, caracterizados por
relações que se estabelecem para criar a aparência que conhecemos. Essas
relações, no entanto, são invisíveis aos nossos olhos, pois são constituti
vas dos fenômenos em seu movimento e processo. É aqui que se supe
ra o uso de conceitos (que fotografam ou descrevem os fenômenos) para
adotar a ideia de categorias que expressam processos e permitem pensar
relações que são constitutivas dos fenômenos. As categorias inauguram
a possibilidade de se falar de elementos que caracterizam os fenômenos,
mas que só podem ser captados, como relação, pelo pensamento. As ca
tegorias são categorias de pensamento que permitem que se ultrapasse a
aparência (enganosa) dos objetos e se compreenda sua gênese e seu mo
vimento. Não se buscam causas, mas os elementos e aspectos que consti
tuem os objetos como se apresentam a nós, em seu movimento de trans
formação constante.
São categorias para pensar e compreender o psiquismo: atividade,
consciência, identidade e afetividade, que devem, então, ser considera
das como denominadoras de um processo com gênese social, participa
ção do sujeito e fundado na contradição (dadas as categorias da dialéti
ca que são tomadas como referência metodológica). Essas categorias do
psiquismo se constituem como a chave para a compreensão da subjeti
vidade. Permitem considerar a subjetividade em seu processo histórico
contraditório, na dialética subjetividade-objetividade; além disto, são ca
tegorias que permitem pensar a realidade psíquica em seu movimento
de transformação e nas relações que se estabelecem para a produção do
que chamamos subjetividade.
O movimento a que se referem, que é o movimento do psiquismo,
é um movimento contraditório. Isso coloca a necessidade, apontada aci
ma, de se considerar o conteúdo histórico ao falar da subjetividade. E,
numa sociedade contraditória, esse conteúdo envolve posições diante da
realidade; posições que se referem a interesses concretos. Nesse sentido,
ao se identificar na base desse movimento a gênese de um processo que
implica alienação, deve-se, a seguir, identificar como isso implica expe
riências subjetivas diversas e como são atravessadas pelos processos que
produzem alienação.
26. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 141
Por isso, ao se identificar a cisão entre atividade e consciência, se
está falando de alienação. Ao se falar de mesmice da identidade, fala-se
de alienação. Ao se falar de uma afetividade cristalizada, com emoções
reprimidas ou contraditórias, fala-se de alienação. Não de forma direta
e linear, mas num processo que deve ser considerado com os recursos
metodológicos da dialética, que permitem captar a complexidade. Ao se
trabalhar com a noção de mediação e com a noção de categorias, é pos
sível respeitar a complexidade que se apresenta na realidade, nos fenô
menos investigados.
Essas concepções permitem fazer a contraposição às dicotomias:
subjetividade-objetividade, sujeito-objeto, indivíduo-sociedade que mar
cam o desenvolvimento da Psicologia e da Psicologia Social. Visões dico
tômicas levam à naturalização dos fenômenos, na medida em que supõem
que sujeito e objeto são independentes; que o objeto tem suas próprias
leis, estabelecendo uma relação de exterioridade entre sujèito e objeto.
A separação sujeito-objeto rompe a ideia de relação, de movimento e de
contradição, para pensar cada um como dotado de movimento próprio
ou de capacidade própria para se modificar ou se desenvolver. A ideia
do Barão de Munchhausen, trabalhada por Bock (1999), traz exatamente
este aspecto para o debate da Psicologia: a ideia de que o homem é dota
do de forças próprias que lhe permitem "puxar-se pelos próprios cabe
los" e com isso "erguer-se do pântano". Sujeito e objeto ficam então pen
sados como independentes e seu desenvolvimento fica absolutizado, ou
seja, naturalizado.
O trabalho com a historicidade permite tomar sujeito e subjetividade
como constituídos historicamente, a partir da ação do sujeito sobre o obje
to. É a partir desses pressupostos que a Psicologia Sócio-Histórica define,
como objeto, a dialética subjetividade-objetividade e trabalha com as ca
tegorias do psiquismo como chave para a compreensão desse processo.
Subjetividade e objetividade se constituem em um mesmo proces
so, referindo-se a âmbitos diferentes da realidade: um âmbito subjetivo/
do sujeito e um âmbito objetivo/das coisas. O âmbito do sujeito inclui
processos e características específicas que só podem ser compreendidas
na relação com a objetividade. E o âmbito objetivo incorpora a subjetivi-
27. 142 BOCK • GONÇALVES
dade, na medida em que o que resulta como objetivo é o objeto transfor
mado pelo sujeito.
Dessa forma, tais concepções teóricas e metodológicas impõem a
noção de subjetividade como um processo que congrega as experiências
dos sujeitos individuais e sociais, sendo, ao mesmo tempo, consequência
e condição dessas experiências.
A referência na historicidade introduz a esse processo a identificação
de uma sua qualidade, que leva à compreensão de que a subjetividade
não está dada, nem para cada indivíduo, nem como processos ou estrutu
ras universais da humanidade, mas configura-se como algo que se cons
titui nas relações sociais e históricas; é processo que decorre de situações
concretas que incluem, necessariamente, a atividade, objetiva e subjeti
va, do indivíduo. O sujeito é ativo, atividade decorrente de sua ação, de
seu pensamento, de sua capacidade de registrar cognitiva e afetivamente
todas as suas experiências; da sua capacidade de vivendar. Suas ações e
experiências individuais subjetivas só são possíveis a partir das relações
sociais e do espaço da intersubjetividade, pois falamos de um sujeito que
é social e histórico. A subjetividade, portanto, não é natural.
Dimensão subjetiva da realidade
A partir da dialética subjetividade-objetividade pode-se falar em
dimensão subjetiva da realidade, na medida em que se entende que a
subjetividade é individual, mas constituída socialmente, a partir de um
processo objetivo, com conteúdo histórico. Por outro lado, a realidade so
cial é construída historicamente, em um processo que se dá entre o plano
subjetivo e o objetivo. A base material agrega subjetividade, a partir da
ação do sujeito sobre ela, aí está sua historicidade. Por isso, não é possível
falar-se da realidade sem considerar o sujeito que a constitui e ao mesmo
tempo é constituído por ela.
Acrescentoapenas queesta relação processual temuma base material, como
diz Searle, mas esta base também tem caráter histórico na medida que sua
28. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 143
transformação (através do trabalho) agregará nela própria um quanto de
subjetividade. A partir desse momento, não importa mais o objeto como
"coisa-em-si", mas sim como "coisa-para-si". Tanto o fato objetivo, como
o fato subjetivo farão parte de um mesmo processo histórico e serão inse
paráveis. Não importa o tipo de leitura que se faça desse processo — via
objetividade ou subjetividade — estaremos sempre trabalhando com essa
dinâmica. (Furtado, 2002, p. 96)
A relação entre o sujeito individual e os fenômenos sociais é de cons
tituição mútua, os elementos da relação não são exteriores um ao outro, e
a determinação de um sobre o outro não é direta, imediata.
A dimensão subjetiva da realidade estabelece a síntese entre as con
dições materiais e a interpretação subjetiva dada a elas. Ou seja, repre
senta a expressão de experiências subjetivas em um determinado campo
material, em um processo em que tanto o polo subjetivo como o objetivo
transformam-se.
Assim, a realidade é a expressão do campo de valores que a interpretam
(suas bases subjetivas) e ao mesmo tempo o desenvolvimento concreto das
forças produtivas (suas bases objetivas). Há uma dinâmica histórica que co
loca os planos subjetivo eobjetivo em constante interação, sem que necessa
riamente se possa indicar claramente a fonte de determinação da realidade.
Isso nos leva a afirmar que a realidade é um fenômeno multideterminado,
o que inclui uma dinâmica objetiva (sua base econômica concreta) e tam
bém uma subjetiva (o campo de valores). O indivíduo é o sujeito singular
dessa dinâmica e, assimcomo recebe prontos abase material (dada pela sua
inserção de classe) e os valores (o plano da socialização), também é agente
ativo da transformação social, independente de ter ou não consciência do
fato. (Furtado, 2001, p. 91)
Entende-se dimensão subjetiva da realidade como construções da sub
jetividade que também são constitutivas dos fenômenos. São construções
individuais e coletivas, que se imbricam, em um processo de constituição
mútua e que resultam em determinados produtos que podem ser reco
nhecidos como subjetivos.
29. 144 BOCK • GONÇALVES
Os produtos subjetivos têm o mesmo caráter social, processual e
dialético de constituição da subjetividade. É preciso reconhecer a exis
tência de produtos subjetivos "sociais" e abordá-los da mesma forma. A
subjetividade não se esgota em seus elementos individuais: o indivíduo
age sobre o mundo, relaciona-se, realiza, objetivamente, o que elaborou
subjetivamente.
A relação entre a dimensão subjetiva e o contexto histórico deve ser
considerada a partir do eixo básico de análise que é a historicidade, en
tendida como processo contraditório: envolve indivíduos que pertencem
a classes sociais. A implicação é considerar o processo de alienação pro
duzido socialmente que se apresenta, atravessado por mediações, na di
mensão subjetiva da realidade.
Dimensão subjetiva de fenômenos sociais
A noção de dimensão subjetiva dos fenômenos sociais não se dife
rencia da dimensão subjetiva da realidade, mas se inscreve na discussão
da Psicologia Social, tendo por base os mesmos pressupostos da dialéti
ca subjetividade-objetividade, para permitir a delimitação do objeto da
Psicologia Social para a perspectiva sócio-histórica.
Na análise da relação indivíduo-sociedade, os mesmos pressupos
tos são considerados. É necessário superar a dicotomia e compreender
os fenômenos sociais a partir da constituição histórica e social dos indi
víduos e de sua subjetividade. Compreender o indivíduo é compreender,
ao mesmo tempo, a relação indivíduo-sociedade (superar a dicotomia).
Não há uma sociedade externa e independente dos indivíduos; não há
indivíduos a priori ou independentes da sociedade.
Essa compreensão está posta na delimitação do objeto da Psicologia
Social como sendo a dimensão subjetiva dosfenômenos sociais.
Isso implica buscar nos fenômenos sociais a presença de um huma
no que é sujeito, com uma subjetividade processual, complexa e históri
ca, afirmando a unidade dialética entre indivíduo e sociedade. E consi
30. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 14$
derar que aquilo que identificamos como fenômeno social foi produzido
na relação dinâmica entre suas múltiplas determinações, em última ins
tância suas bases objetivas e suas bases subjetivas, como dito acima. As
sim, identificar o processo de constituição de um fenômeno social come
ça por identificar sua produção social a partir da materialidade de suas
manifestações — identificando de quais lugares concretos surge, qual
sua posição na organização social da produção, na relação com diferen
tes grupos sociais definidos por essa organização material. E continua
pela identificação dos vários níveis em que aparece e por meio dos quais
vai tomando corpo — instituições, valores, mais ou menos estruturados
e identificados. A análise deve ser das mediações que constituem o fenô
meno social em questão.
Tal análise permite desvendar um processo do qual resultam pro
dutos, objetivos e subjetivos. A dimensão subjetiva pode ser reconhecida
em produções diversas, e os recortes podem ser variados: representações
sociais, identidade social, ideologia, valores, rituais, hábitos, costumes,
leis e regras. São produtos coletivos, nos quais se percebe a participação
de sujeitos e a presença de subjetividades, ou seja, uma dimensão subjeti
va da realidade.
Dessa maneira, incorporam-se as noções básicas da Psicologia Só
cio-Histórica à compreensão da relação indivíduo-sociedade, procurando
superar os limites ontológicos e epistemológicos, os quais estabeleceram
as dicotomias que resultaram em perspectivas psicológicas e sociológi
cas nessa área. Ambas as perspectivas terminam por naturalizar os pro
cessos sociais. A proposta aqui é incluir a historicidade na análise dessa
relação. Em termos ontológicos, recupera-se o lugar do indivíduo como
sujeito, mas sujeito histórico. Em termos epistemológicos, aponta-se a re
lação dialética entre subjetividade e objetividade, estendendo tal maneira
de conceber a relação, por ser uma concepção metodológica, para a com
preensão da relação indivíduo-sociedade.
Essa preocupação é a mesma que expõe González Rey (2003, 2004)
quando apresenta a noção de subjetividade social. Diz ele da necessidade
de superar a naturalização e de perceber a imbricação entre indivíduo e
sociedade na produção da subjetividade.
31. 146 BCK K • GONÇALVES
(...) Na minha opinião, trata-se de compreender que a subjetividade não é
algo que aparece somente no nível individual, mas que a própria cultura
dentro da qual se constitui o sujeito individual, e da qual é também cons
tituinte, representa um sistema subjetivo, gerador de subjetividade. Temos
de substituir a visão mecanicista, de ver a cultura, sujeito e subjetividade
como fenômenos diferentes que se relacionam, para passar a vê-los como
fenômenos que, sem serem idênticos, se integram como momentos qualita
tivos da ecologia humana em uma relação de recursividade. (...) Oconceito
de subjetividade social nos permite compreender a dimensão subjetiva dos
diferentes processos e instituições sociais, assim como o da rede complexa
do social nos diferentes contextos em que ela se organiza através da histó
ria. (...) (González Rey, 2003, p. 78)
Partindo dessa visão de articulação dialética entre indivíduo e socie
dade, o autor aponta a necessidade de delimitar a subjetividade social,
como forma de avançar na compreensão da realidade social. Sua produ
ção teórica sobre a subjetividade tem como objetivo central identificar os
processos que, a seu ver, explicariam, definitivamente, as transformações
presentes no processo histórico. Ele identifica nas visões que desconside
ram essa imbricação entre subjetividade individual e subjetividade so
cial, na verdade, a negação das potencialidades dos sujeitos, o que come
ça pela naturalização e termina por impor "verdades" que representam,
de forma camuflada, os interesses de quem está no poder. Sua proposta
é evidenciar, por meio da identificação das produções subjetivas, as po
tencialidades postas na realidade pela presença de sujeitos.
A subjetividade afasta o dever ser de sua relação com o externo, com o
que está fora, que foi o princípio universal usado para legitimar a moral, o
direito, a política e todas as formas institucionalizadas de consciência so
cial. Essas formas, em cada momento histórico, se apoiaram em sistemas
de sentido derivados da condição objetiva dos grupos de poder. Com isso,
as normas desenvolvidas a partir dessas instituições acabaram por ser sis
temas de poder e de exclusão que, paradoxalmente e, apesar de sua forte
carga subjetiva, derivada de sua condição ideológica, se naturalizaram e se
converteram em padrões objetivos, reguladores do comportamento social.
32. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 147
E, finalmente, se transformaram em sistemas de controle social que negam
as necessidades de setores importantíssimos da população. (...) No entan
to, a produção de sentido de uma população continua por baixo das apa
rências comportamentais que ela é obrigada a adotar devido a controles e
pressões externas produzidas pelos mecanismos de poder. (González Rey,
2004, p. 54 e 55)
A partir de formulações como essa, González Rey aponta vários
pontos de articulação entre a subjetividade individual e a subjetividade
social e os vários aspectos que podem e devem ser considerados para se
garantir uma apreensão da subjetividade que respeite suas característi
cas básicas.
Na mesma direção, apresentamos a noção de dimensão subjetiva de
fenômenos sociais como uma maneira de situar o objeto da Psicologia So
cial que respeita a compreensão sócio-histórica (ou histórico-cultural para
González Rey) de sujeito e subjetividade.
Essa conceituação parte da compreensão de que a subjetividade é
individual, mas constituída socialmente. Os elementos presentes na sub
jetividade decorrem de capacidades individuais, relativas às possibili
dades de registro das experiências vividas. Mas se constituem e se confi
guram a partir de um processo objetivo, social, com conteúdo histórico.
Por outro lado, a subjetividade não se esgota em seus elementos indivi
duais, porque o indivíduo age sobre o mundo, relaciona-se com outros
indivíduos, realiza, objetivamente, o que elaborou subjetivamente. Onde
começa e onde termina, nesse caso, o que é subjetivo e o que é objetivo?
E o que é individual e o que é social? Por isso falamos em dialética subje
tividade-objetividade.
De qualquer modo, dissemos que há uma especificidade no objeto
da Psicologia Social, que procuramos apontar com a formulação de que
essa área deve tratar da dimensão subjetiva dos fenômenos sociais. Com
isso, estamos nos referindo às construções da subjetividade que também
são constitutivas desses fenômenos.
Entendendo que o objeto da Psicologia Social é a dimensão subjeti
va dos fenômenos sociais, podemos apontar alguns exemplos do que en-
33. 14fl HCX K • GONÇALVES
tendemos por fenômenos sociais. E aí já está posta a compreensão sócio-
-histórica, ou seja, a identificação dos fenômenos sociais parte da noção
de que há um processo material e contraditório que configura aspectos
da realidade como fenômenos sociais.
Uma maneira de configurar os fenômenos sociais na sua articulação
com as características do capitalismo é reconhecer a existência da questão
social, o que só se torna possível, ou de certa forma se impõe como uma
necessidade, no capitalismo. Nas palavras de Castel (2000, p. 238):
(...) uma aporia fundamental, uma dificuldade central, a partir da qual uma
sociedade se interroga sobre sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fra
tura. É, em resumo, um desafio que questiona a capacidade de uma socie
dade de existir como um todo, como um conjunto ligado por relações de
interdependência.
A identificação da questão social traria a possibilidade de "(...) saber
quem estabelece a coesão e em que condições ela se dá numa determinada
sociedade" (Wanderley, 2000, p. 56), análise desenvolvida, por exemplo,
por Wanderley (2000), que aponta suas especificidades na América Lati
na, e por Castel (2000), que apresenta as transformações da questão social ao
longo do capitalismo. Compreendida de maneira indissociada da contra
dição fundamental da sociedade capitalista, a contradição capital-trabalho,
a chamada questão social, pode nos remeter à identificação de processos de
sustentação, também contraditória, das relações sociais, no interior das
quais se reconhece a dialética subjetividade-objetividade.
Tendo isso por base, é possível dizer que o processo contraditório
do capitalismo atual implica, na contemporaneidade, três características
básicas para a questão social: 1) a desestabilização dos estáveis; 2) a ins
talação da precariedade e o desenvolvimento da cultura do aleatório; 3) o
surgimento dos sobrantes (Castel, 2000), com a produção de indivíduos
desfiliados. A partir disso, a questão social configura-se como um conjunto
de fenômenos sociais, com características que condicionam determinadas
experiências para os sujeitos.
34. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REAt IDADE
Há uma concepção de indivíduo atrelada a essas situações, de deses-
tabilização, precariedade, desfiliação. Resumidamente o indivíduo "des
cartável": não está preso a nada, tudo que vive é temporário, não faz falta
à sociedade. Essa identificação nos leva a apontar que há uma dimensão
subjetiva na questão social.
Como outro elemento da questão social contemporânea, pode-se
identificar a contraposição: direitos x mercado. Quando se fortalece o se
gundo em detrimento do primeiro, o que se tem é a realização de uma
concepção de indivíduo que vale pelo que tem e não pelo que é. Há uma
dimensão subjetiva nessa relação produzida socialmente: indivíduos não
se reconhecem como sujeitos de direitos.
Outro elemento refere-se às formas de inserção e participação social.
Indivíduos que recebem benefícios, sem nenhuma possibilidade de de
cidir sobre isso, são negados também como sujeitos (ver Paugam, 1999).
Isso será vivenciado e produzirá efeitos de subjetivação que terão seus
desdobramentos. Há aí uma dimensão subjetiva.
Alguns outros exemplos de análise de fenômenos sociais podem aju
dar a avançar na compreensão que aqui se defende.
A desigualdade social (talvez nossa mais importante questão social),
que tem caracterizado nossa sociedade, tem sido estudada em várias de
suas dimensões: econômica, sociológica, jurídica, antropológica e outras.
A dimensão subjetiva tem sido relegada, e a Psicologia Social tem contri
buído pouco para que essa dimensão tenha visibilidade.
A dimensão subjetiva da desigualdade social está posta na presença
dos sujeitos, presença essa que caracteriza e constitui o fenômeno. Não
se pode estudar a desigualdade social como se ela existisse apenas para
além e fora dos sujeitos que se relacionam e constroem a desigualdade.
Evidentemente, a desigualdade é produzida pela divisão da sociedade
em classes, pela divisão desigual da riqueza produzida, pela determina
ção de lugares diferentes a serem ocupados por diferentes grupos sociais
na organização que define as formas de produção e distribuição de ri
quezas. Nesse sentido, podem-se apontar aspectos da realidade, como a
distribuição desigual da riqueza, como a base material da desigualdade.
35. 150
BOCK • GONÇALVES
Mas essa distribuição acontece e se reproduz cotidianamente pela atua
ção de sujeitos, os quais, além de desenvolver uma atividade delimitada
pelas relações concretas e objetivas, também desenvolvem atividade sub
jetiva. Produzem ideias e valores que representam a realidade vivida e
que compõem essa mesma realidade, porque são sujeitos que produzem
subjetividade, na dialética já apontada.
Os processos sociais que implicam produção de alienação e ideolo
gia estão presentes aqui e também se tornam mediações constitutivas da
dimensão subjetiva desse fenômeno. Ou seja, a produção subjetiva está
articulada às condições objetivas em que se dá e nas quais opera e resul
ta em produtos, tais como a ideologia, reveladores desse processo. Tais
processos e condições objetivas estão constituídos com base nas contra
dições, por isso a dimensão subjetiva do fenômeno social será também
contraditória.
Compreender a relação indivíduo-sociedade no mundo desigual tor
na indispensável que se compreendam os indivíduos que se fazem pre
sentes e ativos na produção da desigualdade e que se compreendam os
produtos coletivos que esses “sócios" criam e que vão caracterizando a
realidade social que adjetivamos como desigual. A vivência, quase nun
ca explícita, mas tomada como natural, da subalternidade é exemplo dis
so. Indivíduos que estão em lugares desiguais se põem como "acima" ou
"abaixo" uns dos outros sem que isso esteja posto em questão.
A Psicologia Social deve, assim, ao estudar o fenômeno da desigual
dade social, por exemplo, buscar a presença do sujeito, afirmando a uni
dade dialética entre indivíduo e sociedade.
Conceitos como humilhação social (Gonçalves Filho, 2007,2004,1998)
ou sofrimento ético-político (Sawaia, 1998) são importantes sistematiza
ções que caracterizam a dimensão subjetiva das situações de dominação
e desigualdade sociaL Há sujeitos que sentem e com suas formas de sen
tir constituem a realidade social da desigualdade. Há sentidos subjetivos
constituídos; há significados partilhados e todos eles são também aspec
tos do fenômeno. Não se quer aqui pensar esses aspectos como mera con
sequência de situações sociais de desigualdade, pois eles não o são. São,
ao contrário, aspectos que compõem o fenômeno da desigualdade, que
36. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 151
só se apresenta como tal porque sujeitos participam de sua constituição,
com seus sentimentos, ações, formas de pensar e de sentir.
Sabe-se hoje que os sujeitos, que ocupam diferentes lugares nas re
lações sociais desiguais, têm participações distintas na esfera social. Há
sujeitos doadores e há sujeitos receptores; há os que têm propriedades e
os que não as tem; há os que se pensam desiguais porque tomam o outro
como o padrão ou modelo. Formas diferentes de sentir e de pensar cons
tituindo relações de submissão. São formas reveladoras, ao mesmo tem
po, de possibilidades contraditórias, considerando a tensão permanente
entre a alienação produzida nos esquemas sociais que isolam e apartam
os indivíduos, naturalizando fenômenos históricos, por um lado, e, por
outro, a presença de indivíduos vivos que geram sentidos subjetivos. É a
dimensão subjetiva do fenômeno social que precisa ter visibilidade para
que se compreenda de forma mais complexa e completa o fenômeno so
cial que se estuda, em seu processo contraditório de constituição.
A Psicologia Social deve ultrapassar sua tradição de nomear objetos
ou reproduzir, no seu campo, leituras construídas em outras áreas do sa
ber que, apesar de importantes, descaracterizam a especificidade da Psi
cologia, para contribuir com explicações que dão visibilidade à presença
do sujeito na construção dos fenômenos coletivos.
A configuração da violência como fenômeno social deve também con
siderar os mesmos pressupostos. É preciso reconhecer a produção do fenô
meno a partir da materialidade e da historicidade das relações sociais.
A dimensão subjetiva nesse fenômeno social também deve ser vista da
perspectiva da dialética subjetividade-objetividade e indivíduo-socieda
de. As visões naturalizantes culpabilizam os indivíduos pelos problemas
sociais ou apontam certo esquema social abstrato como responsável por
"desvios" dos indivíduos.7A visão sócio-histórica aponta a complexida
de do fenômeno, que inclui uma dimensão subjetiva na qual se imbricam
aspectos subjetivos individuais que constituem os fenômenos sociais; as
pectos objetivos dos quais se apropriam os indivíduos e que constituem
7. Tais análises são bom exemplo da dicotomia indivíduo-sociedade presente na Psicologia So
cial, à qual já nos referimos anteriormente.
37. 152 BOCK • GONÇALVES
sua subjetividade; e aspectos subjetivos que já estão incorporados à ob
jetividade e dela fazem parte.
Por exemplo, a dimensão cultural da violência, ou seja, a violência
como valor que perpetua as relações da sociabilidade cotidiana de cer
tos grupos e de certas comunidades, é um produto subjetivo social; é a
dimensão subjetiva presente no fenômeno social da violência. Seria um
desafio para a Psicologia encontrar mecanismos de reversão de um con
texto social em que há socialização para a violência.8
Os estudos de Coimbra (2001) a respeito da produção ideológica
realizada pela mídia sobre as "classes perigosas" mostram-nos, com cla
reza, que as noções de violência são produzidas socialmente. O domínio
da elite sobre a mídia facilita a expansão de seus conceitos para toda a
sociedade e esse processo vai produzindo "certezas" e critérios de julga
mento sobre quem é violento ou o que é violência em nossa sociedade,
atingindo, como mostra Coimbra, em especial, a camada pobre da socie
dade que passa a ser vista como "classe perigosa".
Pensar (...) como certas subjetividades tão presentes no cotidiano das gran
des cidades brasileiras — aplausos e apoios aos extermínios e chacinas,
aos linchamentos, à pena de morte e às mais diferentes violações de direi
tos humanos — são construções competentes e eficazes advindas de dife
rentes equipamentos sociais, é um dos objetivos deste trabalho. (Coimbra,
2001, p. 18)
Outro aspecto importante do tema da violência é que, quando não nos
detemos na compreensão da dimensão subjetiva dos fenômenos, deixamos
de diferenciar situações e sujeitos que, em diferentes cenários, produzem
ações com intenções diversas, mas que nossa superficialidade e ideologia
reúnem sob o mesmo título. Assim, pessoas que lutam pela sobrevivência
combatendo adversidades se misturam, nos conceitos de violência, com
8. Ver no relatório do I Seminário de Psicologia e Políticas Públicas, do Conselho Federal de Psi
cologia (2001), a fala de Luís Flávio Sapori, com uma análise sobre segurança pública a partir desse
viés das relações de sociabilidade.
38. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA KfALIDADE 153
representantes do Estado que abusam da autoridade e da força em nome
de uma "ordem" suoosta e imposta a todos. A violência vista sem consi
deração aos determinantes sociais, econômicos, antropológicos e psicoló
gicos é pura ideologia. À Psicologia Social cabe contribuir para a análise
completa e complexa do fenômeno, dando visibilidade a aspectos que são
de natureza subjetiva, no âmbito individual e/ou coletivo.
O desafio nestas construções teóricas é exatamente escapar do vício
da dicotomia. É preciso pensar sujeito e sociedade (fenômenos sociais)
se constituindo em um mesmo processo, no qual existem estes dois âm
bitos, que são fundamentais para a compreensão da totalidade do real.
Outro desafio é conhecer o fenômeno em seu processo histórico de cons
tituição. A realidade não está dada; ela está em movimento e deve ser
conhecida na sua dialética. Os sujeitos e a sociedade são construídos em
um único processo.
Por que defender visões históricas?
Se não há conhecimento neutro, há que se fazer escolhas.
A defesa que se faz aqui de visões que não naturalizem os fenôme
nos sociais tem um de seus argumentos mais fortes no projeto de uma
Psicologia que se ponha efetivamente comprometida com as urgências
de nossas sociedades de Terceiro Mundo. Nada está dado; nada é imutá
vel; tudo pode e deve ser modificado pelos humanos que partilham um
tempo histórico. A Psicologia pode e deve reforçar ideias que permitam
aos sujeitos se pensarem como ativos, sociais e históricos, responsáveis
pelo seu tempo e pelas condições de vida.
As perspectivas históricas permitem acreditar que não há um único
modo verdadeiro de se estar no mundo. Há muitas possibilidades, pois
o humano está em permanente construção.
Permitem-nos ainda nos pensarmos como responsáveis pelo mundo
que temos; construímos ou reconstruímos o mundo todos os dias com
nossas ações, nossas ideias, nossos afetos. A forma como pensamos e
39. 154
BOCK • GONÇALVES
agimos constitui o mundo da forma como se encontra. Somos responsá
veis pelo mundo que temos e podemos querer que seja diferente.
É neste campo que se coloca a ideia de projeto. Para que se possa
estar no mundo de modo responsável é preciso escolher que projeto de
sociedade e de humano desejamos incentivar com nossas explicações e
com nossos fazeres profissionais.
Anoldo Rodrigues pensou a ciência como algo à parte da política, da
ação cidadã de cada um. Aqui se pensa a ciência como sempre comprome
tida com algum projeto que circula na sociedade. A Associação Brasileira
de Psicologia Social nasce guiada por esta outra perspectiva.
Infelizmente não produzimos até hoje conhecimento científico radicalizado
na reflexãosobre nossa própria realidade social e, emdecorrência, continua
mos a importar teorias psicológicas nem sempre aplicáveis. Adependência
cultural temse refletido até mesmo nos temas mais frequentes da investiga
ção da Psicologia Social, geralmente escolhidos sem qualquer preocupação
com aspectos de relevância ou aplicabilidade ao contexto brasileiro. Assim
(...) não temos utilizado esta ciência para responder às questões sociais es
pecíficas do momento histórico que vivemos. (Anais do I Encontro Nacio
nal de Psicologia Social, apud Lane, 1981, p. 84)
E como se pensa o sujeito como ativo, social e histórico, se acredi
ta na sua possibilidade de escolha, ou seja, de adesão a um dos projetos
em circulação e disputa nos espaços sociais. A ciência não é ingênua e
deve, pois, explicitar seus pressupostos e suas concepções de homem e
de mundo para que se possa dialogar com seus saberes tanto do ponto
de vista da lógica de suas ideias, quanto do projeto social que incentiva
e ajuda a desenvolver.
Finalizamos com Lane, que reconhecemos como importante referên
cia neste caminho. Ao afirmar que toda a psicologia é social, defendendo
que se assuma a natureza histórico-social do ser humano, conclui:
"Porém, agora, a Psicologia Social poderá responder à questão de
como o homem é sujeito da História e transformador de sua própria
vida e da sua sociedade, assim como qualquer outra área da Psicologia".
(Lane, 1984, p. 19)
40. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 155
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