SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 40
Baixar para ler offline
Ado . ^ Q S - t t
4
A dimensão subjetiva dos
fenômenos sociais
Maria da Graça Marchina Gonçalves
Ana Mercês Bahia Bock
A dificuldade de definição da psicologia social reside na impreci­
são dos seus objetivos. Sendo uma disciplina relativamente recen­
te, não há ainda acordo, no campo dos seus cultores, no sentido
de delimitar-lhe os objetivos nítidos e a extensão de suas apli­
cações. Enquanto que, para uns, a psicologia social se aproxima
da psicologia (McDougall), para outros, o seu objeto de estudo
se confunde com o da sociologia (Ellwood, Ross).
O parágrafo acima abre o primeiro capítulo do livro Introdução à Psi­
cologia Social, de Arthur Ramos, publicado em 1936 (2003, p. 27) e consi­
derado como a segunda publicação brasileira na área. A dúvida sobre a
natureza da Psicologia Social é tomada como questão importante na pu­
blicação que é resultado, como afirma o próprio autor, de suas aulas do
curso de Psicologia Social na Universidade do Distrito Federal, em 1935.
Em seu prefácio, Ramos afirma que a "(...) Psicologia Social está assumin­
do uma importância cada vez maior, embora sem nitidez definitiva nos
seus métodos e nos seus objetivos". (Ramos, 2003, p. 23)
A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 117
As várias tendências destacadas naquele momento demonstravam
a preocupação em definir a Psicologia Social como uma área da Psicolo­
gia ou da Sociologia. Interessante ainda registrar que Ramos afirma, para
organizar seu livro, que a Psicologia Social estuda três ordens gerais de
fenômenos:
(...) Em primeiro lugar, a psicologia social estuda as bases psicológicas do
comportamento social epor aí se aproxima da psicologia do indivíduo. Em
seguida, estuda as inter-relações psicológicas dos indivíduos na vida social.
Toma-se então uma interpsicologia, no velho sentido de Tarde. Por fim, a
psicologia social tem de considerar a influência total dos grupos sobre a
personalidade. Ela será então uma sociologia psicológica e uma psicologia
cultural. (Ramos, 2003, p. 36)
Talvez essas citações já sejam suficientes para falarmos da dicotomia
Lndivíduo/sociedade presente na Psicologia Social, a qual tomaremos
como eixo de nossas reflexões. Mas ainda cabe citar alguns trechos de Ra­
mos (2003) que expõem claramente essa questão, tomada aqui como um
dos problemas centrais da indefinição da Psicologia Social.
No capítulo 16 de seu livro, capítulo intitulado O indivíduo e o social,
Ramos nos diz:
O homem isolado é um mito. A sua personalidade só pode ser compreen­
dida dentro do jogo complexo das influências ambientais — físicas, sociais
e culturais. Um dos problemas da psicologia social é justamente esse de in­
vestigar a ação total do meio sobre o indivíduo... (Ramos, 2003, p. 237)
E continua:
... o grupo social influencia o indivíduo, moldando-o aos seus padrões de
atitudes, opiniões ejulgamentos... A"pessoa" é oindivíduo dentrodos seus
padrões sociais. O indivíduo vive na sociedade como membro de grupo,
como "pessoa", como "socius". A própria consciência da sua individuali­
dade, ele aadquire como membro do grupo social, visto que é determinada
pelas relações entre o "eu" e os "outros"... (Ramos, 2003, p. 238)
118 BOCK • GONÇALVES
Avançando até 1981, vamos encontrar, em obra de Aroldo Rodrigues,
a Psicologia Social definida como o estudo das "manifestações comporta-
mentais suscitadas pela interação de uma pessoa com outras pessoas, ou
pela mera expectativa de tal interação" (Rodrigues, 1971, p. 3). E seguin­
do no tempo, o próprio Rodrigues et al., em 2000, quando da 18aedição
revisada de seu livro Psicologia Social, afirmam de início:
Psicologia Social é o estudo científico da influência recíproca entre as pes­
soas (interação social) e do processo cognitivo gerado por esta interação
(pensamento social)... Um aperto de mão, uma reprimenda, umelogio, um
sorriso, um simples olhar de uma pessoa em direção a outra suscitam nes­
ta última uma resposta que caracterizamos como social. Por sua vez, a res­
posta emitida servirá de estímulo à pessoa que a provocou, gerando por
seu turno um outro comportamento desta última, estabelecendo-se assim
o processo de interação social. (Rodrigues, et al., 2000, p. 21)
Em 1981, Silvia Lane publica O que é a Psicologia Social e questiona
a definição da área como sendo o estudo do comportamento dos indiví­
duos no que ele é influenciado socialmente. Lane afirma ser impossível
encontrarmos comportamentos que não sejam sociais e conclui:
... a Psicologia Social estuda a relação essencial entre o indivíduo e a socie­
dade, esta entendida historicamente, desde como seus membros se organi­
zam para garantir sua sobrevivência até seus costumes, valores e institui­
çõesnecessáriospara acontinuidadedasociedade... Eagrandepreocupação
atual da Psicologia Social é conhecer como ohomem se insere neste proces­
so histórico, não apenas em como ele é determinado, mas principalmente,
como ele se toma agente da história, ou seja, como ele pode transformar a
sociedade em que vive. (Lane, 1981, p. 10)
O pensamento de Lane avança e, em 1984, na publicação histórica Psi­
cologia Social — o homem em movimento (Lane e Codo [orgs.]), Lane afirma:
Toda a psicologia é social.
Esta afirmação não significa reduzir as áreas específicas da Psicologia à Psi­
cologia Social, mas sim cada uma assumir dentro da sua especificidade a
natureza histórico-social do ser humano...
A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 119
Também com esta afirmação não negamos a especificidade da Psicologia
Social — ela continua tendo por objetivo conhecer o Indivíduo no conjun­
to de suas relações sociais, tanto naquilo que lhe é específico como naquilo
em que ele é manifestação grupai e social... (Lane, 1984, p. 19)
Este percurso que fizemos pretende destacar a dicotomia presente
na Psicologia Social e as tentativas de superação dela. Apresentaremos a
Psicologia Social de abordagem sócio-histórica como uma das mais bem-
-sucedidas nessa empreitada, porque redefine o objeto da Psicologia So­
cial e o recoloca em outras bases epistemológicas, seguindo a trilha de
Lane. A divisão (dicotomia) entre o indivíduo e a sociedade, a objetivi­
dade e a subjetividade, o mundo psicológico e o mundo social começa a
ser superada trazendo uma nova concepção de ser humano e uma nova
visão sobre sua relação com a sociedade.
Uma preocupação histórica
É preciso que se afirme que há um consenso em todas essas teori­
zações sobre a Psicologia Social, aqui contrapostas: o de compreender a
relação que o indivíduo mantém com a sociedade. Desde Wundt esta­
vam postas questões que se colocavam para além do indivíduo. Ele re­
conhecia diferenças entre indivíduos de diferentes culturas, reconhecia
os fenômenos sociais e coletivos como relativos ao campo de interesse da
Psicologia e considerava que o estudo da consciência por meio da intros-
pecção não esgotava a sua complexidade. Contudo, estava em busca de
conhecer os processos universais de funcionamento da consciência hu­
mana. Enfatizou métodos que alcançassem essa compreensão e a cons­
trução da sua Psicologia Social terminou pouco difundida, de modo que
não se reconhece em sua obra o desenvolvimento de estudos sobre a re­
lação indivíduo-sociedade. O próprio Arthur Ramos, aqui citado, colo­
cou questões dessa natureza quando falou de uma psicologia da cultura.
A questão do negro na sociedade brasileira e a formação de uma nação
Brasil foram eixos importantes de sua produção. Ramos propunha estu­
120 BOCK • GONÇALVES
dar e compreender o que havia de primitivo em nossas heranças cultu­
rais e que seriam empecilhos para o desenvolvimento da nação. Apesar
dessa visão, hoje considerada equivocada, na medida em que associava
a questão racial ao que havia de primitivo e atrasado em nossa socieda­
de, Ramos enfatizou o estudo do comportamento humano tendo sempre
em vista a sua inserção no ambiente social.
Que relação mantém o indivíduo com a sociedade? O que somos
tem alguma relação com a sociedade em que nos inserimos? Como se dá
essa relação?
Se tomarmos como referência as duas "pontas teóricas" que apresen­
tamos — Ramos e Lane —, podemos verificar que as perspectivas para a
resposta são diversas: Ramos pensava o homem como influenciado pelo
meio e considerava assim as influências do meio sobre a personalidade.
Rodrigues coloca-se neste campo afirmando a Psicologia Social como es­
tudo da interação e do pensamento social decorrente da interação. Lane,
por outro lado, busca superar essas visões, desafiando a Psicologia a pen­
sar o humano como transformador, como sujeito ativo, protagonista de
sua história e de sua sociedade. A relação indivíduo — sociedade estava
lá, posta nessas abordagens. Está, entretanto, posta a partir de diferentes
concepções metodológicas de como se dá a relação, as quais compreen­
dem homem e sociedade de maneiras diversas.
A compreensão desde a raiz da proposição de Silvia Lane, que inau­
gura no Brasil a concepção sócio-histórica, requer o esclarecimento des­
sas diferenças.
A dicotomia como divisor de águas
O pensamento moderno científico afirmou-se desde o início como
objetivo e neutro. Isso distinguia a ciência do senso comum. Apostou-se
então no método como forma de garantir a neutralidade e a objetivida­
de, já que o cientista também era dotado de uma subjetividade. Sujeitos
pesquisando sujeitos poderiam ser objetivos se se mantivessem rigoro­
samente presos a um método que garantisse a objetividade e afastasse as
A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 121
possibilidades de contaminação subjetiva, ou seja, de que o pesquisador
se misturasse com seu objeto de estudo. Estava posta a dicotomia entre
sujeito e objeto: "Produzir conhecimento científico era manter-se, como
sujeito, externo ao objeto a ser investigado, fosse qual fosse esse objeto".
(Gonçalves e Bock, 2003, p. 42)
A dicotomia presente nesta maneira de conceber a relação sujeito-ob­
jeto se estenderá para as formas de conceber a relação sujeito e sociedade;
natural e histórico; mundo interno e mundo externo. Não só se estenderá
como será a base epistemológica da produção em Psicologia.
Na Psicologia Social essa dicotomia se evidenciará na divisão entre
psicologias sociais sociológicas e psicológicas. As produções dessas psi­
cologias expressam a busca eterna de encontrar a leitura mais adequada
para a realidade: estariam as explicações no âmbito do indivíduo (ten­
dências psicológicas) ou da sociedade (tendências sociológicas)? Foi em
busca dessa resposta que a Psicologia Social se desenvolveu, de manei­
ra preponderante, entretanto, sob a égide de concepções objetivistas de
ciência. E, juntamente com elas, concepções de neutralidade da ciência,
de separação entre o momento do conhecimento e o momento da ação,
colocando para o pesquisador em Psicologia Social outra dicotomia a re­
solver: como relacionar pesquisa e ação social?
É nesse contexto que o conhecimento que se produz se isenta de
questões sociais concretas, aparece apartado dos problemas considerados
mais relevantes, afasta-se das questões da realidade social. A naturaliza­
ção dos fenômenos, decorrente da visão dicotômica, leva a formulações
abstratas e universais sobre os indivíduos e as sociedades; parece falar do
todo, ou de tudo, mas termina por falar de quase nada. É essa a origem
da chamada "crise da psicologia social", ocorrida nos anos 1960, muito
embora autores como Rodrigues (1978) e Lane (1980 e 1991) tenham for­
mulado análises diferentes dessa crise.
Para um — Rodrigues — a crise era devida à falta de cientificidade
nessa área. Era preciso ir mais a fundo na pesquisa isenta, na busca dos pro­
cessos universais (e, portanto, naturais), para se avançar no conhecimento
da relação indivíduo-sociedade, produzindo pesquisa básica que poderia,
em outro contexto, que não o da ciência, resultar em aplicações.
122 BOCK • GONÇALVES
Para outra — Lane — a crise era devida, exatamente, à separação
entre conhecimento e ação. Apenas o compromisso do cientista com as
questões do seu tempo, um compromisso revelado desde a escolha do
método e da teoria, poderia proporcionar um conhecimento que contri­
buísse para a transformação da sociedade.
Novamente, têm-se diferentes implicações, para o conhecimento e a
atuação, a depender de como se lida com a dicotomia estabelecida entre
indivíduo e sociedade.
Assumimos aqui a versão de Lane, que, com essa visão, inaugura a
produção de uma Psicologia Social alternativa, crítica e comprometida
com a realidade brasileira e latino-americana. Para ir adiante na explici­
tação das raízes dessas posições e suas diferentes possibilidades é neces­
sário o conhecimento de seus fundamentos, o que remete às produções
da Modernidade, exigindo que se aprofunde sua compreensão.
O pensamento da Modernidade
Vários são os elementos que compõem as elaborações da Moderni­
dade, revelando a complexidade e os aspectos contraditórios do período
histórico que representa: racionalismo como pilar central; valorização da
ciência racional e empírica; reconhecimento do homem como sujeito epis-
têmico; formulações sobre o lugar social do homem e sobre a liberdade;
só para apontar, genericamente, alguns deles.
Entre essas formulações está uma concepção fundamental, apoiada
nos cânones do racionalismo e reveladora, de modo mais concreto, do ho­
mem que surge nesse período: a concepção do homem como indivíduo.
Esse homem, por ser racional e considerando-se a universalidade
da Razão, é o que é por sua capacidade de pensar por si só, de encontrar
nas luzes da Razão as verdades sobre a realidade, natural ou metafísica.
Verdades que bem poderiam estar no objeto externo ao homem, ou bem
poderiam ser a ele reveladas pelo trabalho da Razão e/ou por seus con­
teúdos próprios (inatos ou a priori).
A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 123
Mas, além disso, ou juntamente com isso — na verdade, na base dis­
so —, está a experiência concreta dada a esse homem, a experiência de ser
e se ver como a "célula" da sociedade. Trata-se do desenvolvimento do
capitalismo e da organização social necessária à sua consolidação. A pro­
dução da riqueza e o mercado sob o capital têm sua organização baseada
na inserção individual, pois cada um deve negociar sua própria força de
trabalho e cada um deve tornar-se um consumidor. O indivíduo aparece,
então, como forma primeira e insubstituível de existência. A individua­
lidade é marca e conquista do capitalismo, dada sua forma de organiza­
ção e produção social, mas ela também vai se definindo como modo de
ser do homem. O indivíduo é forma de subjetivação.
Dois esclarecimentos terminológicos são necessários neste ponto. Primeiro,
reafirmar com Dumont (1985, p. 29) os dois sentidos sob os quais a expres­
são "indivíduo" pode ser utilizada: (1) o sujeito empírico da palavra, do
pensamento, da vontade, amostra indivisível da espécie humana, tal como
o observador o encontra em todas as sociedades; e (2) o sujeito moral, in­
dependente, autônomo, e assim essencialmente não social, tal como se en­
contra, sobretudo, emnossa ideologia moderna de homeme sociedade.1Em
decorrência do primeiro esclarecimento, segue-se que o indivíduo é apenas
um dos modos de subjetivação possíveis. (Mancebo, 1999, p. 36)
Assim, a Modernidade traz a afirmação do homem como indivíduo,
sendo que não se trata de tomá-lo como a unidade da espécie ao se fa­
zer essa afirmação. Mais que isso, a sociedade que passa a se formar nes­
se período e virá a ser hegemônica tem como referência fundamental a
noção de individualidade, da experiência individual como a base para a
organização social.
Surge, dessa forma, a experiência humana que passará a ser hege­
mônica e central em toda a histórica ocidental e dominante. Podemos di­
zer que o surgimento do "homem burguês" (Konder, 2000) traz mais do
que o surgimento de uma nova classe social. Evidentemente é disso que
1. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna.
Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
124 BOCK • GONÇALVES
se trata. Mas é preciso reconhecer que a forma como essa experiência se
impõe objetiva e ideologicamente levará a um aprofundamento da no­
ção de indivíduo que se elabora nos séculos XVII e XVIII, se fortalece no
século XIX, atravessa todo o século XX, e chega à contemporaneidade com
a insígnia, ainda pouca abalada, de ser uma concepção natural.
Não é. A concepção do homem como indivíduo é produto de certa
ordem social, que permitiu o desenvolvimento de determinadas experiên­
cias e suas correspondentes representações, tão sólidas e contraditórias
quanto a realidade que as possibilita.
Não se trata de uma "modelagem" do burguês feita pela burguesia (fenô­
meno que de fato existe, mas permanece restrito ao estaco de classe): trata-
se de um condicionamento promovido, não pela burguesia, diretamente,
mas pelo conjunto da sociedade burguesa, quer dizer, pelas características
do "sistema" social estruturado sob a hegemonia da burguesia. (Konder,
2000, p. 15)
A noção de indivíduo foi particularmente importante para o libera­
lismo, que fundamentou nela todas as suas formulações sobre o homem.
Mancebo (1999) cita Dumont, o qual estabelece uma distinção entre so­
ciedades e culturas holísticas e as individualistas. As primeiras situam
os indivíduos empíricos de acordo com sua posição na estrutura social;
os indivíduos são, então, representados por meio de identidades posi­
cionais. Nas segundas, "o valor da identidade individual é dado, sobre­
tudo, pela ideia de autonomia do sujeito em relação ao todo" (Mancebo,
1999, p. 36). Na concepção individualista, o indivíduo tem potencialida­
des "naturais" ou "intrínsecas", pré-existentes à sociedade, e deve reali­
zá-las na vida social.
Foi essa referência ao indivíduo como unidade básica da sociedade,
com base na qual se estabelecem normas e relações, que fundamentou
concepções sociais importantes na organização da sociedade sob a nova
estruturação econômica. Segundo Mancebo (1999, p. 36):
Pode-se afirmar que o conceito de indivíduo tal qual apresentado acima
foi elevado ao nível de bandeira política e realidade econômica pelo libe-
A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 125
ralismo dos séculos XVII e XVIII, constituindo-se em parcela significativa
do imaginário social da modernidade. Para os contratualistas dessa época
— Locke, Hobbes, Rousseau — o poder das famílias havia sido substituído
politicamente pelo Estado Moderno, constituído, ao menos em tese, pela
participação d:reta de indivíduos. Os contornos básicos desse novo ideá­
rio seriam: a liberdade (inclusive em relação à própria coletividade na qual
vive, implicando direito de escolha, liberdade de ação e de participação),
a igualdade (ontológica e legal, implicando direitos inalienáveis, públicos,
reconhecidos por todos), aconsciência individual acentuada (razão própria,
emoções e sentimentos próprios, singulares e únicos) e a consideração do
homem como unidade básica da sociedade na qual participa diretamente
sem mediações.
Neste momento podemos dizer que já são dois os aspectos que nos
podem levar a entender a postulação de explicações psicológicas ou so­
ciológicas para a relação indivíduo e sociedade. Um deles claramente
epistemológico, nos mostra como a separação entre sujeito e objeto, como
forma de se chegar à objetividade do conhecimento, induz à separação
entre indivíduo e sociedade, porque: 1) estende a visão de exterioridade
a toda relação de que se trata, pois é uma visão metodológica que orienta
a forma de abordar o objeto do conhecimento, nesse caso, entendendo-se
como objeto a relação indivíduo-sociedade; a implicação é a visão de exte­
rioridade entre indivíduo e sociedade; 2) busca a objetividade do conheci­
mento sobre o indivíduo e a sociedade de maneira objetivista, reduzindo
os processos de relação a uma imediaticidade e a uma linearidade condi­
zentes com essa maneira de abordar a realidade para conhecê-la.
O outro é um aspecto ontológico, que permite apontar característi­
cas, historicamente constituídas, do ser do qual se trata, o homem indi­
víduo, assim concebido com base em experiências concretas ratificadas
pelas concepções liberais. É esse indivíduo que precisa ser compreendido
na sua relação com a sociedade. E é desse indivíduo que se fala quando
se estuda sua relação com a sociedade.
Reunindo os dois elementos, o epistemológico e o ontológico, temos,
além da exterioridade do indivíduo em relação à sociedade, um indivíduo
"em si", que prescinde, a princípio, da sociedade para ser como tal.
126 BOCK • GONÇALVES
O resultado da presença dessas concepções na Psicologia Social é
o que apontamos acima: explicações sociológicas ou psicológicas para a
relação indivíduo-sociedade, com desdobramentos para a visão de qual
deve ser o lugar do conhecimento na vida social e até mesmo para a iden­
tificação dos problemas da vida social que devem ser conhecidos.
Outros elementos da Modernidade devem ser considerados para ir­
mos adiante nessa análise. Isso porque, como também já referimos aci­
ma, o conjunto de elementos que a compõem revela a complexidade e as
contradições das produções históricas.
Assim, devemos considerar que esse homem racional e individual da
Modernidade, o "homem burguês" referido por Konder (2000), é também
reconhecido como sujeito.
Estamos nos referindo a um ser de possibilidades (de determinadas
possibilidades): possibilidade de conhecer, possibilidade de agir a partir
do conhecimento, possibilidade de encontrar e/ou aplicar a racionalidade
em tudo que existe, possibilidade de sentir, possibilidade de pensar sobre
o que conhece e o que sente, possibilidade de expressar suas vontades e
esperar que a sociedade as realize. E possibilidade de realizar tudo isso
perante outros, perante a sociedade. Há, dessa forma, uma afirmação do
homem como sujeito.
Mas ela só foi possível, concretamente, no interior da contradição
capital — trabalho, que requereu que o homem ocupasse os lugares so­
ciais (na produção e no consumo) como ser individual. E só foi possível,
em termos ontológicos e epistemológicos, com a afirmação também do
objeto, significando a afirmação de uma existência do objeto (realidade,
natureza) independente do sujeito. Ambos os aspectos aqui presentes, o
concreto e o das representações, carregam contradições.
Na concreticidade, para ocupar o lugar social da produção, o indi­
víduo só pode fazê-lo com outros indivíduos. Ou seja, a organização da
produção é social. Por outro lado, para ocupar o lugar social do consu­
mo, o indivíduo precisar anular outros indivíduos (na concorrência do
mercado); ou, na melhor das hipóteses, precisa tornar-se indistinto deles
(na massificação do consumo).
A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 127
Nas representações, ontológicas e epistemológicas, o sujeito racional
autônomo precisa submeter-se à objetividade e à racionalidade do obje­
to, tendo sua autonomia limitada. O ser de possibilidades tudo pode?
Ou nada pode?
Postas dessa forma as questões, as respostas oscilam de um polo a
outro, mantendo visões dicotômicas em vários campos. O que pode o in­
divíduo frente à sociedade: impor sua individualidade ou amoldar-se ao
que lhe é imposto?
As concepções alternativas e a dificuldade da superação
As contradições da Modernidade estão, também, entretanto, na ori­
gem de concepções alternativas, de contraponto às visões dominantes. O
sujeito liberal, indivíduo racional, bem como sua possibilidade de reali­
zação, encontram seu questionamento em experiências concretas e suas
correspondentes representações ontológicas e epistemológicas.
O capitalismo tem em si, contraditoriamente, como apontado acima,
um novo elemento de experiência concreta, por meio do trabalho. Trata-se
da possibilidade de os sujeitos do trabalho constituírem-se concretamente
como coletivo, considerando-se a organização da produção industrial. É
uma experiência possibilitada pela mesma organização social da produ­
ção que afirmara o indivíduo como sua célula básica; daí a contradição.
Essa experiência possibilita outra: o reconhecimento da condição co­
mum a que estão expostos esses sujeitos. Na verdade, aquilo que está li­
mitado pela concorrência do mercado (para a oferta da força de trabalho
ou para o consumo) será coletivamente reconhecido como limitação impos­
ta pela ordem social. Esse reconhecimento trará a possibilidade de outro
tipo de reflexividade, de consciência, diferente da consciência individual.
Trata-se da consciência histórica, fundada numa práxis política. Ou seja,
traz a possibilidade de uma consciência que não é individual e autofun-
dante ou autoiluminada, mas constituída a partir da ação, do trabalho, o
que só ocorre coletivamente.
BOCK • GONÇALVES
Aqui se fala da possibilidade de superar a alienação que marca as
formas de consciência sob o capitalismo, possibilidade esta que está dada
pelas contradições que estão presentes nessa realidade.
A análise histórica do capitalismo, realizada pelo marxismo, permi­
tiu identificar as características da base material, nesse modo de produ­
ção, que dão origem ao processo de alienação.
O indivíduo produtor da riqueza está posto nessa tarefa de modo
individual: vende sua força de trabalho ao capital que a utiliza na pro­
dução da riqueza. O resultado desse trabalho é apropriado individual­
mente pelo capitalista. O trabalhador aplica sua força de trabalho e não
se apropria de sua produção. A objetivação de seu trabalho pertence a
outro. Aliena-se de si próprio e não se reconhece como parte de um cole­
tivo que produz; não se reconhece no produto e não reconhece sua ativi­
dade como produtora. Sua consciência está marcada por essa alienação
que se origina na organização da base material da produção. E está tam­
bém marcada pelos conteúdos ideológicos que referendam e contribuem
para a sustentação dessa situação.2
O processo de produção de ideologia, apoiado nessa base material,
desenvolve-se por meio das características que marcam a produção de
ideias nas sociedades de classes: separação entre trabalho intelectual e tra­
balho manual, desvinculação aparente entre ideias e interesses concretos
que representam, universalização das ideias. Tal processo aprofunda-se
no capitalismo, em que o racionalismo e a ideologia liberal produzem con­
cepções que o favorecem: as ideias válidas são as produzidas pela Razão;
a universalidade da Razão justifica ideias universais; o homem é indiví­
duo livre para pensar, utilizando a Razão, que tem ideias evidentes por
si mesmas. Ou seja, tanto a experiência concreta do trabalho como as re­
presentações sobre a sociedade e sua organização contêm elementos que
explicam a alienação.
Depois de separar as ideias dominantes dos indivíduos que exercem o po­
der esobretudo das relações que decorrem de um dado estádio do modo de
2. Ver, no capítulo 3 desta obra, discussão mais detalhada sobre o processo de alienação.
A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 129
produção, é fácil concluir que são sempre as ideias que dominam a histó­
ria, podendo-se, então, abstrair, destas diferentes ideias, a "Ideia", ou seja, a
ideia por excelência etc., fazendo dela o elemento que domina na história e
concebendo então todas as ideias e conceitos isolados como "autodetermi­
nações" do conceito que se desenvolve ao longo da história Em seguida, é
igualmente natural fazer derivar todas as relações humanas do conceito de
homem, do homem representado, da essência do homem, numa palavra,
de o Homem. (Marx e Engels, 1980, p. 60)
A mesma base material, entretanto, por suas contradições, possibilita
outra experiência e, consequentemente, cria a possibilidade de outra cons­
ciência. A própria necessidade de organização do trabalho produziu o re­
conhecimento da condição comum desses sujeitos. Esse reconhecimento
trouxe a possibilidade de outro tipo de consciência, diferente da consciên­
cia individual. Trata-se, como já afirmado, da consciência histórica cons­
tituída com base no trabalho coletivo. Seu desenvolvimento requer esse
reconhecimento da condição comum a um determinado grupo social, o
que possibilita o rompimento com aquelas marcas da produção de ideias
que as tornam ideológicas: as ideias representam interesses concretos; por
isso, não podem ser universais, pois os interesses concretos são oriundos de
lugares distintos, ocupados, no seio da produção, por grupos distintos; as
experiências relativas a esses lugares são comuns em muitos aspectos, por
isso sua representação é compartilhada; nesse sentido, para além de uma
consciência individual, há a possibilidade de uma consciência social.
Essa experiência concreta vai se manifestar também em relação às
questões epistemológicas. O sujeito do conhecimento tem com seu obje­
to uma relação intencional, da mesma forma que se dá a relação de tra­
balho. A práxis histórica, posta a partir do reconhecimento do trabalho
como fundante da relação do homem com a realidade, inclui a intencio­
nalidade como inerente à relação do sujeito com o objeto, articula subje­
tividade e objetividade.
(...) Pelo trabalho, os seres humanos não consomem diretamente aNatureza
nem se apropriam diretamente dela, mas a transformam em algo humano
também. A subjetividade humana se exprime num objeto produzido por
ela e aobjetividade do produto é a materialização externa da subjetividade.
130 BOCK • GONÇALVFS
Pelo trabalho os seres humanos estendem a sua humanidade à Natureza.
É nesse sentido que o trabalho é práxis, ação em que o agente e o produto
de sua ação são idênticos, pois o agente se exterioriza na ação produtora e
no produto, ao mesmo tempo que este interioriza uma capacidade criado­
ra humana, cu a subjetividade. (Chaui, 1995, p. 419)
Essa compreensão da relação ente sujeito e objeto, que decorre da
compreensão do movimento de transformação que se dá a partir da ação
do homem sobre a realidade, aponta a articulação entre ontologia e epis-
temologia. O ser de que se trata está em constante transformação, em um
processo histórico em que o homem atua sobre a realidade. Nesse proces­
so, se dá também o conhecimento.
Essas formulações ocorreram já no século XIX, diante das primeiras
crises do capitalismo, que evidenciaram de várias formas as contradições
históricas. Percebe-se, então, que a mesma matriz histórica que constituiu
o homem como sujeito e o identificou como sujeito racional e individual
contraditoriamente criou a possibilidade do sujeito histórico. A contra­
dição histórica presente na realidade material está também representada
nas ideias da Modernidade.
Assim, revelando as contradições presentes, a Modernidade pro­
duziu esse contraponto às noções do liberalismo, como expressão da
contradição histórica entre capital e trabalho que constituiu o próprio
capitalismo. O sujeito racional e individual estaria superado diante da
possibilidade da experiência concreta de um sujeito ativo e social, de um
sujeito histórico.
A identificação dessa outra formulação para a experiência histórica
do homem a partir do capitalismo se faz necessária para começarmos a
debater possibilidades de superação das dicotomias e para avançarmos
na elaboração de uma visão da relação indivíduo-sociedade que contenha
a noção de articulação e processo entre um e outro. Em outras palavras,
para que seja possível ter, desde a raiz, a compreensão de uma visão dia­
lética da relação indivíduo-sociedade como proposta por Sílvia Lane.
(...) Tornou-se necessária uma nova dimensão espaço-temporal para se
apreender o Indivíduo como um ser concreto, manifestação de uma totali­
A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 131
dade histórico-social — daí a procura de uma psicologia social que partis­
se da materialidade histórica produzida por e produtora de homens. (...) o
homem não sobrevive a não ser em relação com outros homens, portanto
a dicotomia indivíduo x grupo é falsa — desde o seu nascimento (mesmo
antes) o homem está inserido num grupo social. (Lane, 1984, p. 15 e 16)
A raiz dessa visão está na concepção materialista histórica e dialética
de sociedade, indivíduo, história, conhecimento, método. E é importante
que se reconheça essa concepção na sua gênese histórica, como expressão
das contradições do capitalismo, expressas também na Modernidade.
Ou seja, o "homem burguês" já tem posta sua contraposição histó­
rica. Tanto como possibilidade de experiência concreta, como também
em termos de representações alternativas. Por que permanece, então,
como concepção ainda predominante? Por que aparece naturalizado,
como se fosse a síntese da mais pura, essencial, universal e eterna expe­
riência humana?
A resposta mais básica, embora não simples, é a de que a sociedade
globalizada e tecnológica move-se, ainda, sob a batuta das relações capi­
talistas, em que pesem todas as diferenças que encontramos na sociedade
contemporânea em relação aos séculos XiX e XX. Assim, uma resposta,
grosso modo, é possível: o ideal do homem individual, promessa da Mo­
dernidade, ainda não foi abandonado. Mesmo diante das perplexidades
geradas a partir da falência dessa e de outras promessas, como aponta
Boaventura de Sousa Santos (1996), o indivíduo, agora com novos mati­
zes, ainda serve à organização social.
Outras respostas devem ser acrescentadas, evidenciando como as
ideias e os saberes que se produziram orientados pelas concepções hege­
mônicas tornaram-se fatores muitas vezes impeditivos do aparecimento
de novas formulações. Entre essas ideias e saberes, encontramos a Psico­
logia e todos os saberes psi, que valorizaram e fundamentaram a expe­
riência da individualidade, naturalizando-a e absolutizando-a.
É verdade que desde o século XIX, a partir das primeiras crises do ca­
pitalismo, como apontamos acima, surgem questionamentos, pelo menos
em parte, a essa visão. As contradições da Modernidade logo se evidencia­
132 BOCK • GONÇALVES
ram. Entretanto, como dissemos, a superação de seus limites requer trans­
formações históricas mais profundas, com a superação da base material
que sustenta e dá sentido a essas concepções. Alguns exemplos permitem
perceber os limites impostos pelas contradições da Modernidade.
Outras noções de sujeito desenvolveram-se no seio do capitalismo,
com base nas concepções da Modernidade, durante os séculos XIX e XX.
A predominância da concepção liberal é questionada em vários âmbitos
e o século XX assiste até mesmo à decretação da "morte do sujeito". Es­
sas outras concepções, que não representam a possibilidade de supera­
ção da realidade histórica que as engendrou, expressam, por sua vez, a
complexidade do movimento histórico. São configurações resultantes das
múltiplas determinações presentes no processo social, que contribuem,
em maior ou menor grau, para a explicitação e superação da contradição
fundamental do capitalismo.
É o caso das contraposições que são elaboradas para questionar os
reducionismos na concepção de sujeito que valorizam o caráter pragmá­
tico e instrumental da ação humana. O sujeito liberal que, com o desen­
volvimento do capitalismo, precisa ser disciplinado para o trabalho e para
o consumo, é massificado e treinado. As concepções humanistas se con­
trapõem a isso e vão em busca de um sujeito pleno, guiado por sua cons­
ciência individual. Mas, estaria aqui o "homem burguês" superado?
É o caso também da recuperação da emoção em contraposição ao
excesso de racionalidade que permeia a vida do indivíduo massificado,
treinado, disciplinado até mesmo em seus desejos. Nesse aspecto, a psica­
nálise desempenha um papel importante. Sua formulação básica põe em
cena a irracionalidade, afirmando a presença do inconsciente, que repre­
senta o lado escuro que traz sombra à Razão Iluminada. Nesse sentido,
pode-se dizer que a psicanálise é uma das maneiras pelas quais a contra­
dição histórica se manifesta, pois suas formulações põem em cheque o
sujeito plenamente racional.
A psicanálise, entretanto, não se opõe à noção liberal de sujeito. Ao
contrário, toma dela o individualismo, reconhecendo no indivíduo e nas
suas pulsões a gênese de suas manifestações em sociedade e nas relações
com os outros indivíduos. Ao mesmo tempo, a racionalidade, relativizada
A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 133
pelo inconsciente, é retomada para explicar a estruturação da sociedade
que se impõe sobre os indivíduos e suas pulsões.3
Por outro lado, em alguns contextos de aplicação e desenvolvimen­
to das concepções marxistas, as dificuldades históricas em se estabelecer
concretamente as possibilidades de realização do sujeito histórico condu­
zem a outros tipos de reducionismos: são os decorrentes de uma exacerba­
ção do papel da base material na produção de sujeitos, o que leva a uma
desconsideração de fatores individuais e subjetivos no processo social.
O sujeito histórico, dessa forma, tem apartada de si uma parte do que o
constitui e está presente nos processos sociais: a condição de vivenciar,
registrar e elaborar subjetivamente experiências concretas.
Por todos esses reducionismos a que foi conduzido o sujeito da Mo­
dernidade (massificação, disciplina, excesso de racionalidade, pragma­
tismo), seria justificável decretar a morte do sujeito.
Os abalos à noção de sujeito liberal que vão se desenvolvendo na
primeira metade do século XX acabam abrindo caminho para a negação
do homem como sujeito. Se a decretação da morte do sujeito (década de
1960) é compreensível como denúncia dos reducionismos a que o capita­
lismo submeteu o homem, ela também abre espaço para a veiculação de
uma concepção neoliberal que acompanha as reformulações do capitalis­
mo diante da crise mundial que ocorre na década de 1970.
Aquilo que se denominou "pós-modemidade" aglutina produções
bastante diversas que, entretanto, têm em comum um trabalho de revi­
são crítica da Modernidade.4 Evidenciam, dessa forma, os limites das
concepções da Modernidade, inclusive das concepções de sujeito. Entre­
tanto, algumas dessas produções começam por negar o caráter histórico
dos fenômenos sociais e humanos e, dessa forma, revestem-se de uma
pseudoisenção que, na verdade, oculta o seu caráter ideológico.
3. Uma análise da presença e da influência dessas concepções de sujeito na Psicologia pode ser
encontrada em Gonçalves, 2001a.
4. Uma análise, nessa direção, de vários pensadores da pós-modemidade pode ser encontra­
da em PEIXOTO, Madalena G. A questão política na pós-modemidade: a questão da democracia. São
Paulo: Cortez, 1998.
134 BOCK • CONÇAIVES
Negar o sujeito estaria representando a necessidade de abandonar
as promessas da Modernidade que não se concretizaram, portanto esta­
ria decretando a inviabilidade de realização plena do sujeito como con­
cebido pelo liberalismo. Mas estaria também representando a negação da
historicidade e, consequentemente, o sujeito histórico.
A Psicologia também é alcançada por esse debate e, na tentativa de
apresentar críticas aos limites do sujeito da Modernidade, resvala na ne­
gação do sujeito, ela, a ciência da subjetividade.
Ainfluência do debate pós-modemo apartir daí será sentida na negação de
qualquerpossibilidadede uma concepção totalizante desujeitoequecoloca­
ráemxeque aexistência de uma essencialidadedo sujeito. Para aPsicologia,
essa discussão assume um caráter peculiar. Questionado o sujeito, aponta­
da sua pluralidade, sua fluidez ou até mesmo sua inexistência, como fica a
subjetividade enquanto objeto dessa ciência? (Gonçalves, 2001b, p. 71)
Considerando que essas produções se dão no âmbito do mesmo capi­
talismo que engendrou as concepções anteriores, é evidente o significado
ideológico que carregam. Negar o sujeito representa a tentativa de man­
ter o indivíduo adaptado, massificado, treinado, o que ainda é necessário
para a organização social; e, ao mesmo tempo, "limpar" as concepções de
qualquer indício de contradição presente na afirmação da plenitude de
possibilidades do sujeito liberal. Significa também negar qualquer outra
possibilidade para o homem como sujeito, reafirmando como única pos­
sibilidade sua condição de indivíduo.5
Nesse contexto, para o enfrentamento de formulações que encobrem
seu caráter ideológico, é necessário apontar o que novas formulações so­
bre o homem revelam de sua atual experiência histórica. Isso permite
evidenciar que também na contemporaneidade há uma valorização do
indivíduo, supostamente para atender a uma "nova" realidade social. A
identificação das experiências que lhe são possíveis e de como elas são
representadas, evidencia que o "neo" liberalismo transforma em farsa o
que foi tragédia.
5. Também uma análise da implicação das concepções de sujeito "pós-modemas" para a Psico­
logia pode ser encontrada em Gonçalves, 2001b.
A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 135
Em princípio as experiências contemporâneas já não poderiam ser
justificadas por uma racionalidade que seria inerente aos processos so­
ciais e humanos. O trabalho parece perder seu lugar fundante, em razão
do grande desenvolvimento tecnológico. Associado a isso, consideran­
do-se que o desenvolvimento da tecnologia implica mudanças constantes,
aparecem vivências de renovação permanente, de flexibilidade. Os luga­
res sociais apresentam-se, em decorrência, como instáveis, alternativos.
Abre-se espaço, com o questionamento da racionalidade e a desestabili-
zação do trabalho, para a valorização de cutras dimensões do indivíduo:
a afetividade é reconhecida, valorizada e toma-se a principal referência
em muitos espaços sociais, inclusive públicos.
A implicação mais direta dessa nova situação é uma crescente ênfa­
se no individualismo, que apresenta novas características, mas mantém
a supremacia do indivíduo. No início do capitalismo era a identidade so­
cial do trabalho autônomo e do mercado que atendia e justificativa ideo­
logicamente o capitalismo ascendente, que configurava esse indivíduo.
Atualmente, é a singularidade, a imediaticidade e a transitoriedade de
suas experiências e vivências em um mercado volátil, fluido.
Todos esses aspectos apontam, então, para uma exacerbação da indi­
vidualidade, calcada no questionamento da racionalidade e na valoriza­
ção da emoção, com sentimentos completamente particulares, singulares.
Por isso não se articulam a projetos coletivos e, contraditoriamente, tais
vivências abrem espaço para o crescimento da indiferença, da anestesia
diante de questões que não toquem os indivíduos diretamente. Estão jun­
tos e revelam o mesmo processo, a busca desenfreada do prazer imediato,
visível na rapidez e voracidade do consumo; o culto ao corpo e à aparên­
cia, reforçados pelo consumismo; a rejeição ao compromisso com questões
sociais e políticas. Ou seja, o individualismo não se enfraquece.
Precisamente umdos aspectos mais perversos do "capitalismo pós-moder-
no" é aprodução de sentidos supérfluos na população, sentidos associados
à aparência, aoconsumo, aoócio organizado etc. Eles produzem atividades
que as pessoas realizam "voluntariamente", mas que na verdade estão go­
vernadas pela produção supraindividual de recursos simbólicos que con ­
trolame automatizam a produção de sentidos de pessoas e espaços sociais
diversos. (...) (González Rey, 2004, p. 56)
136 BOCK • GONÇALVES
Revelando a contradição histórica ainda presente, o que se observa,
entretanto, é que a sociedade está cada vez mais submetida à racionali­
dade técnica, presente no alto grau de desenvolvimento tecnológico que
sustenta as atividades humanas hoje em dia. Também que o prazer ime­
diato é fugaz e não realiza os indivíduos. Que a massificação persiste,
embora camuflada pela multiplicidade aparente de opções de escolha,
seja de objetos, estilos de vida, relações.
Embora a possibilidade de vivenciar a diversidade deva ser saudada
como conquista da contemporaneidade, é necessário identificar as con­
tradições que esse fenômeno carrega. Respeitar a diversidade não deve
se configurar como subterfúgio para negar a discussão ontológica, para
negar a possibilidade de uma experiência totalizante, como projeto his­
tórico: a emancipação deve se dar para todos os indivíduos, em que pese
sua diversidade. Tal projeto não pode ter como fundamento concepções
relativistas.
O que percebemos, travestida de novidade, é a mesma antiga forma
de compreender as determinações sociais e históricas calcada no proces­
so de alienação e na produção de ideologia, na medida em que as novas
concepções aparecem desvinculadas do processo que as constituiu.
Estão presentes nas concepções "pós-modemas" ideias sobre o sujeito e
a subjetividade que resultam de críticas a concepções desenvolvidas pela
modernidade. Embora de início pudessem ser saudadas como a real supe­
ração dos limites presentes nas concepções modernas sobre sujeito e subje­
tividade, tais ideias, na verdade significam o risco de negação ou descarac-
terização total do sujeito, sua "volitização", fenômeno aliás, muito próprio
de tempos pós-modemos.
Achamada pós-modemidade declara a falência de todas as versões da mo­
dernidade, notadamente a liberal e a marxista. Ao fazer isso, os pensado­
res que proclamam "novas ideias" para "novos tempos" desconsideram
que as diferentes concepções revelam contradições históricas ainda não
superadas. Esse tratamento homogêneo a todas as ideias modernas traz o
risco de se perder a possibilidade de afirmar concepções que evidenciam
as contradições concretas e apontam para sua superação. (...) (Gonçalves,
2001b, p. 53 e 54)
A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE IJ7
A mudança que se observa nos fala de um novo sujeito ou de um
"neo" sujeito, no sentido de ter alterada sua forma, mas não seu conteú­
do, sua aparência, mas não sua essência?
Eis aqui mais um complemento de resposta para a pergunta que fi­
zemos acima. Por que permanece a ideia do homem como sujeito indivi­
dual, desvinculado, a princípio ou ao final, da sociedade, dos processos
sociais? Porque também as explicações contemporâneas naturalizam essa
vivência, agora pela ideia da inexorabilidade do desenvolvimento tecno­
lógico, pela valorização do presente, pela fluidez das experiências, tidas
como naturais. A complexidade crescente dos elementos não se impõe
sobre a simplificação presente na negação de explicações históricas e na
assunção da inexorabilidade como elemento explicativo.
A Psicologia Social, com suas explicações sociológicas ou psicológicas
para a relação indivíduo-sociedade, cumpriu também o papel de natura­
lizar as explicações dos fenômenos presentes na relação indivíduo-socie­
dade. Tanto em uma como em outra vertente, contribuiu para preservar
o indivíduo, o indivíduo da Modernidade, na medida em que não deu
conta de apontar a constituição imbricada entre cada um e o outro, en­
tre cada um e o coletivo, entre o coletivo social e histórico e cada um, na
sua singularidade. E, atenta às discussões da chamada pós-modemidade,
tem-se colocado mais na direção de explicar os processos dessa vivência
individual da relação com a tecnologia e o signo, do que em explicar os
processos históricos de constituição das subjetividades e das relações so­
ciais contemporâneas.
(...) Ateoria histórico-cultural, inspirada em um marxismo criativo e revo­
lucionário, procurava representar a unidade dos sistemas complexos da
sociedade por meio das aparências desconexas de suas formas de expres­
são. Procurava-se a essência como princípio organizador, e não como prin­
cípio metafísico inalterável que atuava como causa universal; no entanto,
isso aconteceu em um momento em que o pós-estruturalismo, apoiado na
própria crítica ao estruturalismo e ao marxismo, ia contra os megassiste-
mas e as megateorias, enfatizando o valor das construções locais parciais.
Nesse contexto, na psicologia, a semiótica e o discurso hegemonizavam a
novidade, e o oonstrucionismo social aparecia como a última moda, negan­
138 BOCK • GONÇALVES
do, nas suas variantes mais radicais, toda definição ontológica. (González
Rey, 2005, p. 29 e 30)
Por isso, a proposição de uma Psicologia Social que aponte para a
constituição dialética e complexa de indivíduos inseridos em sociedades
por eles constituídas é fundamental para a compreensão das possibilidades
de um sujeito que é histórico. Reafirma-se, dessa maneira, a importância
de resgatar a discussão ontológica e posicionar-se em relação a ela.
Nesse sentido, é importante considerar que tais possibilidades de rea­
lização do sujeito não estão prontas, não estão dadas, não estão latentes,
esperando para se desenvolver. São possibilidades ativas, atravessadas
por contradições presentes na sociedade, as quais devem ser identificadas
para que se possa escolher a direção que represente avanço.
Pressupostos da concepção sócio-histórica
A noção básica da Psicologia Sócio-Histórica é a historicidade, o que
significa ter como ponto de partida a concepção de que todos os fenôme­
nos humanos são produzidos no processo histórico de constituição da
vida social. Essa vida social se constitui na materialidade das relações
entre os homens e entre os homens e a natureza, para a produção da sua
existência.
Tais pressupostos vêm do materialismo histórico e dialético, método
que afirma objetividade e subjetividade como unidade de contrários, em
movimento de transformação constante. Sujeito e objeto transformam-se,
em um processo histórico em que o sujeito atua sobre o objeto e é trans­
formado nesse processo.
Tal método orienta que se busque a gênese dos fenômenos na reali­
dade material contraditória, incluindo o conteúdo histórico definido por
essa realidade. O conteúdo histórico, considerando-se as relações mate­
riais entre os homens e entre os homens e a natureza para a produção da
sua existência, é dado pela divisão da sociedade em classes, que acarte-
A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 139
ta lugares e experiências distintas para os diferentes grupos sociais. Essa
clivagem social produz alienação e, no mesmo processo de produção de
alienação, produz-se ideologia. Já nos referimos adma a essa articulação
entre as experiências concretas de inserção social, possibilitadas pelo ca­
pitalismo e que, seja na produção, seja no consumo, apartam os indiví­
duos dos resultados materiais, ao mesmo tempo em que justificam ideo­
logicamente os processos sociais. Assim, os fenômenos sociais têm caráter
ideológico.
Apontar o caráter histórico dos fenômenos sociais e humanos possi­
bilita uma análise que permite a sua desnaturalização. Em termos meto­
dológicos, isso leva a se trabalhar com categorias que indicam processos,
com conteúdos históricos, ideológicos, contraditórios, mediados.
Ou seja, trabalhar com a historicidade significa adotar um método que
prevê não apenasforma, mas também conteúdo. A forma aponta o caráter
processual dos fenômenos. O conteúdo aponta sua produção histórica,
considerando-se a qualidade da sociedade de que se trata. Uma socieda­
de que encerra a contradição de classes produz fenômenos qualitativa­
mente diferentes a depender de sua relação com os processos sociais que
apartam e produzem alienação e ideologia. Isso implica tomar sujeito e
subjetividade como constituídos na dialética subjetividade-objetividade
e procurar identificar os aspectos desse processo, aspectos que revelam a
historicidade. Por isso, a forma processual, juntamente com o conteúdo
histórico resultante das relações de classe, devem ser considerados. As
categorias da dialética, particularmente a categoria de mediação,6são re­
cursos para apreender o processo.
Na mesma linha metodológica, a proposta é identificar no objeto, em
vez de conceitos, categorias. Tendo-se como referência a própria noção
de categoria, aborda-se o objeto delimitando campos de investigação nos
quais se busca compreender o movimento, o processo de constituição dos
fenômenos. Nesta perspectiva metodológica, ao se buscar a definição de
algo não se responde "o que é", mas sim "como se constituiu". Isso signi­
fica privilegiar o processo, o movimento do objeto, sua historicidade.
6. Ver nos capítulos 1 e 2 desta obra a discussão de categorias e das categorias da dialética.
140 BOCK • CONÇAIVES
Ao se fazer esse esforço, considera-se fundamental a ideia de que os
fenômenos da realidade são multideterminados, isto é, caracterizados por
relações que se estabelecem para criar a aparência que conhecemos. Essas
relações, no entanto, são invisíveis aos nossos olhos, pois são constituti­
vas dos fenômenos em seu movimento e processo. É aqui que se supe­
ra o uso de conceitos (que fotografam ou descrevem os fenômenos) para
adotar a ideia de categorias que expressam processos e permitem pensar
relações que são constitutivas dos fenômenos. As categorias inauguram
a possibilidade de se falar de elementos que caracterizam os fenômenos,
mas que só podem ser captados, como relação, pelo pensamento. As ca­
tegorias são categorias de pensamento que permitem que se ultrapasse a
aparência (enganosa) dos objetos e se compreenda sua gênese e seu mo­
vimento. Não se buscam causas, mas os elementos e aspectos que consti­
tuem os objetos como se apresentam a nós, em seu movimento de trans­
formação constante.
São categorias para pensar e compreender o psiquismo: atividade,
consciência, identidade e afetividade, que devem, então, ser considera­
das como denominadoras de um processo com gênese social, participa­
ção do sujeito e fundado na contradição (dadas as categorias da dialéti­
ca que são tomadas como referência metodológica). Essas categorias do
psiquismo se constituem como a chave para a compreensão da subjeti­
vidade. Permitem considerar a subjetividade em seu processo histórico
contraditório, na dialética subjetividade-objetividade; além disto, são ca­
tegorias que permitem pensar a realidade psíquica em seu movimento
de transformação e nas relações que se estabelecem para a produção do
que chamamos subjetividade.
O movimento a que se referem, que é o movimento do psiquismo,
é um movimento contraditório. Isso coloca a necessidade, apontada aci­
ma, de se considerar o conteúdo histórico ao falar da subjetividade. E,
numa sociedade contraditória, esse conteúdo envolve posições diante da
realidade; posições que se referem a interesses concretos. Nesse sentido,
ao se identificar na base desse movimento a gênese de um processo que
implica alienação, deve-se, a seguir, identificar como isso implica expe­
riências subjetivas diversas e como são atravessadas pelos processos que
produzem alienação.
A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 141
Por isso, ao se identificar a cisão entre atividade e consciência, se
está falando de alienação. Ao se falar de mesmice da identidade, fala-se
de alienação. Ao se falar de uma afetividade cristalizada, com emoções
reprimidas ou contraditórias, fala-se de alienação. Não de forma direta
e linear, mas num processo que deve ser considerado com os recursos
metodológicos da dialética, que permitem captar a complexidade. Ao se
trabalhar com a noção de mediação e com a noção de categorias, é pos­
sível respeitar a complexidade que se apresenta na realidade, nos fenô­
menos investigados.
Essas concepções permitem fazer a contraposição às dicotomias:
subjetividade-objetividade, sujeito-objeto, indivíduo-sociedade que mar­
cam o desenvolvimento da Psicologia e da Psicologia Social. Visões dico­
tômicas levam à naturalização dos fenômenos, na medida em que supõem
que sujeito e objeto são independentes; que o objeto tem suas próprias
leis, estabelecendo uma relação de exterioridade entre sujèito e objeto.
A separação sujeito-objeto rompe a ideia de relação, de movimento e de
contradição, para pensar cada um como dotado de movimento próprio
ou de capacidade própria para se modificar ou se desenvolver. A ideia
do Barão de Munchhausen, trabalhada por Bock (1999), traz exatamente
este aspecto para o debate da Psicologia: a ideia de que o homem é dota­
do de forças próprias que lhe permitem "puxar-se pelos próprios cabe­
los" e com isso "erguer-se do pântano". Sujeito e objeto ficam então pen­
sados como independentes e seu desenvolvimento fica absolutizado, ou
seja, naturalizado.
O trabalho com a historicidade permite tomar sujeito e subjetividade
como constituídos historicamente, a partir da ação do sujeito sobre o obje­
to. É a partir desses pressupostos que a Psicologia Sócio-Histórica define,
como objeto, a dialética subjetividade-objetividade e trabalha com as ca­
tegorias do psiquismo como chave para a compreensão desse processo.
Subjetividade e objetividade se constituem em um mesmo proces­
so, referindo-se a âmbitos diferentes da realidade: um âmbito subjetivo/
do sujeito e um âmbito objetivo/das coisas. O âmbito do sujeito inclui
processos e características específicas que só podem ser compreendidas
na relação com a objetividade. E o âmbito objetivo incorpora a subjetivi-
142 BOCK • GONÇALVES
dade, na medida em que o que resulta como objetivo é o objeto transfor­
mado pelo sujeito.
Dessa forma, tais concepções teóricas e metodológicas impõem a
noção de subjetividade como um processo que congrega as experiências
dos sujeitos individuais e sociais, sendo, ao mesmo tempo, consequência
e condição dessas experiências.
A referência na historicidade introduz a esse processo a identificação
de uma sua qualidade, que leva à compreensão de que a subjetividade
não está dada, nem para cada indivíduo, nem como processos ou estrutu­
ras universais da humanidade, mas configura-se como algo que se cons­
titui nas relações sociais e históricas; é processo que decorre de situações
concretas que incluem, necessariamente, a atividade, objetiva e subjeti­
va, do indivíduo. O sujeito é ativo, atividade decorrente de sua ação, de
seu pensamento, de sua capacidade de registrar cognitiva e afetivamente
todas as suas experiências; da sua capacidade de vivendar. Suas ações e
experiências individuais subjetivas só são possíveis a partir das relações
sociais e do espaço da intersubjetividade, pois falamos de um sujeito que
é social e histórico. A subjetividade, portanto, não é natural.
Dimensão subjetiva da realidade
A partir da dialética subjetividade-objetividade pode-se falar em
dimensão subjetiva da realidade, na medida em que se entende que a
subjetividade é individual, mas constituída socialmente, a partir de um
processo objetivo, com conteúdo histórico. Por outro lado, a realidade so­
cial é construída historicamente, em um processo que se dá entre o plano
subjetivo e o objetivo. A base material agrega subjetividade, a partir da
ação do sujeito sobre ela, aí está sua historicidade. Por isso, não é possível
falar-se da realidade sem considerar o sujeito que a constitui e ao mesmo
tempo é constituído por ela.
Acrescentoapenas queesta relação processual temuma base material, como
diz Searle, mas esta base também tem caráter histórico na medida que sua
A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 143
transformação (através do trabalho) agregará nela própria um quanto de
subjetividade. A partir desse momento, não importa mais o objeto como
"coisa-em-si", mas sim como "coisa-para-si". Tanto o fato objetivo, como
o fato subjetivo farão parte de um mesmo processo histórico e serão inse­
paráveis. Não importa o tipo de leitura que se faça desse processo — via
objetividade ou subjetividade — estaremos sempre trabalhando com essa
dinâmica. (Furtado, 2002, p. 96)
A relação entre o sujeito individual e os fenômenos sociais é de cons­
tituição mútua, os elementos da relação não são exteriores um ao outro, e
a determinação de um sobre o outro não é direta, imediata.
A dimensão subjetiva da realidade estabelece a síntese entre as con­
dições materiais e a interpretação subjetiva dada a elas. Ou seja, repre­
senta a expressão de experiências subjetivas em um determinado campo
material, em um processo em que tanto o polo subjetivo como o objetivo
transformam-se.
Assim, a realidade é a expressão do campo de valores que a interpretam
(suas bases subjetivas) e ao mesmo tempo o desenvolvimento concreto das
forças produtivas (suas bases objetivas). Há uma dinâmica histórica que co­
loca os planos subjetivo eobjetivo em constante interação, sem que necessa­
riamente se possa indicar claramente a fonte de determinação da realidade.
Isso nos leva a afirmar que a realidade é um fenômeno multideterminado,
o que inclui uma dinâmica objetiva (sua base econômica concreta) e tam­
bém uma subjetiva (o campo de valores). O indivíduo é o sujeito singular
dessa dinâmica e, assimcomo recebe prontos abase material (dada pela sua
inserção de classe) e os valores (o plano da socialização), também é agente
ativo da transformação social, independente de ter ou não consciência do
fato. (Furtado, 2001, p. 91)
Entende-se dimensão subjetiva da realidade como construções da sub­
jetividade que também são constitutivas dos fenômenos. São construções
individuais e coletivas, que se imbricam, em um processo de constituição
mútua e que resultam em determinados produtos que podem ser reco­
nhecidos como subjetivos.
144 BOCK • GONÇALVES
Os produtos subjetivos têm o mesmo caráter social, processual e
dialético de constituição da subjetividade. É preciso reconhecer a exis­
tência de produtos subjetivos "sociais" e abordá-los da mesma forma. A
subjetividade não se esgota em seus elementos individuais: o indivíduo
age sobre o mundo, relaciona-se, realiza, objetivamente, o que elaborou
subjetivamente.
A relação entre a dimensão subjetiva e o contexto histórico deve ser
considerada a partir do eixo básico de análise que é a historicidade, en­
tendida como processo contraditório: envolve indivíduos que pertencem
a classes sociais. A implicação é considerar o processo de alienação pro­
duzido socialmente que se apresenta, atravessado por mediações, na di­
mensão subjetiva da realidade.
Dimensão subjetiva de fenômenos sociais
A noção de dimensão subjetiva dos fenômenos sociais não se dife­
rencia da dimensão subjetiva da realidade, mas se inscreve na discussão
da Psicologia Social, tendo por base os mesmos pressupostos da dialéti­
ca subjetividade-objetividade, para permitir a delimitação do objeto da
Psicologia Social para a perspectiva sócio-histórica.
Na análise da relação indivíduo-sociedade, os mesmos pressupos­
tos são considerados. É necessário superar a dicotomia e compreender
os fenômenos sociais a partir da constituição histórica e social dos indi­
víduos e de sua subjetividade. Compreender o indivíduo é compreender,
ao mesmo tempo, a relação indivíduo-sociedade (superar a dicotomia).
Não há uma sociedade externa e independente dos indivíduos; não há
indivíduos a priori ou independentes da sociedade.
Essa compreensão está posta na delimitação do objeto da Psicologia
Social como sendo a dimensão subjetiva dosfenômenos sociais.
Isso implica buscar nos fenômenos sociais a presença de um huma­
no que é sujeito, com uma subjetividade processual, complexa e históri­
ca, afirmando a unidade dialética entre indivíduo e sociedade. E consi­
A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 14$
derar que aquilo que identificamos como fenômeno social foi produzido
na relação dinâmica entre suas múltiplas determinações, em última ins­
tância suas bases objetivas e suas bases subjetivas, como dito acima. As­
sim, identificar o processo de constituição de um fenômeno social come­
ça por identificar sua produção social a partir da materialidade de suas
manifestações — identificando de quais lugares concretos surge, qual
sua posição na organização social da produção, na relação com diferen­
tes grupos sociais definidos por essa organização material. E continua
pela identificação dos vários níveis em que aparece e por meio dos quais
vai tomando corpo — instituições, valores, mais ou menos estruturados
e identificados. A análise deve ser das mediações que constituem o fenô­
meno social em questão.
Tal análise permite desvendar um processo do qual resultam pro­
dutos, objetivos e subjetivos. A dimensão subjetiva pode ser reconhecida
em produções diversas, e os recortes podem ser variados: representações
sociais, identidade social, ideologia, valores, rituais, hábitos, costumes,
leis e regras. São produtos coletivos, nos quais se percebe a participação
de sujeitos e a presença de subjetividades, ou seja, uma dimensão subjeti­
va da realidade.
Dessa maneira, incorporam-se as noções básicas da Psicologia Só­
cio-Histórica à compreensão da relação indivíduo-sociedade, procurando
superar os limites ontológicos e epistemológicos, os quais estabeleceram
as dicotomias que resultaram em perspectivas psicológicas e sociológi­
cas nessa área. Ambas as perspectivas terminam por naturalizar os pro­
cessos sociais. A proposta aqui é incluir a historicidade na análise dessa
relação. Em termos ontológicos, recupera-se o lugar do indivíduo como
sujeito, mas sujeito histórico. Em termos epistemológicos, aponta-se a re­
lação dialética entre subjetividade e objetividade, estendendo tal maneira
de conceber a relação, por ser uma concepção metodológica, para a com­
preensão da relação indivíduo-sociedade.
Essa preocupação é a mesma que expõe González Rey (2003, 2004)
quando apresenta a noção de subjetividade social. Diz ele da necessidade
de superar a naturalização e de perceber a imbricação entre indivíduo e
sociedade na produção da subjetividade.
146 BCK K • GONÇALVES
(...) Na minha opinião, trata-se de compreender que a subjetividade não é
algo que aparece somente no nível individual, mas que a própria cultura
dentro da qual se constitui o sujeito individual, e da qual é também cons­
tituinte, representa um sistema subjetivo, gerador de subjetividade. Temos
de substituir a visão mecanicista, de ver a cultura, sujeito e subjetividade
como fenômenos diferentes que se relacionam, para passar a vê-los como
fenômenos que, sem serem idênticos, se integram como momentos qualita­
tivos da ecologia humana em uma relação de recursividade. (...) Oconceito
de subjetividade social nos permite compreender a dimensão subjetiva dos
diferentes processos e instituições sociais, assim como o da rede complexa
do social nos diferentes contextos em que ela se organiza através da histó­
ria. (...) (González Rey, 2003, p. 78)
Partindo dessa visão de articulação dialética entre indivíduo e socie­
dade, o autor aponta a necessidade de delimitar a subjetividade social,
como forma de avançar na compreensão da realidade social. Sua produ­
ção teórica sobre a subjetividade tem como objetivo central identificar os
processos que, a seu ver, explicariam, definitivamente, as transformações
presentes no processo histórico. Ele identifica nas visões que desconside­
ram essa imbricação entre subjetividade individual e subjetividade so­
cial, na verdade, a negação das potencialidades dos sujeitos, o que come­
ça pela naturalização e termina por impor "verdades" que representam,
de forma camuflada, os interesses de quem está no poder. Sua proposta
é evidenciar, por meio da identificação das produções subjetivas, as po­
tencialidades postas na realidade pela presença de sujeitos.
A subjetividade afasta o dever ser de sua relação com o externo, com o
que está fora, que foi o princípio universal usado para legitimar a moral, o
direito, a política e todas as formas institucionalizadas de consciência so­
cial. Essas formas, em cada momento histórico, se apoiaram em sistemas
de sentido derivados da condição objetiva dos grupos de poder. Com isso,
as normas desenvolvidas a partir dessas instituições acabaram por ser sis­
temas de poder e de exclusão que, paradoxalmente e, apesar de sua forte
carga subjetiva, derivada de sua condição ideológica, se naturalizaram e se
converteram em padrões objetivos, reguladores do comportamento social.
A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 147
E, finalmente, se transformaram em sistemas de controle social que negam
as necessidades de setores importantíssimos da população. (...) No entan­
to, a produção de sentido de uma população continua por baixo das apa­
rências comportamentais que ela é obrigada a adotar devido a controles e
pressões externas produzidas pelos mecanismos de poder. (González Rey,
2004, p. 54 e 55)
A partir de formulações como essa, González Rey aponta vários
pontos de articulação entre a subjetividade individual e a subjetividade
social e os vários aspectos que podem e devem ser considerados para se
garantir uma apreensão da subjetividade que respeite suas característi­
cas básicas.
Na mesma direção, apresentamos a noção de dimensão subjetiva de
fenômenos sociais como uma maneira de situar o objeto da Psicologia So­
cial que respeita a compreensão sócio-histórica (ou histórico-cultural para
González Rey) de sujeito e subjetividade.
Essa conceituação parte da compreensão de que a subjetividade é
individual, mas constituída socialmente. Os elementos presentes na sub­
jetividade decorrem de capacidades individuais, relativas às possibili­
dades de registro das experiências vividas. Mas se constituem e se confi­
guram a partir de um processo objetivo, social, com conteúdo histórico.
Por outro lado, a subjetividade não se esgota em seus elementos indivi­
duais, porque o indivíduo age sobre o mundo, relaciona-se com outros
indivíduos, realiza, objetivamente, o que elaborou subjetivamente. Onde
começa e onde termina, nesse caso, o que é subjetivo e o que é objetivo?
E o que é individual e o que é social? Por isso falamos em dialética subje­
tividade-objetividade.
De qualquer modo, dissemos que há uma especificidade no objeto
da Psicologia Social, que procuramos apontar com a formulação de que
essa área deve tratar da dimensão subjetiva dos fenômenos sociais. Com
isso, estamos nos referindo às construções da subjetividade que também
são constitutivas desses fenômenos.
Entendendo que o objeto da Psicologia Social é a dimensão subjeti­
va dos fenômenos sociais, podemos apontar alguns exemplos do que en-
14fl HCX K • GONÇALVES
tendemos por fenômenos sociais. E aí já está posta a compreensão sócio-
-histórica, ou seja, a identificação dos fenômenos sociais parte da noção
de que há um processo material e contraditório que configura aspectos
da realidade como fenômenos sociais.
Uma maneira de configurar os fenômenos sociais na sua articulação
com as características do capitalismo é reconhecer a existência da questão
social, o que só se torna possível, ou de certa forma se impõe como uma
necessidade, no capitalismo. Nas palavras de Castel (2000, p. 238):
(...) uma aporia fundamental, uma dificuldade central, a partir da qual uma
sociedade se interroga sobre sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fra­
tura. É, em resumo, um desafio que questiona a capacidade de uma socie­
dade de existir como um todo, como um conjunto ligado por relações de
interdependência.
A identificação da questão social traria a possibilidade de "(...) saber
quem estabelece a coesão e em que condições ela se dá numa determinada
sociedade" (Wanderley, 2000, p. 56), análise desenvolvida, por exemplo,
por Wanderley (2000), que aponta suas especificidades na América Lati­
na, e por Castel (2000), que apresenta as transformações da questão social ao
longo do capitalismo. Compreendida de maneira indissociada da contra­
dição fundamental da sociedade capitalista, a contradição capital-trabalho,
a chamada questão social, pode nos remeter à identificação de processos de
sustentação, também contraditória, das relações sociais, no interior das
quais se reconhece a dialética subjetividade-objetividade.
Tendo isso por base, é possível dizer que o processo contraditório
do capitalismo atual implica, na contemporaneidade, três características
básicas para a questão social: 1) a desestabilização dos estáveis; 2) a ins­
talação da precariedade e o desenvolvimento da cultura do aleatório; 3) o
surgimento dos sobrantes (Castel, 2000), com a produção de indivíduos
desfiliados. A partir disso, a questão social configura-se como um conjunto
de fenômenos sociais, com características que condicionam determinadas
experiências para os sujeitos.
A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REAt IDADE
Há uma concepção de indivíduo atrelada a essas situações, de deses-
tabilização, precariedade, desfiliação. Resumidamente o indivíduo "des­
cartável": não está preso a nada, tudo que vive é temporário, não faz falta
à sociedade. Essa identificação nos leva a apontar que há uma dimensão
subjetiva na questão social.
Como outro elemento da questão social contemporânea, pode-se
identificar a contraposição: direitos x mercado. Quando se fortalece o se­
gundo em detrimento do primeiro, o que se tem é a realização de uma
concepção de indivíduo que vale pelo que tem e não pelo que é. Há uma
dimensão subjetiva nessa relação produzida socialmente: indivíduos não
se reconhecem como sujeitos de direitos.
Outro elemento refere-se às formas de inserção e participação social.
Indivíduos que recebem benefícios, sem nenhuma possibilidade de de­
cidir sobre isso, são negados também como sujeitos (ver Paugam, 1999).
Isso será vivenciado e produzirá efeitos de subjetivação que terão seus
desdobramentos. Há aí uma dimensão subjetiva.
Alguns outros exemplos de análise de fenômenos sociais podem aju­
dar a avançar na compreensão que aqui se defende.
A desigualdade social (talvez nossa mais importante questão social),
que tem caracterizado nossa sociedade, tem sido estudada em várias de
suas dimensões: econômica, sociológica, jurídica, antropológica e outras.
A dimensão subjetiva tem sido relegada, e a Psicologia Social tem contri­
buído pouco para que essa dimensão tenha visibilidade.
A dimensão subjetiva da desigualdade social está posta na presença
dos sujeitos, presença essa que caracteriza e constitui o fenômeno. Não
se pode estudar a desigualdade social como se ela existisse apenas para
além e fora dos sujeitos que se relacionam e constroem a desigualdade.
Evidentemente, a desigualdade é produzida pela divisão da sociedade
em classes, pela divisão desigual da riqueza produzida, pela determina­
ção de lugares diferentes a serem ocupados por diferentes grupos sociais
na organização que define as formas de produção e distribuição de ri­
quezas. Nesse sentido, podem-se apontar aspectos da realidade, como a
distribuição desigual da riqueza, como a base material da desigualdade.
150
BOCK • GONÇALVES
Mas essa distribuição acontece e se reproduz cotidianamente pela atua­
ção de sujeitos, os quais, além de desenvolver uma atividade delimitada
pelas relações concretas e objetivas, também desenvolvem atividade sub­
jetiva. Produzem ideias e valores que representam a realidade vivida e
que compõem essa mesma realidade, porque são sujeitos que produzem
subjetividade, na dialética já apontada.
Os processos sociais que implicam produção de alienação e ideolo­
gia estão presentes aqui e também se tornam mediações constitutivas da
dimensão subjetiva desse fenômeno. Ou seja, a produção subjetiva está
articulada às condições objetivas em que se dá e nas quais opera e resul­
ta em produtos, tais como a ideologia, reveladores desse processo. Tais
processos e condições objetivas estão constituídos com base nas contra­
dições, por isso a dimensão subjetiva do fenômeno social será também
contraditória.
Compreender a relação indivíduo-sociedade no mundo desigual tor­
na indispensável que se compreendam os indivíduos que se fazem pre­
sentes e ativos na produção da desigualdade e que se compreendam os
produtos coletivos que esses “sócios" criam e que vão caracterizando a
realidade social que adjetivamos como desigual. A vivência, quase nun­
ca explícita, mas tomada como natural, da subalternidade é exemplo dis­
so. Indivíduos que estão em lugares desiguais se põem como "acima" ou
"abaixo" uns dos outros sem que isso esteja posto em questão.
A Psicologia Social deve, assim, ao estudar o fenômeno da desigual­
dade social, por exemplo, buscar a presença do sujeito, afirmando a uni­
dade dialética entre indivíduo e sociedade.
Conceitos como humilhação social (Gonçalves Filho, 2007,2004,1998)
ou sofrimento ético-político (Sawaia, 1998) são importantes sistematiza­
ções que caracterizam a dimensão subjetiva das situações de dominação
e desigualdade sociaL Há sujeitos que sentem e com suas formas de sen­
tir constituem a realidade social da desigualdade. Há sentidos subjetivos
constituídos; há significados partilhados e todos eles são também aspec­
tos do fenômeno. Não se quer aqui pensar esses aspectos como mera con­
sequência de situações sociais de desigualdade, pois eles não o são. São,
ao contrário, aspectos que compõem o fenômeno da desigualdade, que
A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 151
só se apresenta como tal porque sujeitos participam de sua constituição,
com seus sentimentos, ações, formas de pensar e de sentir.
Sabe-se hoje que os sujeitos, que ocupam diferentes lugares nas re­
lações sociais desiguais, têm participações distintas na esfera social. Há
sujeitos doadores e há sujeitos receptores; há os que têm propriedades e
os que não as tem; há os que se pensam desiguais porque tomam o outro
como o padrão ou modelo. Formas diferentes de sentir e de pensar cons­
tituindo relações de submissão. São formas reveladoras, ao mesmo tem­
po, de possibilidades contraditórias, considerando a tensão permanente
entre a alienação produzida nos esquemas sociais que isolam e apartam
os indivíduos, naturalizando fenômenos históricos, por um lado, e, por
outro, a presença de indivíduos vivos que geram sentidos subjetivos. É a
dimensão subjetiva do fenômeno social que precisa ter visibilidade para
que se compreenda de forma mais complexa e completa o fenômeno so­
cial que se estuda, em seu processo contraditório de constituição.
A Psicologia Social deve ultrapassar sua tradição de nomear objetos
ou reproduzir, no seu campo, leituras construídas em outras áreas do sa­
ber que, apesar de importantes, descaracterizam a especificidade da Psi­
cologia, para contribuir com explicações que dão visibilidade à presença
do sujeito na construção dos fenômenos coletivos.
A configuração da violência como fenômeno social deve também con­
siderar os mesmos pressupostos. É preciso reconhecer a produção do fenô­
meno a partir da materialidade e da historicidade das relações sociais.
A dimensão subjetiva nesse fenômeno social também deve ser vista da
perspectiva da dialética subjetividade-objetividade e indivíduo-socieda­
de. As visões naturalizantes culpabilizam os indivíduos pelos problemas
sociais ou apontam certo esquema social abstrato como responsável por
"desvios" dos indivíduos.7A visão sócio-histórica aponta a complexida­
de do fenômeno, que inclui uma dimensão subjetiva na qual se imbricam
aspectos subjetivos individuais que constituem os fenômenos sociais; as­
pectos objetivos dos quais se apropriam os indivíduos e que constituem
7. Tais análises são bom exemplo da dicotomia indivíduo-sociedade presente na Psicologia So­
cial, à qual já nos referimos anteriormente.
152 BOCK • GONÇALVES
sua subjetividade; e aspectos subjetivos que já estão incorporados à ob­
jetividade e dela fazem parte.
Por exemplo, a dimensão cultural da violência, ou seja, a violência
como valor que perpetua as relações da sociabilidade cotidiana de cer­
tos grupos e de certas comunidades, é um produto subjetivo social; é a
dimensão subjetiva presente no fenômeno social da violência. Seria um
desafio para a Psicologia encontrar mecanismos de reversão de um con­
texto social em que há socialização para a violência.8
Os estudos de Coimbra (2001) a respeito da produção ideológica
realizada pela mídia sobre as "classes perigosas" mostram-nos, com cla­
reza, que as noções de violência são produzidas socialmente. O domínio
da elite sobre a mídia facilita a expansão de seus conceitos para toda a
sociedade e esse processo vai produzindo "certezas" e critérios de julga­
mento sobre quem é violento ou o que é violência em nossa sociedade,
atingindo, como mostra Coimbra, em especial, a camada pobre da socie­
dade que passa a ser vista como "classe perigosa".
Pensar (...) como certas subjetividades tão presentes no cotidiano das gran­
des cidades brasileiras — aplausos e apoios aos extermínios e chacinas,
aos linchamentos, à pena de morte e às mais diferentes violações de direi­
tos humanos — são construções competentes e eficazes advindas de dife­
rentes equipamentos sociais, é um dos objetivos deste trabalho. (Coimbra,
2001, p. 18)
Outro aspecto importante do tema da violência é que, quando não nos
detemos na compreensão da dimensão subjetiva dos fenômenos, deixamos
de diferenciar situações e sujeitos que, em diferentes cenários, produzem
ações com intenções diversas, mas que nossa superficialidade e ideologia
reúnem sob o mesmo título. Assim, pessoas que lutam pela sobrevivência
combatendo adversidades se misturam, nos conceitos de violência, com
8. Ver no relatório do I Seminário de Psicologia e Políticas Públicas, do Conselho Federal de Psi­
cologia (2001), a fala de Luís Flávio Sapori, com uma análise sobre segurança pública a partir desse
viés das relações de sociabilidade.
A DIMENSÃO SUBIETIVA DA KfALIDADE 153
representantes do Estado que abusam da autoridade e da força em nome
de uma "ordem" suoosta e imposta a todos. A violência vista sem consi­
deração aos determinantes sociais, econômicos, antropológicos e psicoló­
gicos é pura ideologia. À Psicologia Social cabe contribuir para a análise
completa e complexa do fenômeno, dando visibilidade a aspectos que são
de natureza subjetiva, no âmbito individual e/ou coletivo.
O desafio nestas construções teóricas é exatamente escapar do vício
da dicotomia. É preciso pensar sujeito e sociedade (fenômenos sociais)
se constituindo em um mesmo processo, no qual existem estes dois âm­
bitos, que são fundamentais para a compreensão da totalidade do real.
Outro desafio é conhecer o fenômeno em seu processo histórico de cons­
tituição. A realidade não está dada; ela está em movimento e deve ser
conhecida na sua dialética. Os sujeitos e a sociedade são construídos em
um único processo.
Por que defender visões históricas?
Se não há conhecimento neutro, há que se fazer escolhas.
A defesa que se faz aqui de visões que não naturalizem os fenôme­
nos sociais tem um de seus argumentos mais fortes no projeto de uma
Psicologia que se ponha efetivamente comprometida com as urgências
de nossas sociedades de Terceiro Mundo. Nada está dado; nada é imutá­
vel; tudo pode e deve ser modificado pelos humanos que partilham um
tempo histórico. A Psicologia pode e deve reforçar ideias que permitam
aos sujeitos se pensarem como ativos, sociais e históricos, responsáveis
pelo seu tempo e pelas condições de vida.
As perspectivas históricas permitem acreditar que não há um único
modo verdadeiro de se estar no mundo. Há muitas possibilidades, pois
o humano está em permanente construção.
Permitem-nos ainda nos pensarmos como responsáveis pelo mundo
que temos; construímos ou reconstruímos o mundo todos os dias com
nossas ações, nossas ideias, nossos afetos. A forma como pensamos e
154
BOCK • GONÇALVES
agimos constitui o mundo da forma como se encontra. Somos responsá­
veis pelo mundo que temos e podemos querer que seja diferente.
É neste campo que se coloca a ideia de projeto. Para que se possa
estar no mundo de modo responsável é preciso escolher que projeto de
sociedade e de humano desejamos incentivar com nossas explicações e
com nossos fazeres profissionais.
Anoldo Rodrigues pensou a ciência como algo à parte da política, da
ação cidadã de cada um. Aqui se pensa a ciência como sempre comprome­
tida com algum projeto que circula na sociedade. A Associação Brasileira
de Psicologia Social nasce guiada por esta outra perspectiva.
Infelizmente não produzimos até hoje conhecimento científico radicalizado
na reflexãosobre nossa própria realidade social e, emdecorrência, continua­
mos a importar teorias psicológicas nem sempre aplicáveis. Adependência
cultural temse refletido até mesmo nos temas mais frequentes da investiga­
ção da Psicologia Social, geralmente escolhidos sem qualquer preocupação
com aspectos de relevância ou aplicabilidade ao contexto brasileiro. Assim
(...) não temos utilizado esta ciência para responder às questões sociais es­
pecíficas do momento histórico que vivemos. (Anais do I Encontro Nacio­
nal de Psicologia Social, apud Lane, 1981, p. 84)
E como se pensa o sujeito como ativo, social e histórico, se acredi­
ta na sua possibilidade de escolha, ou seja, de adesão a um dos projetos
em circulação e disputa nos espaços sociais. A ciência não é ingênua e
deve, pois, explicitar seus pressupostos e suas concepções de homem e
de mundo para que se possa dialogar com seus saberes tanto do ponto
de vista da lógica de suas ideias, quanto do projeto social que incentiva
e ajuda a desenvolver.
Finalizamos com Lane, que reconhecemos como importante referên­
cia neste caminho. Ao afirmar que toda a psicologia é social, defendendo
que se assuma a natureza histórico-social do ser humano, conclui:
"Porém, agora, a Psicologia Social poderá responder à questão de
como o homem é sujeito da História e transformador de sua própria
vida e da sua sociedade, assim como qualquer outra área da Psicologia".
(Lane, 1984, p. 19)
A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 155
Referências bibliográficas
BOCK, A. M. B. Aventuras do Barão de Munchhausen na Psicologia. São Paulo: Cor-
tez/EDUC, 1999.
CASTELL, R. As transformações da questão social. In: WANDERLEY, M. B.;
BÓGUS, L.; YAZBEK, C. (orgs.). Desigualdade e a questão social. São Paulo: EDUC,
2000, p. 235-264.
, CHAUI, M. Convite à Filosofia. 3. ed. São Paulo: Ática, 1995.
COIMBRA, C. Operação Rio: o mito das classes perigosas. Rio de Janeiro/Niterói:
Oficina do Autor/Intertexto, 2001.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relatório do I Seminário Nacional
de Psicologia e Políticas Públicas — políticas públicas como um desafio para os
psicólogos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001, p. 87-109. Também disponível
em: <www.pol.org.br>.
FURTADO, O. O psiquismo e a subjetividade social. In: BOCK, A. M. B.; GON­
ÇALVES, M. G. M.; FURTADO, O. (orgs.). Psicologia Sócio-Histórica, uma perspecti­
va crítica em Psicologia. São Paulo: Cortez, 2001, p. 75-94.
_____ . As dimensões subjetivas da realidade — uma discussão sobre a dicoto­
mia entre a subjetividade e a objetividade no campo social. In: FURTADO, O.;
GONZÁLEZ REY, F. L. (orgs.). Por uma epistemología da subjetividade: um deba­
te entre a teoria sócio-histórica e a teoria das representações sociais. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2002, p. 91-105.
GONÇALVES FILHO, J. M. Humilhação social: um problema político em Psico­
logia. Psicologia USP, v. 9, n. 2, p. 11-67,1998.
_____ .Ainvisibilidade pública (prefácio). In: COSTA, F. B. Homens invisíveis: re­
latos de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004, p. 9-47.
_____ . Humilhação social: humilhação política. In: SOUZA, B. P. (org.). Orien­
tação à queixa escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 187-221.
GONÇALVES, M. G. M. A Psicologia como ciência do sujeito e da subjetivida­
de: a historicidade como noção básica. In? BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G.
M.; FURTADO, O. (orgs.). Psicologia Sócio-Histórica: uma perspectiva crítica em
Psicologia. São Paulo: Cortez, 2001a, p. 37-52.

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Texto complem. 2 método dialético
Texto complem. 2 método dialéticoTexto complem. 2 método dialético
Texto complem. 2 método dialéticoPsicologia_2015
 
Slide: A psicologia social e uma nova concepção do homem para a psicologia
Slide: A psicologia social e uma nova concepção do homem para a psicologiaSlide: A psicologia social e uma nova concepção do homem para a psicologia
Slide: A psicologia social e uma nova concepção do homem para a psicologiaUniversidade de Fortaleza
 
Roteiro de aula: Psicologia Social Contemporânea
Roteiro de aula: Psicologia Social ContemporâneaRoteiro de aula: Psicologia Social Contemporânea
Roteiro de aula: Psicologia Social ContemporâneaLucas Rodrigues
 
Histórico da psicologia social
Histórico da psicologia socialHistórico da psicologia social
Histórico da psicologia socialmnatrodrigues
 
Psicologia social
Psicologia socialPsicologia social
Psicologia socialIsac Soares
 
O ensino de Psicologia Social
O ensino de Psicologia SocialO ensino de Psicologia Social
O ensino de Psicologia Socialmnatrodrigues
 
Fundamentos da Psicologia Social
Fundamentos da Psicologia SocialFundamentos da Psicologia Social
Fundamentos da Psicologia SocialMarcos Pereira
 
229094384.gohn teoria dos movimientos sociais
229094384.gohn   teoria dos movimientos sociais229094384.gohn   teoria dos movimientos sociais
229094384.gohn teoria dos movimientos sociaisAlessandro Aoki
 
A psicologia social contemporânea perspectivas nacionais e internacionais
A psicologia social contemporânea  perspectivas nacionais e internacionaisA psicologia social contemporânea  perspectivas nacionais e internacionais
A psicologia social contemporânea perspectivas nacionais e internacionaisellen1066
 
Resumo de Introdução a Sociologia
Resumo de Introdução a SociologiaResumo de Introdução a Sociologia
Resumo de Introdução a SociologiaJosenilson S'ilva
 
O que é a psicologia social silvia t. maurer lane
O que é a psicologia social   silvia t. maurer laneO que é a psicologia social   silvia t. maurer lane
O que é a psicologia social silvia t. maurer laneLeandro Santos da Silva
 
Escola Funcionalista
Escola  FuncionalistaEscola  Funcionalista
Escola FuncionalistaOmec
 
Aula 1 e 2 rumos e percursos em psicologia social
Aula 1 e 2 rumos e percursos em psicologia socialAula 1 e 2 rumos e percursos em psicologia social
Aula 1 e 2 rumos e percursos em psicologia socialFranjone De Lima Souza
 
A ciência e os avanços do conhecimento em sociologia
A ciência e os avanços do conhecimento em sociologiaA ciência e os avanços do conhecimento em sociologia
A ciência e os avanços do conhecimento em sociologiaFernando Alcoforado
 
Andrada e souza, 2012
Andrada e souza, 2012Andrada e souza, 2012
Andrada e souza, 2012prosped
 
Análise institucional e pesquisas sócio-históricas: estado atual e novas pers...
Análise institucional e pesquisas sócio-históricas: estado atual e novas pers...Análise institucional e pesquisas sócio-históricas: estado atual e novas pers...
Análise institucional e pesquisas sócio-históricas: estado atual e novas pers...Flávia Rodrigues
 

Mais procurados (20)

Texto complem. 2 método dialético
Texto complem. 2 método dialéticoTexto complem. 2 método dialético
Texto complem. 2 método dialético
 
Slide: A psicologia social e uma nova concepção do homem para a psicologia
Slide: A psicologia social e uma nova concepção do homem para a psicologiaSlide: A psicologia social e uma nova concepção do homem para a psicologia
Slide: A psicologia social e uma nova concepção do homem para a psicologia
 
Roteiro de aula: Psicologia Social Contemporânea
Roteiro de aula: Psicologia Social ContemporâneaRoteiro de aula: Psicologia Social Contemporânea
Roteiro de aula: Psicologia Social Contemporânea
 
Histórico da psicologia social
Histórico da psicologia socialHistórico da psicologia social
Histórico da psicologia social
 
Psicologia social
Psicologia socialPsicologia social
Psicologia social
 
Silvia lane
Silvia laneSilvia lane
Silvia lane
 
O ensino de Psicologia Social
O ensino de Psicologia SocialO ensino de Psicologia Social
O ensino de Psicologia Social
 
Fundamentos da Psicologia Social
Fundamentos da Psicologia SocialFundamentos da Psicologia Social
Fundamentos da Psicologia Social
 
psicologia social e trabalho pdf
psicologia social e trabalho pdf psicologia social e trabalho pdf
psicologia social e trabalho pdf
 
229094384.gohn teoria dos movimientos sociais
229094384.gohn   teoria dos movimientos sociais229094384.gohn   teoria dos movimientos sociais
229094384.gohn teoria dos movimientos sociais
 
3. psicologia social
3. psicologia social3. psicologia social
3. psicologia social
 
A psicologia social contemporânea perspectivas nacionais e internacionais
A psicologia social contemporânea  perspectivas nacionais e internacionaisA psicologia social contemporânea  perspectivas nacionais e internacionais
A psicologia social contemporânea perspectivas nacionais e internacionais
 
Resumo de Introdução a Sociologia
Resumo de Introdução a SociologiaResumo de Introdução a Sociologia
Resumo de Introdução a Sociologia
 
psicologia social
psicologia socialpsicologia social
psicologia social
 
O que é a psicologia social silvia t. maurer lane
O que é a psicologia social   silvia t. maurer laneO que é a psicologia social   silvia t. maurer lane
O que é a psicologia social silvia t. maurer lane
 
Escola Funcionalista
Escola  FuncionalistaEscola  Funcionalista
Escola Funcionalista
 
Aula 1 e 2 rumos e percursos em psicologia social
Aula 1 e 2 rumos e percursos em psicologia socialAula 1 e 2 rumos e percursos em psicologia social
Aula 1 e 2 rumos e percursos em psicologia social
 
A ciência e os avanços do conhecimento em sociologia
A ciência e os avanços do conhecimento em sociologiaA ciência e os avanços do conhecimento em sociologia
A ciência e os avanços do conhecimento em sociologia
 
Andrada e souza, 2012
Andrada e souza, 2012Andrada e souza, 2012
Andrada e souza, 2012
 
Análise institucional e pesquisas sócio-históricas: estado atual e novas pers...
Análise institucional e pesquisas sócio-históricas: estado atual e novas pers...Análise institucional e pesquisas sócio-históricas: estado atual e novas pers...
Análise institucional e pesquisas sócio-históricas: estado atual e novas pers...
 

Semelhante a Texto 8 sócio histórica

Introdução psi social.pdf
Introdução psi social.pdfIntrodução psi social.pdf
Introdução psi social.pdfEraldo Carlos
 
PT Phases of the Vocational Guidance Process by Slidesgo.pptx
PT Phases of the Vocational Guidance Process by Slidesgo.pptxPT Phases of the Vocational Guidance Process by Slidesgo.pptx
PT Phases of the Vocational Guidance Process by Slidesgo.pptxJulianaGama27
 
Estereótipos femininos fomentados pelos meios de comunicação
Estereótipos femininos fomentados pelos meios de comunicaçãoEstereótipos femininos fomentados pelos meios de comunicação
Estereótipos femininos fomentados pelos meios de comunicaçãoCassia Barbosa
 
Psicologia, subjetividade e políticas públicas
Psicologia, subjetividade e políticas públicasPsicologia, subjetividade e políticas públicas
Psicologia, subjetividade e políticas públicasLOCIMAR MASSALAI
 
Uma reflexão sobre a psicologia social comunitária
Uma reflexão sobre a psicologia social comunitáriaUma reflexão sobre a psicologia social comunitária
Uma reflexão sobre a psicologia social comunitáriaIsabella Costa
 
87115298 moscovici-representacoes-sociais
87115298 moscovici-representacoes-sociais87115298 moscovici-representacoes-sociais
87115298 moscovici-representacoes-sociaissioliv
 
Teoria das representações sociais
Teoria das representações sociaisTeoria das representações sociais
Teoria das representações sociaisJhonata Andrade
 
Teoria das representações sociais
Teoria das representações sociaisTeoria das representações sociais
Teoria das representações sociaisJhonata Andrade
 
Relatório final de pesquisa
Relatório final de pesquisaRelatório final de pesquisa
Relatório final de pesquisaRomario Sousa
 
Psicodrama e dinamica_de_grupo
Psicodrama e dinamica_de_grupoPsicodrama e dinamica_de_grupo
Psicodrama e dinamica_de_grupoIvo Fonseca
 
violência - professor
violência - professorviolência - professor
violência - professornandatinoco
 
Rcabecinhas paideia 2004.pdf artigo psicologia
Rcabecinhas paideia 2004.pdf artigo psicologiaRcabecinhas paideia 2004.pdf artigo psicologia
Rcabecinhas paideia 2004.pdf artigo psicologiaGisa Carvalho
 

Semelhante a Texto 8 sócio histórica (20)

Introdução psi social.pdf
Introdução psi social.pdfIntrodução psi social.pdf
Introdução psi social.pdf
 
PT Phases of the Vocational Guidance Process by Slidesgo.pptx
PT Phases of the Vocational Guidance Process by Slidesgo.pptxPT Phases of the Vocational Guidance Process by Slidesgo.pptx
PT Phases of the Vocational Guidance Process by Slidesgo.pptx
 
Artigo - A psicologia social
Artigo - A psicologia socialArtigo - A psicologia social
Artigo - A psicologia social
 
Estereótipos femininos fomentados pelos meios de comunicação
Estereótipos femininos fomentados pelos meios de comunicaçãoEstereótipos femininos fomentados pelos meios de comunicação
Estereótipos femininos fomentados pelos meios de comunicação
 
Psicologia, subjetividade e políticas públicas
Psicologia, subjetividade e políticas públicasPsicologia, subjetividade e políticas públicas
Psicologia, subjetividade e políticas públicas
 
Uma reflexão sobre a psicologia social comunitária
Uma reflexão sobre a psicologia social comunitáriaUma reflexão sobre a psicologia social comunitária
Uma reflexão sobre a psicologia social comunitária
 
87115298 moscovici-representacoes-sociais
87115298 moscovici-representacoes-sociais87115298 moscovici-representacoes-sociais
87115298 moscovici-representacoes-sociais
 
Teoria das representações sociais
Teoria das representações sociaisTeoria das representações sociais
Teoria das representações sociais
 
Teoria das representações sociais
Teoria das representações sociaisTeoria das representações sociais
Teoria das representações sociais
 
Apostila sociologia
Apostila sociologiaApostila sociologia
Apostila sociologia
 
Apostila sociologia (1)
Apostila sociologia (1)Apostila sociologia (1)
Apostila sociologia (1)
 
Apostila sociologia - eja fácil
Apostila sociologia - eja fácilApostila sociologia - eja fácil
Apostila sociologia - eja fácil
 
264. projeto despertar
264. projeto despertar264. projeto despertar
264. projeto despertar
 
264. projeto despertar
264. projeto despertar264. projeto despertar
264. projeto despertar
 
Relatório final de pesquisa
Relatório final de pesquisaRelatório final de pesquisa
Relatório final de pesquisa
 
Psicodrama e dinamica_de_grupo
Psicodrama e dinamica_de_grupoPsicodrama e dinamica_de_grupo
Psicodrama e dinamica_de_grupo
 
Texto 4
Texto 4Texto 4
Texto 4
 
violência - professor
violência - professorviolência - professor
violência - professor
 
Apresentação Teoria Sociocultural
Apresentação Teoria SocioculturalApresentação Teoria Sociocultural
Apresentação Teoria Sociocultural
 
Rcabecinhas paideia 2004.pdf artigo psicologia
Rcabecinhas paideia 2004.pdf artigo psicologiaRcabecinhas paideia 2004.pdf artigo psicologia
Rcabecinhas paideia 2004.pdf artigo psicologia
 

Último

A Arte de Escrever Poemas - Dia das Mães
A Arte de Escrever Poemas - Dia das MãesA Arte de Escrever Poemas - Dia das Mães
A Arte de Escrever Poemas - Dia das MãesMary Alvarenga
 
A horta do Senhor Lobo que protege a sua horta.
A horta do Senhor Lobo que protege a sua horta.A horta do Senhor Lobo que protege a sua horta.
A horta do Senhor Lobo que protege a sua horta.silves15
 
RedacoesComentadasModeloAnalisarFazer.pdf
RedacoesComentadasModeloAnalisarFazer.pdfRedacoesComentadasModeloAnalisarFazer.pdf
RedacoesComentadasModeloAnalisarFazer.pdfAlissonMiranda22
 
Slide língua portuguesa português 8 ano.pptx
Slide língua portuguesa português 8 ano.pptxSlide língua portuguesa português 8 ano.pptx
Slide língua portuguesa português 8 ano.pptxssuserf54fa01
 
Modelos de Desenvolvimento Motor - Gallahue, Newell e Tani
Modelos de Desenvolvimento Motor - Gallahue, Newell e TaniModelos de Desenvolvimento Motor - Gallahue, Newell e Tani
Modelos de Desenvolvimento Motor - Gallahue, Newell e TaniCassio Meira Jr.
 
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdfWilliam J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdfAdrianaCunha84
 
Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029
Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029
Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029Centro Jacques Delors
 
ALMANANHE DE BRINCADEIRAS - 500 atividades escolares
ALMANANHE DE BRINCADEIRAS - 500 atividades escolaresALMANANHE DE BRINCADEIRAS - 500 atividades escolares
ALMANANHE DE BRINCADEIRAS - 500 atividades escolaresLilianPiola
 
Bullying - Atividade com caça- palavras
Bullying   - Atividade com  caça- palavrasBullying   - Atividade com  caça- palavras
Bullying - Atividade com caça- palavrasMary Alvarenga
 
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptxATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptxOsnilReis1
 
Literatura Brasileira - escolas literárias.ppt
Literatura Brasileira - escolas literárias.pptLiteratura Brasileira - escolas literárias.ppt
Literatura Brasileira - escolas literárias.pptMaiteFerreira4
 
1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.
1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.
1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.MrPitobaldo
 
Bullying - Texto e cruzadinha
Bullying        -     Texto e cruzadinhaBullying        -     Texto e cruzadinha
Bullying - Texto e cruzadinhaMary Alvarenga
 
LEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃO
LEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃOLEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃO
LEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃOColégio Santa Teresinha
 
Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptx
Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptxSlides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptx
Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptxLuizHenriquedeAlmeid6
 
ABRIL VERDE.pptx Slide sobre abril ver 2024
ABRIL VERDE.pptx Slide sobre abril ver 2024ABRIL VERDE.pptx Slide sobre abril ver 2024
ABRIL VERDE.pptx Slide sobre abril ver 2024Jeanoliveira597523
 
Cenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicas
Cenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicasCenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicas
Cenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicasRosalina Simão Nunes
 
D9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptx
D9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptxD9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptx
D9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptxRonys4
 

Último (20)

A Arte de Escrever Poemas - Dia das Mães
A Arte de Escrever Poemas - Dia das MãesA Arte de Escrever Poemas - Dia das Mães
A Arte de Escrever Poemas - Dia das Mães
 
A horta do Senhor Lobo que protege a sua horta.
A horta do Senhor Lobo que protege a sua horta.A horta do Senhor Lobo que protege a sua horta.
A horta do Senhor Lobo que protege a sua horta.
 
RedacoesComentadasModeloAnalisarFazer.pdf
RedacoesComentadasModeloAnalisarFazer.pdfRedacoesComentadasModeloAnalisarFazer.pdf
RedacoesComentadasModeloAnalisarFazer.pdf
 
CINEMATICA DE LOS MATERIALES Y PARTICULA
CINEMATICA DE LOS MATERIALES Y PARTICULACINEMATICA DE LOS MATERIALES Y PARTICULA
CINEMATICA DE LOS MATERIALES Y PARTICULA
 
Slide língua portuguesa português 8 ano.pptx
Slide língua portuguesa português 8 ano.pptxSlide língua portuguesa português 8 ano.pptx
Slide língua portuguesa português 8 ano.pptx
 
Modelos de Desenvolvimento Motor - Gallahue, Newell e Tani
Modelos de Desenvolvimento Motor - Gallahue, Newell e TaniModelos de Desenvolvimento Motor - Gallahue, Newell e Tani
Modelos de Desenvolvimento Motor - Gallahue, Newell e Tani
 
Orientação Técnico-Pedagógica EMBcae Nº 001, de 16 de abril de 2024
Orientação Técnico-Pedagógica EMBcae Nº 001, de 16 de abril de 2024Orientação Técnico-Pedagógica EMBcae Nº 001, de 16 de abril de 2024
Orientação Técnico-Pedagógica EMBcae Nº 001, de 16 de abril de 2024
 
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdfWilliam J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
 
Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029
Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029
Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029
 
ALMANANHE DE BRINCADEIRAS - 500 atividades escolares
ALMANANHE DE BRINCADEIRAS - 500 atividades escolaresALMANANHE DE BRINCADEIRAS - 500 atividades escolares
ALMANANHE DE BRINCADEIRAS - 500 atividades escolares
 
Bullying - Atividade com caça- palavras
Bullying   - Atividade com  caça- palavrasBullying   - Atividade com  caça- palavras
Bullying - Atividade com caça- palavras
 
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptxATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
 
Literatura Brasileira - escolas literárias.ppt
Literatura Brasileira - escolas literárias.pptLiteratura Brasileira - escolas literárias.ppt
Literatura Brasileira - escolas literárias.ppt
 
1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.
1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.
1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.
 
Bullying - Texto e cruzadinha
Bullying        -     Texto e cruzadinhaBullying        -     Texto e cruzadinha
Bullying - Texto e cruzadinha
 
LEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃO
LEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃOLEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃO
LEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃO
 
Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptx
Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptxSlides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptx
Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptx
 
ABRIL VERDE.pptx Slide sobre abril ver 2024
ABRIL VERDE.pptx Slide sobre abril ver 2024ABRIL VERDE.pptx Slide sobre abril ver 2024
ABRIL VERDE.pptx Slide sobre abril ver 2024
 
Cenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicas
Cenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicasCenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicas
Cenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicas
 
D9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptx
D9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptxD9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptx
D9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptx
 

Texto 8 sócio histórica

  • 1. Ado . ^ Q S - t t 4 A dimensão subjetiva dos fenômenos sociais Maria da Graça Marchina Gonçalves Ana Mercês Bahia Bock A dificuldade de definição da psicologia social reside na impreci­ são dos seus objetivos. Sendo uma disciplina relativamente recen­ te, não há ainda acordo, no campo dos seus cultores, no sentido de delimitar-lhe os objetivos nítidos e a extensão de suas apli­ cações. Enquanto que, para uns, a psicologia social se aproxima da psicologia (McDougall), para outros, o seu objeto de estudo se confunde com o da sociologia (Ellwood, Ross). O parágrafo acima abre o primeiro capítulo do livro Introdução à Psi­ cologia Social, de Arthur Ramos, publicado em 1936 (2003, p. 27) e consi­ derado como a segunda publicação brasileira na área. A dúvida sobre a natureza da Psicologia Social é tomada como questão importante na pu­ blicação que é resultado, como afirma o próprio autor, de suas aulas do curso de Psicologia Social na Universidade do Distrito Federal, em 1935. Em seu prefácio, Ramos afirma que a "(...) Psicologia Social está assumin­ do uma importância cada vez maior, embora sem nitidez definitiva nos seus métodos e nos seus objetivos". (Ramos, 2003, p. 23)
  • 2. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 117 As várias tendências destacadas naquele momento demonstravam a preocupação em definir a Psicologia Social como uma área da Psicolo­ gia ou da Sociologia. Interessante ainda registrar que Ramos afirma, para organizar seu livro, que a Psicologia Social estuda três ordens gerais de fenômenos: (...) Em primeiro lugar, a psicologia social estuda as bases psicológicas do comportamento social epor aí se aproxima da psicologia do indivíduo. Em seguida, estuda as inter-relações psicológicas dos indivíduos na vida social. Toma-se então uma interpsicologia, no velho sentido de Tarde. Por fim, a psicologia social tem de considerar a influência total dos grupos sobre a personalidade. Ela será então uma sociologia psicológica e uma psicologia cultural. (Ramos, 2003, p. 36) Talvez essas citações já sejam suficientes para falarmos da dicotomia Lndivíduo/sociedade presente na Psicologia Social, a qual tomaremos como eixo de nossas reflexões. Mas ainda cabe citar alguns trechos de Ra­ mos (2003) que expõem claramente essa questão, tomada aqui como um dos problemas centrais da indefinição da Psicologia Social. No capítulo 16 de seu livro, capítulo intitulado O indivíduo e o social, Ramos nos diz: O homem isolado é um mito. A sua personalidade só pode ser compreen­ dida dentro do jogo complexo das influências ambientais — físicas, sociais e culturais. Um dos problemas da psicologia social é justamente esse de in­ vestigar a ação total do meio sobre o indivíduo... (Ramos, 2003, p. 237) E continua: ... o grupo social influencia o indivíduo, moldando-o aos seus padrões de atitudes, opiniões ejulgamentos... A"pessoa" é oindivíduo dentrodos seus padrões sociais. O indivíduo vive na sociedade como membro de grupo, como "pessoa", como "socius". A própria consciência da sua individuali­ dade, ele aadquire como membro do grupo social, visto que é determinada pelas relações entre o "eu" e os "outros"... (Ramos, 2003, p. 238)
  • 3. 118 BOCK • GONÇALVES Avançando até 1981, vamos encontrar, em obra de Aroldo Rodrigues, a Psicologia Social definida como o estudo das "manifestações comporta- mentais suscitadas pela interação de uma pessoa com outras pessoas, ou pela mera expectativa de tal interação" (Rodrigues, 1971, p. 3). E seguin­ do no tempo, o próprio Rodrigues et al., em 2000, quando da 18aedição revisada de seu livro Psicologia Social, afirmam de início: Psicologia Social é o estudo científico da influência recíproca entre as pes­ soas (interação social) e do processo cognitivo gerado por esta interação (pensamento social)... Um aperto de mão, uma reprimenda, umelogio, um sorriso, um simples olhar de uma pessoa em direção a outra suscitam nes­ ta última uma resposta que caracterizamos como social. Por sua vez, a res­ posta emitida servirá de estímulo à pessoa que a provocou, gerando por seu turno um outro comportamento desta última, estabelecendo-se assim o processo de interação social. (Rodrigues, et al., 2000, p. 21) Em 1981, Silvia Lane publica O que é a Psicologia Social e questiona a definição da área como sendo o estudo do comportamento dos indiví­ duos no que ele é influenciado socialmente. Lane afirma ser impossível encontrarmos comportamentos que não sejam sociais e conclui: ... a Psicologia Social estuda a relação essencial entre o indivíduo e a socie­ dade, esta entendida historicamente, desde como seus membros se organi­ zam para garantir sua sobrevivência até seus costumes, valores e institui­ çõesnecessáriospara acontinuidadedasociedade... Eagrandepreocupação atual da Psicologia Social é conhecer como ohomem se insere neste proces­ so histórico, não apenas em como ele é determinado, mas principalmente, como ele se toma agente da história, ou seja, como ele pode transformar a sociedade em que vive. (Lane, 1981, p. 10) O pensamento de Lane avança e, em 1984, na publicação histórica Psi­ cologia Social — o homem em movimento (Lane e Codo [orgs.]), Lane afirma: Toda a psicologia é social. Esta afirmação não significa reduzir as áreas específicas da Psicologia à Psi­ cologia Social, mas sim cada uma assumir dentro da sua especificidade a natureza histórico-social do ser humano...
  • 4. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 119 Também com esta afirmação não negamos a especificidade da Psicologia Social — ela continua tendo por objetivo conhecer o Indivíduo no conjun­ to de suas relações sociais, tanto naquilo que lhe é específico como naquilo em que ele é manifestação grupai e social... (Lane, 1984, p. 19) Este percurso que fizemos pretende destacar a dicotomia presente na Psicologia Social e as tentativas de superação dela. Apresentaremos a Psicologia Social de abordagem sócio-histórica como uma das mais bem- -sucedidas nessa empreitada, porque redefine o objeto da Psicologia So­ cial e o recoloca em outras bases epistemológicas, seguindo a trilha de Lane. A divisão (dicotomia) entre o indivíduo e a sociedade, a objetivi­ dade e a subjetividade, o mundo psicológico e o mundo social começa a ser superada trazendo uma nova concepção de ser humano e uma nova visão sobre sua relação com a sociedade. Uma preocupação histórica É preciso que se afirme que há um consenso em todas essas teori­ zações sobre a Psicologia Social, aqui contrapostas: o de compreender a relação que o indivíduo mantém com a sociedade. Desde Wundt esta­ vam postas questões que se colocavam para além do indivíduo. Ele re­ conhecia diferenças entre indivíduos de diferentes culturas, reconhecia os fenômenos sociais e coletivos como relativos ao campo de interesse da Psicologia e considerava que o estudo da consciência por meio da intros- pecção não esgotava a sua complexidade. Contudo, estava em busca de conhecer os processos universais de funcionamento da consciência hu­ mana. Enfatizou métodos que alcançassem essa compreensão e a cons­ trução da sua Psicologia Social terminou pouco difundida, de modo que não se reconhece em sua obra o desenvolvimento de estudos sobre a re­ lação indivíduo-sociedade. O próprio Arthur Ramos, aqui citado, colo­ cou questões dessa natureza quando falou de uma psicologia da cultura. A questão do negro na sociedade brasileira e a formação de uma nação Brasil foram eixos importantes de sua produção. Ramos propunha estu­
  • 5. 120 BOCK • GONÇALVES dar e compreender o que havia de primitivo em nossas heranças cultu­ rais e que seriam empecilhos para o desenvolvimento da nação. Apesar dessa visão, hoje considerada equivocada, na medida em que associava a questão racial ao que havia de primitivo e atrasado em nossa socieda­ de, Ramos enfatizou o estudo do comportamento humano tendo sempre em vista a sua inserção no ambiente social. Que relação mantém o indivíduo com a sociedade? O que somos tem alguma relação com a sociedade em que nos inserimos? Como se dá essa relação? Se tomarmos como referência as duas "pontas teóricas" que apresen­ tamos — Ramos e Lane —, podemos verificar que as perspectivas para a resposta são diversas: Ramos pensava o homem como influenciado pelo meio e considerava assim as influências do meio sobre a personalidade. Rodrigues coloca-se neste campo afirmando a Psicologia Social como es­ tudo da interação e do pensamento social decorrente da interação. Lane, por outro lado, busca superar essas visões, desafiando a Psicologia a pen­ sar o humano como transformador, como sujeito ativo, protagonista de sua história e de sua sociedade. A relação indivíduo — sociedade estava lá, posta nessas abordagens. Está, entretanto, posta a partir de diferentes concepções metodológicas de como se dá a relação, as quais compreen­ dem homem e sociedade de maneiras diversas. A compreensão desde a raiz da proposição de Silvia Lane, que inau­ gura no Brasil a concepção sócio-histórica, requer o esclarecimento des­ sas diferenças. A dicotomia como divisor de águas O pensamento moderno científico afirmou-se desde o início como objetivo e neutro. Isso distinguia a ciência do senso comum. Apostou-se então no método como forma de garantir a neutralidade e a objetivida­ de, já que o cientista também era dotado de uma subjetividade. Sujeitos pesquisando sujeitos poderiam ser objetivos se se mantivessem rigoro­ samente presos a um método que garantisse a objetividade e afastasse as
  • 6. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 121 possibilidades de contaminação subjetiva, ou seja, de que o pesquisador se misturasse com seu objeto de estudo. Estava posta a dicotomia entre sujeito e objeto: "Produzir conhecimento científico era manter-se, como sujeito, externo ao objeto a ser investigado, fosse qual fosse esse objeto". (Gonçalves e Bock, 2003, p. 42) A dicotomia presente nesta maneira de conceber a relação sujeito-ob­ jeto se estenderá para as formas de conceber a relação sujeito e sociedade; natural e histórico; mundo interno e mundo externo. Não só se estenderá como será a base epistemológica da produção em Psicologia. Na Psicologia Social essa dicotomia se evidenciará na divisão entre psicologias sociais sociológicas e psicológicas. As produções dessas psi­ cologias expressam a busca eterna de encontrar a leitura mais adequada para a realidade: estariam as explicações no âmbito do indivíduo (ten­ dências psicológicas) ou da sociedade (tendências sociológicas)? Foi em busca dessa resposta que a Psicologia Social se desenvolveu, de manei­ ra preponderante, entretanto, sob a égide de concepções objetivistas de ciência. E, juntamente com elas, concepções de neutralidade da ciência, de separação entre o momento do conhecimento e o momento da ação, colocando para o pesquisador em Psicologia Social outra dicotomia a re­ solver: como relacionar pesquisa e ação social? É nesse contexto que o conhecimento que se produz se isenta de questões sociais concretas, aparece apartado dos problemas considerados mais relevantes, afasta-se das questões da realidade social. A naturaliza­ ção dos fenômenos, decorrente da visão dicotômica, leva a formulações abstratas e universais sobre os indivíduos e as sociedades; parece falar do todo, ou de tudo, mas termina por falar de quase nada. É essa a origem da chamada "crise da psicologia social", ocorrida nos anos 1960, muito embora autores como Rodrigues (1978) e Lane (1980 e 1991) tenham for­ mulado análises diferentes dessa crise. Para um — Rodrigues — a crise era devida à falta de cientificidade nessa área. Era preciso ir mais a fundo na pesquisa isenta, na busca dos pro­ cessos universais (e, portanto, naturais), para se avançar no conhecimento da relação indivíduo-sociedade, produzindo pesquisa básica que poderia, em outro contexto, que não o da ciência, resultar em aplicações.
  • 7. 122 BOCK • GONÇALVES Para outra — Lane — a crise era devida, exatamente, à separação entre conhecimento e ação. Apenas o compromisso do cientista com as questões do seu tempo, um compromisso revelado desde a escolha do método e da teoria, poderia proporcionar um conhecimento que contri­ buísse para a transformação da sociedade. Novamente, têm-se diferentes implicações, para o conhecimento e a atuação, a depender de como se lida com a dicotomia estabelecida entre indivíduo e sociedade. Assumimos aqui a versão de Lane, que, com essa visão, inaugura a produção de uma Psicologia Social alternativa, crítica e comprometida com a realidade brasileira e latino-americana. Para ir adiante na explici­ tação das raízes dessas posições e suas diferentes possibilidades é neces­ sário o conhecimento de seus fundamentos, o que remete às produções da Modernidade, exigindo que se aprofunde sua compreensão. O pensamento da Modernidade Vários são os elementos que compõem as elaborações da Moderni­ dade, revelando a complexidade e os aspectos contraditórios do período histórico que representa: racionalismo como pilar central; valorização da ciência racional e empírica; reconhecimento do homem como sujeito epis- têmico; formulações sobre o lugar social do homem e sobre a liberdade; só para apontar, genericamente, alguns deles. Entre essas formulações está uma concepção fundamental, apoiada nos cânones do racionalismo e reveladora, de modo mais concreto, do ho­ mem que surge nesse período: a concepção do homem como indivíduo. Esse homem, por ser racional e considerando-se a universalidade da Razão, é o que é por sua capacidade de pensar por si só, de encontrar nas luzes da Razão as verdades sobre a realidade, natural ou metafísica. Verdades que bem poderiam estar no objeto externo ao homem, ou bem poderiam ser a ele reveladas pelo trabalho da Razão e/ou por seus con­ teúdos próprios (inatos ou a priori).
  • 8. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 123 Mas, além disso, ou juntamente com isso — na verdade, na base dis­ so —, está a experiência concreta dada a esse homem, a experiência de ser e se ver como a "célula" da sociedade. Trata-se do desenvolvimento do capitalismo e da organização social necessária à sua consolidação. A pro­ dução da riqueza e o mercado sob o capital têm sua organização baseada na inserção individual, pois cada um deve negociar sua própria força de trabalho e cada um deve tornar-se um consumidor. O indivíduo aparece, então, como forma primeira e insubstituível de existência. A individua­ lidade é marca e conquista do capitalismo, dada sua forma de organiza­ ção e produção social, mas ela também vai se definindo como modo de ser do homem. O indivíduo é forma de subjetivação. Dois esclarecimentos terminológicos são necessários neste ponto. Primeiro, reafirmar com Dumont (1985, p. 29) os dois sentidos sob os quais a expres­ são "indivíduo" pode ser utilizada: (1) o sujeito empírico da palavra, do pensamento, da vontade, amostra indivisível da espécie humana, tal como o observador o encontra em todas as sociedades; e (2) o sujeito moral, in­ dependente, autônomo, e assim essencialmente não social, tal como se en­ contra, sobretudo, emnossa ideologia moderna de homeme sociedade.1Em decorrência do primeiro esclarecimento, segue-se que o indivíduo é apenas um dos modos de subjetivação possíveis. (Mancebo, 1999, p. 36) Assim, a Modernidade traz a afirmação do homem como indivíduo, sendo que não se trata de tomá-lo como a unidade da espécie ao se fa­ zer essa afirmação. Mais que isso, a sociedade que passa a se formar nes­ se período e virá a ser hegemônica tem como referência fundamental a noção de individualidade, da experiência individual como a base para a organização social. Surge, dessa forma, a experiência humana que passará a ser hege­ mônica e central em toda a histórica ocidental e dominante. Podemos di­ zer que o surgimento do "homem burguês" (Konder, 2000) traz mais do que o surgimento de uma nova classe social. Evidentemente é disso que 1. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
  • 9. 124 BOCK • GONÇALVES se trata. Mas é preciso reconhecer que a forma como essa experiência se impõe objetiva e ideologicamente levará a um aprofundamento da no­ ção de indivíduo que se elabora nos séculos XVII e XVIII, se fortalece no século XIX, atravessa todo o século XX, e chega à contemporaneidade com a insígnia, ainda pouca abalada, de ser uma concepção natural. Não é. A concepção do homem como indivíduo é produto de certa ordem social, que permitiu o desenvolvimento de determinadas experiên­ cias e suas correspondentes representações, tão sólidas e contraditórias quanto a realidade que as possibilita. Não se trata de uma "modelagem" do burguês feita pela burguesia (fenô­ meno que de fato existe, mas permanece restrito ao estaco de classe): trata- se de um condicionamento promovido, não pela burguesia, diretamente, mas pelo conjunto da sociedade burguesa, quer dizer, pelas características do "sistema" social estruturado sob a hegemonia da burguesia. (Konder, 2000, p. 15) A noção de indivíduo foi particularmente importante para o libera­ lismo, que fundamentou nela todas as suas formulações sobre o homem. Mancebo (1999) cita Dumont, o qual estabelece uma distinção entre so­ ciedades e culturas holísticas e as individualistas. As primeiras situam os indivíduos empíricos de acordo com sua posição na estrutura social; os indivíduos são, então, representados por meio de identidades posi­ cionais. Nas segundas, "o valor da identidade individual é dado, sobre­ tudo, pela ideia de autonomia do sujeito em relação ao todo" (Mancebo, 1999, p. 36). Na concepção individualista, o indivíduo tem potencialida­ des "naturais" ou "intrínsecas", pré-existentes à sociedade, e deve reali­ zá-las na vida social. Foi essa referência ao indivíduo como unidade básica da sociedade, com base na qual se estabelecem normas e relações, que fundamentou concepções sociais importantes na organização da sociedade sob a nova estruturação econômica. Segundo Mancebo (1999, p. 36): Pode-se afirmar que o conceito de indivíduo tal qual apresentado acima foi elevado ao nível de bandeira política e realidade econômica pelo libe-
  • 10. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 125 ralismo dos séculos XVII e XVIII, constituindo-se em parcela significativa do imaginário social da modernidade. Para os contratualistas dessa época — Locke, Hobbes, Rousseau — o poder das famílias havia sido substituído politicamente pelo Estado Moderno, constituído, ao menos em tese, pela participação d:reta de indivíduos. Os contornos básicos desse novo ideá­ rio seriam: a liberdade (inclusive em relação à própria coletividade na qual vive, implicando direito de escolha, liberdade de ação e de participação), a igualdade (ontológica e legal, implicando direitos inalienáveis, públicos, reconhecidos por todos), aconsciência individual acentuada (razão própria, emoções e sentimentos próprios, singulares e únicos) e a consideração do homem como unidade básica da sociedade na qual participa diretamente sem mediações. Neste momento podemos dizer que já são dois os aspectos que nos podem levar a entender a postulação de explicações psicológicas ou so­ ciológicas para a relação indivíduo e sociedade. Um deles claramente epistemológico, nos mostra como a separação entre sujeito e objeto, como forma de se chegar à objetividade do conhecimento, induz à separação entre indivíduo e sociedade, porque: 1) estende a visão de exterioridade a toda relação de que se trata, pois é uma visão metodológica que orienta a forma de abordar o objeto do conhecimento, nesse caso, entendendo-se como objeto a relação indivíduo-sociedade; a implicação é a visão de exte­ rioridade entre indivíduo e sociedade; 2) busca a objetividade do conheci­ mento sobre o indivíduo e a sociedade de maneira objetivista, reduzindo os processos de relação a uma imediaticidade e a uma linearidade condi­ zentes com essa maneira de abordar a realidade para conhecê-la. O outro é um aspecto ontológico, que permite apontar característi­ cas, historicamente constituídas, do ser do qual se trata, o homem indi­ víduo, assim concebido com base em experiências concretas ratificadas pelas concepções liberais. É esse indivíduo que precisa ser compreendido na sua relação com a sociedade. E é desse indivíduo que se fala quando se estuda sua relação com a sociedade. Reunindo os dois elementos, o epistemológico e o ontológico, temos, além da exterioridade do indivíduo em relação à sociedade, um indivíduo "em si", que prescinde, a princípio, da sociedade para ser como tal.
  • 11. 126 BOCK • GONÇALVES O resultado da presença dessas concepções na Psicologia Social é o que apontamos acima: explicações sociológicas ou psicológicas para a relação indivíduo-sociedade, com desdobramentos para a visão de qual deve ser o lugar do conhecimento na vida social e até mesmo para a iden­ tificação dos problemas da vida social que devem ser conhecidos. Outros elementos da Modernidade devem ser considerados para ir­ mos adiante nessa análise. Isso porque, como também já referimos aci­ ma, o conjunto de elementos que a compõem revela a complexidade e as contradições das produções históricas. Assim, devemos considerar que esse homem racional e individual da Modernidade, o "homem burguês" referido por Konder (2000), é também reconhecido como sujeito. Estamos nos referindo a um ser de possibilidades (de determinadas possibilidades): possibilidade de conhecer, possibilidade de agir a partir do conhecimento, possibilidade de encontrar e/ou aplicar a racionalidade em tudo que existe, possibilidade de sentir, possibilidade de pensar sobre o que conhece e o que sente, possibilidade de expressar suas vontades e esperar que a sociedade as realize. E possibilidade de realizar tudo isso perante outros, perante a sociedade. Há, dessa forma, uma afirmação do homem como sujeito. Mas ela só foi possível, concretamente, no interior da contradição capital — trabalho, que requereu que o homem ocupasse os lugares so­ ciais (na produção e no consumo) como ser individual. E só foi possível, em termos ontológicos e epistemológicos, com a afirmação também do objeto, significando a afirmação de uma existência do objeto (realidade, natureza) independente do sujeito. Ambos os aspectos aqui presentes, o concreto e o das representações, carregam contradições. Na concreticidade, para ocupar o lugar social da produção, o indi­ víduo só pode fazê-lo com outros indivíduos. Ou seja, a organização da produção é social. Por outro lado, para ocupar o lugar social do consu­ mo, o indivíduo precisar anular outros indivíduos (na concorrência do mercado); ou, na melhor das hipóteses, precisa tornar-se indistinto deles (na massificação do consumo).
  • 12. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 127 Nas representações, ontológicas e epistemológicas, o sujeito racional autônomo precisa submeter-se à objetividade e à racionalidade do obje­ to, tendo sua autonomia limitada. O ser de possibilidades tudo pode? Ou nada pode? Postas dessa forma as questões, as respostas oscilam de um polo a outro, mantendo visões dicotômicas em vários campos. O que pode o in­ divíduo frente à sociedade: impor sua individualidade ou amoldar-se ao que lhe é imposto? As concepções alternativas e a dificuldade da superação As contradições da Modernidade estão, também, entretanto, na ori­ gem de concepções alternativas, de contraponto às visões dominantes. O sujeito liberal, indivíduo racional, bem como sua possibilidade de reali­ zação, encontram seu questionamento em experiências concretas e suas correspondentes representações ontológicas e epistemológicas. O capitalismo tem em si, contraditoriamente, como apontado acima, um novo elemento de experiência concreta, por meio do trabalho. Trata-se da possibilidade de os sujeitos do trabalho constituírem-se concretamente como coletivo, considerando-se a organização da produção industrial. É uma experiência possibilitada pela mesma organização social da produ­ ção que afirmara o indivíduo como sua célula básica; daí a contradição. Essa experiência possibilita outra: o reconhecimento da condição co­ mum a que estão expostos esses sujeitos. Na verdade, aquilo que está li­ mitado pela concorrência do mercado (para a oferta da força de trabalho ou para o consumo) será coletivamente reconhecido como limitação impos­ ta pela ordem social. Esse reconhecimento trará a possibilidade de outro tipo de reflexividade, de consciência, diferente da consciência individual. Trata-se da consciência histórica, fundada numa práxis política. Ou seja, traz a possibilidade de uma consciência que não é individual e autofun- dante ou autoiluminada, mas constituída a partir da ação, do trabalho, o que só ocorre coletivamente.
  • 13. BOCK • GONÇALVES Aqui se fala da possibilidade de superar a alienação que marca as formas de consciência sob o capitalismo, possibilidade esta que está dada pelas contradições que estão presentes nessa realidade. A análise histórica do capitalismo, realizada pelo marxismo, permi­ tiu identificar as características da base material, nesse modo de produ­ ção, que dão origem ao processo de alienação. O indivíduo produtor da riqueza está posto nessa tarefa de modo individual: vende sua força de trabalho ao capital que a utiliza na pro­ dução da riqueza. O resultado desse trabalho é apropriado individual­ mente pelo capitalista. O trabalhador aplica sua força de trabalho e não se apropria de sua produção. A objetivação de seu trabalho pertence a outro. Aliena-se de si próprio e não se reconhece como parte de um cole­ tivo que produz; não se reconhece no produto e não reconhece sua ativi­ dade como produtora. Sua consciência está marcada por essa alienação que se origina na organização da base material da produção. E está tam­ bém marcada pelos conteúdos ideológicos que referendam e contribuem para a sustentação dessa situação.2 O processo de produção de ideologia, apoiado nessa base material, desenvolve-se por meio das características que marcam a produção de ideias nas sociedades de classes: separação entre trabalho intelectual e tra­ balho manual, desvinculação aparente entre ideias e interesses concretos que representam, universalização das ideias. Tal processo aprofunda-se no capitalismo, em que o racionalismo e a ideologia liberal produzem con­ cepções que o favorecem: as ideias válidas são as produzidas pela Razão; a universalidade da Razão justifica ideias universais; o homem é indiví­ duo livre para pensar, utilizando a Razão, que tem ideias evidentes por si mesmas. Ou seja, tanto a experiência concreta do trabalho como as re­ presentações sobre a sociedade e sua organização contêm elementos que explicam a alienação. Depois de separar as ideias dominantes dos indivíduos que exercem o po­ der esobretudo das relações que decorrem de um dado estádio do modo de 2. Ver, no capítulo 3 desta obra, discussão mais detalhada sobre o processo de alienação.
  • 14. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 129 produção, é fácil concluir que são sempre as ideias que dominam a histó­ ria, podendo-se, então, abstrair, destas diferentes ideias, a "Ideia", ou seja, a ideia por excelência etc., fazendo dela o elemento que domina na história e concebendo então todas as ideias e conceitos isolados como "autodetermi­ nações" do conceito que se desenvolve ao longo da história Em seguida, é igualmente natural fazer derivar todas as relações humanas do conceito de homem, do homem representado, da essência do homem, numa palavra, de o Homem. (Marx e Engels, 1980, p. 60) A mesma base material, entretanto, por suas contradições, possibilita outra experiência e, consequentemente, cria a possibilidade de outra cons­ ciência. A própria necessidade de organização do trabalho produziu o re­ conhecimento da condição comum desses sujeitos. Esse reconhecimento trouxe a possibilidade de outro tipo de consciência, diferente da consciên­ cia individual. Trata-se, como já afirmado, da consciência histórica cons­ tituída com base no trabalho coletivo. Seu desenvolvimento requer esse reconhecimento da condição comum a um determinado grupo social, o que possibilita o rompimento com aquelas marcas da produção de ideias que as tornam ideológicas: as ideias representam interesses concretos; por isso, não podem ser universais, pois os interesses concretos são oriundos de lugares distintos, ocupados, no seio da produção, por grupos distintos; as experiências relativas a esses lugares são comuns em muitos aspectos, por isso sua representação é compartilhada; nesse sentido, para além de uma consciência individual, há a possibilidade de uma consciência social. Essa experiência concreta vai se manifestar também em relação às questões epistemológicas. O sujeito do conhecimento tem com seu obje­ to uma relação intencional, da mesma forma que se dá a relação de tra­ balho. A práxis histórica, posta a partir do reconhecimento do trabalho como fundante da relação do homem com a realidade, inclui a intencio­ nalidade como inerente à relação do sujeito com o objeto, articula subje­ tividade e objetividade. (...) Pelo trabalho, os seres humanos não consomem diretamente aNatureza nem se apropriam diretamente dela, mas a transformam em algo humano também. A subjetividade humana se exprime num objeto produzido por ela e aobjetividade do produto é a materialização externa da subjetividade.
  • 15. 130 BOCK • GONÇALVFS Pelo trabalho os seres humanos estendem a sua humanidade à Natureza. É nesse sentido que o trabalho é práxis, ação em que o agente e o produto de sua ação são idênticos, pois o agente se exterioriza na ação produtora e no produto, ao mesmo tempo que este interioriza uma capacidade criado­ ra humana, cu a subjetividade. (Chaui, 1995, p. 419) Essa compreensão da relação ente sujeito e objeto, que decorre da compreensão do movimento de transformação que se dá a partir da ação do homem sobre a realidade, aponta a articulação entre ontologia e epis- temologia. O ser de que se trata está em constante transformação, em um processo histórico em que o homem atua sobre a realidade. Nesse proces­ so, se dá também o conhecimento. Essas formulações ocorreram já no século XIX, diante das primeiras crises do capitalismo, que evidenciaram de várias formas as contradições históricas. Percebe-se, então, que a mesma matriz histórica que constituiu o homem como sujeito e o identificou como sujeito racional e individual contraditoriamente criou a possibilidade do sujeito histórico. A contra­ dição histórica presente na realidade material está também representada nas ideias da Modernidade. Assim, revelando as contradições presentes, a Modernidade pro­ duziu esse contraponto às noções do liberalismo, como expressão da contradição histórica entre capital e trabalho que constituiu o próprio capitalismo. O sujeito racional e individual estaria superado diante da possibilidade da experiência concreta de um sujeito ativo e social, de um sujeito histórico. A identificação dessa outra formulação para a experiência histórica do homem a partir do capitalismo se faz necessária para começarmos a debater possibilidades de superação das dicotomias e para avançarmos na elaboração de uma visão da relação indivíduo-sociedade que contenha a noção de articulação e processo entre um e outro. Em outras palavras, para que seja possível ter, desde a raiz, a compreensão de uma visão dia­ lética da relação indivíduo-sociedade como proposta por Sílvia Lane. (...) Tornou-se necessária uma nova dimensão espaço-temporal para se apreender o Indivíduo como um ser concreto, manifestação de uma totali­
  • 16. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 131 dade histórico-social — daí a procura de uma psicologia social que partis­ se da materialidade histórica produzida por e produtora de homens. (...) o homem não sobrevive a não ser em relação com outros homens, portanto a dicotomia indivíduo x grupo é falsa — desde o seu nascimento (mesmo antes) o homem está inserido num grupo social. (Lane, 1984, p. 15 e 16) A raiz dessa visão está na concepção materialista histórica e dialética de sociedade, indivíduo, história, conhecimento, método. E é importante que se reconheça essa concepção na sua gênese histórica, como expressão das contradições do capitalismo, expressas também na Modernidade. Ou seja, o "homem burguês" já tem posta sua contraposição histó­ rica. Tanto como possibilidade de experiência concreta, como também em termos de representações alternativas. Por que permanece, então, como concepção ainda predominante? Por que aparece naturalizado, como se fosse a síntese da mais pura, essencial, universal e eterna expe­ riência humana? A resposta mais básica, embora não simples, é a de que a sociedade globalizada e tecnológica move-se, ainda, sob a batuta das relações capi­ talistas, em que pesem todas as diferenças que encontramos na sociedade contemporânea em relação aos séculos XiX e XX. Assim, uma resposta, grosso modo, é possível: o ideal do homem individual, promessa da Mo­ dernidade, ainda não foi abandonado. Mesmo diante das perplexidades geradas a partir da falência dessa e de outras promessas, como aponta Boaventura de Sousa Santos (1996), o indivíduo, agora com novos mati­ zes, ainda serve à organização social. Outras respostas devem ser acrescentadas, evidenciando como as ideias e os saberes que se produziram orientados pelas concepções hege­ mônicas tornaram-se fatores muitas vezes impeditivos do aparecimento de novas formulações. Entre essas ideias e saberes, encontramos a Psico­ logia e todos os saberes psi, que valorizaram e fundamentaram a expe­ riência da individualidade, naturalizando-a e absolutizando-a. É verdade que desde o século XIX, a partir das primeiras crises do ca­ pitalismo, como apontamos acima, surgem questionamentos, pelo menos em parte, a essa visão. As contradições da Modernidade logo se evidencia­
  • 17. 132 BOCK • GONÇALVES ram. Entretanto, como dissemos, a superação de seus limites requer trans­ formações históricas mais profundas, com a superação da base material que sustenta e dá sentido a essas concepções. Alguns exemplos permitem perceber os limites impostos pelas contradições da Modernidade. Outras noções de sujeito desenvolveram-se no seio do capitalismo, com base nas concepções da Modernidade, durante os séculos XIX e XX. A predominância da concepção liberal é questionada em vários âmbitos e o século XX assiste até mesmo à decretação da "morte do sujeito". Es­ sas outras concepções, que não representam a possibilidade de supera­ ção da realidade histórica que as engendrou, expressam, por sua vez, a complexidade do movimento histórico. São configurações resultantes das múltiplas determinações presentes no processo social, que contribuem, em maior ou menor grau, para a explicitação e superação da contradição fundamental do capitalismo. É o caso das contraposições que são elaboradas para questionar os reducionismos na concepção de sujeito que valorizam o caráter pragmá­ tico e instrumental da ação humana. O sujeito liberal que, com o desen­ volvimento do capitalismo, precisa ser disciplinado para o trabalho e para o consumo, é massificado e treinado. As concepções humanistas se con­ trapõem a isso e vão em busca de um sujeito pleno, guiado por sua cons­ ciência individual. Mas, estaria aqui o "homem burguês" superado? É o caso também da recuperação da emoção em contraposição ao excesso de racionalidade que permeia a vida do indivíduo massificado, treinado, disciplinado até mesmo em seus desejos. Nesse aspecto, a psica­ nálise desempenha um papel importante. Sua formulação básica põe em cena a irracionalidade, afirmando a presença do inconsciente, que repre­ senta o lado escuro que traz sombra à Razão Iluminada. Nesse sentido, pode-se dizer que a psicanálise é uma das maneiras pelas quais a contra­ dição histórica se manifesta, pois suas formulações põem em cheque o sujeito plenamente racional. A psicanálise, entretanto, não se opõe à noção liberal de sujeito. Ao contrário, toma dela o individualismo, reconhecendo no indivíduo e nas suas pulsões a gênese de suas manifestações em sociedade e nas relações com os outros indivíduos. Ao mesmo tempo, a racionalidade, relativizada
  • 18. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 133 pelo inconsciente, é retomada para explicar a estruturação da sociedade que se impõe sobre os indivíduos e suas pulsões.3 Por outro lado, em alguns contextos de aplicação e desenvolvimen­ to das concepções marxistas, as dificuldades históricas em se estabelecer concretamente as possibilidades de realização do sujeito histórico condu­ zem a outros tipos de reducionismos: são os decorrentes de uma exacerba­ ção do papel da base material na produção de sujeitos, o que leva a uma desconsideração de fatores individuais e subjetivos no processo social. O sujeito histórico, dessa forma, tem apartada de si uma parte do que o constitui e está presente nos processos sociais: a condição de vivenciar, registrar e elaborar subjetivamente experiências concretas. Por todos esses reducionismos a que foi conduzido o sujeito da Mo­ dernidade (massificação, disciplina, excesso de racionalidade, pragma­ tismo), seria justificável decretar a morte do sujeito. Os abalos à noção de sujeito liberal que vão se desenvolvendo na primeira metade do século XX acabam abrindo caminho para a negação do homem como sujeito. Se a decretação da morte do sujeito (década de 1960) é compreensível como denúncia dos reducionismos a que o capita­ lismo submeteu o homem, ela também abre espaço para a veiculação de uma concepção neoliberal que acompanha as reformulações do capitalis­ mo diante da crise mundial que ocorre na década de 1970. Aquilo que se denominou "pós-modemidade" aglutina produções bastante diversas que, entretanto, têm em comum um trabalho de revi­ são crítica da Modernidade.4 Evidenciam, dessa forma, os limites das concepções da Modernidade, inclusive das concepções de sujeito. Entre­ tanto, algumas dessas produções começam por negar o caráter histórico dos fenômenos sociais e humanos e, dessa forma, revestem-se de uma pseudoisenção que, na verdade, oculta o seu caráter ideológico. 3. Uma análise da presença e da influência dessas concepções de sujeito na Psicologia pode ser encontrada em Gonçalves, 2001a. 4. Uma análise, nessa direção, de vários pensadores da pós-modemidade pode ser encontra­ da em PEIXOTO, Madalena G. A questão política na pós-modemidade: a questão da democracia. São Paulo: Cortez, 1998.
  • 19. 134 BOCK • CONÇAIVES Negar o sujeito estaria representando a necessidade de abandonar as promessas da Modernidade que não se concretizaram, portanto esta­ ria decretando a inviabilidade de realização plena do sujeito como con­ cebido pelo liberalismo. Mas estaria também representando a negação da historicidade e, consequentemente, o sujeito histórico. A Psicologia também é alcançada por esse debate e, na tentativa de apresentar críticas aos limites do sujeito da Modernidade, resvala na ne­ gação do sujeito, ela, a ciência da subjetividade. Ainfluência do debate pós-modemo apartir daí será sentida na negação de qualquerpossibilidadede uma concepção totalizante desujeitoequecoloca­ ráemxeque aexistência de uma essencialidadedo sujeito. Para aPsicologia, essa discussão assume um caráter peculiar. Questionado o sujeito, aponta­ da sua pluralidade, sua fluidez ou até mesmo sua inexistência, como fica a subjetividade enquanto objeto dessa ciência? (Gonçalves, 2001b, p. 71) Considerando que essas produções se dão no âmbito do mesmo capi­ talismo que engendrou as concepções anteriores, é evidente o significado ideológico que carregam. Negar o sujeito representa a tentativa de man­ ter o indivíduo adaptado, massificado, treinado, o que ainda é necessário para a organização social; e, ao mesmo tempo, "limpar" as concepções de qualquer indício de contradição presente na afirmação da plenitude de possibilidades do sujeito liberal. Significa também negar qualquer outra possibilidade para o homem como sujeito, reafirmando como única pos­ sibilidade sua condição de indivíduo.5 Nesse contexto, para o enfrentamento de formulações que encobrem seu caráter ideológico, é necessário apontar o que novas formulações so­ bre o homem revelam de sua atual experiência histórica. Isso permite evidenciar que também na contemporaneidade há uma valorização do indivíduo, supostamente para atender a uma "nova" realidade social. A identificação das experiências que lhe são possíveis e de como elas são representadas, evidencia que o "neo" liberalismo transforma em farsa o que foi tragédia. 5. Também uma análise da implicação das concepções de sujeito "pós-modemas" para a Psico­ logia pode ser encontrada em Gonçalves, 2001b.
  • 20. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 135 Em princípio as experiências contemporâneas já não poderiam ser justificadas por uma racionalidade que seria inerente aos processos so­ ciais e humanos. O trabalho parece perder seu lugar fundante, em razão do grande desenvolvimento tecnológico. Associado a isso, consideran­ do-se que o desenvolvimento da tecnologia implica mudanças constantes, aparecem vivências de renovação permanente, de flexibilidade. Os luga­ res sociais apresentam-se, em decorrência, como instáveis, alternativos. Abre-se espaço, com o questionamento da racionalidade e a desestabili- zação do trabalho, para a valorização de cutras dimensões do indivíduo: a afetividade é reconhecida, valorizada e toma-se a principal referência em muitos espaços sociais, inclusive públicos. A implicação mais direta dessa nova situação é uma crescente ênfa­ se no individualismo, que apresenta novas características, mas mantém a supremacia do indivíduo. No início do capitalismo era a identidade so­ cial do trabalho autônomo e do mercado que atendia e justificativa ideo­ logicamente o capitalismo ascendente, que configurava esse indivíduo. Atualmente, é a singularidade, a imediaticidade e a transitoriedade de suas experiências e vivências em um mercado volátil, fluido. Todos esses aspectos apontam, então, para uma exacerbação da indi­ vidualidade, calcada no questionamento da racionalidade e na valoriza­ ção da emoção, com sentimentos completamente particulares, singulares. Por isso não se articulam a projetos coletivos e, contraditoriamente, tais vivências abrem espaço para o crescimento da indiferença, da anestesia diante de questões que não toquem os indivíduos diretamente. Estão jun­ tos e revelam o mesmo processo, a busca desenfreada do prazer imediato, visível na rapidez e voracidade do consumo; o culto ao corpo e à aparên­ cia, reforçados pelo consumismo; a rejeição ao compromisso com questões sociais e políticas. Ou seja, o individualismo não se enfraquece. Precisamente umdos aspectos mais perversos do "capitalismo pós-moder- no" é aprodução de sentidos supérfluos na população, sentidos associados à aparência, aoconsumo, aoócio organizado etc. Eles produzem atividades que as pessoas realizam "voluntariamente", mas que na verdade estão go­ vernadas pela produção supraindividual de recursos simbólicos que con ­ trolame automatizam a produção de sentidos de pessoas e espaços sociais diversos. (...) (González Rey, 2004, p. 56)
  • 21. 136 BOCK • GONÇALVES Revelando a contradição histórica ainda presente, o que se observa, entretanto, é que a sociedade está cada vez mais submetida à racionali­ dade técnica, presente no alto grau de desenvolvimento tecnológico que sustenta as atividades humanas hoje em dia. Também que o prazer ime­ diato é fugaz e não realiza os indivíduos. Que a massificação persiste, embora camuflada pela multiplicidade aparente de opções de escolha, seja de objetos, estilos de vida, relações. Embora a possibilidade de vivenciar a diversidade deva ser saudada como conquista da contemporaneidade, é necessário identificar as con­ tradições que esse fenômeno carrega. Respeitar a diversidade não deve se configurar como subterfúgio para negar a discussão ontológica, para negar a possibilidade de uma experiência totalizante, como projeto his­ tórico: a emancipação deve se dar para todos os indivíduos, em que pese sua diversidade. Tal projeto não pode ter como fundamento concepções relativistas. O que percebemos, travestida de novidade, é a mesma antiga forma de compreender as determinações sociais e históricas calcada no proces­ so de alienação e na produção de ideologia, na medida em que as novas concepções aparecem desvinculadas do processo que as constituiu. Estão presentes nas concepções "pós-modemas" ideias sobre o sujeito e a subjetividade que resultam de críticas a concepções desenvolvidas pela modernidade. Embora de início pudessem ser saudadas como a real supe­ ração dos limites presentes nas concepções modernas sobre sujeito e subje­ tividade, tais ideias, na verdade significam o risco de negação ou descarac- terização total do sujeito, sua "volitização", fenômeno aliás, muito próprio de tempos pós-modemos. Achamada pós-modemidade declara a falência de todas as versões da mo­ dernidade, notadamente a liberal e a marxista. Ao fazer isso, os pensado­ res que proclamam "novas ideias" para "novos tempos" desconsideram que as diferentes concepções revelam contradições históricas ainda não superadas. Esse tratamento homogêneo a todas as ideias modernas traz o risco de se perder a possibilidade de afirmar concepções que evidenciam as contradições concretas e apontam para sua superação. (...) (Gonçalves, 2001b, p. 53 e 54)
  • 22. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE IJ7 A mudança que se observa nos fala de um novo sujeito ou de um "neo" sujeito, no sentido de ter alterada sua forma, mas não seu conteú­ do, sua aparência, mas não sua essência? Eis aqui mais um complemento de resposta para a pergunta que fi­ zemos acima. Por que permanece a ideia do homem como sujeito indivi­ dual, desvinculado, a princípio ou ao final, da sociedade, dos processos sociais? Porque também as explicações contemporâneas naturalizam essa vivência, agora pela ideia da inexorabilidade do desenvolvimento tecno­ lógico, pela valorização do presente, pela fluidez das experiências, tidas como naturais. A complexidade crescente dos elementos não se impõe sobre a simplificação presente na negação de explicações históricas e na assunção da inexorabilidade como elemento explicativo. A Psicologia Social, com suas explicações sociológicas ou psicológicas para a relação indivíduo-sociedade, cumpriu também o papel de natura­ lizar as explicações dos fenômenos presentes na relação indivíduo-socie­ dade. Tanto em uma como em outra vertente, contribuiu para preservar o indivíduo, o indivíduo da Modernidade, na medida em que não deu conta de apontar a constituição imbricada entre cada um e o outro, en­ tre cada um e o coletivo, entre o coletivo social e histórico e cada um, na sua singularidade. E, atenta às discussões da chamada pós-modemidade, tem-se colocado mais na direção de explicar os processos dessa vivência individual da relação com a tecnologia e o signo, do que em explicar os processos históricos de constituição das subjetividades e das relações so­ ciais contemporâneas. (...) Ateoria histórico-cultural, inspirada em um marxismo criativo e revo­ lucionário, procurava representar a unidade dos sistemas complexos da sociedade por meio das aparências desconexas de suas formas de expres­ são. Procurava-se a essência como princípio organizador, e não como prin­ cípio metafísico inalterável que atuava como causa universal; no entanto, isso aconteceu em um momento em que o pós-estruturalismo, apoiado na própria crítica ao estruturalismo e ao marxismo, ia contra os megassiste- mas e as megateorias, enfatizando o valor das construções locais parciais. Nesse contexto, na psicologia, a semiótica e o discurso hegemonizavam a novidade, e o oonstrucionismo social aparecia como a última moda, negan­
  • 23. 138 BOCK • GONÇALVES do, nas suas variantes mais radicais, toda definição ontológica. (González Rey, 2005, p. 29 e 30) Por isso, a proposição de uma Psicologia Social que aponte para a constituição dialética e complexa de indivíduos inseridos em sociedades por eles constituídas é fundamental para a compreensão das possibilidades de um sujeito que é histórico. Reafirma-se, dessa maneira, a importância de resgatar a discussão ontológica e posicionar-se em relação a ela. Nesse sentido, é importante considerar que tais possibilidades de rea­ lização do sujeito não estão prontas, não estão dadas, não estão latentes, esperando para se desenvolver. São possibilidades ativas, atravessadas por contradições presentes na sociedade, as quais devem ser identificadas para que se possa escolher a direção que represente avanço. Pressupostos da concepção sócio-histórica A noção básica da Psicologia Sócio-Histórica é a historicidade, o que significa ter como ponto de partida a concepção de que todos os fenôme­ nos humanos são produzidos no processo histórico de constituição da vida social. Essa vida social se constitui na materialidade das relações entre os homens e entre os homens e a natureza, para a produção da sua existência. Tais pressupostos vêm do materialismo histórico e dialético, método que afirma objetividade e subjetividade como unidade de contrários, em movimento de transformação constante. Sujeito e objeto transformam-se, em um processo histórico em que o sujeito atua sobre o objeto e é trans­ formado nesse processo. Tal método orienta que se busque a gênese dos fenômenos na reali­ dade material contraditória, incluindo o conteúdo histórico definido por essa realidade. O conteúdo histórico, considerando-se as relações mate­ riais entre os homens e entre os homens e a natureza para a produção da sua existência, é dado pela divisão da sociedade em classes, que acarte-
  • 24. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 139 ta lugares e experiências distintas para os diferentes grupos sociais. Essa clivagem social produz alienação e, no mesmo processo de produção de alienação, produz-se ideologia. Já nos referimos adma a essa articulação entre as experiências concretas de inserção social, possibilitadas pelo ca­ pitalismo e que, seja na produção, seja no consumo, apartam os indiví­ duos dos resultados materiais, ao mesmo tempo em que justificam ideo­ logicamente os processos sociais. Assim, os fenômenos sociais têm caráter ideológico. Apontar o caráter histórico dos fenômenos sociais e humanos possi­ bilita uma análise que permite a sua desnaturalização. Em termos meto­ dológicos, isso leva a se trabalhar com categorias que indicam processos, com conteúdos históricos, ideológicos, contraditórios, mediados. Ou seja, trabalhar com a historicidade significa adotar um método que prevê não apenasforma, mas também conteúdo. A forma aponta o caráter processual dos fenômenos. O conteúdo aponta sua produção histórica, considerando-se a qualidade da sociedade de que se trata. Uma socieda­ de que encerra a contradição de classes produz fenômenos qualitativa­ mente diferentes a depender de sua relação com os processos sociais que apartam e produzem alienação e ideologia. Isso implica tomar sujeito e subjetividade como constituídos na dialética subjetividade-objetividade e procurar identificar os aspectos desse processo, aspectos que revelam a historicidade. Por isso, a forma processual, juntamente com o conteúdo histórico resultante das relações de classe, devem ser considerados. As categorias da dialética, particularmente a categoria de mediação,6são re­ cursos para apreender o processo. Na mesma linha metodológica, a proposta é identificar no objeto, em vez de conceitos, categorias. Tendo-se como referência a própria noção de categoria, aborda-se o objeto delimitando campos de investigação nos quais se busca compreender o movimento, o processo de constituição dos fenômenos. Nesta perspectiva metodológica, ao se buscar a definição de algo não se responde "o que é", mas sim "como se constituiu". Isso signi­ fica privilegiar o processo, o movimento do objeto, sua historicidade. 6. Ver nos capítulos 1 e 2 desta obra a discussão de categorias e das categorias da dialética.
  • 25. 140 BOCK • CONÇAIVES Ao se fazer esse esforço, considera-se fundamental a ideia de que os fenômenos da realidade são multideterminados, isto é, caracterizados por relações que se estabelecem para criar a aparência que conhecemos. Essas relações, no entanto, são invisíveis aos nossos olhos, pois são constituti­ vas dos fenômenos em seu movimento e processo. É aqui que se supe­ ra o uso de conceitos (que fotografam ou descrevem os fenômenos) para adotar a ideia de categorias que expressam processos e permitem pensar relações que são constitutivas dos fenômenos. As categorias inauguram a possibilidade de se falar de elementos que caracterizam os fenômenos, mas que só podem ser captados, como relação, pelo pensamento. As ca­ tegorias são categorias de pensamento que permitem que se ultrapasse a aparência (enganosa) dos objetos e se compreenda sua gênese e seu mo­ vimento. Não se buscam causas, mas os elementos e aspectos que consti­ tuem os objetos como se apresentam a nós, em seu movimento de trans­ formação constante. São categorias para pensar e compreender o psiquismo: atividade, consciência, identidade e afetividade, que devem, então, ser considera­ das como denominadoras de um processo com gênese social, participa­ ção do sujeito e fundado na contradição (dadas as categorias da dialéti­ ca que são tomadas como referência metodológica). Essas categorias do psiquismo se constituem como a chave para a compreensão da subjeti­ vidade. Permitem considerar a subjetividade em seu processo histórico contraditório, na dialética subjetividade-objetividade; além disto, são ca­ tegorias que permitem pensar a realidade psíquica em seu movimento de transformação e nas relações que se estabelecem para a produção do que chamamos subjetividade. O movimento a que se referem, que é o movimento do psiquismo, é um movimento contraditório. Isso coloca a necessidade, apontada aci­ ma, de se considerar o conteúdo histórico ao falar da subjetividade. E, numa sociedade contraditória, esse conteúdo envolve posições diante da realidade; posições que se referem a interesses concretos. Nesse sentido, ao se identificar na base desse movimento a gênese de um processo que implica alienação, deve-se, a seguir, identificar como isso implica expe­ riências subjetivas diversas e como são atravessadas pelos processos que produzem alienação.
  • 26. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 141 Por isso, ao se identificar a cisão entre atividade e consciência, se está falando de alienação. Ao se falar de mesmice da identidade, fala-se de alienação. Ao se falar de uma afetividade cristalizada, com emoções reprimidas ou contraditórias, fala-se de alienação. Não de forma direta e linear, mas num processo que deve ser considerado com os recursos metodológicos da dialética, que permitem captar a complexidade. Ao se trabalhar com a noção de mediação e com a noção de categorias, é pos­ sível respeitar a complexidade que se apresenta na realidade, nos fenô­ menos investigados. Essas concepções permitem fazer a contraposição às dicotomias: subjetividade-objetividade, sujeito-objeto, indivíduo-sociedade que mar­ cam o desenvolvimento da Psicologia e da Psicologia Social. Visões dico­ tômicas levam à naturalização dos fenômenos, na medida em que supõem que sujeito e objeto são independentes; que o objeto tem suas próprias leis, estabelecendo uma relação de exterioridade entre sujèito e objeto. A separação sujeito-objeto rompe a ideia de relação, de movimento e de contradição, para pensar cada um como dotado de movimento próprio ou de capacidade própria para se modificar ou se desenvolver. A ideia do Barão de Munchhausen, trabalhada por Bock (1999), traz exatamente este aspecto para o debate da Psicologia: a ideia de que o homem é dota­ do de forças próprias que lhe permitem "puxar-se pelos próprios cabe­ los" e com isso "erguer-se do pântano". Sujeito e objeto ficam então pen­ sados como independentes e seu desenvolvimento fica absolutizado, ou seja, naturalizado. O trabalho com a historicidade permite tomar sujeito e subjetividade como constituídos historicamente, a partir da ação do sujeito sobre o obje­ to. É a partir desses pressupostos que a Psicologia Sócio-Histórica define, como objeto, a dialética subjetividade-objetividade e trabalha com as ca­ tegorias do psiquismo como chave para a compreensão desse processo. Subjetividade e objetividade se constituem em um mesmo proces­ so, referindo-se a âmbitos diferentes da realidade: um âmbito subjetivo/ do sujeito e um âmbito objetivo/das coisas. O âmbito do sujeito inclui processos e características específicas que só podem ser compreendidas na relação com a objetividade. E o âmbito objetivo incorpora a subjetivi-
  • 27. 142 BOCK • GONÇALVES dade, na medida em que o que resulta como objetivo é o objeto transfor­ mado pelo sujeito. Dessa forma, tais concepções teóricas e metodológicas impõem a noção de subjetividade como um processo que congrega as experiências dos sujeitos individuais e sociais, sendo, ao mesmo tempo, consequência e condição dessas experiências. A referência na historicidade introduz a esse processo a identificação de uma sua qualidade, que leva à compreensão de que a subjetividade não está dada, nem para cada indivíduo, nem como processos ou estrutu­ ras universais da humanidade, mas configura-se como algo que se cons­ titui nas relações sociais e históricas; é processo que decorre de situações concretas que incluem, necessariamente, a atividade, objetiva e subjeti­ va, do indivíduo. O sujeito é ativo, atividade decorrente de sua ação, de seu pensamento, de sua capacidade de registrar cognitiva e afetivamente todas as suas experiências; da sua capacidade de vivendar. Suas ações e experiências individuais subjetivas só são possíveis a partir das relações sociais e do espaço da intersubjetividade, pois falamos de um sujeito que é social e histórico. A subjetividade, portanto, não é natural. Dimensão subjetiva da realidade A partir da dialética subjetividade-objetividade pode-se falar em dimensão subjetiva da realidade, na medida em que se entende que a subjetividade é individual, mas constituída socialmente, a partir de um processo objetivo, com conteúdo histórico. Por outro lado, a realidade so­ cial é construída historicamente, em um processo que se dá entre o plano subjetivo e o objetivo. A base material agrega subjetividade, a partir da ação do sujeito sobre ela, aí está sua historicidade. Por isso, não é possível falar-se da realidade sem considerar o sujeito que a constitui e ao mesmo tempo é constituído por ela. Acrescentoapenas queesta relação processual temuma base material, como diz Searle, mas esta base também tem caráter histórico na medida que sua
  • 28. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 143 transformação (através do trabalho) agregará nela própria um quanto de subjetividade. A partir desse momento, não importa mais o objeto como "coisa-em-si", mas sim como "coisa-para-si". Tanto o fato objetivo, como o fato subjetivo farão parte de um mesmo processo histórico e serão inse­ paráveis. Não importa o tipo de leitura que se faça desse processo — via objetividade ou subjetividade — estaremos sempre trabalhando com essa dinâmica. (Furtado, 2002, p. 96) A relação entre o sujeito individual e os fenômenos sociais é de cons­ tituição mútua, os elementos da relação não são exteriores um ao outro, e a determinação de um sobre o outro não é direta, imediata. A dimensão subjetiva da realidade estabelece a síntese entre as con­ dições materiais e a interpretação subjetiva dada a elas. Ou seja, repre­ senta a expressão de experiências subjetivas em um determinado campo material, em um processo em que tanto o polo subjetivo como o objetivo transformam-se. Assim, a realidade é a expressão do campo de valores que a interpretam (suas bases subjetivas) e ao mesmo tempo o desenvolvimento concreto das forças produtivas (suas bases objetivas). Há uma dinâmica histórica que co­ loca os planos subjetivo eobjetivo em constante interação, sem que necessa­ riamente se possa indicar claramente a fonte de determinação da realidade. Isso nos leva a afirmar que a realidade é um fenômeno multideterminado, o que inclui uma dinâmica objetiva (sua base econômica concreta) e tam­ bém uma subjetiva (o campo de valores). O indivíduo é o sujeito singular dessa dinâmica e, assimcomo recebe prontos abase material (dada pela sua inserção de classe) e os valores (o plano da socialização), também é agente ativo da transformação social, independente de ter ou não consciência do fato. (Furtado, 2001, p. 91) Entende-se dimensão subjetiva da realidade como construções da sub­ jetividade que também são constitutivas dos fenômenos. São construções individuais e coletivas, que se imbricam, em um processo de constituição mútua e que resultam em determinados produtos que podem ser reco­ nhecidos como subjetivos.
  • 29. 144 BOCK • GONÇALVES Os produtos subjetivos têm o mesmo caráter social, processual e dialético de constituição da subjetividade. É preciso reconhecer a exis­ tência de produtos subjetivos "sociais" e abordá-los da mesma forma. A subjetividade não se esgota em seus elementos individuais: o indivíduo age sobre o mundo, relaciona-se, realiza, objetivamente, o que elaborou subjetivamente. A relação entre a dimensão subjetiva e o contexto histórico deve ser considerada a partir do eixo básico de análise que é a historicidade, en­ tendida como processo contraditório: envolve indivíduos que pertencem a classes sociais. A implicação é considerar o processo de alienação pro­ duzido socialmente que se apresenta, atravessado por mediações, na di­ mensão subjetiva da realidade. Dimensão subjetiva de fenômenos sociais A noção de dimensão subjetiva dos fenômenos sociais não se dife­ rencia da dimensão subjetiva da realidade, mas se inscreve na discussão da Psicologia Social, tendo por base os mesmos pressupostos da dialéti­ ca subjetividade-objetividade, para permitir a delimitação do objeto da Psicologia Social para a perspectiva sócio-histórica. Na análise da relação indivíduo-sociedade, os mesmos pressupos­ tos são considerados. É necessário superar a dicotomia e compreender os fenômenos sociais a partir da constituição histórica e social dos indi­ víduos e de sua subjetividade. Compreender o indivíduo é compreender, ao mesmo tempo, a relação indivíduo-sociedade (superar a dicotomia). Não há uma sociedade externa e independente dos indivíduos; não há indivíduos a priori ou independentes da sociedade. Essa compreensão está posta na delimitação do objeto da Psicologia Social como sendo a dimensão subjetiva dosfenômenos sociais. Isso implica buscar nos fenômenos sociais a presença de um huma­ no que é sujeito, com uma subjetividade processual, complexa e históri­ ca, afirmando a unidade dialética entre indivíduo e sociedade. E consi­
  • 30. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 14$ derar que aquilo que identificamos como fenômeno social foi produzido na relação dinâmica entre suas múltiplas determinações, em última ins­ tância suas bases objetivas e suas bases subjetivas, como dito acima. As­ sim, identificar o processo de constituição de um fenômeno social come­ ça por identificar sua produção social a partir da materialidade de suas manifestações — identificando de quais lugares concretos surge, qual sua posição na organização social da produção, na relação com diferen­ tes grupos sociais definidos por essa organização material. E continua pela identificação dos vários níveis em que aparece e por meio dos quais vai tomando corpo — instituições, valores, mais ou menos estruturados e identificados. A análise deve ser das mediações que constituem o fenô­ meno social em questão. Tal análise permite desvendar um processo do qual resultam pro­ dutos, objetivos e subjetivos. A dimensão subjetiva pode ser reconhecida em produções diversas, e os recortes podem ser variados: representações sociais, identidade social, ideologia, valores, rituais, hábitos, costumes, leis e regras. São produtos coletivos, nos quais se percebe a participação de sujeitos e a presença de subjetividades, ou seja, uma dimensão subjeti­ va da realidade. Dessa maneira, incorporam-se as noções básicas da Psicologia Só­ cio-Histórica à compreensão da relação indivíduo-sociedade, procurando superar os limites ontológicos e epistemológicos, os quais estabeleceram as dicotomias que resultaram em perspectivas psicológicas e sociológi­ cas nessa área. Ambas as perspectivas terminam por naturalizar os pro­ cessos sociais. A proposta aqui é incluir a historicidade na análise dessa relação. Em termos ontológicos, recupera-se o lugar do indivíduo como sujeito, mas sujeito histórico. Em termos epistemológicos, aponta-se a re­ lação dialética entre subjetividade e objetividade, estendendo tal maneira de conceber a relação, por ser uma concepção metodológica, para a com­ preensão da relação indivíduo-sociedade. Essa preocupação é a mesma que expõe González Rey (2003, 2004) quando apresenta a noção de subjetividade social. Diz ele da necessidade de superar a naturalização e de perceber a imbricação entre indivíduo e sociedade na produção da subjetividade.
  • 31. 146 BCK K • GONÇALVES (...) Na minha opinião, trata-se de compreender que a subjetividade não é algo que aparece somente no nível individual, mas que a própria cultura dentro da qual se constitui o sujeito individual, e da qual é também cons­ tituinte, representa um sistema subjetivo, gerador de subjetividade. Temos de substituir a visão mecanicista, de ver a cultura, sujeito e subjetividade como fenômenos diferentes que se relacionam, para passar a vê-los como fenômenos que, sem serem idênticos, se integram como momentos qualita­ tivos da ecologia humana em uma relação de recursividade. (...) Oconceito de subjetividade social nos permite compreender a dimensão subjetiva dos diferentes processos e instituições sociais, assim como o da rede complexa do social nos diferentes contextos em que ela se organiza através da histó­ ria. (...) (González Rey, 2003, p. 78) Partindo dessa visão de articulação dialética entre indivíduo e socie­ dade, o autor aponta a necessidade de delimitar a subjetividade social, como forma de avançar na compreensão da realidade social. Sua produ­ ção teórica sobre a subjetividade tem como objetivo central identificar os processos que, a seu ver, explicariam, definitivamente, as transformações presentes no processo histórico. Ele identifica nas visões que desconside­ ram essa imbricação entre subjetividade individual e subjetividade so­ cial, na verdade, a negação das potencialidades dos sujeitos, o que come­ ça pela naturalização e termina por impor "verdades" que representam, de forma camuflada, os interesses de quem está no poder. Sua proposta é evidenciar, por meio da identificação das produções subjetivas, as po­ tencialidades postas na realidade pela presença de sujeitos. A subjetividade afasta o dever ser de sua relação com o externo, com o que está fora, que foi o princípio universal usado para legitimar a moral, o direito, a política e todas as formas institucionalizadas de consciência so­ cial. Essas formas, em cada momento histórico, se apoiaram em sistemas de sentido derivados da condição objetiva dos grupos de poder. Com isso, as normas desenvolvidas a partir dessas instituições acabaram por ser sis­ temas de poder e de exclusão que, paradoxalmente e, apesar de sua forte carga subjetiva, derivada de sua condição ideológica, se naturalizaram e se converteram em padrões objetivos, reguladores do comportamento social.
  • 32. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REALIDADE 147 E, finalmente, se transformaram em sistemas de controle social que negam as necessidades de setores importantíssimos da população. (...) No entan­ to, a produção de sentido de uma população continua por baixo das apa­ rências comportamentais que ela é obrigada a adotar devido a controles e pressões externas produzidas pelos mecanismos de poder. (González Rey, 2004, p. 54 e 55) A partir de formulações como essa, González Rey aponta vários pontos de articulação entre a subjetividade individual e a subjetividade social e os vários aspectos que podem e devem ser considerados para se garantir uma apreensão da subjetividade que respeite suas característi­ cas básicas. Na mesma direção, apresentamos a noção de dimensão subjetiva de fenômenos sociais como uma maneira de situar o objeto da Psicologia So­ cial que respeita a compreensão sócio-histórica (ou histórico-cultural para González Rey) de sujeito e subjetividade. Essa conceituação parte da compreensão de que a subjetividade é individual, mas constituída socialmente. Os elementos presentes na sub­ jetividade decorrem de capacidades individuais, relativas às possibili­ dades de registro das experiências vividas. Mas se constituem e se confi­ guram a partir de um processo objetivo, social, com conteúdo histórico. Por outro lado, a subjetividade não se esgota em seus elementos indivi­ duais, porque o indivíduo age sobre o mundo, relaciona-se com outros indivíduos, realiza, objetivamente, o que elaborou subjetivamente. Onde começa e onde termina, nesse caso, o que é subjetivo e o que é objetivo? E o que é individual e o que é social? Por isso falamos em dialética subje­ tividade-objetividade. De qualquer modo, dissemos que há uma especificidade no objeto da Psicologia Social, que procuramos apontar com a formulação de que essa área deve tratar da dimensão subjetiva dos fenômenos sociais. Com isso, estamos nos referindo às construções da subjetividade que também são constitutivas desses fenômenos. Entendendo que o objeto da Psicologia Social é a dimensão subjeti­ va dos fenômenos sociais, podemos apontar alguns exemplos do que en-
  • 33. 14fl HCX K • GONÇALVES tendemos por fenômenos sociais. E aí já está posta a compreensão sócio- -histórica, ou seja, a identificação dos fenômenos sociais parte da noção de que há um processo material e contraditório que configura aspectos da realidade como fenômenos sociais. Uma maneira de configurar os fenômenos sociais na sua articulação com as características do capitalismo é reconhecer a existência da questão social, o que só se torna possível, ou de certa forma se impõe como uma necessidade, no capitalismo. Nas palavras de Castel (2000, p. 238): (...) uma aporia fundamental, uma dificuldade central, a partir da qual uma sociedade se interroga sobre sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fra­ tura. É, em resumo, um desafio que questiona a capacidade de uma socie­ dade de existir como um todo, como um conjunto ligado por relações de interdependência. A identificação da questão social traria a possibilidade de "(...) saber quem estabelece a coesão e em que condições ela se dá numa determinada sociedade" (Wanderley, 2000, p. 56), análise desenvolvida, por exemplo, por Wanderley (2000), que aponta suas especificidades na América Lati­ na, e por Castel (2000), que apresenta as transformações da questão social ao longo do capitalismo. Compreendida de maneira indissociada da contra­ dição fundamental da sociedade capitalista, a contradição capital-trabalho, a chamada questão social, pode nos remeter à identificação de processos de sustentação, também contraditória, das relações sociais, no interior das quais se reconhece a dialética subjetividade-objetividade. Tendo isso por base, é possível dizer que o processo contraditório do capitalismo atual implica, na contemporaneidade, três características básicas para a questão social: 1) a desestabilização dos estáveis; 2) a ins­ talação da precariedade e o desenvolvimento da cultura do aleatório; 3) o surgimento dos sobrantes (Castel, 2000), com a produção de indivíduos desfiliados. A partir disso, a questão social configura-se como um conjunto de fenômenos sociais, com características que condicionam determinadas experiências para os sujeitos.
  • 34. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA REAt IDADE Há uma concepção de indivíduo atrelada a essas situações, de deses- tabilização, precariedade, desfiliação. Resumidamente o indivíduo "des­ cartável": não está preso a nada, tudo que vive é temporário, não faz falta à sociedade. Essa identificação nos leva a apontar que há uma dimensão subjetiva na questão social. Como outro elemento da questão social contemporânea, pode-se identificar a contraposição: direitos x mercado. Quando se fortalece o se­ gundo em detrimento do primeiro, o que se tem é a realização de uma concepção de indivíduo que vale pelo que tem e não pelo que é. Há uma dimensão subjetiva nessa relação produzida socialmente: indivíduos não se reconhecem como sujeitos de direitos. Outro elemento refere-se às formas de inserção e participação social. Indivíduos que recebem benefícios, sem nenhuma possibilidade de de­ cidir sobre isso, são negados também como sujeitos (ver Paugam, 1999). Isso será vivenciado e produzirá efeitos de subjetivação que terão seus desdobramentos. Há aí uma dimensão subjetiva. Alguns outros exemplos de análise de fenômenos sociais podem aju­ dar a avançar na compreensão que aqui se defende. A desigualdade social (talvez nossa mais importante questão social), que tem caracterizado nossa sociedade, tem sido estudada em várias de suas dimensões: econômica, sociológica, jurídica, antropológica e outras. A dimensão subjetiva tem sido relegada, e a Psicologia Social tem contri­ buído pouco para que essa dimensão tenha visibilidade. A dimensão subjetiva da desigualdade social está posta na presença dos sujeitos, presença essa que caracteriza e constitui o fenômeno. Não se pode estudar a desigualdade social como se ela existisse apenas para além e fora dos sujeitos que se relacionam e constroem a desigualdade. Evidentemente, a desigualdade é produzida pela divisão da sociedade em classes, pela divisão desigual da riqueza produzida, pela determina­ ção de lugares diferentes a serem ocupados por diferentes grupos sociais na organização que define as formas de produção e distribuição de ri­ quezas. Nesse sentido, podem-se apontar aspectos da realidade, como a distribuição desigual da riqueza, como a base material da desigualdade.
  • 35. 150 BOCK • GONÇALVES Mas essa distribuição acontece e se reproduz cotidianamente pela atua­ ção de sujeitos, os quais, além de desenvolver uma atividade delimitada pelas relações concretas e objetivas, também desenvolvem atividade sub­ jetiva. Produzem ideias e valores que representam a realidade vivida e que compõem essa mesma realidade, porque são sujeitos que produzem subjetividade, na dialética já apontada. Os processos sociais que implicam produção de alienação e ideolo­ gia estão presentes aqui e também se tornam mediações constitutivas da dimensão subjetiva desse fenômeno. Ou seja, a produção subjetiva está articulada às condições objetivas em que se dá e nas quais opera e resul­ ta em produtos, tais como a ideologia, reveladores desse processo. Tais processos e condições objetivas estão constituídos com base nas contra­ dições, por isso a dimensão subjetiva do fenômeno social será também contraditória. Compreender a relação indivíduo-sociedade no mundo desigual tor­ na indispensável que se compreendam os indivíduos que se fazem pre­ sentes e ativos na produção da desigualdade e que se compreendam os produtos coletivos que esses “sócios" criam e que vão caracterizando a realidade social que adjetivamos como desigual. A vivência, quase nun­ ca explícita, mas tomada como natural, da subalternidade é exemplo dis­ so. Indivíduos que estão em lugares desiguais se põem como "acima" ou "abaixo" uns dos outros sem que isso esteja posto em questão. A Psicologia Social deve, assim, ao estudar o fenômeno da desigual­ dade social, por exemplo, buscar a presença do sujeito, afirmando a uni­ dade dialética entre indivíduo e sociedade. Conceitos como humilhação social (Gonçalves Filho, 2007,2004,1998) ou sofrimento ético-político (Sawaia, 1998) são importantes sistematiza­ ções que caracterizam a dimensão subjetiva das situações de dominação e desigualdade sociaL Há sujeitos que sentem e com suas formas de sen­ tir constituem a realidade social da desigualdade. Há sentidos subjetivos constituídos; há significados partilhados e todos eles são também aspec­ tos do fenômeno. Não se quer aqui pensar esses aspectos como mera con­ sequência de situações sociais de desigualdade, pois eles não o são. São, ao contrário, aspectos que compõem o fenômeno da desigualdade, que
  • 36. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 151 só se apresenta como tal porque sujeitos participam de sua constituição, com seus sentimentos, ações, formas de pensar e de sentir. Sabe-se hoje que os sujeitos, que ocupam diferentes lugares nas re­ lações sociais desiguais, têm participações distintas na esfera social. Há sujeitos doadores e há sujeitos receptores; há os que têm propriedades e os que não as tem; há os que se pensam desiguais porque tomam o outro como o padrão ou modelo. Formas diferentes de sentir e de pensar cons­ tituindo relações de submissão. São formas reveladoras, ao mesmo tem­ po, de possibilidades contraditórias, considerando a tensão permanente entre a alienação produzida nos esquemas sociais que isolam e apartam os indivíduos, naturalizando fenômenos históricos, por um lado, e, por outro, a presença de indivíduos vivos que geram sentidos subjetivos. É a dimensão subjetiva do fenômeno social que precisa ter visibilidade para que se compreenda de forma mais complexa e completa o fenômeno so­ cial que se estuda, em seu processo contraditório de constituição. A Psicologia Social deve ultrapassar sua tradição de nomear objetos ou reproduzir, no seu campo, leituras construídas em outras áreas do sa­ ber que, apesar de importantes, descaracterizam a especificidade da Psi­ cologia, para contribuir com explicações que dão visibilidade à presença do sujeito na construção dos fenômenos coletivos. A configuração da violência como fenômeno social deve também con­ siderar os mesmos pressupostos. É preciso reconhecer a produção do fenô­ meno a partir da materialidade e da historicidade das relações sociais. A dimensão subjetiva nesse fenômeno social também deve ser vista da perspectiva da dialética subjetividade-objetividade e indivíduo-socieda­ de. As visões naturalizantes culpabilizam os indivíduos pelos problemas sociais ou apontam certo esquema social abstrato como responsável por "desvios" dos indivíduos.7A visão sócio-histórica aponta a complexida­ de do fenômeno, que inclui uma dimensão subjetiva na qual se imbricam aspectos subjetivos individuais que constituem os fenômenos sociais; as­ pectos objetivos dos quais se apropriam os indivíduos e que constituem 7. Tais análises são bom exemplo da dicotomia indivíduo-sociedade presente na Psicologia So­ cial, à qual já nos referimos anteriormente.
  • 37. 152 BOCK • GONÇALVES sua subjetividade; e aspectos subjetivos que já estão incorporados à ob­ jetividade e dela fazem parte. Por exemplo, a dimensão cultural da violência, ou seja, a violência como valor que perpetua as relações da sociabilidade cotidiana de cer­ tos grupos e de certas comunidades, é um produto subjetivo social; é a dimensão subjetiva presente no fenômeno social da violência. Seria um desafio para a Psicologia encontrar mecanismos de reversão de um con­ texto social em que há socialização para a violência.8 Os estudos de Coimbra (2001) a respeito da produção ideológica realizada pela mídia sobre as "classes perigosas" mostram-nos, com cla­ reza, que as noções de violência são produzidas socialmente. O domínio da elite sobre a mídia facilita a expansão de seus conceitos para toda a sociedade e esse processo vai produzindo "certezas" e critérios de julga­ mento sobre quem é violento ou o que é violência em nossa sociedade, atingindo, como mostra Coimbra, em especial, a camada pobre da socie­ dade que passa a ser vista como "classe perigosa". Pensar (...) como certas subjetividades tão presentes no cotidiano das gran­ des cidades brasileiras — aplausos e apoios aos extermínios e chacinas, aos linchamentos, à pena de morte e às mais diferentes violações de direi­ tos humanos — são construções competentes e eficazes advindas de dife­ rentes equipamentos sociais, é um dos objetivos deste trabalho. (Coimbra, 2001, p. 18) Outro aspecto importante do tema da violência é que, quando não nos detemos na compreensão da dimensão subjetiva dos fenômenos, deixamos de diferenciar situações e sujeitos que, em diferentes cenários, produzem ações com intenções diversas, mas que nossa superficialidade e ideologia reúnem sob o mesmo título. Assim, pessoas que lutam pela sobrevivência combatendo adversidades se misturam, nos conceitos de violência, com 8. Ver no relatório do I Seminário de Psicologia e Políticas Públicas, do Conselho Federal de Psi­ cologia (2001), a fala de Luís Flávio Sapori, com uma análise sobre segurança pública a partir desse viés das relações de sociabilidade.
  • 38. A DIMENSÃO SUBIETIVA DA KfALIDADE 153 representantes do Estado que abusam da autoridade e da força em nome de uma "ordem" suoosta e imposta a todos. A violência vista sem consi­ deração aos determinantes sociais, econômicos, antropológicos e psicoló­ gicos é pura ideologia. À Psicologia Social cabe contribuir para a análise completa e complexa do fenômeno, dando visibilidade a aspectos que são de natureza subjetiva, no âmbito individual e/ou coletivo. O desafio nestas construções teóricas é exatamente escapar do vício da dicotomia. É preciso pensar sujeito e sociedade (fenômenos sociais) se constituindo em um mesmo processo, no qual existem estes dois âm­ bitos, que são fundamentais para a compreensão da totalidade do real. Outro desafio é conhecer o fenômeno em seu processo histórico de cons­ tituição. A realidade não está dada; ela está em movimento e deve ser conhecida na sua dialética. Os sujeitos e a sociedade são construídos em um único processo. Por que defender visões históricas? Se não há conhecimento neutro, há que se fazer escolhas. A defesa que se faz aqui de visões que não naturalizem os fenôme­ nos sociais tem um de seus argumentos mais fortes no projeto de uma Psicologia que se ponha efetivamente comprometida com as urgências de nossas sociedades de Terceiro Mundo. Nada está dado; nada é imutá­ vel; tudo pode e deve ser modificado pelos humanos que partilham um tempo histórico. A Psicologia pode e deve reforçar ideias que permitam aos sujeitos se pensarem como ativos, sociais e históricos, responsáveis pelo seu tempo e pelas condições de vida. As perspectivas históricas permitem acreditar que não há um único modo verdadeiro de se estar no mundo. Há muitas possibilidades, pois o humano está em permanente construção. Permitem-nos ainda nos pensarmos como responsáveis pelo mundo que temos; construímos ou reconstruímos o mundo todos os dias com nossas ações, nossas ideias, nossos afetos. A forma como pensamos e
  • 39. 154 BOCK • GONÇALVES agimos constitui o mundo da forma como se encontra. Somos responsá­ veis pelo mundo que temos e podemos querer que seja diferente. É neste campo que se coloca a ideia de projeto. Para que se possa estar no mundo de modo responsável é preciso escolher que projeto de sociedade e de humano desejamos incentivar com nossas explicações e com nossos fazeres profissionais. Anoldo Rodrigues pensou a ciência como algo à parte da política, da ação cidadã de cada um. Aqui se pensa a ciência como sempre comprome­ tida com algum projeto que circula na sociedade. A Associação Brasileira de Psicologia Social nasce guiada por esta outra perspectiva. Infelizmente não produzimos até hoje conhecimento científico radicalizado na reflexãosobre nossa própria realidade social e, emdecorrência, continua­ mos a importar teorias psicológicas nem sempre aplicáveis. Adependência cultural temse refletido até mesmo nos temas mais frequentes da investiga­ ção da Psicologia Social, geralmente escolhidos sem qualquer preocupação com aspectos de relevância ou aplicabilidade ao contexto brasileiro. Assim (...) não temos utilizado esta ciência para responder às questões sociais es­ pecíficas do momento histórico que vivemos. (Anais do I Encontro Nacio­ nal de Psicologia Social, apud Lane, 1981, p. 84) E como se pensa o sujeito como ativo, social e histórico, se acredi­ ta na sua possibilidade de escolha, ou seja, de adesão a um dos projetos em circulação e disputa nos espaços sociais. A ciência não é ingênua e deve, pois, explicitar seus pressupostos e suas concepções de homem e de mundo para que se possa dialogar com seus saberes tanto do ponto de vista da lógica de suas ideias, quanto do projeto social que incentiva e ajuda a desenvolver. Finalizamos com Lane, que reconhecemos como importante referên­ cia neste caminho. Ao afirmar que toda a psicologia é social, defendendo que se assuma a natureza histórico-social do ser humano, conclui: "Porém, agora, a Psicologia Social poderá responder à questão de como o homem é sujeito da História e transformador de sua própria vida e da sua sociedade, assim como qualquer outra área da Psicologia". (Lane, 1984, p. 19)
  • 40. A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE 155 Referências bibliográficas BOCK, A. M. B. Aventuras do Barão de Munchhausen na Psicologia. São Paulo: Cor- tez/EDUC, 1999. CASTELL, R. As transformações da questão social. In: WANDERLEY, M. B.; BÓGUS, L.; YAZBEK, C. (orgs.). Desigualdade e a questão social. São Paulo: EDUC, 2000, p. 235-264. , CHAUI, M. Convite à Filosofia. 3. ed. São Paulo: Ática, 1995. COIMBRA, C. Operação Rio: o mito das classes perigosas. Rio de Janeiro/Niterói: Oficina do Autor/Intertexto, 2001. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relatório do I Seminário Nacional de Psicologia e Políticas Públicas — políticas públicas como um desafio para os psicólogos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001, p. 87-109. Também disponível em: <www.pol.org.br>. FURTADO, O. O psiquismo e a subjetividade social. In: BOCK, A. M. B.; GON­ ÇALVES, M. G. M.; FURTADO, O. (orgs.). Psicologia Sócio-Histórica, uma perspecti­ va crítica em Psicologia. São Paulo: Cortez, 2001, p. 75-94. _____ . As dimensões subjetivas da realidade — uma discussão sobre a dicoto­ mia entre a subjetividade e a objetividade no campo social. In: FURTADO, O.; GONZÁLEZ REY, F. L. (orgs.). Por uma epistemología da subjetividade: um deba­ te entre a teoria sócio-histórica e a teoria das representações sociais. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002, p. 91-105. GONÇALVES FILHO, J. M. Humilhação social: um problema político em Psico­ logia. Psicologia USP, v. 9, n. 2, p. 11-67,1998. _____ .Ainvisibilidade pública (prefácio). In: COSTA, F. B. Homens invisíveis: re­ latos de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004, p. 9-47. _____ . Humilhação social: humilhação política. In: SOUZA, B. P. (org.). Orien­ tação à queixa escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 187-221. GONÇALVES, M. G. M. A Psicologia como ciência do sujeito e da subjetivida­ de: a historicidade como noção básica. In? BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G. M.; FURTADO, O. (orgs.). Psicologia Sócio-Histórica: uma perspectiva crítica em Psicologia. São Paulo: Cortez, 2001a, p. 37-52.